Revista Portuguesa de Psicossomática ISSN: 0874-4696 [email protected] Sociedade Portuguesa de Psicossomática Portugal Fagulha, Teresa Era uma vez um menino com medo de morrer Revista Portuguesa de Psicossomática, vol. 1, núm. 1, jan/jun, 1999, pp. 89-100 Sociedade Portuguesa de Psicossomática Porto, Portugal Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=28710110 Como citar este artigo Número completo Mais artigos Home da revista no Redalyc Sistema de Informação Científica Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe , Espanha e Portugal Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto Revista Portuguesa Revista de 89 Portuguesa Psicossomática de Psicossomática Era uma vez… Era uma vez… um menino com medo de morrer Teresa Fagulha A partir das respostas à prova “Era uma vez…”1 (Fagulha, 1992, 1997), de uma criança de sete anos, a quem chamarei João, e que foi infectado pelo HIV (Vírus da Imunodeficiência Adquirida) por transmissão vertical (pela mãe, durante a gravidez, ou no momento do parto) proponho uma reflexão sobre a necessidade de apoio psicológico às crianças com doenças que as obrigam a enfrentar o espectro da morte, bem como às suas famílias, permitindo-lhes a expressão e partilha das emoções intensas que decorrem dessa situação1. A infecção por HIV não é, actualmente, considerada uma doença letal, mas uma doença crónica (Mok e Cooper, 1998), em resultado da evolução das perspectivas terapêuticas. Esta perspectiva refere-se a países desenvolvidos, em que os Serviços de Saúde são acessíveis a amplas cama- 1 Agradeço à Drª Alexandra Simões por me ter cedido e autorizado a utilizar este protocolo, que recolheu na SOL – Associação de Apoio às Crianças Infectadas pelo Vírus da Sida e Suas Famílias – no âmbito de um trabalho mais vasto sobre as ideias de morte nestas crianças, exploradas através da prova “Era uma vez…”. Vol. 1, nº 1, Jan/Jun 99 das da população, não sendo possível uma abordagem optimista nos países com maiores carências e onde este problema atinge dimensões alarmantes. Paralelamente, há que ter em consideração que o estigma associado ao HIV leva as famílias a viverem em segredo e isolamento esta doença, com medo da segregação social (Gibb e al., 1997). Numa reflexão sobre o trabalho efectuado numa clínica familiar, criada num hospital de cuidados terciários de Londres, em 1991, e que integra serviços especializados pediátricos e de medicina de adultos, em equipas interdisciplinares, para famílias com HIV, aqueles autores reconhecem que “um papel importante do psicólogo consiste em ajudar os pais a falar com os seus filhos sobre o diagnóstico” (Gibb e al., 1997, p.23). Também os pediatras e outros técnicos manifestam um novo interesse pelo conhecimento da vida fantasmá-tica da criança no que respeita às representações da sua doença (Simões, 1998). Falar, ou não falar? Como falar? É importante entender o contexto de cada família, e as características da criança para podermos encontrar uma resposta adequada. Simultaneamente, é indispensável não esquecer 90 Teresa Fagulha que esta é uma situação muito especial, na medida em que as crianças infectadas por transmissão vertical têm uma mãe (e, por vezes, um pai) que enfrentam o mesmo problema. Noutros casos, já sofreram a perda da mãe, ou do pai, já conheceram a experiência da morte. De algum modo, a ideia da morte está presente, como realidade ou ameaça, levando a criança a contactar de forma mais intensa com o medo – da separação, da mutilação, da morte – de acordo com o seu desenvolvimento (Kastenbaum e Aisenberg, 1983), e com dúvidas em relação ao destino. É necessário que esses medos possam ser partilhados e contidos, bem como dar uma resposta às questões colocadas pela criança, tendo em conta o seu desenvolvimento emocional e cognitivo. O espaço de partilha será criado num ambiente securizante e que promova a possibilidade de lidar com os sentimentos de forma