Título pleno em português: A rede e o problema da mediação : uma nota sobre o ciberespaço Título pleno em inglês: The net and the problem of mediation: a note on cyberspace Autor: Fernanda Bruno Referência Bibiográfica: BRUNO, Fernanda. “A rede e o problema da mediação: uma nota sobre o ciberespaço”. Série Documenta, Rio de Janeiro, v. VIII, n. 12­13, p. 185­212, 2003.
1 Resumo A construção e expansão de uma nova modalidade de ‘espaço’ ou ‘ambiente’ reticular – o ciberespaço – recoloca o problema da mediação. Ao menos duas razões concorrem para tanto: o ‘conteúdo’ do ciberespaço (a informação digitalizada) e a sua idealização como uma rede de informação descentralizada, fundada na autonomia individual e na eliminação dos intermediários ou mediadores. No primeiro caso, o problema da mediação encontra­se intimamente associado à compreensão do princípio que rege a construção de interfaces no espaço informacional. No segundo caso, cabe questionar a tese de que quanto maior for a transparência e a autonomia dos indivíduos no acesso, na produção e na circulação da informação, menor deve ser a atividade de mediação. Sugere­se que no ciberespaço não vigora uma diminuição ou supressão dos mediadores, mas uma mudança na sua natureza e na sua forma, ressaltando o seu papel estratégico nas possibilidades de habitação e experimentação desta rede informacional. Palavras­chave : rede; mediação; interface; ciberespaço. Abstract The construction and expansion a new modality of reticular ‘space’ or ‘environment’ – cyberspace – poses once again the problem of mediation. At least two reasons concur to that: the cyberspace’s ‘content’ (information in digital format) and its idealization as a net of decentralized information, founded in individual autonomy and elimination of intermediators and mediators. In the first case, the problem of mediation is closely linked to the understanding of the principle that regulates interface constructions in the informational space. In the second case, the thesis that states that the higher the transparency and autonomy of individuals in information accessing, producing and circulating, the lower must the activity of mediation be should be questioned. It’s suggested that in cyberspace there is no suppression of mediator neither a diminished number of them, but a change in their nature and form, pointing out their strategic role in habitation and experimentation possibilities of this informational net. Key­words: net; mediation; interface; cyberspace
2 A rede e o problema da mediação : uma nota sobre o ciberespaço ¨ Fernanda Bruno Na Rede, onde estamos? Na mediação, na interface. Estas são as noções privilegiadas nesta breve nota sobre as possibilidades de habitação e de experimentação do ciberespaço 1 . Não nos é estranha a idéia de que nossas relações com o mundo físico, social ou imaginário não são imediatas mas mediadas. O corpo, a linguagem, as representações, as construções intelectuais, os discursos, os mitos são velhos e conhecidos mediadores. Também nos são familiares os “homens do meio”, os intermediários ou mediadores do sagrado, do poder, da opinião pública, do saber, dos acontecimentos – padres, reis/estados/governos, intelectuais, mestres, jornalistas. Ainda há a técnica e os objetos técnicos, que também podem ser entendidos como mediações tanto entre o homem e o mundo natural ou material, concepção mais comum, quanto entre os próprios homens ou entre esferas do mundo social, político, econômico, intelectual, experiência mais visível com as recentes tecnologias de informação e de comunicação. Seja pelo corpo, pelas capacidades cognitivas, pelas estruturas simbólicas, pelos intermediários humanos ou pela tecnologia, nossa experiência do mundo se dá por mediações. A construção recente de um espaço informacional numerizado, a que se designou vulgarmente por ciberespaço, traz novamente à cena o problema da mediação. Ao menos duas razões concorrem para tanto: o ‘conteúdo’ do ciberespaço – a informação digital ­ e a sua idealização como uma rede de informação e de comunicação descentralizada, fundada na autonomia individual e na eliminação dos intermediários ou mediadores. Comecemos por explorar a relação entre a informação digital e o problema da mediação. Esta relação já se faz presente com o computador. Uma vez que nestas máquinas toda informação é codificada em linguagem binária (seqüências de O/1), inacessível enquanto tal à maioria dos humanos, e que toda ação depende de um programa de instruções lógico­formais que permite o tratamento destas informações, é preciso haver dispositivos que façam a mediação entre o mundo da máquina e o do usuário. Esta dupla característica desta máquina informacional, opaca em sua estrutura interna e ‘interativa’ em sua função, posto que depende de nossas instruções e comandos para executar tarefas, exige a criação de uma ‘superfície’ de diálogo que torne o mundo binário e digital compreensível e manipulável pelos humanos. As potencialidades tanto da máquina quanto do