Era uma vez, há muito tempo....o rádio
- Oralidade e Tecnologia no Cotidiano Globalizado Marta Campos de Quadros1
Introdução
O rádio se encontra no final do século XX mais presente do que nunca na vida das pessoas. Meio de
comunicação que se caracteriza pela oralidade, agilidade e instantaneidade, é insubstituível para dar as boas
e as más novas em primeira mão. Aperfeiçoado dia a dia, o rádio já entrou na Internet e demonstrou a sua
capacidade de se adaptar aos avanços tecnológicos e às diversas sociedades. Como veículo de comunicação
massiva com certeza é quem presta maior serviço. A capilaridade mais profunda da comunicação está
representada nesse veículo que tem o poder de dar resposta instantânea, com a capacidade de uma quase
onipresença, cobrindo literalmente toda a superfície do planeta (...)( ALMEIDA; 1997: 14).
Estes mais de cem anos do rádio também são marcados por contundentes e velozes transformações:
tecnologia digital, Internet, CD, fibras óticas. O satélite alarga a amplitude de recepção iniciada com a
introdução do transistor e dos circuitos integrados nas décadas de 40 e 60. A velocidade de emissão e
transmissão da mensagem é o objetivo de quem explora ou se utiliza desta tecnologia. O computador, agora,
alia-se ao universo radiofônico , barateando custos, agilizando a operação, através da digitalização e
automação dos processos de gravação, edição e veiculação da mensagem radial com qualidade superior .
O rádio afeta as pessoas, digamos, como que pessoalmente, oferecendo um mundo de
comunicação não expressa entre o escritor-locutor e o ouvinte. Este é o aspecto mais imediato do rádio.
Uma experiência particular. Desta forma, McLUHAN ( 1979:336) comenta a ação do rádio sobre a
audiência, enquanto um tambor tribal capaz de causar ressonância simultânea na psique do ouvinte e na
sociedade como se fossem integrantes de uma única câmara de eco com propriedades subliminares inclusivas
e envolventes que atuam através de imagens auditivas.
Os diferentes contextos e múltiplos percursos resultantes das peculiaridades de cada lugar e de suas
conjunturas, assistiram ao surgimento e desenvolvimento da tecnologia radiofônica. A chegada da televisão
acabou por transformar o rádio em uma espécie de sistema nervoso de informação. Notícias, hora certa,
informações sobre o tráfego e acima de tudo, informações sobre o tempo agora servem para enfatizar o
poder do rádio de envolver as pessoas umas com as outras.(McLUHAN, 1979: 335).
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Professora do Curso de Comunicação Social da Universidade Luterana do Brasil e mestranda em Comunicação Social pela
PUCRS/RS
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No entanto, o mundo hoje é atravessado pelo processo de globalização que tem se caracterizado
pela dissolução das estruturas nacionais, mundialização das sociedades, flexibilização do capital, além do
desenvolvimento de novas tecnologias que deslocam os indivíduos, lançando-os num planeta-mundo, em
que todos são perpassados pela mundialização da cultura (ORTIZ, 1994; MATTELART, 1996; IANNI,
1995).
A sociedade da informação redefine os conceitos de espaço e tempo, desterritorializando e
descarnando o homem, como afirmam McLUHAN e POWERS ( 1992) Levado ao limite, o processo
tecnológico poderia causar um efeito de reversão: todos se envolveriam no que originalmente significaria
uma comunicação particular. As tecnologias auditivas geram, como seu maior efeito social, a remoção da
identidade de quem fala. O emissor se torna uma espécie de fantasma acústico, capaz de evocar na audiência
suas imagens tribais mais profundamente adormecidas. Estas transformações tecnológicas assumem papel
vital no encurtamento das distâncias, unificando o planeta, incorporando a metáfora2 da aldeia global.
Porém, a aldeia global está apoiada em um conceito de comunidade que algumas vezes se
confunde com a humanidade como um todo e outras será relativa a pequenos grupos urbanos que emergem
a partir de uma finalidade e solidariedade momentânea dentro do próprio cotidiano (MAFFESOLI:1987). A
humanidade participa e assiste à uma retribalização com nuanças muito próprias. Este tipo de comunitarismo
surge como uma conseqüência das tensões estabelecidas entre o local e o global, num ambiente ainda
híbrido, na busca de uma identidade que não se confunde com fronteiras raciais e nacionais.
Neste contexto repleto de paradoxos, qual é o papel reservado ao rádio informativo em um mundo
atravessado pelo próprio mundo, onde, inicialmente, não há espaços para o local, para a diferença, para a
profusão e difusão de vozes diversas? Estas indagações nos remetem à busca de aproximações possíveis, já
que a literatura dedicada à globalização reserva pouco espaço ao rádio nos estudos sobre a mídia.
Preponderam pesquisas, artigos, ensaios, referentes aos destinos da imprensa e às possibilidades e efeitos da
televisão.
Considerando os elementos da mensagem, especialmente a oralidade, e da tecnologia radiofônica
buscamos estabelecer pistas sobre o papel que o rádio informativo desempenha no cotidiano globalizado.
