Revista Portuguesa de Psicossomática
ISSN: 0874-4696
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Sociedade Portuguesa de Psicossomática
Portugal
Fagulha, Teresa
Era uma vez um menino com medo de morrer
Revista Portuguesa de Psicossomática, vol. 1, núm. 1, jan/jun, 1999, pp. 89-100
Sociedade Portuguesa de Psicossomática
Porto, Portugal
Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=28710110
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Portuguesa
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Portuguesa
Psicossomática
de
Psicossomática
Era uma vez…
Era uma vez…
um menino com medo de morrer
Teresa Fagulha
A partir das respostas à prova “Era
uma vez…”1 (Fagulha, 1992, 1997), de
uma criança de sete anos, a quem chamarei João, e que foi infectado pelo
HIV (Vírus da Imunodeficiência Adquirida) por transmissão vertical
(pela mãe, durante a gravidez, ou no
momento do parto) proponho uma
reflexão sobre a necessidade de apoio
psicológico às crianças com doenças
que as obrigam a enfrentar o espectro da morte, bem como às suas famílias, permitindo-lhes a expressão e
partilha das emoções intensas que
decorrem dessa situação1.
A infecção por HIV não é, actualmente, considerada uma doença letal,
mas uma doença crónica (Mok e
Cooper, 1998), em resultado da evolução das perspectivas terapêuticas.
Esta perspectiva refere-se a países
desenvolvidos, em que os Serviços de
Saúde são acessíveis a amplas cama-
1
Agradeço à Drª Alexandra Simões por
me ter cedido e autorizado a utilizar
este protocolo, que recolheu na SOL –
Associação de Apoio às Crianças Infectadas pelo Vírus da Sida e Suas Famílias – no âmbito de um trabalho mais
vasto sobre as ideias de morte nestas
crianças, exploradas através da prova
“Era uma vez…”.
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das da população, não sendo possível uma abordagem optimista nos
países com maiores carências e onde
este problema atinge dimensões alarmantes.
Paralelamente, há que ter em consideração que o estigma associado ao
HIV leva as famílias a viverem em
segredo e isolamento esta doença,
com medo da segregação social (Gibb
e al., 1997). Numa reflexão sobre o trabalho efectuado numa clínica familiar, criada num hospital de cuidados
terciários de Londres, em 1991, e que
integra serviços especializados pediátricos e de medicina de adultos, em
equipas interdisciplinares, para famílias com HIV, aqueles autores reconhecem que “um papel importante do
psicólogo consiste em ajudar os pais
a falar com os seus filhos sobre o diagnóstico” (Gibb e al., 1997, p.23). Também os pediatras e outros técnicos
manifestam um novo interesse pelo
conhecimento da vida fantasmá-tica
da criança no que respeita às representações da sua doença (Simões,
1998).
Falar, ou não falar? Como falar? É
importante entender o contexto de
cada família, e as características da
criança para podermos encontrar
uma resposta adequada. Simultaneamente, é indispensável não esquecer
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Teresa Fagulha
que esta é uma situação muito especial, na medida em que as crianças
infectadas por transmissão vertical
têm uma mãe (e, por vezes, um pai)
que enfrentam o mesmo problema.
Noutros casos, já sofreram a perda da
mãe, ou do pai, já conheceram a experiência da morte.
De algum modo, a ideia da morte
está presente, como realidade ou ameaça, levando a criança a contactar
de forma mais intensa com o medo –
da separação, da mutilação, da morte – de acordo com o seu desenvolvimento (Kastenbaum e Aisenberg,
1983), e com dúvidas em relação ao
destino.
É necessário que esses medos possam ser partilhados e contidos, bem
como dar uma resposta às questões
colocadas pela criança, tendo em conta o seu desenvolvimento emocional
e cognitivo. O espaço de partilha será
criado num ambiente securizante e
que promova a possibilidade de lidar
com os sentimentos de forma criativa. A prova “Era uma vez…” (Fagulha, 1992, 1997) parece reunir as condições para a expressão e elaboração
das ideias e medos das crianças.