usuário dependem, pois, da construção desta mediação que, no terreno da informática, se traduz na construção de interfaces, segunda noção focalizada desta nota. Usualmente, a interface designa o conjunto de programas e dispositivos materiais que garantem a comunicação entre o homem e a máquina, particularmente os sistemas de informação numerizada. No caso do computador, a interface requer, inicialmente, que ele ‘represente a si mesmo’ para o usuário numa linguagem que este possa compreender. A singularidade do computador em relação a outras máquinas reside no fato de ele ser um sistema simbólico que, do início ao fim de seu processo de funcionamento, trafega representações ou signos: ‘pulsos’ de eletricidade são símbolos que valem como 0 e 1; estes representam um conjunto simples de instruções matemáticas que, por sua vez, representam palavras, imagens, mensagens de e­mail etc. Segundo Steve Johnson (1997), o alcance da ‘revolução digital’ dependeu desta capacidade de auto­representação do computador 2 . Sem a construção de interfaces, os computadores permaneceriam enormes máquinas de cálculo, mediadas por suportes pesados e pouco práticos (cartões perfurados, listas fornecidas por
3 saídas tipográficas) e restritas aos domínios acadêmico­científico e governamental. É através da interface que se torna possível um novo modo de interação entre o homem e o computador, e a conseqüente expansão do uso pessoal desta máquina para fins de comunicação, trabalho, criação, planejamento, simulação, sociabilidade, diversão etc. Na ocasião do lançamento do primeiro computador pessoal comercial com interface gráfica e mouse, a Apple investe conscientemente nesta idéia de que o Machintosh anunciava um novo tipo de computador para um novo tipo de usuário – “the rest of us” (SHAPIRO, 1999), nas palavras da empresa. Ainda segundo S. Johnson (1997), a novidade que dá origem à interface contemporânea é a tradução da informação digital em uma linguagem visual; constitui­se, desde então, um espaço informacional. Um dos responsáveis por esta novidade teria sido Doug Engelbart, a partir da idéia de bitmapping e do princípio de manipulação direta. Quanto à primeira, “a própria palavra sugere uma improvável aliança entre cartografia e código binário” (Ibidem, p. 21): cada ponto (pixel) da tela do computador articula­se a uma parte da sua memória. “O computador, em outras palavras, imagina a tela como uma rede de pontos (pixels), um espaço bidimensional” (Idem). As informações, os dados contidos no computador, passam, pela primeira vez, a ter uma localização física — os elétrons movendo­se pelo processador — e uma localização virtual — aquela espelhada na tela. Após dotar os dados de atributos espaciais, criou­se o princípio de manipulação direta. Para que a ilusão do espaço informacional pudesse funcionar era necessário não apenas representar um documento com um ícone, mas possibilitar o controle do usuário sobre tais imagens. A passagem da interface textual, onde o usuário informava ao computador a tarefa a ser executada, para a interface gráfica, onde o usuário tem a impressão de que é ele mesmo que age ao clicar sobre ícones e mover o mouse sobre a tela, instaura a manipulação direta. A experiência do usuário é a de fazer algo diretamente com os dados, em vez de ordenar a execução de uma tarefa ao computador: a informação parece estar mais próxima de suas mãos. O mouse provê a manipulação e, neste sentido, é o “representante do usuário” no espaço informacional; o feedback visual confere instantaneidade e imediaticidade à experiência. A interface gráfica muda, portanto, o modo como os homens se relacionam com o computador. Mais que instrumentos ou próteses, estas máquinas tornam­se um meio, uma paisagem a ser explorada, um ambiente a ser habitado, experimentado. Com o espaço informacional advém “the first machine worth live in” (Ibidem, p. 25). Pode­se extrair o seguinte princípio desta passagem da interface textual para a gráfica: a constituição de uma interface, de uma via de interação entre dois domínios heterogêneos não implica a eliminação de superfícies ou camadas que se interpõem entre eles. Trata­se, antes, de um processo de adição de camadas que potencializa a comunicação, a conexão e as trocas que eles mantêm entre si. A interface é, portanto, uma superfície, uma ‘camada’ que, ao invés de promover o afastamento entre dois domínios, os aproxima, pois é através desta camada ou superfície que eles se tornam sensíveis, acessíveis e significativos um para o outro. Retomando o exemplo da construção da interface gráfica, nota­se que ela implicou, de fato, a adição de mais uma camada — a da linguagem visual — ‘separando’ o usuário da informação armazenada no computador. No entanto, embora o usuário se encontre ‘materialmente’ mais distante da informação, sua experiência sensorial, motora e comunicacional é de maior proximidade. E esta proximidade, bem se sabe, alterou tanto o computador — sua função, seu papel social — quanto a experiência do usuário.