criativa. A prova “Era uma vez…” (Fagulha, 1992, 1997) parece reunir as condições para a expressão e elaboração das ideias e medos das crianças. Trata-se de uma técnica projectiva que tem como objectivo descrever o modo como as crianças lidam com as suas emoções, nomeadamente a ansiedade e o prazer, estados afectivos cuja função adaptativa tem uma relevância particular no desenvolvimento psicológico. Consideram-se as emoções como fenómenos geradores e organizadores dos processos mentais, presentes desde o início da vida. As emoções têm uma intencionali- dade comunicativa enquanto agentes no intercâmbio que a criança estabelece com o mundo externo, dando-lhe significado e permitindo a tradução para outros do modo como constroem o seu mundo interno de relações (Leal, 1985, 1993). Organizada a partir do conceito de espaço transicional (Winnicott, 1953, 1971), a prova “Era uma vez…” propõe às crianças uma área lúdica – criativa – onde as suas experiências emocionais, partilhadas pelo psicólogo, possam ser elaboradas entre a fantasia e a realidade. O contexto lúdico é criado pela apresentação de histórias de vida de uma personagem infantil (rapaz ou rapariga)2 representadas em três cenas de banda desenhada. A tarefa pedida à criança é o completamento da história, através da escolha de três cenas desenhadas (entre nove disponíveis), organizando-as em sequência e contando a história. Esta forma de organizar a prova tem como referência a função expressiva e elaborativa da actividade lúdica (Freud, 1908, 1911, 1920; Klein, 1932; Winnicott, 1971). Ao manipular e seleccionar as cenas disponíveis para cada uma das situações, as crianças têm uma experiência semelhante à da entrevista lúdica, em que escolhem brinquedos com os quais criam histórias que permitem expressar e ela2 A prova tem uma versão masculina e uma versão feminina, absolutamente equivalentes, com o objectivo de proporcionar igualdade de identificação aos meninos e às meninas. Revista Portuguesa de Psicossomática Revista Portuguesa de 91 Psicossomática borar os seus medos, desejos e fantasias, sem que lhes seja unicamente exigida a comunicação através da linguagem verbal. As nove cenas disponíveis para cada um dos episódios (designados por Cartões) estão agrupadas em três categorias: Aflição, Fantasia, e Realidade, consoante representam a emoção ansiosa, a procura de alívio dessa emoção através de fantasias (viáveis ou mágicas), ou estratégias realisticamente adequadas para lidar com as situações apresentadas. Na intenção de facilitar a relação e promover uma experiência de mutualidade, a prova é organizada como o equivalente de um diálogo em que ambos, psicólogo e criança, participam. O psicólogo apresenta e descreve o episódio desenhado no cartão e pede à criança que complete a história, escolhendo as três cenas e organizando-as em sequência. O psicólogo repete, então, a descrição do estímulo e dá a vez à criança para que ela conte a história. Esta forma de organização permite ainda3 , como se verá claramente nas respostas do João, diferentes momentos para elaborar as emoções associadas a cada história. O primeiro, aquando da escolha das cenas, e um segundo, no momento de contar a história. Era uma vez… Apresentarei, em seguida, a descrição e ilustração dos Cartões, seguidos das cenas escolhidas pelo João, e das histórias que organiza e conta. Cartão I: a personagem, ao passear com a mãe fica sozinha e perdida. Cenas escolhidas: Sequência organizada: História verbalizada: 3 Quando se fala de “permitir” pretendese acentuar a oportunidade que as crianças encontram, quer para contar histórias claramente descritivas das cenas que escolheram, quer para as transformar quando procedem à verbalização. Vol. 1, nº 1, Jan/Jun 99 Ficou triste, começou a chorar, foi lá, depois foi a um polícia, tocou nele e depois foi telefonar. Não! Apareceu uma fada, depois ficou triste. Acabou! Teresa Fagulha A sequência