UNIVERSIDAD DE BUENOS AIRES
FACULDAD DE DERECHO
PROGRAMA DE POSGRADO
DOCTORADO EM DERECHO CIVIL
CLEVER AUGUSTO JATOBÁ MIRANDA
RUBEM DE OLIVEIRA VALENTE NETO
Buenos Aires
2012
CLEVER AUGUSTO JATOBÁ MIRANDA
RUBEM DE OLIVEIRA VALENTE NETO
A FUNÇÃO SOCIAL DO DANO EXTRAPATRIMONIAL:
Um olhar sociológico e jurídico sobre o Punitive Damages.
Trabalho apresentado à Disciplina Sociologia do
Direito, como requisito parcial de avaliação do
Módulo 2 de programa de pós-graduação em
doutorado em Direito Civil pela UBA –
Universidade Buenos Aires.
Prof. Dr. Felipe Fucito.
Buenos Aires
2012
1. INTRODUÇÃO
A harmonia da vida em sociedade reclama do Direito a regulamentação de regras
básicas de boa convivência, quais precisam ser respeitadas pelos indivíduos que a integrem.
Diante da violação dos regramentos legais previamente estabelecidos, repercute perante o
direito a noção básica de responsabilidade.
Nesta ordem de ideias, uma vez estabelecidas as regras de convivência social e
impondo-se aos indivíduos que integram este agrupamento (sociedade), tem-se um rol de
deveres (e/ou obrigações) a nortearem o comportamento humano. Assim, obedecendo ou
contrariando os regramentos desta ordem jurídica tem-se, respectivamente, a noção de ato
lícito e ato ilícito.
Ocorre, porém, que quando o comportamento tido como ilícito, por ofender os
regramentos legais, venham a ocasionar um dano a alguém, compete ao ordenamento jurídico
tomar as medidas necessárias ao restabelecimento da ordem e harmonia social, de modo a
garantir a manutenção do equilíbrio das relações jurídicas interpessoais, materializando,
assim, seu desiderato de garantir a paz social.
Quando o ato ilícito ofende bens jurídicos tutelados pelo Direito Penal, caso tais
situações estejam previamente tipificadas como crime (ou contravenções penais), impõe-se as
correspondentes sanções penais, quais, em regra, estão vinculadas ao cerceamento da
liberdade do indivíduo, aplicando-lhe pena correspondente à prisão (detenção ou reclusão),
mas, que podem, por via de exceção, incidir sobre a aplicação de multa ou penas restritivas de
direitos, nos casos previstos em lei.
Fora as relações da esfera criminal, todas as demais relações jurídicas amoldam-se ao
conceito amplo que harmoniza a convivência social no âmbito da ordem civil. Assim, quanto
aos danos atrelados a esta realidade, não há que se falar em “prisão”, mas, sim em reparação,
ressarcimento, quais buscam restabelecer o status quo ante, ou, quando não seja possível,
busca-se ao menos compensar pecuniariamente o prejuízo suportado pela vítima.
Tem-se, portanto, sedimentado o ponto distintivo entre a responsabilidade penal e a
responsabilidade civil. Ao tempo em que coube ao direito penal punir aquele que comete
crime (ou contravenção penal), no âmbito da ordem civil, aquele que cause dano deve reparálo, promovendo a recomposição do prejuízo sofrido, ou, ao menos, compensar a vítima pelo
impacto maléfico do dano.
Ocorre, que o direito vive em eterna ebulição, evoluindo pari passo com a sociedade,
não podendo ter conceitos estanques, que vivam cristalizados de forma atemporal, pois,
assim, implicaria em fechar suas portas às necessidades sociais, o que desaguaria na perda da
sua razão de ser, como instrumento de regulamentação da vida social.
Nesta ordem de ideias, surge a teoria do Punitive Damages, qual concebe a imposição
indenizatória, não apenas como forma de recomposição do prejuízo, ou como instrumento
compensatório, mas, sim, como uma forma de punir o causador do dano, com o escopo de
desestimular a reiteração da prática de condutas que venham ferir a harmonia social.
Ocorre, todavia, que tal teoria de origem anglo-saxônica, encontra-se sedimentada nos
países vinculados ao common Law (como no direito norte-americano) não tendo diante dos
países de tradição romano-germânica como uma modalidade indenizatória autônoma, estando,
quando cogitada, embutida na compensação dos danos morais.
Nesta ordem de ideias, muitos países pelo mundo à fora sequer regulamentam esta
feição punitiva que almeja desestimular tais condutas ilícitas que ocasionam danos
extrapatrimoniais. Tem-se, assim, uma lacuna normativa que pode desmerecer um fato social
crescente, qual seja, o aumento no número de violações a bens jurídicos extrapatrimoniais,
que causam constantemente e reiterados danos num universo cada vez maior de sujeitos das
relações jurídicas e sociais.
