Autonomia do paciente:
Algumas reflexões éticas e bioéticas
LEO PESSINI
Membro da Comissão Nacional de Revisão do Código de Ética Médica
(CNRCEM)
São Paulo, 25 a 29 de agosto de 2009
CÓDIGOS DE ÉTICA MÉDICA BRASILEIROS 1867-1988
(8 códigos)
1867 - Código de Ética Médica da Associação Médica
Americana (traduzido para o português – Salvador/BA)
1929 - Código de Moral Médica
1931 - Código de Deontologia Médica
1945 - Código de Deontologia Médica
1953 - Código de Ética da Associação Médica Brasileira
1965 - Código de Ética Medica
1984 - Código Brasileiro de Deontologia Médica
1988 - Código de Ética Médica (em vigor)
2009 – Revisão do Código – 2008/2009
ÉTICA: PRINCÍPIOS E NORMAS
Princípios
Enunciam valores ou metas de caráter amplo e genérico, expõem
os grandes conceitos e os principais critérios pelos quais se
orientam qualquer prática profissional ética.........................................
Os princípios se justificam em razão de sua capacidade de articular
e orientar decisões e ações tendo como finalidade (telos), a busca
de valores orientada para a realização do ideal de vida humana.
Normas
Linguagem: “o médico deve“. Enunciam regras de comportamento
inspiradas em princípios teleológicos. Descrevem situações fáticas
e prescrevem condutas intersubjetivas. Se o principio enuncia valor
ou meta valiosa, a norma declara como o princípio deve ser
aplicado em situações específicas, ou seja, representa o
instrumento objetivo, deontológico, para orientar moralmente a
prática profissional.
ÉTICA MÉDICA
Esta expressão não existe antes de 1803!
Thomas Percival (1740 – 1804), médico de Manchester
(Inglaterra) cunhou como título de seu livro “Medical Ethics”,
publicado em 1803.
Obra:
Medical Ethics: Or a Code of Institutes and Precepts. Adopted
to the Professional Conduct of Physicians and Surgeons.
Muitos historiadores contudo tratam a história da Ética Médica
como co-existente à história da Medicina. Neste sentido, temos
como ponto fundamental a Medicina e Ética Hipocrática
(séc. V a.C)
ÉTICA E PLURALIDADE CULTURAL
Cultura Latina
•Ética do mandato e obediência
•Em toda a tradição antiga o homem é servo da lei natural e não ..tem
autonomia para mudá-la
•Hábitos naturais de boa vida – são as chamadas virtudes
•Existência de normas absolutas (experts em como transgredi-las)
•Importância da amizade (mais do que com a justiça) nas relações
..interpessoais (o paciente latino deseja que o médico seja seu amigo –
..alguém em quem possa confiar)
Cultura Anglo-Saxonica
•Linguagem do direito / dever – contrato
•Teoria dos direitos humanos (John Locke)
•Afirmação de uma ética autônoma, Ética do Indivíduo frente à ética .da
..natureza
•Teoria do dever. O Ser Humano é auto-legislador, dá-se a si mesmo
..a norma moral (Kant).
RELAÇÃO MÉDICO-PACIENTE
Definição:
“É uma equação moral marcada pela reciprocidade
com direitos e obrigações tanto do lado do paciente
quanto do médico. Deve ser equilibrada de forma
que ambos busquem o bem um do outro e se
respeitem em suas autonomias”.....................................
Edmund Pellegrino
RELAÇÃO MÉDICO-PACIENTE
• Ética das Virtudes
Modelos
• Ética do Dever
• Ética da Deliberação
ÉTICA DAS VIRTUDES
(juramento hipocrático)
• com pureza e santidade conservarei minha vida
e minha arte;(…)
• Se cumprir e não violar este juramento, que eu
possa desfrutar minha vida e minha arte
afamado junto a todos os homens, para sempre;
mas se o transgredir e não o cumprir, que o
contrário aconteça.”
Cairus,H.Ribeiro Jr.,W. Textos Hipocráticos,Rio de
Janeiro,Ed.Fiocruz,2005,p.151/152
MEDICINA E SACERDÓCIO
• “Se o enfermo não admira o médico de algum modo como a
um deus, não aceitará suas prescrições ...”
”Comentários ao Livro das Epidemias de Hipócrates”Galeno(100d.C.)