Nossa hipótese vislumbra o rádio como um narrador da aldeia que viaja a múltiplos lugares e tempos,
mistura-se às pessoas e ocorrências do cotidiano, observando a tudo e a todos, sem ser visto; e que, de volta
ao seu lugar, este narrador conta a sua tribo o que viu e ouviu, fazendo com que os lugares mais longínquos
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Cf. McLUHAN e POWERS (1992), metáfora deve ser aqui entendida como a percepção de uma situação nova e
complexa através de uma outra situação já conhecida. MAFFESOLI ( 1988), sobre a metáfora, afirma que esta é
uma colagem, transporta para um mesmo lugar e reune formas e conteúdos aparentenente dispersos mas
formadores da estrutura mundana de uma determinada época
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pareçam a ele pertencer. O seu contar tem características muito próprias. Ainda que produzido
intencionalmente para ser ouvido, guarda semelhanças com o contador de histórias. Cada acontecimento é
contado e recontado, até que um novo tome o seu lugar. Para amparar nosso caminho chegamos
prioritariamente a Walter BENJAMIN, Marshall McLUHAN e Michel MAFFESOLI e as metáforas do
narrador da aldeia , na obra do primeiro, de aldeia global junto ao segundo, e de tempo de tribos, nas
idéias do terceiro. Outros autores contemporâneos se fazem presentes para possibilitar o aprofundamento de
conceitos e idéias .3
1.Rádio: do que é feita esta caixinha de vozes?
A familiaridade com a tecnologia radiofônica faz com que o ouvinte nem se aperceba do que
exatamente são constituídas suas mensagens. O som, a palavra e a voz, o ruído e a melodia, matérias primas
deste meio, aliados ao silêncio, reproduzem o universo em que estamos mergulhados. A conversa
estabelecida entre locutor e ouvinte soa natural. Contudo, cada um destes elementos é fundamental, pois
nos remetem ao ambiente acústico e a oralidade no âmbito cultural.
KLIPPERT (In SPERBER;1980), comenta que o fenômeno transmitido através do rádio, mesmo
que ao vivo, não é mais idêntico ao original. Ele é isolado do seu contexto natural e depende de aparatos
tecnológicos para chegar ao cérebro humano, principalmente pela audição. Em nível cognitivo estes
estímulos sonoros geram imagens, portanto, o rádio trabalha com a evocação de experiências pertencentes
ao universo de cada um, mas possuidor de elementos comuns aos integrantes de um mesmo grupo ou
mesmo da humanidade4.
As palavras, elemento mais usado no rádio informativo, têm peso, forma, cor, textura e poder.
Como coloca FRANCK (Apud SPERBER; 1980:59) serão um campo de forças complexo e multipolar,
que se estende entre suas funções de corpo sonoro, denotação conceitual. evocação imagética e carga
afetiva(...). Guiada pela vontade, é o estágio criativo prévio, que leva da força da imaginação às formas
materiais de expressão.
McLUHAN e CARPENTER( 1974:92) afirmam que os poetas há muito tempo se utilizam das
palavras, evocando a imagem visual mediante acentuação da acústica, da sonoridade, como forma de tornar
presentificada, através da audição, uma coisa que não está presente. O homem pré-letrado tinha consciência
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N.A. As traduções de referências feitas a partir de edições estrangeiras foram feitas pela autora.
Cf. MAFFESOLI ( 1988:143) nesta dinâmica reside a conexão entre a forma e a estrutura na pós-modernidade.
“É próprio da arqueologia junguiana levar em consideração as grandes estruturas do imaginário que bem além de
certo estreitamento individual, interessam à e encontram eco na espécie humana inteira. É por esta caracterísitica
que o arquétipo dinâmico pode desempenhar um papel de polarizador para as múltiplas imagens que atravessam
nosso espaço cotidiano. (...)”
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deste poder que mais tarde a escrita anulou. O rádio restaurou-o. De fato, ao evocar a imagem visual (
através da palavra), o rádio é por vezes mais eficiente do que a própria vista. A palavra não gravita em
torno do real visível, mas este, perceptível mediante todos os outros sentidos, gira em torno da palavra, da
concepção acústica do mundo. Ela ilumina, capta no seu círculo acústico o que deseja ver subir à superfície
da consciência para ganhar sentido.
A luz que a palavra joga sobre o que quer ver significado está associada à voz. O sujeito da fala usa
todo o seu corpo nesta ação. A voz exteriorizada conta com um espaço de ressonância que vai além de
quem fala. Penetra o ambiente em que está inserido o ouvinte. A voz é a identidade, a localização geográfica
e emocional do falante que materializa e personifica a palavra. É bem verdade que voz e palavra, no rádio
informativo, são intencionalmente selecionadas e utilizadas dentro de várias condicionantes tecnológicas e
técnicas, contudo, produz efeitos muito semelhantes ao falar natural.
O ruído, radiofonicamente, tem múltiplas possibilidades. Quando identificados pelo ouvinte , tem
função de voz; preenche um espaço e permite associações ao ambiente em que se desenrola uma situação. A
melodia, por sua vez, pode assumir idênticas funções, entretanto, evoca muito mais facilmente associações
através dos registros afetivos de cada ouvinte..
Como instrumento de comunicação que veicula idéias e reporta o cotidiano, o rádio informativo tem
também aspectos puramente tecnológicos que o caracterizam como prolongamento do cérebro e sentidos
humanos e que contribuem para o valor comunicacional a ele atribuído. Contemporaneamente, além do
baixo custo dos aparelhos receptores, o veículo conta com tecnologia de transmissão barata e de relativa
simplicidade de instalação e operação. Esta peculiaridade agrega ao rádio duas outras características:
instantaneidade e imediatismo. É possível estar no local do fato no momento de sua ocorrência,
transmitindo ao público. Entretanto, no rádio não há o apoio de um suporte intermediário, tornando-se mais
difícil recorrer-se novamente à mesma mensagem ou aprofundá-la. A mensagem radiofônica para ter êxito
de fixação necessita ser repetida diversas vezes.