Trata-se de uma técnica projectiva
que tem como objectivo descrever o
modo como as crianças lidam com as
suas emoções, nomeadamente a ansiedade e o prazer, estados afectivos
cuja função adaptativa tem uma relevância particular no desenvolvimento psicológico. Consideram-se as
emoções como fenómenos geradores
e organizadores dos processos mentais, presentes desde o início da vida.
As emoções têm uma intencionali-
dade comunicativa enquanto agentes
no intercâmbio que a criança estabelece com o mundo externo, dando-lhe
significado e permitindo a tradução
para outros do modo como constroem o seu mundo interno de relações (Leal, 1985, 1993).
Organizada a partir do conceito de
espaço transicional (Winnicott, 1953,
1971), a prova “Era uma vez…” propõe às crianças uma área lúdica – criativa – onde as suas experiências emocionais, partilhadas pelo psicólogo,
possam ser elaboradas entre a fantasia e a realidade.
O contexto lúdico é criado pela
apresentação de histórias de vida de
uma personagem infantil (rapaz ou
rapariga)2 representadas em três cenas de banda desenhada. A tarefa
pedida à criança é o completamento
da história, através da escolha de três
cenas desenhadas (entre nove disponíveis), organizando-as em sequência
e contando a história.
Esta forma de organizar a prova
tem como referência a função expressiva e elaborativa da actividade lúdica
(Freud, 1908, 1911, 1920; Klein, 1932;
Winnicott, 1971). Ao manipular e seleccionar as cenas disponíveis para
cada uma das situações, as crianças
têm uma experiência semelhante à da
entrevista lúdica, em que escolhem
brinquedos com os quais criam histórias que permitem expressar e ela2
A prova tem uma versão masculina e
uma versão feminina, absolutamente
equivalentes, com o objectivo de proporcionar igualdade de identificação
aos meninos e às meninas.
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borar os seus medos, desejos e fantasias, sem que lhes seja unicamente
exigida a comunicação através da linguagem verbal.
As nove cenas disponíveis para
cada um dos episódios (designados
por Cartões) estão agrupadas em três
categorias: Aflição, Fantasia, e Realidade, consoante representam a emoção ansiosa, a procura de alívio dessa
emoção através de fantasias (viáveis
ou mágicas), ou estratégias realisticamente adequadas para lidar com as
situações apresentadas.
Na intenção de facilitar a relação
e promover uma experiência de
mutualidade, a prova é organizada
como o equivalente de um diálogo em
que ambos, psicólogo e criança, participam. O psicólogo apresenta e descreve o episódio desenhado no cartão
e pede à criança que complete a história, escolhendo as três cenas e organizando-as em sequência. O psicólogo repete, então, a descrição do estímulo e dá a vez à criança para que
ela conte a história.
Esta forma de organização permite ainda3 , como se verá claramente
nas respostas do João, diferentes momentos para elaborar as emoções associadas a cada história. O primeiro,
aquando da escolha das cenas, e um
segundo, no momento de contar a
história.
Era uma vez…
Apresentarei, em seguida, a descrição e ilustração dos Cartões, seguidos das cenas escolhidas pelo João, e
das histórias que organiza e conta.
Cartão I: a personagem, ao passear com a mãe fica sozinha e perdida.
Cenas escolhidas:
Sequência organizada:
História verbalizada:
3
Quando se fala de “permitir” pretendese acentuar a oportunidade que as crianças encontram, quer para contar histórias claramente descritivas das cenas
que escolheram, quer para as transformar quando procedem à verbalização.
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Ficou triste, começou a chorar, foi lá,
depois foi a um polícia, tocou nele e depois foi telefonar. Não! Apareceu uma
fada, depois ficou triste. Acabou!
Teresa Fagulha
A sequência de cenas que o João
selecciona permite-nos entender a forma como tenta lidar com o seu sofrimento. A primeira cena revela a tristeza profunda e o desamparo: a personagem chora, sozinha e sentada. Na
sequência destes sentimentos, surge
a possibilidade de utilização de recursos pessoais, projectados na personagem que chama alguém, expectativa
interna de poder obter ajuda, configurada numa figura masculina de
autoridade. Associa-se, então, a fantasia mágica, que o João escolhe, retira, substituindo pela cena de tristeza
e abandono inicialmente escolhida.