de cenas que o João selecciona permite-nos entender a forma como tenta lidar com o seu sofrimento. A primeira cena revela a tristeza profunda e o desamparo: a personagem chora, sozinha e sentada. Na sequência destes sentimentos, surge a possibilidade de utilização de recursos pessoais, projectados na personagem que chama alguém, expectativa interna de poder obter ajuda, configurada numa figura masculina de autoridade. Associa-se, então, a fantasia mágica, que o João escolhe, retira, substituindo pela cena de tristeza e abandono inicialmente escolhida. A história organizada pela sequência das três imagens acaba em aflição e desamparo. A análise das histórias que o João conta (não uma, mas duas) permite-nos entender novas tentativas de elaborar a situação de perda/abandono. Na primeira versão, o João reconhece o sentimento de tristeza, a possibilidade de pedir ajuda, a qual não resulta (foi ao polícia, mas só tocou nele), mas resolve a situação de uma forma realista e adequada, telefonando (descrição duma cena que não escolheu, mas que integra no relato), que resulta num final feliz. É evidente que o João “sabe” como se pode lidar com esta situação factual: quem está perdido angustia-se, mas pode recorrer a outro, pessoa ou instrumento, que permitam resolver o problema. 92 No entanto, o estímulo evoca ameaças muito mais profundas, sentimentos face aos quais não é possível lidar com uma lógica racional, claramente gritada no “Não!”. Para a angústia de separação e perda só uma fada, uma ajuda mágica, poderá dar resposta. Mas será que há possibilidade de uma tal esperança? O desejo de acreditar na omnipotência é fugaz (tal como quando escolheu a fada e a excluiu), e não é possível fugir à tristeza. As sucessivas tentativas de elaboração, manifestadas através da hesitação na escolha das cenas, da transformação da história – inicialmente, face às cenas escolhidas, na medida em que a criança descreve histórias diferentes das que correspondem às imagens que seleccionou – e, posteriormente, pela necessidade de inventar uma segunda história, revelam quão profunda é a emoção associada à ideia de ausência/abandono/separação, experimentadas como equivalentes do conceito de morte (Kastenbaum e Aisenberg, 1981). O grito de “Não!” E a expressão “Acabou!” reforçam a comunicação dessa experiência tão difícil. Cartão II: a personagem está doente e necessita cuidados médicos. Revista Portuguesa de Psicossomática Revista Portuguesa de 93 Psicossomática Cenas escolhidas: Sequência organizada: História verbalizada: Sentou-se na cama, estava a chorar, a pensar… se ia…para a coisa …sentou-se a comer, foi lá o pai e deu-lhe uma prenda. Agora vou contar: ele estava a dormir e pensou que ia para aqui…e ficou com medo. Depois comeu e o pai deu-lhe uma prenda. Em relação à escolha das cenas, uma vez mais se verifica alguma hesitação, se bem que de um modo diverso da que ocorreu no Cartão anterior. O João só selecciona três cenas, mas é a sua organização em sequência que é repensada. O primeiro movimento remete para uma situação de satisfação oral. A personagem está doente, mas pode alimentar-se. Fortificar-se pelo alimento? Compensar-se pelo prazer, tal como acontece na última cena que escolhe? De qualquer Vol. 1, nº 1, Jan/Jun 99 Era uma vez… modo, o medo intenso, associado à ideia de morte impõe-se, e a cena que o representa é colocada na primeira posição da sequência. Encarada de início, enfrentada como algo de presente dentro de si, poderá encontrar alívio para a dor? Assim parece, e esta hipótese encontra confirmação nas duas histórias que o João conta. De facto, ele conta e reconta uma história em que o enredo se mantém. O que é tão duro precisa ser reafirmado, e só ligeiramente transformado. Na primeira história surge exactamente o mesmo movimento emocional que observámos na escolha das cenas: sentou-se na cama (tema da cena inicialmente escolhida, e colocada em segundo