O rádio tornou-se um veículo de proximidade e vem assumindo uma tendência à regionalização.
Demarcando os limites da aldeia, é aquele que conta fatos próximos e lhes confere características de
universalidade. Porém, o rádio também é cidadão do mundo, rompe fronteiras, levando mensagens para
lugares distantes e inatingíveis.
Com o desenvolvimento da comunicação massiva, os aspectos mais variados da vida cotidiana
foram alterados pelo fluxo de informações. Notícias começaram a ser transmitidas mais rapidamente e com
maior alcance, proporcionando a homogeneização e a difusão da informação pública. Isto significa que
veículos como o rádio, espalhados por toda a parte, através de suas mensagens, criam interpretações comuns
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sobre a realidade cotidiana. O que não é mediado pelos meios de comunicação, dificilmente faz parte do diaa-dia da população. Considerando-se esta ligação do rádio com o cotidiano, pode-se afirmar que a sua
característica dialógica amparada pela oralidade humana mediada por um suporte tecnológico tece a frágil
/forte ponte entre o meio e seus ouvintes.
1.1.Era Uma Vez.... um mundo cheio de sons...
A nossa história sobre o mundo está cheia de canções e quando os vizinhos ouviam o meu pai
cantando abriam a nossa porta e subiam a elevada soleira. Família após família chegavam, e fazíamos
então um grande fogo, mantendo a porta fechada contra a noite fria. Quando meu pai terminava uma
frase, todos nós dizíamos a última palavra depois dele.(...). Utilizando-se desta citação do livro
Autobiography of a Papago Woman , de Ruth Underhill, RIESMAN( Apud McLUHAN e CARPENTER,
1974: 137) procura delimitar as características do mundo acústico onde se insere a tradição oral. Um mundo
onde o era uma vez anuncia a próxima narrativa e onde o som não tem fronteiras ou codificação visual.
Pode parecer estranho que em meio a análise do rádio como meio tecnológico de veiculação de mensagens
se tenha que voltar mais de vinte séculos para compreender o ecossistema em que o meio se coloca em
tempo de mundialização, contudo, é neste universo de som que encontramos pistas para a sua permanência.
O som está ligado às mais primitivas experiências do ser humano. Esta experiência de ouvir traz
consigo duas outras associações: ambiência e envolvência. A primeira refere-se ao conhecer e localizar a si
mesmo no espaço. A segunda ao sensível, tátil. O som faz vibrar o universo aquoso em que o feto está
imerso e através da pele percebe vibrações que, associadas ao conhecido, à temperatura agradável e ao
aconchego, o fazem experienciar aceitação. O som , através do universo acústico e da tradição oral, toca o
ser humano e o faz reviver estas sensações. (FRANK Apud McLUHAN e CARPENTER, 1974)
O espaço auditivo é ausente de ponto de focalização favorecido. É esférico e sem limites fixos. O
universo é o mapa potencial do espaço acústico. Não tem fronteiras rígidas, acolhe o meio circundante, não
o fragmentando através da localização e abstração contra um fundo. Quando os olhos são fechados, as
palavras ganham novos significados e texturas diferentes. Todas as qualidades gestuais eliminadas pela
escrita parecem retornar à linguagem. A história contada exige que o ouvinte preencha a cena com todos os
sentidos e não apenas com a visão da ação. O ouvinte passa a integrá-la dentro de um isolamento
independente, onde ele se move com intimidade para as demais atividades.
Em realidade, a interação de percepções sensoriais, geradas a partir da audição, cria redundância. O
processo é dinâmico. O deslocamento do homem pré-letrado para o universo da escrita fez com que o
cérebro tivesse de ser acompanhado por uma especialização paralela dos órgãos que articulam os sons da
fala. O ser humano natural não é escritor ou leitor, mas falante e ouvinte. A herança oral é inerente ao
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homem e não poderia ser suplantada pela cultura escrita tão rapidamente como tem sido presumível. Os
meios de comunicação de massa , através da fala e da imagem, fizeram ressurgir estas habilidades que a
predominância da escrita havia adormecido. (HAVELOCK Apud OLSON e TORRANCE,1996).
A fala contém em si a capacidade de articular pensamentos que deverão ser ouvidos e entendidos.
Esta habilidade garantiu à humanidade séculos de bom gerenciamento e organização. Neste universo, os
velhos ocupavam o lugar de bancos de reserva de experiências e entretenimento das comunidades. A palavra
é dita e referenciada na experiência de cada um. Na medida em que a palavra falada ou cantada monopoliza
o meio simbólico, ela se torna particularmente impressionante, pois, dependendo unicamente da memória
humana, emprega recursos como a rima, ritmo, melodia, estrutura, repetição. A tendência de recordar aquilo
que é mais profundamente sentido faz as palavras prenhes de sentimento grupal.
A História se faz a cada narrativa e a cada inserção de um novo fato nesta narrativa que é então
recontada quantas vezes necessário para não se perder no tempo. A palavra para o integrante do mundo da
cultura oral precisa ser cuidada, já que depende da memória para a sua retenção e reprodução significativa. A
escrita distanciou o homem deste universo de oralidade. A palavra escrita vai gradualmente silenciando as
imagens mais profundas. A complexidade da vida cotidiana auxiliada pela escrita faz romper os últimos fios
que ligavam a vida tribal ao homem letrado. O mundo acústico era multicentrado. O tempo era circular,
encerrando no presente, um passado e um futuro. O ouvido era o grande guardião da ordem das coisas, o
responsável pelo equilíbrio das experiências internas e externas.
