REVISTA MULTIDISCIPLINAR DA UNIESP 127 FÁBULA PÓS-MODERNA CAMARGO, M. A. Bosschaerts de1 Era uma vez uma loba. Espécime muito diferenciada, tinha pêlo frisado e colorido, piercing nas orelhas, cauda profissionalmente aparada. Uns toques de intelectualidade obtidos em universidade da moda tornavam-na potencialmente mais perigosa. Um dia, para que surgisse o conflito que caracteriza uma narrativa e esta história acontecesse, seu caminho cruzou-se com o de um cordeiro, que exteriormente conservava todas as características de sua espécie, mas que escondia grande sagacidade atrás de uma máscara de extrema insegurança e timidez. Esse disfarce fez com que a loba pensasse: “este está (literalmente) no papo”. Detalhe: lobas intelectualizadas pensam assim, usando parênteses explicativos... Aproximou-se da incauta vítima e, esbanjando charme, usou a deixa de uma história que já havia lido ou escutado: _ Decifra-me, ou eu te devorarei. Pego de surpresa, (cordeiros são preparados, nas escolas ovinas, para responder questões sobre turvar a água de lobas sedentas...) o pequeno animal respirou fundo e preparou-se para decifrar o enigma que provavelmente viria. E veio: _ Qual é o animal que precisa esconder sentimentos de raiva e agressividade, cultivar outros como ternura, afeto e docilidade – mesmo que não sejam verdadeiros - , que precisa refinar-se na arte de lançar olhares “oblíquos e dissimulados”, mostrar uma atitude de eterna dependência, mesmo sendo, muitas vezes, mais forte do que deixa transparecer? Diante da facilidade do problema proposto (já que era cordeiro inteligente e letrado, familiarizado com histórias gregas e troianas), sentindo-se a salvo, o interpelado esboçou um sorriso e respondeu: _ É a fêmea da espécie humana. O cordeiro preparava-se já para desfrutar da liberdade tão inteligentemente conquistada, quando percebeu, pelo olhar de seu algoz, que a ameaça de morte persistia. Atônito, mal teve tempo de perguntar: SABER ACADÊMICO - n º 08 - Dez. 2009/ ISSN 1980-5950 REVISTA MULTIDISCIPLINAR DA UNIESP 128 _ Mas, por que devo morrer, se dei a resposta certa? _ Exatamente por isso. Porque me decifraste. E a loba devorou o cordeirinho, que, é mister que se ressalte, morreu apenas literariamente, entre “espasmos de gozo”, como escreveria Júlio Ribeiro, autor, aliás, lido e apreciado por ambos. 1 Doutora em educação pela UNESP/ Marilia, docente do curso de Pedagogia e Coordenadora do Núcleo de Apoio ao Discente e Docente da Faculdade de Presidente Prudente (UNIESP). SABER ACADÊMICO - n º 08 - Dez. 2009/ ISSN 1980-5950