A história organizada pela sequência das três imagens acaba em
aflição e desamparo.
A análise das histórias que o João
conta (não uma, mas duas) permite-nos entender novas tentativas de elaborar a situação de perda/abandono.
Na primeira versão, o João reconhece
o sentimento de tristeza, a possibilidade de pedir ajuda, a qual não resulta (foi ao polícia, mas só tocou
nele), mas resolve a situação de uma
forma realista e adequada, telefonando (descrição duma cena que não escolheu, mas que integra no relato),
que resulta num final feliz.
É evidente que o João “sabe” como
se pode lidar com esta situação
factual: quem está perdido angustia-se, mas pode recorrer a outro, pessoa ou instrumento, que permitam resolver o problema.
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No entanto, o estímulo evoca ameaças muito mais profundas, sentimentos face aos quais não é possível
lidar com uma lógica racional, claramente gritada no “Não!”. Para a angústia de separação e perda só uma
fada, uma ajuda mágica, poderá dar
resposta. Mas será que há possibilidade de uma tal esperança? O desejo
de acreditar na omnipotência é fugaz
(tal como quando escolheu a fada e a
excluiu), e não é possível fugir à tristeza.
As sucessivas tentativas de elaboração, manifestadas através da hesitação na escolha das cenas, da transformação da história – inicialmente,
face às cenas escolhidas, na medida
em que a criança descreve histórias
diferentes das que correspondem às
imagens que seleccionou – e, posteriormente, pela necessidade de inventar uma segunda história, revelam
quão profunda é a emoção associada
à ideia de ausência/abandono/separação, experimentadas como equivalentes do conceito de morte
(Kastenbaum e Aisenberg, 1981).
O grito de “Não!” E a expressão
“Acabou!” reforçam a comunicação
dessa experiência tão difícil.
Cartão II: a personagem está
doente e necessita cuidados médicos.
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Cenas escolhidas:
Sequência organizada:
História verbalizada:
Sentou-se na cama, estava a chorar, a
pensar… se ia…para a coisa …sentou-se
a comer, foi lá o pai e deu-lhe uma prenda. Agora vou contar: ele estava a dormir
e pensou que ia para aqui…e ficou com
medo. Depois comeu e o pai deu-lhe uma
prenda.
Em relação à escolha das cenas,
uma vez mais se verifica alguma hesitação, se bem que de um modo diverso da que ocorreu no Cartão anterior. O João só selecciona três cenas,
mas é a sua organização em sequência que é repensada. O primeiro movimento remete para uma situação de
satisfação oral. A personagem está
doente, mas pode alimentar-se. Fortificar-se pelo alimento? Compensar-se pelo prazer, tal como acontece na
última cena que escolhe? De qualquer
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modo, o medo intenso, associado à
ideia de morte impõe-se, e a cena que
o representa é colocada na primeira
posição da sequência. Encarada de
início, enfrentada como algo de presente dentro de si, poderá encontrar
alívio para a dor? Assim parece, e esta
hipótese encontra confirmação nas
duas histórias que o João conta.
De facto, ele conta e reconta uma
história em que o enredo se mantém.
O que é tão duro precisa ser reafirmado, e só ligeiramente transformado.
Na primeira história surge exactamente o mesmo movimento emocional que observámos na escolha das
cenas: sentou-se na cama (tema da
cena inicialmente escolhida, e colocada em segundo lugar). Mas o sentir
pesa, e afinal está a chorar, conteúdo
interno, não presente nas imagens,
verdadeira expressão da sua tristeza.
“Pensava se ia… para…”. A imagem
mostra um dos símbolos do morrer, e
a palavra terrível pode ser partilhada
sem precisar ser dita, até porque nem
o João nem ninguém poderá ter a certeza para onde se vai quando se parte deste mundo. Então, a dureza da
incerteza, vivida a dois, partilhada
com a psicóloga, permite o regresso à
vida: comer, receber afecto, aproveitar o tempo presente.