O livro considerado como um dos primeiros produtos massivos, juntamente com a imprensa,
substituem o manuscrito iluminado de leitura em voz alta e com ilustração que animava a ocasião e tornava a
leitura mais sensível ao sentidos e menos racionalista. A leitura silenciosa permitiu a meditação sobre
respostas alternativas e a busca de novas emoções. Possibilitou ao leitor que se identificasse com um mundo
urbano, do progresso, mesmo permanecendo no seu mundo restrito. O romance introduz a vivência de uma
experiência projetiva no texto e tramas retratados. Na sociedade da cultura escrita, principalmente a do
século XIX, um mundo orientado pela rápida industrialização e urbanização, em que os movimentos da
ficção e os reais não eram muito diferentes, a novelística auxiliou na preparação dos indivíduos para as novas
posições sociais.
Através da imprensa e do livro foi possível estabelecer uma identidade mais ampla. Os leitores da era
das descobertas estavam preparados mentalmente para algumas das experiências de mobilidade geográfica,
tinham de qualquer modo saído de casa através da sua imaginação, embora não tivessem cruzado fronteiras.
A noção de totalidade do planeta era concretizada na medida em que as muitas viagens se faziam realidade.
Talvez esta possa ser apontada como a primeira experiência globalizante da humanidade. Contudo existia
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ainda o tempo, enquanto uma construção hierárquica do passado presente e futuro; existia um espaço
nacional cujas fronteiras deveriam ser guardadas e existia um sentimento de identidade que estava amparado
nas idéias de classe social, formação étnica, estado nacional e tempo.
A sociedade da cultura escrita isolou o sentido da visão. Para McLUHAN ( 1972), este homem
ligado a cultura escrita educou os olhos no sentido da uniformidade, do numérico, do fragmento, a
semelhança de uma máquina. A eletricidade e com ela os meios de comunicação enquanto extensões do
homem, seriam os responsáveis pelo retorno do sensório e de uma nova forma de sentir. Não seria o retorno
propriamente dito do espaço acústico, porque o ser humano guarda a experiência da cultura escrita, mas um
espaço híbrido onde um homem também híbrido é capaz de conviver novamente com padrões mais elevados
de sensibilidade, tirando a visão do isolamento, restituindo operância aos demais sentidos, convivendo com
um tempo e um espaço que se confundem e que são muitos simultaneamente.
É deste e neste ambiente que o rádio surge, como prolongamento tecnológico da fala e da audição,
guardando a potência do sensório mais primitivo. O rádio se desenvolve como uma força arcaica, ligado
temporalmente ao passado mais longínquo e a experiência já há muito perdida na memória. O rádio num
primeiro momento gerou insegurança e imprevisibilidade em um meio que não estava mais acostumado a
conviver com a sensibilidade e com a solidariedade oriunda da relação com o outro que se estabelece além
do individualismo (McLUHAN 1979, 1974 e 1992).
2.Três Metáforas, três caminhos....
Ainda pensando como a permanência do rádio se estabelece na contemporaneidade, vamos
encontrar três metáforas que estabelecemos como trajetórias possíveis para o entendimento: o narrador da
aldeia, em BENJAMIM; a aldeia global de MCLUHAN e o tempo das tribos de MAFFESOLI. Partimos
da idéia de metáfora já que esta ligação de sentidos parece mais livre para associações do que qualquer
comparação.
Para analisar o narrador e seu conseqüente desaparecimento a partir da sociedade de massas,
BENJAMIN(1993) recorre aos conceitos de experiência, vivência e choque, amparado em alguns conceitos
freudianos. A experiência, segundo o autor, é a matéria prima da narrativa, pois representa a seqüência de
fatos experimentados no cotidiano e contados de pessoa a pessoa, num tempo que transcorre naturalmente
e com grande senso de utilidade. Tanto melhor uma narrativa, quanto mais se aproxime das histórias orais
contadas pelos inúmeros narradores anônimos
O narrador guarda em si mesmo e em sua narrativa as qualidades do viajante que viajou e tem
muito a contar; e do artesão que permaneceu na sua aldeia e por isso conhece como ninguém suas histórias e
tradições. A outra face da narrativa é aquela que guarda o tempo de ouvir e absorver a sabedoria do outro.
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Geralmente a figura do narrador se acha ligada aos trabalhos manuais e ao aprendizado, onde mestres e
aprendizes compartem um cotidiano comum, conhecem os personagens das histórias contadas e as
memorizam pelas repetições continuadas. A figura do velho, enquanto banco de experiências cuja utilidade
liga-se ao conhecimento a ser mantido, unida a do louco feiticeiro que tudo vê, observa, memoriza e conta,
perpassam a imagem do narrador.
BENJAMIN(1993) afirma que o narrador é um observador localizado numa distância apropriada e
num ângulo favorável. Uma experiência quase cotidiana nos impõe a distância e esse ângulo de observação.