4 Podemos agora notar o quanto a mediação, aqui possibilitada pela interface, é uma questão decisiva para o modo como os homens podem frequentar e experimentar os ambientes digitais. Cabe ressaltar que este processo de modo algum se restringe a um problema especificamente técnico, de aprimoramento da eficácia dos dispositivos e instrumentos em questão. Os dispositivos materiais, informacionais, sensoriais e cognitivos que regem as interfaces entre homens e máquinas ou ambientes digitais, entendidos como dispositivos de mediação, configuram ou orquestram uma parte significativa da experiência de si, do outro e do mundo que aí tem lugar. Neste sentido, a mediação e a interface participam ativamente da maneira e do alcance com que as esferas da vida cotidiana, cultural, social, política integram o espaço informacional constituído pelas novas tecnologias de informação e de comunicação. A expansão da Internet tem um papel decisivo no desenvolvimento deste espaço informacional e requer, mais uma vez, um enorme trabalho de mediação. O fato de nossas máquinas estarem lançadas em redes globais de informação exige a elaboração de interfaces que permitam a sua exploração. Cada vez é mais difícil imaginar este espaço de dados crescente e mutante que está na ponta dos nossos dedos. O modo como este mundo ou espaço vem se revelando a nós, bem como as possibilidades de habitação e experimentação aí abertas ou limitadas têm estreitas relações com a construção de mediadores e interfaces. No entanto, bem o sabemos, a Internet muito foi e ainda é aclamada como uma rede de comunicação que, dada a sua arquitetura descentralizada, prescinde de mediadores e intermediários, garantindo uma comunicação todos­todos e uma maior autonomia dos indivíduos na relação com a informação. Ingressamos, por meio desta tensão, na segunda razão da importância da mediação para a reflexão sobre o ciberespaço. A Internet representa de fato a supressão dos mediadores e intermediários ou antes uma mudança na sua ‘natureza’ e no seu modo de atuação? Vejamos, de modo breve, alguns argumentos em favor da primeira hipótese. A arquitetura reticular da Internet, ao permitir que toda informação seja acessada por todos e de qualquer lugar, expressa um modelo de comunicação descentralizado que se apresenta como uma alternativa bastante interessante aos meios de comunicação de massa. Enquanto estes são regidos pelo princípio de comunicação um­todos, onde cabe ao produtor a seleção e determinação das informações que todos devem receber segundo um suposto interesse geral, a Internet abre a possibilidade de todos serem produtores e receptores. Na rede não há centro de decisão, filtragem ou seleção das informações, não há massificação nem homogeneização dos indivíduos. Não há, pois, intermediários ou mediadores entre os indivíduos e a informação – ela está aí (na rede) ou pode aí estar, na ponta de nossos dedos, e conforme os interesses individuais. Aliada à arquitetura reticular e descentralizada da Internet, a digitalização garante uma flexibilidade na estocagem, na manipulação e na transmissão da informação, bem como uma radical redução no seu custo 3 , favorecendo ainda mais a sua transparência, democratização e o crescimento do controle do indivíduo sobre ela 4 . Estas características juntam­se, ainda, a um princípio público ou político que promete fundar diretamente a legitimidade do poder sobre a associação de coletivos autônomos de base, sem referência a uma transcendência seja privada, seja estatal. Também aqui, há o ideal de supressão dos intermediários nos contratos sociais e políticos que vigoram na Internet. Resumidos, os argumentos supõem que a transparência da informação (na produção, no acesso e na circulação), intimamente associada a sua democratização e ao aumento da autonomia individual, implica a supressão dos mediadores. Podemos extrair daí a seguinte
