Eça de Queirós 1901 A Cidade e as Serras “Enganados pela ciência, embrulhados nas subtilezas balofas da economia política, maravilhados como crianças pelas habilidades da mecânica, durante setenta anos construímos freneticamente vapores, caminhos de ferro, máquinas, fábricas, telégrafos, uma imensa ferramentagem, imaginando que por ela realizaríamos a felicidade definitiva dos homens e mal antevendo que aos nossos pés e por motivo mesmo dessa nova civilização utilitária se estava criando uma massa imensa de miséria humana, e que, com cada pedaço de ferro que fundíamos e capitalizávamos, íamos criar mais um pobre!” Gazeta de notícias do Rio de Janeiro 23 / abril / 1885 Bibliografia • Romantismo: Prosas bárbaras (1905) • Realismo – Naturalista: O crime do padre Amaro (1875) O primo Basílio (1878) Os Maias (1888) • Realismo – Fantasista: A relíquia (1887) A ilustre casa de Ramires (1900) A cidade e as serras (1901) Classificação geral da obra: • Pertence à fase chamada de Realismo-fantasista. • Romance Realista que mescla tendências do próprio Realismo, do Romantismo, do Impressionismo e do Naturalismo. • Narrativa metafórica, de significado simbólico. • Romance de espaço. Informações iniciais sobre o livro: • Desenvolvido a partir do conto Civilização. • Narrador em primeira pessoa – José Fernandes – amigo de Jacinto (narrador testemunha). • O tempo da narrativa se estende de 1820 até 1893. • Pode ser entendido como uma alegoria – a felicidade está na vida simples do campo e não no artificialismo da civilização urbana. • O romance é composto de 16 capítulos e dividido claramente em duas partes. Primeira parte – Paris “A cidade” Segunda parte – Tormes “As serras” Do capítulo 01 até metade do capítulo 08 Da metade do capítulo 08 até o final da obra. Jacinto se deixa vencer por um tédio irresistível e um pessimismo atroz Jacinto encontra a felicidade e o entusiasmo na vida simples e no meio rural Poder de ironia e talento caricatural Carga de lirismo com descrições impressionistas Foco narrativo: • Primeira pessoa – não confiável (inviabiliza a classificação do livro como um romance de tese) • Narrador-testemunha deuteragonista • Parcialidade – ligação com a terra • Reforço da perspectiva impressionista • Personagem mais exposto de toda a obra Jacinto Galeão Dona Angelina Cintinho JOSÉ FERNANDES NARRADOR – TESTEMUNHA DEUTERAGONISTA Teresinha Velho JACINTO PRÍNCIPE DA GRÃ VENTURA PROTAGONISTA SUMA CIÊNCIA SUMA POTÊNCIA SUMA FELICIDADE Capítulo 1 Por uma conclusão bem natural, a idéia de Civilização, para Jacinto, não se separava da imagem de Cidade, duma enorme Cidade, com todos os seus vastos órgãos funcionando poderosamente. Nem este meu supercivilizado amigo compreendia que longe de armazéns servidos por três mil caixeiros; e de Mercados onde se despejam os vergéis e lezírias de trinta províncias; e de Bancos em que retine o ouro universal; e de Fábricas fumegando com ânsia, inventando com ânsia; e de Bibliotecas abarrotadas, a estalar, com a papelada dos séculos; e de fundas milhas de ruas, cortadas, por baixo e por cima, de fios de telégrafos, de fios de telefones, de canos de gases, de canos de fezes; e da fila atroante dos ônibus, tramas, carroças, velocípedes, calhambeques, parelhas de luxo; e de dois milhões duma vaga humanidade, fervilhando, a ofegar, através da Polícia, na busca dura do pão ou sob a ilusão do gozo - o homem do século XIX pudesse saborear, plenamente, a delícia de viver! Quando Jacinto, no seu quarto do 202, com as varandas abertas sobre os lilases, me desenrolava estas imagens, todo ele crescia, iluminado. Que criação augusta, a da Cidade! Só por ela, Zé Fernandes, só por ela, pode o homem soberbamente afirmar a sua alma!... Personagens: JACINTO • Protagonista – representa a elite portuguesa ultracivilizada que se desenraizou do solo e da cultura lusitana. • Trajetória