Para o autor, narrar é uma arte, portanto está ligado ao sentido de aura de experiência única do sensível
diante do único do objeto. A massificação, a reprodutibilidade técnica das obras de arte, teria desfeito a
possibilidade da experiência aurática. O narrador também teria se perdido no tempo, depois de passar por
um estágio como flâneur - narrador do romance que já não terá a inserção do olhar ligada ao lugar
cotidiano, mas será um observador do fato. Sua narrativa não contará com o sentido do tempo infinito,
circular, para contar, nem o sentido utilitário de compartir o saber; sua narrativa, assim como a da imprensa,
terá no factual a sua fonte e no tempo o sentido de urgência. Não buscará compartir um saber mas distribuir
uma informação. A mudança na forma de narrar está ligada às transformações nos processos produtivos. O
narrador estava associado à leitura em voz alta, ao colorido do discurso, ao ritmo e a repetição, ao sentido
de coletividade. O escritor do romance , que surge na idade moderna, tempo dos descobrimentos, está
associado ao processo produtivo industrial, fragmentado, mecanizado, especializado, dominado pela cultura
do livro (BENJAMIN,1993)
A informação está ligada ao que acontece próximo, necessita uma verificação imediata, precisa ser
compreensível em si e para si. Ela não poderá recorrer ao miraculoso, elemento presente na narrativa. Cada
Manhã recebemos notícias de todo o mundo. E, no entanto, somos pobres em histórias surpreendentes. A
razão é que os fatos já nos chegam acompanhados de explicações.(...) Metade da arte narrativa está em
evitar explicações. ( BENJAMIN, 1993:203) Na narrativa o miraculoso e o extraordinário são narrados com
exatidão, mas sem impor o contexto psicológico da ação ao leitor. Cada leitor é livre para tecer a sua
interpretação sobre a história atingindo com isto uma amplitude que não existe na informação.
Particularmente associado a narrativa está seu processo de assimilação. Tanto mais fácil se dará a
memorização quanto mais sóbria, concisa e ausente de análises psicológicas ela for. A efetividade da
assimilação da narrativa está intimamente ligada ao grau de distensão psico-física do ouvinte já que se dá nas
camadas mais profundas da memória. Essa distensão associada às atividades repetitivas, monótonas , com a
complexidade do meio urbano, foi se tornando cada vez mais rara. Com isto, desaparece a capacidade de
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ouvir e a comunidade dos ouvintes. Contar histórias sempre foi considerada uma arte de contar novamente.
Se elas não são mais contadas, não são conservadas e se perdem.
2.1.Que aldeia é esta de onde conta o narrador....?
A segunda metáfora através da qual buscamos desvendar as raízes da permanência radiofônica é a
aldeia global descrita por McLUHAN. Um mundo em transformação sobre o qual BENJAMIN( 1993)
refletia já no início do século XX., e onde o cinema, o telégrafo, o telefone e o rádio, juntamente com uma
série de outros equipamentos urbanos esboçavam um ambiente de aceleração espaço-temporal, de reversão
de uma cultura escrita em uma nova ordem oral, de superexposição, de totalidade, de uma nova espécie de
solidariedade que transformaria o individualismo e os especialismos oriundos da cultura anterior.
Na obra The Global Village: Transformations in World Life and Media in the 21st Century ,
McLUHAN(1992) comenta que qualquer metodologia para explicar o que vinha acontecendo com a
civilização contemporânea não poderia deixar de rever esquemas que já se esboçavam nas ciências da
natureza e que davam melhor conta da complexidade do mundo. A cada página, sem desconsiderar o
contexto, é possível vislumbrar a advertência: estamos vivendo em um mundo híbrido em que as tecnologias
estão propondo ao homem uma nova forma de pensar e conviver. Não há mais a predominância de um
único sentido.
Segundo McLUHAN e CARPENTER ( 1974), os meios eletrônicos de comunicação contraem o
mundo, reduzindo-o às proporções de aldeia ou tribo dominada pela simultaneidade e imediaticidade, onde
a subliminaridade é sutil e a experiência tende à explicação em todos os níveis através das formas míticas. O
conjunto destas ocorrências estimula a coerência do conjunto. Tempo e espaço são quase virtualidades que a
tecnologia transpõe em favor do capital. O fragmento passa a ser expressão do todo. Neste ambiente , os
meios de comunicação se acentuam como extensões humanas e descorporificam o homem ainda mais,
gerando o coletivo. As mudanças nos padrões de relações, aliadas às tecnologias da imagem geram novos
padrões sociais para o próximo século.
No que se refere ao ecossistema de telecomunicações dois aspectos marcam a aldeia global : a
multiplicidade de canais de comunicação e a concentração da manipulação econômica relativamente às vias
de informação na mão de grandes conglomerados. Aqueles que detém o software, também buscam deter o
hardware, e vice-versa. Centenas de canais de tv a cabo, vídeocassetes, vídeo discos estarão dividindo os
espaços em muitas línguas. As grandes montagens darão lugar a muitas e pequenas realizações mais ligadas
aos aspectos locais. Os bairros transformam-se em pequenas cidades, onde a vizinhança se reconhece. A
proximidade tem sentido mais amplo. As pessoas não se identificam somente com uma população nacional,
mas mantêm relações de solidariedade com a humanidade.(McLUHAN e POWERS, 1992).