lugar). Mas o sentir pesa, e afinal está a chorar, conteúdo interno, não presente nas imagens, verdadeira expressão da sua tristeza. “Pensava se ia… para…”. A imagem mostra um dos símbolos do morrer, e a palavra terrível pode ser partilhada sem precisar ser dita, até porque nem o João nem ninguém poderá ter a certeza para onde se vai quando se parte deste mundo. Então, a dureza da incerteza, vivida a dois, partilhada com a psicóloga, permite o regresso à vida: comer, receber afecto, aproveitar o tempo presente. No entanto, a tranquilidade não é possível, e o João tenta recuperá-la: “Agora vou contar”. Afinal ele não estava a chorar, mas a dormir. A dormir não se pensa nem se sente a dor. Mas quando a dor é grande, ela volta e dói: e novamente vem o pensar da morte, não como um “se”, mas como uma certeza de “que” para lá se en- Teresa Fagulha caminha. Novamente volta, então, à vida, com o que ela pode dar, de sustento e de afecto. Cartão III: a personagem vai passear à praia com os pais e encontra um grupo de meninos com quem pode brincar. Cenas escolhidas: Sequência organizada: História verbalizada: Primeiro ficou envergonhado, depois foi brincar com a pá, depois foi brincar com os amigos. Apetecia-me fazer um desenho! Agora é outra? Tal como no Cartão anterior, o João escolhe três cenas e hesita na sua co- 94 locação. A personagem brinca, sozinha, mas há algum constrangimento face aos meninos desconhecidos. Então, parece melhor reconhecê-lo logo, para que tudo possa tornar-se mais fácil: está envergonhado, brinca, com as suas coisas e, então, pode sentir-se aceite entre os outros. Pela primeira vez, e face a um tema agradável, o João conta uma única história, bem próxima das imagens que escolheu. Não é assim tão difícil conviver com os amigos. Embora possa haver alguma vergonha, algum medo da reacção dos outros, ter amigos é bom. Pela primeira vez, esta história não é assustadora. Permite ao João uma pausa no contacto com o seu sofrimento mais fundo. Não pede, mas partilha o desejo de comunicar duma outra forma: fazer um desenho. Há mais histórias? Como serão? Não há uma recusa em continuar, mas a afirmação de um desejo que pode ser partilhado: “apetecia-me”. E uma expectativa que também pode ser formulada para o outro. O João sente-se a partilhar o seu mundo com a psicóloga e, à sua maneira, diz-lhe: confio em ti e podemos continuar juntos. Cartão IV: a personagem deita-se, adormece e acorda com um sonho mau. Revista Portuguesa de Psicossomática Revista Portuguesa de 95 Psicossomática Cenas escolhidas: Sequência organizada: História verbalizada: Depois foi a correr à mãe, aos pais. Eles não acreditaram. Foi buscar uma pistola. Não! Depois saiu de casa. Foi a correr aos pais, os pais foram lá e ele a rir-se com a pistola. Foi lá e PUM! Disparou e ele morreu (aponta o boneco preto) e ficaram todos felizes. Quantos faltam? Uma vez mais se verifica uma dificuldade/hesitação na escolha das cenas. A personagem, aflita, chama os pais, mas, eles não respondem. Recorre, então, à sua própria omnipotência. Tal como anteriormente, este mecanismo frágil logo é desmontado pelo João que põe a personagem sozinha com o seu sofrimento, sentada na cama, a chorar. Esta cena é excluída. Mas a defesa pela omnipotência man- Vol. 1, nº 1, Jan/Jun 99 Era uma vez… tém-se como o único recurso e os pais, frágeis e assustados, são testemunhas da luta que trava contra os seus fantasmas, que consegue vencer. Na história que conta o João explica como precisa dos pais para lidar com a angústia, mas eles não podem acreditar. O João também não, na medida em que escolhe uma cena que exprime o sentimento depressivo, mas logo a exclui, substituindo-a por uma fantasia de omnipotência: a sua capacidade para matar o fantasma, o “objecto transicional mortal”, (Ferrari, 1985) expressão que descreve o papel dos fantasmas no mundo imaginário da criança, enquanto representação do medo da morte, significando algo que volta da morte à vida. Novamente o João afirma um “Não!”