Código Norte-Americano de Ética (1867)
• “Os preceitos que a Associação Americana faz obrigatórios
para os seus membros(...) e que consideram a nossa
profissão um apostolado,um sacerdócio, e não uma
ocupação lucrativa ...”
Gazeta Médica da Bahia,ano 2,n.32,31 de Outubro de 1867
MEDICINA E SACERDÓCIO
Art. 1º. - deveres dos médicos para com os seus doentes, #
4º. “Para ser ministro de esperança e conforto para seus
doentes, é preciso que o medico, alentando o espírito que
desfalece (...). É, portanto, um dever sagrado proceder com
toda a reserva a este respeito, e evitar tudo que possa
desanimar o doente ou deprimir-lhe o espírito.
#5º - “calmando-lhe a aflicção do espírito”.
PODER DECISÓRIO DO MÉDICO
“Se um homem enfermo recusa os medicamentos
prescritos por um médico chamado por ele ou seus
familiares, pode ser tratado contra sua própria
vontade...”
“Médicine et morale chez Saint Antoine de Florence”
(1459)
PATERNALISMO MÉDICO
Definição:
“Em muitos aspectos, o nexo da relação que se
estabelece na assistência sanitária se assemelha ao de
uma família, assumindo o médico um papel quase
paternal, o que torna mais fácil e adequado o
manuseio do paciente e, o paciente assume um
papel quase infantil”.
Parsons,T. In Gallagher,E.B. “The doctor-patient relationship in the
changing health scene”, U.S.Government Printing
Office,Washington,1978
PATERNALISMO MÉDICO
Comentário:
- Relação assimétrica e vertical;
- Papel do médico é comandar e do paciente é obedecer;
- O médico assume o papel de “pai”, buscando o melhor para
...o paciente, sem levar em conta as vontades, opções e
...desejos do paciente.
EMANCIPAÇÃO DO PACIENTE
Autonomia do paciente
“Todos os homens têm direito à decidir quando se
trata de sua saúde e de sua vida.Todo ser humano é
autônomo e o enfermo também o é.”
John Gregory – Lectures on the Duties and
Qualifications of a Physician (1772)
CÓDIGO DE DIREITOS DOS PACIENTES
Associação Americana de Hospitais
Patient’s Bill of Rights - 1973
“O paciente tem o direito de receber de seu médico as informações
necessárias para outorgar seu consentimento antes do início de
qualquer procedimento e/ou tratamento”.
“Esse documento supunha quase um afastamento revolucionário
da beneficência hipocrática tradicional. Talvez pela primeira vez
num documento importante de ética médica, o médico é obrigado
sob a forma de direito a incorporar o doente no processo de tomada
de decisões e a reconhecer o seu direito a tomar a decisão final”.
..............................................................................
(Faden – Beauchamp – A History and Theory, p.94)
CÓDIGO DE DIREITOS DOS PACIENTES
Comentário:
- Doutrina sobre o Consentimento Informado
- O paciente torna-se um agente moral autônomo, livre e
...responsável por suas decisões e ações.
- Na história da Medicina encontramos inúmeros códigos de
...ética para médicos, não para pacientes.
- O código de ética (direitos) para pacientes surgem a partir
...do início dos anos 70 e se transforma numa das forças
...propulsoras do surgimento da Bioética nos EUA.
PRINCÍPIOS EUROPEUS DE ÉTICA MÉDICA - 1987
Art.4 “Salvo em caso de urgência,o médico deve
informar
ao
paciente
os
efeitos
e
possíveis
conseqüências de qualquer tratamento. Deverá obter
o consentimento do paciente, sobretudo quando os
procedimentos apresentarem risco à saúde.”
CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA BRASILEIRO - 1988
É vedado ao médico...
• art.46: ”Efetuar qualquer procedimento sem o
esclarecimento e o consentimento prévios do paciente...”
• art.48: ”Exercer sua autoridade de maneira a limitar o
direito do paciente de decidir livremente...”
• art.56: ”Desrespeitar o direito do paciente de decidir
livremente sobre a execução de práticas diagnósticas e/ou
terapêuticas...”
• art.59: ”Deixar de informar ao paciente o diagnóstico,
prognósticos, riscos e objetivos do tratamento...”
REVISÃO DO CÓDIGO.....
Princípio: Proposta....