No entanto, a tranquilidade não é
possível, e o João tenta recuperá-la:
“Agora vou contar”. Afinal ele não
estava a chorar, mas a dormir. A dormir não se pensa nem se sente a dor.
Mas quando a dor é grande, ela volta
e dói: e novamente vem o pensar da
morte, não como um “se”, mas como
uma certeza de “que” para lá se en-
Teresa Fagulha
caminha. Novamente volta, então, à
vida, com o que ela pode dar, de sustento e de afecto.
Cartão III: a personagem vai passear à praia com os pais e encontra
um grupo de meninos com quem
pode brincar.
Cenas escolhidas:
Sequência organizada:
História verbalizada:
Primeiro ficou envergonhado, depois
foi brincar com a pá, depois foi brincar
com os amigos. Apetecia-me fazer um
desenho! Agora é outra?
Tal como no Cartão anterior, o João
escolhe três cenas e hesita na sua co-
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locação. A personagem brinca, sozinha, mas há algum constrangimento
face aos meninos desconhecidos. Então, parece melhor reconhecê-lo logo,
para que tudo possa tornar-se mais
fácil: está envergonhado, brinca, com
as suas coisas e, então, pode sentir-se
aceite entre os outros.
Pela primeira vez, e face a um
tema agradável, o João conta uma
única história, bem próxima das imagens que escolheu. Não é assim tão
difícil conviver com os amigos. Embora possa haver alguma vergonha,
algum medo da reacção dos outros,
ter amigos é bom.
Pela primeira vez, esta história não
é assustadora. Permite ao João uma
pausa no contacto com o seu sofrimento mais fundo. Não pede, mas
partilha o desejo de comunicar duma
outra forma: fazer um desenho. Há
mais histórias? Como serão? Não há
uma recusa em continuar, mas a afirmação de um desejo que pode ser
partilhado: “apetecia-me”. E uma expectativa que também pode ser formulada para o outro. O João sente-se
a partilhar o seu mundo com a psicóloga e, à sua maneira, diz-lhe: confio
em ti e podemos continuar juntos.
Cartão IV: a personagem deita-se,
adormece e acorda com um sonho
mau.
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Cenas escolhidas:
Sequência organizada:
História verbalizada:
Depois foi a correr à mãe, aos pais. Eles
não acreditaram. Foi buscar uma pistola.
Não! Depois saiu de casa. Foi a correr aos
pais, os pais foram lá e ele a rir-se com a
pistola. Foi lá e PUM! Disparou e ele
morreu (aponta o boneco preto) e ficaram
todos felizes. Quantos faltam?
Uma vez mais se verifica uma dificuldade/hesitação na escolha das
cenas. A personagem, aflita, chama os
pais, mas, eles não respondem. Recorre, então, à sua própria omnipotência. Tal como anteriormente, este mecanismo frágil logo é desmontado
pelo João que põe a personagem sozinha com o seu sofrimento, sentada na
cama, a chorar. Esta cena é excluída.
Mas a defesa pela omnipotência man-
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tém-se como o único recurso e os pais,
frágeis e assustados, são testemunhas
da luta que trava contra os seus fantasmas, que consegue vencer.
Na história que conta o João explica como precisa dos pais para lidar com a angústia, mas eles não podem acreditar. O João também não,
na medida em que escolhe uma cena
que exprime o sentimento depressivo, mas logo a exclui, substituindo-a
por uma fantasia de omnipotência: a
sua capacidade para matar o fantasma, o “objecto transicional mortal”,
(Ferrari, 1985) expressão que descreve o papel dos fantasmas no mundo
imaginário da criança, enquanto representação do medo da morte, significando algo que volta da morte à
vida.
Novamente o João afirma um
“Não!”. Tenta sair de casa, da angústia, volta aos pais, e eles podem unir-se com ele, porque ele se ri, nega o
medo, vence o inimigo mortal e todos são felizes.
Se a morte enquanto perigo associado à doença (Cartão II) pode ser
enfrentada com tristeza, conduzindo
à esperança na vida actual e nas coisas boas que ela poderá dar, permitindo equilibrar a dor, o fantasma da
morte revela-se bem mais angustiante, desencadeando uma negação maciça.