sintetizada: [negação do campo / negação da cidade / síntese dialética] • Referência ao mito grego de Jacinto, transformado em flor por Apolo. ZÉ FERNANDES • Representa o fidalgo culto, viajado e perfeitamente identificado com suas raízes rurais lusitanas. • Espírito prático e benigno. • Temperamento afetuoso e compreensivo • Personificação da amizade • Caráter energético, marcado pela ironia, malicia e até cinismo. • Forma um par com o protagonista • Duplo de Jacinto – podem ser considerados uma versão modernizada de D.Quixote e Sancho Pança CARICATURAS • • • • • • • • • • • • • Condessa de Trèves Conde de Trèves Efraim – banqueiro judeu Diretor do jornal Boulevard Duque de Marizac Dornan – poeta neoplatônico Madame de Oredal Madame de Oriol Madame Verghane Princesa de Carman Grão Duque Casimiro Madame Colombe Maurício de Mayolle Capítulo 3 E foi justamente numa dessas noites (um Sábado) que nós passamos, naquele quarto tão civilizado e protegido, por um desses brutos e revoltos terrores como só os produz a ferocidade dos Elementos. Já tarde, à pressa (jantávamos com Marizac no clube para o acompanhar depois ao Lobengrin na Ópera) Jacinto arrochava o nó da gravata branca - quando no lavatório, ou porque se rompesse o tubo, ou se dessoldasse a torneira, o jato de água a ferver rebentou furiosamente, fumegando e silvando. Uma névoa densa de vapor quente abafou as luzes - e, perdidos nela, sentíamos, pôr entre os gritos do escudeiro e do Grilo, o jorro devastador batendo os muros, esparrinhando uma chuva que escaldava. Sob os pés o tapete ensopado era uma lama ardente. E como se todas as forças da natureza, submetidas ao serviço de Jacinto, se agitassem, animadas por aquela rebelião da água - ouvimos roncos surdos no interior das paredes, e pelos fios dos lumes elétricos sulcaram faíscas ameaçadoras! Eu fugira para o corredor, onde se alargava a névoa grossa. Por todo o 202 ia um tumulto de desastre. Diante do portão, atraídas pela fumarada que se escapava das janelas, estacionava polícia, uma multidão. E na escada esbarrei com um repórter, de chapéu para a nuca, a carteira aberta, gritando sofregamente “se havia mortos?” -Meus amigos, há uma desgraça... Dornan pulou na cadeira: -Fogo? -Não, não era fogo. Fora o elevador dos pratos que inesperadamente, ao subir o peixe de S. Alteza, se desarranjara, e não se movia encalhado! O Grão duque arremessou o guardanapo. Toda a sua polidez estalava como um esmalte mal posto: -Essa é forte!... Pois um peixe que me deu tanto trabalho! Para que estamos nós aqui então a cear? Que estupidez! E por que o não trouxeram à mão, simplesmente? Encalhado... Quero ver! Onde é a copa? E, furiosamente, investiu para a copa, conduzido pelo mordomo que tropeçava, vergava os ombros, ante esta esmagadora cólera de Príncipe. Jacinto seguiu, como uma sombra, levado na rajada de S. Alteza. E eu não me contive, também me atirei para a copa, a contemplar o desastre, enquanto Dornan, batendo na coxa, clamava que se ceasse sem peixe! O Grão-Duque lá estava, debruçado sobre o poço escuro do elevador, onde mergulhara uma vela que lhe avermelhava mais a face esbraseada. Espreitei, por sobre o seu ombro real. Em baixo, na treva, sobre uma larga prancha, o peixe precioso alvejava, deitado na travessa, ainda fumegando, entre rodelas de limão. Jacinto, branco como a gravata, torturava desesperadamente a mola complicada do ascensor. Depois foi o Grão-Duque que, com os pulsos cabeludos, atirou um empuxão tremendo aos cabos em que ele rolava. Debalde! O aparelho enrijara numa inércia de bronze eterno. Capítulo 4 Informações importantes – Parte I • No primeiro capítulo acontece a apresentação das origens e das teorias de Jacinto, além de sua relação com Zé Fernandes. • Passam-se sete anos entre o primeiro e o segundo capítulo. No reencontro, José Fernandes hospeda-se no 202. • A partir do capítulo três