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2.2. Cotidiano: o lugar das tribos na Aldeia Global
Mudanças nas relações de produção e no ambiente geram diferentes formas de relacionamento e de
expressão destes relacionamentos. Se pensamos no inverso, também podemos aceitá-lo como verdade:
diferentes padrões de relacionamento podem alterar o ambiente e as relações de produção. Aqui se
expressam as relações das audiências entre si e com os meios de comunicação. O cotidiano é uma grandeza
complexa, e é aceitável a metáfora escolhida por MAFFESOLI (1987) para indiciar os padrões de
socialidade que se desenvolvem no mundo contemporâneo: as tribos. Elas são microgrupos que se formam
a partir de uma tensão fundadora verificada no movimento das massas , dentro de um processo de
desindividuação, extremamente mutável, onde a partir da saturação da função social que antes lhe era
inerente, passa-se a valorizar o papel que cada um representa dentro da mesma , conquistando a
possibilidade de evoluir dentro de cada tribo que se forme a partir de fins aparentemente não muito
específicos.
O padrão de relação tribal está intimamente ligado ao cotidiano enquanto um tempo do agora e de
muitos tempos, um tempo presente não absoluto que se renova a cada dia, aderindo a idéia de sucessão e
continuidade. O cotidiano também é espaço complexo, pulverizado, lugar de trânsitos de muitos outros
espaços A aproximação do tribal ao cotidiano nos remete diretamente ao processo de socialidade , visto
pelo autor como uma das faces da injunção cotidiano/comunicação. É no dia-a-dia que as relações são
estabelecidas e que nos comunicamos. Esta é uma formação circular, pois o cotidiano é irrigado pela nossa
presença mutuamente referenciada pelas relações simbólicas É nele que se evidenciam nossas experiências,
vivências, a possibilidade de estar no outro e em nós mesmos. É na dimensão do cotidiano objetivo/subjetivo
que estabelecemos as redes de solidariedade que nos possibilitam intercambiar um mundo subjetivo, nem
sempre comum.
Relativamente a esta rede de solidariedades, MAFFESOLI( 1987) verifica a existência de uma
potência afirmativa que se repete tal qual jogo sempre recomeçado de solidarismo e reciprocidade, e o que
permite dar conta da passagem da ordem política à ordem da fusão.Contudo, é também neste cotidiano que
vamos estabelecer o que podemos chamar de espaço social, onde não seremos nós mesmos como nos
vemos. A civilidade e o estabelecimento de relações sociais necessita de um certo distanciamento obtido
através de máscaras sociais. O uso das máscaras e da dramatização do cotidiano não se refere a um
falseamento da realidade mas à possibilidade real de exercendo papéis, interagir com o outro sem invadi-lo
ou ser invadido. Importante também considerar que o uso das máscaras sociais no cotidiano, não significa
interações ritualizadas, vazias de significado e sentir. Os rituais são a garantia de um existir real que
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possibilita a experiência, a construção de uma tradição comum e o seu repasse através das narrativas orais,
dentro de um tempo construído e inteiro.
Mesmo dentro desta aparente desagregação do cotidiano contemporâneo, há uma centralidade
subterrâne a que nos aproxima uns dos outros, criando identificações. Essa centralidade é própria
socialidade, ponto nodal de sustentação da vida cotidiana, cuja expressão está relacionada ao estético e ao
afetivo. Este tipo de ambiência, sentimentos e emoções presta-se cada vez mais para explicar não só as
relações existentes no interior dos microgrupos, como também para descrever as relações desses grupos
com o seu espaço. Esta religação pontual, afetiva, esta sensibilidade coletiva, amparada na memória e no
momentâneo, fará com que seja ultrapassada a atomização individual, e com que seja possível se pensar em
uma espécie de aura estética, fundada não mais no único e particular, mas no coletivo e particular(
MAFFESOLI, 1987)
3. Era uma vez um narrador da aldeia global que contava histórias de tribos...
Na longa caminhada dos homens, a partir da cibernética primária dos grupos pré-históricos, onde a
comunicação é fisicamente direta, tátil, oral, auditiva, olfativa e gustativa; até a retribalização planetária
através da eletricidade e dos satélites, o novo sempre foi visto com desconfiança e culpa diante do
imprevisível, do inseguro. Com os meios de comunicação eletrônicos não foi diferente. E se pensarmos
especificamente no rádio, o choque foi ainda bastante maior.
O tambor tribal como chamou McLUHAN ( 1979:338) era uma força arcaica, (...) um liame
temporal com o passado mais longínquo e a experiência mais soterrada na memória, revelando aos povos
letrados que seus fantasmas mais primitivos estavam vivos. É justamente na oralidade, hoje tecnológica, e
sua capacidade de religar as tribos da aldeia global que reside a força de permanência do rádio. Na aldeia
global onde circulam as tribos, ver e ouvir, tornaram-se atividades inseparáveis. Quando ouvimos quem fala,
o efeito de suas palavras é transmitido da capacidade auditiva para a da visualização, e podemos ver, as
palavras mentalmente. ( CHAYTOR apud McLUHAN e CARPENTER, 1974)
Nesta sociedade onde a cultura letrada mistura-se com a cultura oral, tornando o homem um ser
híbrido em um espaço também híbrido, nenhum sentido opera isolado. A visão é parcialmente estruturada
pelo movimento ocular e corporal; a audição pela experiência visual e cinestésica. O espaço visual, por si só
seria plano; mas o espaço acústico é sempre esférico, um campo não visualizável de relações simultâneas.
Nesta lógica o mundo nos invade e o cotidiano ressurge como que ressignificado: é um aqui/agora local e
global ao mesmo tempo. É um presente contínuo que se transforma na sucessão dos acontecimentos.