5 equação: quanto maior é a transparência da informação e a autonomia dos indivíduos, menor é a mediação. É exatamente esta equação que merece ser questionada; e já ingressamos nos argumentos em favor da segunda hipótese. A transparência da informação que vigora na Internet implica não uma supressão dos mediadores mas uma mudança na sua ‘natureza’ e no seu modo de atuação. Talvez possamos afirmar que a Internet elimina ou transforma os mediadores tradicionais – jornalistas ou homens de comunicação em geral, políticos, Estado, produtores culturais (editores, marchands, críticos de arte, indústria fonográfica etc) – mas não implica a supressão da mediação ela mesma. Mas qual seria este novo trabalho de mediação, quem seriam os novos mediadores? O primeiro argumento que nos leva a propor que a transparência não se opõe à mediação mas depende dela já foi mencionado. Vimos o quanto o acesso ao mundo da informação digitalizada depende de dispositivos de mediação. Sem a construção de interfaces o ciberespaço seria bastante inóspito ou, mais radicalmente, não se revelaria a nós como um espaço passível de ser frequentado e explorado. A transparência da informação que nele vigora é construída graças às interfaces de programas, browsers, protocolos de acesso e de transferência de informação etc. Estes mediadores não apenas permitem que as informações sejam acessadas, produzidas e transmitidas de e para qualquer ponto da rede, como definem o modo como o espaço informacional pode ser explorado pelo usuário. Os projetos mais recentes de interface têm proposto a construção de meios mais imersivos, onde cada vez mais a manipulação de ferramentas para executar tarefas tende a ser substituída pela penetração e imersão em espaços de ações e experiências cognitivas, sensoriais, afetivas. Por meio da interface, o mundo dos bits e ‘pulsos’ eletrônicos não apenas torna­se significativo para os indivíduos, como torna­se um espaço que passa a fazer parte do seu campo de experiência — do modo como eles trabalham, se comunicam, se deslocam, gerem sua memória, modulam sua identidade, entretêm relações afetivas, sexuais etc. Se pensarmos no aumento da autonomia individual na produção e difusão de informações, idéias, conhecimentos e criações artísticas não encontraremos um menor número de mediadores. No lugar dos mediadores tradicionais, programas informáticos, associados à estrutura comunicacional da rede, permitem a edição e distribuição de livros, facilitam a publicação científica, a difusão de produções musicais etc. Um segundo argumento em favor da ‘aliança’, e não da oposição, entre a transparência da informação e o trabalho de mediação está relacionado ao problema do excesso de informação no ciberespaço. É preciso em primeiro lugar lembrar que se a rede garante maior transparência e autonomia individual, ela também está sujeita ao excesso de informação. A democratização da informação concerne tanto ao acesso e à transmissão quanto à produção ­ a quantidade de informações no ciberespaço cresce vertiginosamente. Segundo P. Vaz (2000), embora o conceito de rede suponha a multiplicação combinatória das interações à medida que cresce o número de nós, a esperança depositada na Internet desprezou o problema do excesso de informação 5 . Ainda segundo o autor, a maior parte dos textos até 1996 que estimavam os efeitos subjetivos da Internet desconsideraram o excesso. Hoje, a sobrecarga de informação é tema corrente, inclusive no ciberespaço, o que ironicamente contribui para o seu aumento – em 1998, havia mais de 20.000 sites na Internet dedicados ao excesso de informação 6 . A rede, este espaço ilimitado, encontra no seu horizonte um limite informacional – o excesso. Tal sobrecarga de informações ameaça a liberdade, a autonomia e a transparência. Como navegar nessa massa crescente de dados, como encontrar a informação relevante em