XXI Da autonomia do paciente
No processo de tomada de decisões
profissionais, considerando-se seus ditames
de consciência, o médico privilegiará as
escolhas de seus pacientes referentes às
propostas diagnosticas e terapêuticas por
eles expressadas, desde que adequadas ao
caso e cientificamente reconhecidas.
CONSENTIMENTO INFORMADO
Definição:
“É a aceitação racional de uma intervenção médica ou a
escolha de tratamento entre alternativas possíveis para
determinada situação clínica. E para assumir esse
consentimento, o paciente deve reunir condições como:
dispor de informações suficientes; compreender as
informações adequadamente; encontrar-se livre para
decidir de acordo com seus próprios valores; ter
capacidade plena para decidir sobre a questão.”
................................................................................Diego Gracia
CONSENTIMENTO INFORMADO
Especialistas em Ética Médica admitem cinco
exceções ao consentimento informado:
1) graves problemas de saúde pública;
2) urgências médicas;
3) incapacidade ou incompetência do doente;
4) privilégio terapêutico;
5) recusa da informação por parte do doente.
NASCIMENTO DA ÉTICA DO DEVER
- Liberalismo e Utilitarismo
- Privilégio da autonomia do ser humano e de suas ações morais
- Ética Contratualista
- Ética Libertária
“O principal objetivo da profissão médica é de prestar serviço à
humanidade com total respeito à dignidade do homem. O médico
deve merecer a confiança dos pacientes que estão sob seus
cuidados dando à cada um de maneira plena seu conhecimento e
devoção.”
....................“Principles of Medical Ethics” A.M.A. Jama, Jun 07, 1958
O CASO DO PATERNALISMO
“Já não se concebe a profissão médica como única guardiã da
saúde pública e,em conseqüência,o tradicional paternalismo
da profissão entra em conflito com a sociedade.”
“Professional Ethics:New Principles for Phisicians” Hastings Center
Report,10 Jun,16-19,1980
DENÚNCIAS CONTRA MÉDICOS
“Mais ou menos à cada quatro dias um paciente denuncia um
médico buscando reparação sob a alegação de negligência
profissional.”
Comentarista Legal da NEJM
“Why are malpractice suits?” NEJM, 200, 93, 1929.
SCHLOENDORF X SOCIETY OF NEW YORK
HOSPITAL - 1914
(“patient’s right of selfdetermination”)
“Cada ser humano em pleno juízo tem o direito a
determinar o que deve ser feito com seu próprio
corpo e um cirurgião que realiza uma intervenção
sem o consentimento do paciente comete uma
agressão de cujas conseqüências é responsável.”
Juiz Benjamin Cardozo
PROCEDIMENTALISMO ÉTICO E DIRETRIZES
ANTECIPADAS DE VIDA
EUA – Moralismo Americano
Numa sociedade pluralista em que se supõe que os individuos
sejam estranhos no ponto de vista moral, desconfiando uns dos
outros, o único concenso possível parece versar sobre
procedimentos, instalando-se assim uma justiça puramente
procedimental...................................................
Nesta conjuntura as diretrizes antecipadas de vida são vistas
como melhor instrumento para respeitar o único valor
reconhecido universalmente: a autonomia da pessoa.
Nota: a) procuradores que representam os desejos dos pacientes
(Surrogates); b) Diretrizes Avançadas (Living Wills).
CATÁSTROFE RELACIONAL
AFINAL, O QUE SIGNIFICA SER AUTÔNOMO NA
MODERNIDADE?
- Relatividade dos valores: não está justificado deliberar sobre
...valores morais alheios
- Pluralismo: amigos e estranhos morais (Engelhardt)
- “A autonomia do homem transformou-se na tirania das
...possibilidades”
...H.Arendt – “La vie d’une juive allemande à l’époque du Romantisme”(1986)
“Em pacientes competentes, nunca se pode interferir em seu
próprio benefício sem seu expresso consentimento, não importando
quanto mal é prevenido e quão pequena é a violação da regra
moral.”
...................................T.Beauchamp – “Principles of Biomedical Ethics”(1979)
AUTONOMIA E BIOÉTICA DA PROTEÇÃO
Autonomia x Vulnerabilidade Humana
Ex.: Impasses bioéticos na abordagem de pessoas com
transtornos mentais.