o império de Jacinto começa a ruir literalmente. • No capítulo quatro, após o fatídico jantar, Jacinto recebe a notícia do acidente em Tormes. • Zé Fernandes se envolve com Madame Colombe durante algumas semanas, mas ela o abandona no capítulo cinco. • Os amigos fazem um passeio a Mont Martre, à Basílica de SacréCoeur e, ao observar Paris, Jacinto diz: - Sim, é tudo uma ilusão... E a cidade a maior ilusão! E foi uma dessas tardes, em que o meu Príncipe assim procurava desesperadamente um “bocado de frescura e paz”, que encontramos, ao meio da escadaria suave, entre as palmeiras, o marido de Madame de Oriol. Eu já o conhecia - porque Jacinto mo mostrara uma noite, no Grand Café, ceando com dançarinas do Moulin Rouge. Era um moço gordalhufo, indolente, de uma brancura crua de toucinho, com uma calvície já séria e já lustrosa, constantemente acariciada pelos seus gordos dedos carregados de anéis. Nessa tarde, porém, vinha vermelho, todo emocionado, calçando as luvas com cólera. Estacou diante de Jacinto - e sem mesmo lhe apertar a mão, atirando um gesto para o patamar: -Visita lá acima? Vai achar a Joana em péssima disposição... Tivemos uma cena, e tremenda. Deu outro puxão desesperado à luva cor de palha, já esgaçada: -Estamos separados, cada um vive como lhe apetece, é excelente! Mas em tudo há medida e forma... Ela tem o meu nome, não posso consentir que em Paris, com conhecimento de todo o Paris, seja a amante do trintanário. Amantes da nossa roda, vá! Um lacaio, não!... Se quer dormir com os criados que emigre para o fundo da província, para a sua casa de Corbelle. E lá até com os animais!... Foi o que lhe disse! Ficou como uma fera. Sacudiu então a mão de Jacinto que “era da sua roda” - rebolou pela escadaria florida e nobre. O meu Príncipe, imóvel nos degraus, de face pendida, cofiava lentamente os fios pendidos do bigode. Depois, olhando para mim, como um ser saturado de tédio e em quem nenhum tédio novo pode caber: -Já agora subamos, sim? A TRANSIÇÃO - Capítulo 8 Da cidade para a serra PERSONAGENS SECUNDÁRIAS DE MAIOR IMPORTÂNCIA Generalizações que ilustram tipos humanos, modelos gerais de comportamento ou personalidade. • • • • Grilo Tia Vicência Silvério Joaninha Jacinto caminhou lentamente para o poial duma janela, onde caiu esbarrondado pelo desastre, sem resistência ante aquele brusco desaparecimento de toda a Civilização! Eu palpava a enxerga, dura e regelada como um granito de Inverno. E pensando nos luxuosos colchões de penas e molas, tão prodigamente encaixotados no 202, desafoguei também a minha indignação: -Mas os caixotes, caramba?... Como se perdem assim trinta e tantos caixotes enormes?... Jacinto sacudiu amargamente os ombros: -Encalhados, por aí, algures, num barracão!... Em Medina, talvez, nessa horrenda Medina. Indiferença das Companhias, inércia do Silvério... enfim a Península, a barbárie! Vim ajoelhar sobre o outro poial, alongando os olhos consolados por céu e monte: -É uma beleza! O meu Príncipe, depois de um silêncio grave, murmurou, com a face encostada à mão: -É uma lindeza... E que paz! Sob a janela vicejava fartamente uma horta, com repolho, feijoal, talhões de alface, gordas folhas de abóbora rastejando. Uma eira, velha e mal alisada, dominava o vale, de onde já subia tenuemente a névoa de algum fundo ribeiro. Toda a esquina do casarão desse lado se encravava em laranjal. E duma fontinha rústica, meio afogada em rosas tremedeiras, corria um longo e rutilante fio de água. -Estou com apetite desesperado daquela água! - declarou Jacinto, muito sério. Informações importantes – Parte II • O capítulo oito é o maior do livro e pode ser entendido como o da grande transição. Tanto a decisão da mudança, quanto a viagem e o impacto da chegada na serra estão contidos nele. • Jacinto decide ficar em Tormes para o espanto do narrador. No capítulo nove integra-se completamente