A resposta a este Cartão traduz
ainda o inevitável sentimento de solidão face à morte e a convicção de
que a condição para não ficar isolado
é a negação.
Teresa Fagulha
Cartão V: a personagem faz anos,
os pais e os amigos dão-lhe os parabéns e há um bolo de velas.
Cenas escolhidas:
Sequência organizada:
História verbalizada:
Comeu o bolo. Não! Assoprou o bolo,
ficou a escolher o que ia comer, depois viu
estas prendas todas e escolheu uma e viu!
Agora vou contar a história: era uma vez
um menino que fazia anos, disse que ia
fazer anos. Depois assoprou, viu os presentes e abriu uma caixa.
O João escolhe inicialmente uma
cena em que a personagem abre um
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presente, em seguida uma cena que
representa a personagem sózinha, isolada e triste, enquanto as outras crianças se divertem, seguida pelo ritual do aniversário - apagar as velas.
Esta cena é excluída e substituída por
uma cena que apresenta a personagem alegre e expansiva, frente a um
enorme “monte” de presentes. O ritual que o João escolhe e rejeita tem a
função de celebrar a vida que passa,
na esperança da vida para viver. Um
marco no caminho do crescimento, no
atingir da vida desejada dos adultos,
longínqua quando se vive o tempo
mágico e infinito da infância. O João
não pode ter esse privilégio, tem uma
vivência subjectiva do tempo finito.
Nesta perspectiva, percebe-se o movimento de fuga desse sentimento
doloroso através da compensação por
dádivas ilimitadas.
Uma vez mais, conta duas histórias e, uma vez mais surge o “Não!”,
grito de revolta. Face a tantas prendas, ressalta o aspecto “adulto” associado ao tempo finito – escolhe uma,
como quem não pode desejar tanto e
se deve contentar com o que a vida
pode dar (aproveitando as pequenas
coisas boas?).
A segunda versão da história sugere um controlo da emoção dolorosa (associada ao bolo de anos que escolheu e excluiu), uma expectativa de
vida: “O menino fazia anos e disse
que ia fazer anos”, assumindo a esperança e, talvez, a associação mágica entre “dizer” e “acontecer”. Se ele
afirmar e acreditar, quem sabe se será
possível?
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Cartão VI: a personagem está à
mesa com os pais e testemunha uma
discussão entre os pais.
Cenas escolhidas:
Sequência organizada:
Era uma vez…
zem que “o pai ficou zangado”, ou
“com ciúmes”. O João não só a omite
no relato, como logo pergunta se “não
pode haver outra?”, na necessidade
de não terminar com este conflito desvendado e associado à ideia de que
tudo acabou duma forma perigosa.
Talvez especialmente perigosa se a
representação da morte estiver ligada a ideias de mutilação, podendo
despertar angústias de castração intensas.
Cartão VII: na aula, a professora
faz uma pergunta a que todos os alunos respondem, excepto a personagem.
Cenas escolhidas:
História verbalizada:
Depois eles zangaram-se e ele ficou a
chorar e depois acabou-se tudo, acabou a
história! Não pode haver outra?
O João não hesita, escolhe uma
cena em que a personagem testemunha a discussão, uma segunda em que
chora com a mãe virada de costas, e a
terceira em que a mãe está afectuosamente junto dele e o pai afastado,
olhando-os.
A história contada é sucinta, seguindo de perto a descrição das duas
primeiras cenas e omitindo a descrição da última cena. Parece evidente
que separar a mãe do pai e ficar junto
dela é perigoso. Frequentemente, ao
descreverem esta cena as crianças diVol. 1, nº 1, Jan/Jun 99
Sequência organizada:
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História verbalizada:
Ficou a chorar, depois a pensar…
Não!, os meninos foram lá, o menino ficou a pensar e a seguir respondeu os números.
Indo directamente à cena que expressa claramente o sofrimento e a
tristeza, logo a rejeita e substitui por
outra que representa o pensamento.