6 tempo hábil e como evitar ser bombardeado por grupos, mensagens e informações desinteressantes? Reaparecem os mediadores, agora destinados a contornar o problema do excesso de informação oferecendo o acesso rápido ao que é de interesse do usuário e atestando a credibilidade das informações encontradas. Um dos mais conhecidos destes mediadores são os mecanismos e robôs de busca. Vejamos com Weissberg (1999) algumas características destes programas. Além de procurar informações segundo centros de interesse particulares, há programas que oferecem um “valor” anexado à informação disponível. O mecanismo de busca Magellan, por exemplo, indexa mais de quatro milhões de sites, dos quais comenta cinqüenta mil e confere estrelas para cada um deles (Ibidem, 117). Lycos, o primeiro mecanismo de busca que indexa imagens e documentos sonoros, oferece uma lista de sites segundo um critério mais ‘popular’ (Idem). “O mecanismo percorre muitos milhares de sites a cada dia e memoriza o número de elos (links) que os conectam entre si. Quanto mais elos (links) tiver, mais o site é dito ‘popular’” (Idem). Há ainda programas que asseguram uma edição automática de informações. É o caso do Computist’s Communique, um periódico difundido por correio eletrônico, reunindo informações recentes disponíveis na Internet segundo certas especialidades (Idem). Mas os mecanismos de busca também não escapam ao excesso. Em 1998, eles já eram mais de mil e trezentos. Surgem assim os meta­robôs, que buscam, avaliam e filtram, segundo domínios específicos, os resultados dos próprios robôs de busca, fornecendo uma maior precisão e qualidade nas respostas obtidas 7 . Outra modalidade de mediadores, mais personalizada, é constituída pelos agentes inteligentes, que buscam informações em centenas de bases de dados, sites, bibliotecas, revistas, jornais do ciberespaço, de acordo com instruções baseadas nos centros de interesse de indivíduos ou grupos. Uma das singularidades destes agentes, também chamados de Knowbots (robôs do saber), é a capacidade de ‘aprender’ sobre seus próprios ‘mestres’ à medida que interagem com eles e cumprem as ‘tarefas’ que lhes são delegadas. A partir das instruções iniciais e da detecção de padrões de navegação, ele pode recomendar novos sites e textos, ou atualizar off­line aqueles que visitamos sempre etc. Também podem, se instruídos, cumprir o papel de uma secretária pessoal: fazer reservas de hotéis e restaurantes, marcar reuniões, realizar compras on­line. O que se deseja ressaltar com estes poucos exemplos de mediadores que residem no ciberespaço é, repito, que a transparência e a democratização da informação, bem como a autonomia individual não derivam de uma supressão dos mediadores mas, ao contrário, são em boa parte possibilitados por eles. Do mesmo modo, as condições de navegação, a facilidade ou dificuldade na busca de informações relevantes num cenário de excesso e de indiferenciação depende também de mediadores. Como, de modo geral, estes mediadores ‘trabalham’ para se tornarem invisíveis, para criarem a ilusão da imediaticidade e para aumentar a autonomia e o controle do indivíduo sobre a recepção e a emissão das informações, eles parecem não estar aí. Os mediadores que residem no ciberespaço são, como atestam os exemplos, mistos de humanos e de não humanos. Eis a razão de termos falado de uma mudança na ‘natureza’ dos mediadores. O trabalho de mediação que vigora na rede é um trabalho partilhado entre humanos e programas, interfaces, mecanismos e robôs de busca, agentes. Isto implica uma mudança no modo de funcionamento da mediação. Weissberg propõe o termo “auto­ mediação” (Ibidem, p. 106) para designar essa conjunção paradoxal de autonomização e de automatização da mediação. Na Rede, “o próprio ator mediatiza o acontecimento e constrói assim diretamente o espaço de sua comunicação/difusão” (Idem). Mas esta autonomização