à vida no campo e é realizada a inauguração da igrejinha e o traslado das ossadas. • O contato com a pobreza das serras ocorre no capítulo dez e Jacinto passa a contribuir para o progresso do lugar, decidido que está a construir casas para todos, uma escola, uma creche para os bebês, uma biblioteca, uma farmácia, etc... • Há uma referência explícita ao Sebastianismo no capítulo onze, quando Jacinto,já popular na região passa a ser comparado a D.Sebastião, como se tivesse voltado para trazer progresso ao lugar. • Os capítulos doze e treze se passam na casa de Zé Fernandes, onde Jacinto é confundido com miguelistas devido ao comportamento de seu avô – Galeão e tratado com frieza pela vizinhança, com exceção de tia Vicência. Capítulo 13 Subindo a escada, o meu Príncipe desabafou: -Este Teotônio é extraordinário! Sabes o que descobri por fim?... Que me toma por um miguelista, e imagina que eu vim para Tormes preparar a rstauração de D. Miguel?! -E tu? -Eu fiquei tão espantado, que nem o desiludi! -Pois sabe mais, meu pobre amigo. Todos pensam o mesmo, estão desconfiados, e receiam ver de novo erguidas as forcas em Guiães! E corre que tu tens o Príncipe D. Miguel escondido em Tormes, disfarçado em criado. E sabes quem ele é? o Batista! -Isso é sublime! - murmurou Jacinto, com uns grandes olhos abertos. Na sala, a tia Vicência esperava-nos desconsolada, entre todas as luzes, que ardiam ainda no silêncio e paz do serão debandado: -Ora uma coisa assim! Nem quererem ficar para tomar um copinho de geléia, um cálice de vinho do Porto! -Esteve tudo muito desanimado, tia Vicência! - exclamei desafogando o meu tédio. - Todo esse mulherio emudeceu; os amigos com um ar desconfiado... Jacinto protestou, muito divertido, muito sincero: -Não! pelo contrário. Gostei menso. Excelente gente! E tão simples... todas estas raparigas me pareceram ótimas. E tão frescas tão alegres! Vou ter aqui bons amigos, quando verificarem que não sou miguelista. Tempo: Cinco blocos de tempo bem definidos • (1820 – 1854) - O avô de Jacinto escorrega em uma casca de laranja e o protagonista nasce. • (anos 1870) – juventude entusiasta do protagonista. • (fev 1887 – fev 1888) – cotidiano sufocante de Jacinto em Paris. • (abr 1888 – mai 1889) – reconquista da alegria de viver no campo. • (1894 ... ) – felicidade familiar de Jacinto com sua mulher e filhos. Espaço: BLOCO I (DOS CAPÍTULOS I AO VII) CIDADE • Mundo da cultura e civilização • Espaço do progresso científico e tecnológico • Responsável pela humanização do homem CAMPO • Domínio da natureza e da selvageria • Degradação do homem • Redução da condição humana à bestialidade. Espaço: BLOCO II (DOS CAPÍTULOS IX AO XVI) CIDADE • Espaço de aviltamento do homem • Progresso visto como ilusão • Luxo da minoria decorrente da condição miserável da maioria CAMPO • Natureza vista como espaço de libertação da inteligência • Idealização da vida rural • Vida campestre como fonte de paz e felicidade Intertextualidade: “Afortunado Jacinto, na verdade! Agora, entre campos que são teus e águas que te são sagradas, colhes enfim a sombra e a paz!” Virgílio – Séc I a.C. Outras referências intertextuais: • • • • • • • • • • D. Quixote – Cervantes Livro do Eclesiastes – Bíblia Odisséia – Homero O mundo como vontade e representação – Arthur Schopenhauer As Geórgicas e As Bucólicas – Virgílio Hesíodo Voltaire Platão Eurípedes Sófocles Finalizando... • No capítulo 14 o final feliz é preparado com o encontro entre Jacinto e Joaninha e a informação de que os dois se casaram em poucos meses. • O capítulo 15 se passa depois de 5 anos de felicidade do casal e o nascimento de dois filhos, a primogênita Terezinha e Jacintinho. • No último capítulo, o narrador retorna a paris e encontra a mesma sociedade fútil e superficial. Revê o 202 e se sente como que percorrendo um museu com toda a sua parafernália em inatividade.