•Afasta-se da polanização no debate autonomia x
...paternalismo
•Ampliar parâmetros frente a situação de pessoas
...vulnerabilizadas por transtornos mentais
•Não se trata de ser Paternalista, mas da implantação do
...princípio da beneficência
•A autonomia produziria efeitos contrários ao que visa
...defender
ATO (MÉDICO) HUMANO AUTÔNOMO:
Dados essenciais:
Competência : entender e avaliar
•Intencionalidade.
•Ausência de controle externo: coerção, manipulação e
...persuasão.
•Racionalidade: tomada de decisões, considerando as
...melhores evidências científicas e o maior benefício
...clínico possível ao paciente.
Culver, C In Segre e Cohen Bioética, São Paulo,Edusp,1995
VONTADE RACIONAL
“A racionalidade está intrinsecamente ligada à
intersubjetividade, onde se forma e se descobre uma
vontade racional(…)Vontade racional é [a expressão]de uma
vontade cujo móvel da ação se encontra numa forma que
poderia ser aceita por uma comunidade de comunicação
com base em razões,portanto,por normas passíveis de
universalização .”
Dutra. DJ “Razão e Consenso em Habermas” Florianópolis,
Editora da UFSC, 2005
PACIENTE VULNERABILIZADO
MODELO DELIBERATIVO
(comunidade ideal de comunicação)
Deliberação sem deformações internas ou externas
Livre expressão dos argumentos
Acolher argumentações discordantes
Diante de conflitos morais nem sempre é possível atingir-se
decisões consensuais
Habermas, J. Teoria de la acción comunicativa, Madrid, Taurus, 1987
MODERAÇÃO JUSTIFICADA
“O pensamento pós-metafísico deve impor a si próprio
uma moderação,quando se trata de tomar posições
definitivas em relação a questões substanciais sobre a vida
boa ou não-fracassada.”
Habermas,J. O futuro da natureza humana, São Paulo,
Martins Fontes,2004
ÉTICA DA DELIBERAÇÃO
(sobre como superar a catástrofe relacional)
Diálogo respeitoso na busca do consenso possível,
considerando:
•autonomia do paciente
•manifestação de vontade racional
•tomada de decisões clínicas razoáveis e prudentes
...com amparo nas melhores evidências científicas
"LO MÁS IMPORTANTE DEL CURSO [MÉDICO] ES
ENSEÑAR A DELIBERAR"
……………………………………………………….Diego Gracia.
SÍNTESE DOS MODELOS
1) PATERNALISTA: Médico protagonista heteronomia ;
....ética das virtudes
2) AUTONOMISTA: Paciente protagonista autonomia
....solitária ; ética do dever
3) DELIBERATIVO (comunidade ideal de
....comunicação;moderação justificada;vontade racional)
: ....autonomia solidária ; ética da deliberação ; decisões
....sobre conflitos morais
QUESTÃO ANTROPOLÓGICA CULTURAL:
QUEM É O SER HUMANO?
TODO ATO AUTÔNOMO É RACIONAL ?
QUE FUTURO VAMOS CONSTRUIR?
Uma constatação:
“É um fato comprovado que quando a autonomia é levada ao
extremo é convertida num princípio absoluto e sem exceções
conduz à aberrações não menos menores do que as do
paternalismo beneficientista. O paternalismo está para a
beneficência, como o anarquismo para a autonomia. O bem
comum exige por limite às decisões livres dos indivíduos. Por
isso, só com o princípio de autonomia não se pode construir
uma ética coerente. A razão, as vezes está do lado da
beneficência e não do lado da autonomia. E, muitas outras
vezes, encontra-se entre estes dois princípios, entre a pura
beneficência e a pura autonomia. Daí a necessidade de um
terceiro princípio que, qual novo Salomão, faça a mediação
entre ambos. Este princípio é o da justiça”.
Diego Gracia – Fundamentos de Bioética, p.259
QUE FUTURO VAMOS CONSTRUIR?
Séc. XX: Éticas da responsabilidade - o Ser Humano
autônomo e responsável (Diego Gracia)
Relação médico-paciente:
“Contrato jurídico”
entre estranhos?
ou
“Aliança terapêutica”
em que temos frente à frente, uma confiança perante uma
consciência?
OBRIGADO!
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Dr. Leo Pessini - Autonomia do paciente