7 está intimamente associada à automatização da mediação “pelo uso direto de programas possibilitando cumprir diretamente uma tarefa” (Idem). Uma última observação: a recusa da equação de que a transparência da informação e a autonomia dos indivíduos envolvem a supressão de mediadores não implica supor que a mera presença de mediadores garanta esta mesma transparência e autonomia. Os exemplos de mediações e interfaces que contribuíram para a consolidação da democratização da recepção/emissão das informações, para o aumento da autonomia individual e para a facilitação da busca de informações segundo o interesse dos indivíduos não são universais. A mediação, como bem nos ensinam os intermediários tradicionais, pode ter efeitos bem menos interessantes. E não faltam prognósticos alarmantes para a Internet: uso indevido das push technologies 8 , apropriação publicitária e mercantil dos agentes, invasão de privacidade etc. Os agentes são um dos intermediários que mais despertam temores, posto que seguem o princípio da manipulação indireta, implicando a delegação de parte do controle ao programa. É claro que podemos interrogar, entretanto, se toda tecnologia não implicaria uma forma de delegação. De todo modo, este temor concerne principalmente aos agentes ditos sociais (JOHNSON, op. cit.), que também se comunicam com outros agentes, de quem recolhem elementos para recomendar informações ao seu “mestre”, antecipando seus desejos, interesses e necessidades com base nos padrões apresentados por milhões de pessoas que constam em bancos de dados. Não é este o sonho do marketing e da publicidade? “Como no mundo da espionagem, o problema central com os agentes inteligentes é o de não ficar sempre claro para quem eles trabalham” (Ibidem, p. 188). Não cabe nos limites desta nota discutir a pertinência destas avaliações. Resta apenas ressaltar que os mediadores ocupam, para o melhor ou para o pior, um lugar estratégico na Internet. A análise das potencialidades e limites da experimentação no ciberespaço implica refletir e intervir nas mediações, em vez de proclamar o seu bastante improvável fim. A Internet reforça, assim, a idéia de que inventar e habitar ‘mundos’ supõe criar mediações e interfaces.
¨ Este artigo constitui um resultado do Projeto “As formas híbridas da cognição na atualidade”, apoiado pela Fundação Universitária José Bonifácio/FUJB. Notas 1 O termo ciberespaço designa aqui o espaço de communicação e de informação constituído pela interconexão mundial de computadores e memórias informáticas. Em nossa análise do ciberespaço focalizaremos a Internet. 2 Para uma análise da relação entre interface e representação, conferir também Laurel, B. (1993), Computer as Theatre, New York, Addison­Wesley. 3 A melhora nas performances dos materiais (velocidade de cálculo, capacidade de memória) aliada a uma progressiva diminuição de preço, também contribui decisivamente para a queda do custo na difusão da informação. 4 Para uma análise da relação entre a Internet e o aumento do controle dos indivíduos sobre o espaço informacional, Cf. Shapiro, A.L. (1999). 5 No texto referido, o autor analisa os valores éticos e políticos que motivaram o desprezo de alguns intelectuais contemporâneos pelo problema do excesso de informação na Internet. 6 Esses dados são fornecidos por Gleick, J. (1999), Faster, New York, Pantheon Books, p. 88 apud Vaz, P., op. cit. 7 Eis alguns exemplos de meta­robôs: Savy Search, Copernic, Metacrawler, Digout4U. 8 O termo push tecnologias designa os dispositivos que levam a informação até o usuário, fazendo­lhe ‘recomendações’ que crê ser do interesse deste. Estes dispositivos se diferenciam daqueles que permitem que o próprio usuário busque as informações que deseja – as pull technologies, tal como os browsers tradicionais.
8 Referências Bibliográficas GLEICK, J. (1999), Faster, Nova Iorque, Pantheon Books. JOHNSON, S. (1997), Interface Culture: how new technology transforms the way we create and communicate, Nova Iorque, HarperCollins. LAUREL, B. (1993), Computer as Theatre, New York, Addison­Wesley. SHAPIRO, A. L. (1999), The Control Revolution, New York, Century Foundation. VAZ, P. (2000) “Esperança e excesso”. In: CD­ROM dos Anais da IX Compós, Porto Alegre/RS, Compós/Famecos/PUC­RS. WEISSBERG, J­L. (1999), Présences à distance, Paris, L’Harmattan.
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BRUNO, Fernanda. A rede e o problema da mediação