. Tenta sair de casa, da angústia, volta aos pais, e eles podem unir-se com ele, porque ele se ri, nega o medo, vence o inimigo mortal e todos são felizes. Se a morte enquanto perigo associado à doença (Cartão II) pode ser enfrentada com tristeza, conduzindo à esperança na vida actual e nas coisas boas que ela poderá dar, permitindo equilibrar a dor, o fantasma da morte revela-se bem mais angustiante, desencadeando uma negação maciça. A resposta a este Cartão traduz ainda o inevitável sentimento de solidão face à morte e a convicção de que a condição para não ficar isolado é a negação. Teresa Fagulha Cartão V: a personagem faz anos, os pais e os amigos dão-lhe os parabéns e há um bolo de velas. Cenas escolhidas: Sequência organizada: História verbalizada: Comeu o bolo. Não! Assoprou o bolo, ficou a escolher o que ia comer, depois viu estas prendas todas e escolheu uma e viu! Agora vou contar a história: era uma vez um menino que fazia anos, disse que ia fazer anos. Depois assoprou, viu os presentes e abriu uma caixa. O João escolhe inicialmente uma cena em que a personagem abre um 96 presente, em seguida uma cena que representa a personagem sózinha, isolada e triste, enquanto as outras crianças se divertem, seguida pelo ritual do aniversário - apagar as velas. Esta cena é excluída e substituída por uma cena que apresenta a personagem alegre e expansiva, frente a um enorme “monte” de presentes. O ritual que o João escolhe e rejeita tem a função de celebrar a vida que passa, na esperança da vida para viver. Um marco no caminho do crescimento, no atingir da vida desejada dos adultos, longínqua quando se vive o tempo mágico e infinito da infância. O João não pode ter esse privilégio, tem uma vivência subjectiva do tempo finito. Nesta perspectiva, percebe-se o movimento de fuga desse sentimento doloroso através da compensação por dádivas ilimitadas. Uma vez mais, conta duas histórias e, uma vez mais surge o “Não!”, grito de revolta. Face a tantas prendas, ressalta o aspecto “adulto” associado ao tempo finito – escolhe uma, como quem não pode desejar tanto e se deve contentar com o que a vida pode dar (aproveitando as pequenas coisas boas?). A segunda versão da história sugere um controlo da emoção dolorosa (associada ao bolo de anos que escolheu e excluiu), uma expectativa de vida: “O menino fazia anos e disse que ia fazer anos”, assumindo a esperança e, talvez, a associação mágica entre “dizer” e “acontecer”. Se ele afirmar e acreditar, quem sabe se será possível? Revista Portuguesa de Psicossomática Revista Portuguesa de 97 Psicossomática Cartão VI: a personagem está à mesa com os pais e testemunha uma discussão entre os pais. Cenas escolhidas: Sequência organizada: Era uma vez… zem que “o pai ficou zangado”, ou “com ciúmes”. O João não só a omite no relato, como logo pergunta se “não pode haver outra?”, na necessidade de não terminar com este conflito desvendado e associado à ideia de que tudo acabou duma forma perigosa. Talvez especialmente perigosa se a representação da morte estiver ligada a ideias de mutilação, podendo despertar angústias de castração intensas. Cartão VII: na aula, a professora faz uma pergunta a que todos os alunos respondem, excepto a personagem. Cenas escolhidas: História verbalizada: Depois eles zangaram-se e ele ficou a chorar e depois acabou-se tudo, acabou a história! Não pode haver outra? O João não hesita, escolhe uma cena em que a personagem testemunha a discussão, uma segunda em que chora com a mãe virada de costas, e a terceira em que a mãe está afectuosamente junto dele e o pai afastado, olhando-os. A história contada é sucinta, seguindo de perto a descrição das duas primeiras cenas e omitindo a descrição da última cena. Parece evidente que separar a mãe do pai e ficar junto dela é perigoso. Frequentemente, ao descreverem esta cena as crianças diVol. 