A nova cultura oral que presenciamos está ligada diretamente ao universo das imagens. Nela, os
laços da oralidade invadem um todo corporal imposto pela convergência espacial dos falantes, pela
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simultaneidade temporal. É nesta continuidade que se vai construindo sentido. A cada segundo frases se
enlaçam, se completam, se negam. As verdades se tornam passageiras, porque ao final de cada fala se
impõem ou se dissipam, compondo uma memória do momento, único, após o que serão reminiscências
daquela experiência guardadas para o recontar. (ALMEIDA , 1994)
Enquanto fala, o discurso é um questionamento constante. Momento em que as pessoas gramaticais
apagam-se umas às outras, formando uma pessoa total, coletiva, social, do discurso, que se realizando
individualmente em cada falante, costurou o discurso da oralidade. Este discurso a cada vez que se vê
repetido sofre fracionamentos que se constituíram em pedaços particulares daquela verdade coletiva. Esta
forma de estruturar o discurso está também profundamente ligada ao tribal, onde o coletivo e solidário
sobrepõem-se ao individual. O narrador descorporifica-se, mistura-se aos demais integrantes de sua aldeia
para ressurgir em outro momento com outra voz, sem com isto perder a sua identidade. O rádio se insere
neste ambiente e, marca a mecanização do espaço acústico pré-letrado. O rádio leva-nos de volta a
descoberta da mente ocultada e sensivelmente simbólica. Ele traz as características do contador de histórias
que narrava suas experiências e andanças .
O apresentador de rádio fala como um habitante de cada região e fala a todos como se estivesse
falando a cada um. Retoma os relatos orais e ganha credibilidade junto ao público. A linearidade de sua
narrativa no tempo transformado em espaço, cria a necessidade de explorar possibilidades retóricas
instantâneas e superposição de seqüências, tais como a entonação, a ironia, o discurso dissimulado, a
euforia, o ritmo da fala,(GALÍA:1997) capazes de gerar cadeias associativas na memória afetiva arcaica de
cada um nas quais são projetadas as mais variadas figuras humanas, permitindo o desenvolvimento do
diálogo silencioso e, as vezes até sonoro, e a adesão à mensagem.
Para MARTÍN-BARBERO ( 1987) o rádio, juntamente com o cinema, permite conectar o que
vem das culturas rurais, depositárias da narrativa oral evocativa da natureza e seus mitos como explicação do
seu ambiente e o que se conserva na tradição, proximidade e confiança, com o mundo da sensibilidade
urbana, descentralizado, fragmentado e de velocidade. O rádio media a tradição e a modernidade.
Mas rádio é ainda audição privilegiada. Quando escutamos uma frase, as palavras são reconhecidas
inicialmente como uma colocação familiar de sons, ou seja, são transformadas em nível psico-cognitivo em
imagens acústicas que a experiência de cada um habilita a identificar. Esta experiência não só inclui o
reconhecimento dos sons determinados, mas também da intensidade, acentuação e entonação. A imagem
acústica pode ser traduzida pela imagem visual a partir daquilo que é mencionado. O inverso deste processo
está associado à leitura. Lemos a imagem visual impressa da palavra e a convertemos numa imagem
acústica; uma fala íntima, ou seja, mentalmente articulamos uma fala sem som.
13
A escritura radiofônica, antes de ser associada ao homem contemporâneo alfabetizado, está
diretamente associada ao processo de leitura operado na Idade Média: uns poucos leitores e numerosos
ouvintes; uma literatura produzida para ser recitada, falada, lida em voz alta em presença de um público; por
isso o seu caráter era mais retórico do que literário, e as regras da retórica governavam a sua composição. O
apresentador, ainda que tenha culturalmente a estrutura e a dinâmica do pensamento do homem letrado,
adota, gradativamente, a linguagem desvinculada da escrita e retoma as figuras pertencentes a retórica:
métrica, associação, evocação de modelos, redundância e repetição de estruturas, além da harmonia de
sons.Geralmente, um mesmo apresentador tece o discurso através da fala de vários personagens e tem a
repetição de determinados versos a partir do entrevistado, do repórter que chega com a vivência externa, ou
ainda, da associação à mensagem comercial que munida de trilha sonora ritmada, repetitiva, faz também as
vezes do coro.
Na Idade Média, os autores liam suas obras em público por horas seguidas, pois esta era a única
forma de publicá-las. Hoje, o rádio conta com a possibilidade tecnológica de conservar e reproduzir vozes,
mas pode-se dizer que o narrador continua a repetir sua obra por horas e programas, quase sempre para
diferentes audiências. A mesma informação é veiculada várias vezes, até que algum elemento novo seja
acrescentado, transformando-a, para novamente ocupar o cena auditiva do ouvinte. Se abstrairmos a troca
de vozes, de homens que falam, o discurso da emissora é que estaria ocupando então a figura do narrador,
quando se trata de programação exclusivamente jornalística.
As semelhanças não param por aí. Relativamente às características do texto narrado, vamos nos
deparar com outros elementos comuns. O texto radiofônico não deve ser explicativo, deve ter frases curtas e
objetivas. A métrica de frases, com até três linhas de extensão, deve ser buscada sempre. Entre elas uma
frase mais curta, ou a chamada de manchete, anuncia a próxima história. Atualmente é comum
apresentadores evitarem o texto escrito previamente. Após coletarem os dados dirigem-se ao microfone para
contarem a sua história.