Pensamento e tristeza parecem claramente associados, e o João parece saber que pensar pode doer muito. Escolhe então uma cena em que os colegas estão presentes, e pode voltar à
cena que representa o pensar, terminando com uma fantasia mágica do
adulto “vedeta” que sabe tudo e proclama a sua sabedoria através do microfone, para que outros possam ouvir e aprender.
Esta última cena, do último Cartão, se bem que apresente uma fantasia que o João omitirá no seu relato,
parece revelar uma verdade que ele
certamente desconhece. O João sabe
muito da Vida, porque o contacto com
a morte, lhe dá uma sabedoria que só
o sofrimento vivido e elaborado pode
dar. E com ele podemos aprender a
conhecer a morte e a enfrentar e saborear a vida.
Ao longo da prova ele mostra-nos
o medo e a angústia, por vezes insuportáveis, e nesses momentos, os
mecanismos de negação e idealização
são o dom da sobrevivência. Estes, se
bem que constituam defesas comuns
nas crianças destas idades (Cramer,
1990, 1996), adquirem um significado particular na nítida associação com
os sentimentos de angústia – desencadeando-a, ou surgindo face a ela.
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Mas o esforço de integração e a coragem da Verdade constituem a “lição”
da sua vida com que ele termina a
prova.
O João mostra-nos ainda como é
verdade que o conhecimento da morte e a consciência dos perigos que correm se desenvolve nas crianças atingidas de doenças letais dum modo
que os adultos ignoram (Aberastury,
1984; Mazet e Houzel, 1994;
Raimbault, 1975).
Na nossa cultura a doença e a
morte são caracterizadas pelo silêncio, típico da negação. Na medida em
que a sociedade não suporta ver os
sinais da morte, exige aos que sofrem
a sua ameaça (ou a perda de alguém
que amam) o domínio e o controlo da
manifestação e vivência da dor, dificultando a elaboração do luto (Freud,
1917) com consequências particularmente trágicas para as crianças.
Os adultos, incapazes de lidar com
as suas próprias angústias, procuram
afastar a criança dos rituais que facilitam a elaboração da perda, escondem ou escamoteiam a realidade e,
pretendendo “poupá-las”, deixam a
criança só com as suas fantasias. Ao
aperceberem-se das dificuldades dos
pais, algumas crianças sentem-se impedidas de colocar as suas dúvidas e
inquietações (Mazet e Houzel, 1994;
Raimbault, 1975).
Uma “pedagogia da morte”
(Bertman, 1974) que promova a sua
integração como parte da vida, em
que o afecto e o bom senso guiem a
forma adequada de responder a cada
criança é indispensável, mas habitualmente inexistente.
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Quando o problema se coloca perante a realidade da morte da criança
surge o insuportável absurdo, na medida em que ela coloca os adultos
perante uma inversão da ordem natural da vida, representando uma perda para a qual ninguém está preparado.
Enfrentar os corpos doentes e os
sinais da morte numa criança é quase
intolerável e exige a capacidade pessoal para lidar com sentimentos intensos de perda e abandono, por vezes
de culpabilidade pela saúde e sobrevivência, mas também a empatia indispensável para avaliar a capacidade da criança para falar, ou não falar,
sobre a morte (Sourkes, 1992).
Só na relação de confiança se pode
criar um espaço de encontro e compreensão em que se pode aceitar, quer
a expressão dos sentimentos, quer os
movimentos de defesa. A negação e a
raiva constituem a primeira defesa
face à angústia do medo da morte.
Atacar essas defesas poderá levar a
um aumento da angústia.
“Thank you for give me aliveness”
(Sourkes, 1992), disse um rapazinho
de 6 anos ao terapeuta que o acompanhava no caminho da vida para a
morte, permitindo-lhe a integração
dessas realidades, partilhando as suas
perdas e frustrações, o medo, a tristeza e a raiva, os desejos, as expectativas e as ilusões.
Esta capacidade de ajuda existirá
na medida da nossa disponibilidade
para ouvir as crianças e aprender com
a sua sabedoria.
Vol. 1, nº 1, Jan/Jun 99
Era uma vez…
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Informação sobre o autor
Professora Associada da Faculdade de
Psicologia e de Ciências da Educação da
Universidade de Lisboa
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