1, nº 1, Jan/Jun 99 Sequência organizada: Teresa Fagulha História verbalizada: Ficou a chorar, depois a pensar… Não!, os meninos foram lá, o menino ficou a pensar e a seguir respondeu os números. Indo directamente à cena que expressa claramente o sofrimento e a tristeza, logo a rejeita e substitui por outra que representa o pensamento. Pensamento e tristeza parecem claramente associados, e o João parece saber que pensar pode doer muito. Escolhe então uma cena em que os colegas estão presentes, e pode voltar à cena que representa o pensar, terminando com uma fantasia mágica do adulto “vedeta” que sabe tudo e proclama a sua sabedoria através do microfone, para que outros possam ouvir e aprender. Esta última cena, do último Cartão, se bem que apresente uma fantasia que o João omitirá no seu relato, parece revelar uma verdade que ele certamente desconhece. O João sabe muito da Vida, porque o contacto com a morte, lhe dá uma sabedoria que só o sofrimento vivido e elaborado pode dar. E com ele podemos aprender a conhecer a morte e a enfrentar e saborear a vida. Ao longo da prova ele mostra-nos o medo e a angústia, por vezes insuportáveis, e nesses momentos, os mecanismos de negação e idealização são o dom da sobrevivência. Estes, se bem que constituam defesas comuns nas crianças destas idades (Cramer, 1990, 1996), adquirem um significado particular na nítida associação com os sentimentos de angústia – desencadeando-a, ou surgindo face a ela. 98 Mas o esforço de integração e a coragem da Verdade constituem a “lição” da sua vida com que ele termina a prova. O João mostra-nos ainda como é verdade que o conhecimento da morte e a consciência dos perigos que correm se desenvolve nas crianças atingidas de doenças letais dum modo que os adultos ignoram (Aberastury, 1984; Mazet e Houzel, 1994; Raimbault, 1975). Na nossa cultura a doença e a morte são caracterizadas pelo silêncio, típico da negação. Na medida em que a sociedade não suporta ver os sinais da morte, exige aos que sofrem a sua ameaça (ou a perda de alguém que amam) o domínio e o controlo da manifestação e vivência da dor, dificultando a elaboração do luto (Freud, 1917) com consequências particularmente trágicas para as crianças. Os adultos, incapazes de lidar com as suas próprias angústias, procuram afastar a criança dos rituais que facilitam a elaboração da perda, escondem ou escamoteiam a realidade e, pretendendo “poupá-las”, deixam a criança só com as suas fantasias. Ao aperceberem-se das dificuldades dos pais, algumas crianças sentem-se impedidas de colocar as suas dúvidas e inquietações (Mazet e Houzel, 1994; Raimbault, 1975). Uma “pedagogia da morte” (Bertman, 1974) que promova a sua integração como parte da vida, em que o afecto e o bom senso guiem a forma adequada de responder a cada criança é indispensável, mas habitualmente inexistente. Revista Portuguesa de Psicossomática Revista Portuguesa de 99 Psicossomática Quando o problema se coloca perante a realidade da morte da criança surge o insuportável absurdo, na medida em que ela coloca os adultos perante uma inversão da ordem natural da vida, representando uma perda para a qual ninguém está preparado. Enfrentar os corpos doentes e os sinais da morte numa criança é quase intolerável e exige a capacidade pessoal para lidar com sentimentos intensos de perda e abandono, por vezes de culpabilidade pela saúde e sobrevivência, mas também a empatia indispensável para avaliar a capacidade da criança para falar, ou não falar, sobre a morte (Sourkes, 1992). Só na relação de confiança se pode criar um espaço de encontro e compreensão em que se pode aceitar, quer a expressão dos sentimentos, quer os movimentos de defesa. A negação e a raiva constituem a primeira defesa face à angústia do medo da morte. Atacar essas defesas poderá levar a um aumento da angústia. “Thank you for give me aliveness” (Sourkes, 1992), disse um rapazinho de 6 anos ao