A recorrência, outra característica da narrativa oral, também se encontra no discurso radiofônico. A
qualquer momento em que o ouvinte ligar o rádio, o mesmo menestrel estará lhe dando conselhos de como
pensar as história que acontecem na sua aldeia. Frases iniciadas por Eu particularmente penso que..., Eu
com tantos anos de experiência neste campo agiria desta ou daquela maneira.., Aconteceu ontem com um
amigo... compõem esta fala. Para McLUHAN ( 1979:341) o locutor de rádio escreve uma espécie de
novela a cada edição (...) o microfone é a sua pena e o seu papel. Sua audiência e conhecimento que tem
dos acontecimentos diários do mundo lhe fornecem as personagens, as cenas o clima. (...) ele é o primeiro
a usar o rádio como forma de ensaio ou romance destinados a registrar a consciência comum de um
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mundo totalmente novo, um mundo de universal participação humana em todos os acontecimentos
humanos, particulares ou coletivos.
O rádio, contudo, liberta o movimento, a atenção exclusiva, e o ouvinte intercala à medida que fixa
a atenção ou não, a sua parcela de experiência, sentimento, ao que está sendo dito. A mensagem radiofônica
por basear-se no princípio da oralidade, guarda um tempo maior entre a recepção da mensagem e sua
absorção. Mesmo que de forma quase imperceptível à consciência e aos circundantes, o ouvinte manterá um
diálogo íntimo referente ao que está ouvindo A sua vivência serve, então, de lastro para a checagem do que
é dito para a posterior adesão ou não, já que mesmo integrando uma massa de ouvintes, ele não é
descaracterizado como indivíduo no processo imediato de recepção. O ouvinte não entra em processo de
identificação projetiva com o apresentador, mas poderá , através da empatia, entrar em concordância ou
divergência.
Além de contar o que aconteceu no mundo, o rádio também faz companhia. O apresentador é parte
da vizinhança, integra de uma forma não corpórea a rede de solidariedades das tribos urbanas.
Momentaneamente, a voz ganha corpo, existência , afetividade, ganha nome , sobrenome, idade e raça e
emerge do universo de sons para cumprir algum papel junto à audiência. Esta rede de solidareidade não se
dá somente ao nível do simbólico, com o locutor. Emissoras de rádio recebem donativos, cartas e
telefonemas de ouvintes, colocando-as na posição de um vizinho que pode ajudar, e às vezes até ser
ajudado. Pelo telefone, e-mail ou fax, ouvintes geram reportagens, interferem, ainda de forma tímida, na
história contada sobre sua aldeia. Não raras vezes, corrigem o narrador quando ele se equivoca sobre fatos
aferíveis no seu cotidiano.
Também no que se refere ao entretenimento encontramos pontos de contato entre os antigos
narradores e o rádio. Hoje a função de divertir, ligada à função de informar, está associada às indústrias
culturais. O rádio foi um eixo em torno do qual a revolução nas comunicações gravitou. Pela primeira vez,
na história moderna, entretenimento, notícias, idéias, entravam nos lares para acompanhar as tarefas
domésticas. Sua integração à vida cotidiana foi realçada pela colocação de entretenimento no contexto das
notícias e da publicidade. O rádio em pouco tempo converteu-se numa necessidade que todos sentiam-se no
direito de ver satisfeita.
O rádio guarda este ar de improviso, de conversa, de proximidade de quem fala a sua tribo. Vez por
outra, seja pela pauta, seja pela fonte, ou mesmo pela sonoplastia, evoca arquétipos específicos5 e de certa
5
Arquétipos são aqui entendidos como conjuntos associativos que incluem um grande número de associações
específicas e aprendidas, comunicáveis pelo fato de muitas pessoas, dentro de uma cultura, estarem familiarizadas
com elas. Quando falamos em simbolismo na vida corrente, pensamos usualmente em arquétipos culturais
aprendidos (...) ou associações convencionais ( FRYE apud McLUHAN e CARPENTER , 1974:68)
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forma se associa à um determinado microgrupo ou tribo urbana. Algumas vezes anuncia. Estamos entrando
no ar com as notícias que vão marcar os acontecimentos da aldeia.(...) Esta conversa suscita solidariedade,
polariza interesses e opiniões.
O rádio dialoga com os demais meios de comunicação sem omitir a existência de outros narradores
e desta forma também dá conta da sua aldeia global. O apresentador conta o que está no jornal da cidade,
do país ou do mundo; anuncia o que a revista estará trazendo na edição que está circulando; ou mesmo o
que foi abordado pela tevê. Há na fala radiofônica um sentido de inserção e comprovação do estar presente.
A busca do diálogo com o ouvinte tem sido constante, contudo, tecnologicamente ainda não é
possível a conversa simultanea entre locutores e ouvintes. O telefone, algumas vezes, é utilizado com este
fim, mas ainda sem a possibilidade efetiva. Entretanto, por uma tendência quase que mundial de retorno ao
diálogo, ainda que com certa dose de artificialismo, repórteres e apresentadores já ensaiam entre si uma
conversa no ar. A dialogicidade é responsável pela troca que é componente da oralidade e através dela o
locutor se integra no universo do ouvinte, como que se destaca de um ambiente comum para através da
aproximação ressignificar o seu local. Através da voz, do sotaque, locutor e ouvinte encontram uma espaço
de ligação, de vizinhança, reavivando uma espécie de rede construída com os tênues vínculos mediatizados,
construídos no cotidiano. Naquele momento existe um clima de compartir ainda que com aparência de estar
só. Gerações de pessoas se ligam a partir da evocação de histórias primitivas na memória coletiva, não
importando o quão longe estejam, pois naquele momento estão todos ali. Quando ouço rádio, parece que
vivo dentro dele. (McLUHAN, 1979:335)
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