terapeuta que o acompanhava no caminho da vida para a morte, permitindo-lhe a integração dessas realidades, partilhando as suas perdas e frustrações, o medo, a tristeza e a raiva, os desejos, as expectativas e as ilusões. Esta capacidade de ajuda existirá na medida da nossa disponibilidade para ouvir as crianças e aprender com a sua sabedoria. Vol. 1, nº 1, Jan/Jun 99 Era uma vez… Referências Bibliogáficas • Aberastury, A. (1984). Percepção da morte e outros escritos. Porto Alegre: Artes Médicas. • Bertman, S. (1974). Concerning death. In Grollman, E.A. (Ed.) Death education in the face of a taboo (pp. 333-361). U.S.A.: Universiterian Universalist Association. • Cramer, (1991). The Development of Defense Mechanisms: Theory, Research and Assessment. New York: Springer-Verlag. • Cramer, P. (1996). Storytelling, Narrative and The Thematic Apperception Test. New York: The Guilford Press • Fagulha, T. (1992). A prova “Era uma vez…”. Uma prova projectiva para crianças. Dissertação de doutoramento apresentada à Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa. • Fagulha, T. (1997). “Era uma vez…”. Material e Manual. Lisboa: Cegoc/Tea, 2ª edição. • Ferrari (1985). L’enfant atteint de maladies mortelles. In Lebovici, S., Diatkine, R. & Soulé, M. (Eds.) Traité de Psychiatrie de l’enfant et de l’adolescent, Tome II (pp. 539-600). Paris: PUF. • Freud, S. (1978). Creative writers and day-dreaming. The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sygmund Freud, Vol.IX. (pp. 141-153). London: The Hogarth Press and the Institute of Psycho-Analysis. (Publicação original 1908). • Freud, S. (1978) Formulation on the two principles of mental functioning. The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sygmund Freud, Vol.XII. (pp. 213-226). London: The Hogarth Press and the Institute of Psycho-Analysis. (Publicação original 1911). • Freud, S. (1978) Beyond the pleasure principle. The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sygmund Freud, Vol.XVIII. (pp. 243-476). London: Teresa Fagulha The Hogarth Press and the Institute of Psycho-Analysis. (Publicação original 1920). • Gibb, D.M., Masters, J., Shingadia, D., Trickett, S., Klein, N., Duggan, C., Novelli, V. & Mercey, D. (1997). Uma clínica familiar – optimizando os cuidados às crianças com VIH e suas famílias. Actualidade em Pediatria, VI, 1926. • Kastenbaum, R. & Aisenberg, R. (1983). Psychology of death. London: Springer. • Klein, M. (1932). The psycho-analysis of children. London: The Hogarth Press and the Institute of Psycho-Analysis. • Leal, M.R.M. (1985). Introdução ao estudo dos processos de socialização precoce da criança. Lisboa: ed. Autor. • Mazet & Houzel, D. (1994). Psychiatrie de l’enfant et de l’adolescent. Vol II. Paris: Maloine. 4ª Edição. • Leal, M.R.M., Andersen, F., Fagulha, T., Santos, S.V. & Silva, M.E. (1993). Psychotherapy as Mutually Contingent Intercourse. Porto: APPORT. 100 • Mok, J. & Cooper, S. (1998). As necessidades das crianças cujas mães têm infecção por VIH. Actualidade em Pediatria, VI, 27-34. • Raimbault, G. (1975). L’Enfant et la mort. Paris: Dunod. • Simões, A. (1998). Ideias de morte em crianças entre os 5 e os 9 anos infectadas pelo vírus da Sida: Estudo exploratória através da prova “Era uma vez…”. Monografia de final de curso. Lisboa: Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologia. • Sourkes, B.M. (1992). The child with a life-threaning ilness. In Brandell, J.R. (Ed.) Countertransference in psychotherapy with children and adolescents. Northvale: Jason Aronson. • Winnicott, D.W. (1996). Objects transicionnels et phénomènes transicionnels. In De la pédiatrie à la psychanalyse (pp. 109-125). Paris: Payot (Publicado originalmente em 1953). • Winnicott, D.W. (1971). Playing and reality. London: Tavistock. Informação sobre o autor Professora Associada da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa Revista Portuguesa de Psicossomática