Esta conduta crescente e reiterada de ofensas que ocasionam danos extrapatrimoniais
reclama uma resposta do Direito, visto que quando as normas de controle social não estão
devidamente alinhadas para garantia da paz e harmonia social, oferecem um terreno fecundo
aos desvios nas relações sociais que, por sua vez, vulneram os laços de solidariedade trazendo
inúmeras consequências negativas para a sociedade.
Em face à tal realidade, o desenfreado aumento na prática de danos extrapatrimoniais
reiterados socialmente tem exigido uma releitura da realidade, de modo a desenhar os
contornos da indenização de natureza punitiva, objetivando não apenas punir o causador do
dano, mas frear e desestimular a repetição de tais condutas, garantindo, assim, a preservação
do equilíbrio nas relações sociais, evitando o desenvolvimento incontornável de uma
patologia social que vitime a própria dignidade humana.
Diante de tal conjuntura, urge investigar: De que maneira deve se conceber
legitimidade indenizatória de natureza punitiva como instrumento de harmonização
social em consonância com a função social da reparação do dano extrapatrimonial?
Estabelece-se como objetivo principal, investigar a legitimidade indenizatória de
natureza punitiva como instrumento de harmonização social em consonância com a função
social da reparação do dano extrapatrimonial, dando-lhe subsídio jurídico e sociológico.
Para alcançar tal desiderato, buscaremos delinear a compreensão contemporânea da
responsabilidade civil; estabelecendo a leitura dos seus elementos essenciais, desaguando na
compreensão do dano extrapatrimonial. Em seguida, abordar-se-á, a concepção do direito à
serviço da sociedade, de modo a desenhar o cenário do solidarismo social, compreendendo as
anomias e patologias sociais, para que, diante de tal realidade, possamos edificar a
legitimidade da indenização punitiva diante dos danos extrapatrimoniais, reconhecendo a sua
função social no restabelecimento da harmonia social.
Para tanto, debruçaremos na pesquisa bibliográfica como fonte legítima de pesquisa
que, sob o prisma metodológico, venha alicerçar estruturalmente o presente trabalho
científico, almejando, assim, contribuir com a legitimação da teoria do punitive damages no
ordenamento jurídico brasileiro e Américo-latino.
2. DA COMPREENSÃO CONTEMPORÂNEA DA RESPONSABILIDADE CIVIL
Em tempos remotos, Ulpiano, jurisconsulto romano da antiguidade, prenunciou
diretrizes de como estar em acordo com o direito, seriam elas: Honeste vivere (viver
honestamente), Neminem Laedere (não lesar outrem), Suum cuique tribuere (dar a cada um, o
que é seu).
De tais brocados em latim, o direito contemporâneo reconheceu tais preceitos como
máximas jurídicas, ou princípios gerais do direito. Daí, no que tange à responsabilidade civil,
configurou-se, na diretriz do “não lesar a ninguém” o Princípio do Neminem Laedere, o qual
determina que a ninguém é dado o direito de lesar, causar dano, ou prejuízo a outrem. Caso tal
circunstância se concretize, aquele que causar dano a outrem terá o dever de repará-lo,
recompondo o prejuízo, ou, ao menos, compensando-o.
Tem-se, portanto, sob a ótica da clássica teoria geral do direito, que com base neste
princípio, cabe à responsabilidade civil reparar um dano, recompondo o prejuízo, ou, ao
menos, compensando a vítima pela lesão suportada.
Estuda-se, para tanto, os elementos e pressupostos da responsabilidade civil. Sob esta
tônica, seriam pressupostos a culpa e o ato ilícito; ao tempo em que, para constituir o dever de
indenizar, dependeria do apreço dos elementos, quais sejam: a conduta humana, o nexo de
causalidade e o dano.
2.1.
DOS PRESSUPOSTOS DE RESPONSABILIDADE
A compreensão da essência da responsabilidade civil repousa na imposição da
obrigação de indenizar a quem tenha causado dano a outrem. Para o alcance de tal finalidade,
há muito se sedimentou a responsabilização daquele que, por culpa, veio a ofender um bem
jurídico alheio, ocasionando-lhe um dano. Tem-se, portanto, sedimentada a modalidade de
responsabilidade civil subjetiva, qual seja, aquela fundada na culpa.
A culpa, no âmbito civil, tem uma feição lato sensu, englobando além das condutas
negligentes, imprudentes ou por imperícia, a própria conduta dolosa. Assim, conforme leciona
Caio Mário da Silva Pereira (2009, p.) “Procede por negligência se deixa de tomar os
cuidados necessários a evitar um dano; age por imprudência ao abandonar as cautelas normais
que deveria observar; atua por imperícia quando descumprem as regras a serem observadas na
disciplina de qualquer arte ou oficio”.
Ocorre, porém que, em contraposição à tal modalidade de responsabilidade, tem-se a
responsabilidade civil objetiva, qual é imputada independentemente de culpa, nos casos
previstos em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo causador do dano
implicar em risco ao direito de outrem1.
Nesta ordem de ideias, não se pode reconhecer a culpa como elementar à
responsabilidade civil, haja visto o fato de direito contemporâneo reconhecer a existência da
modalidade de responsabilização independente do apreço da culpa2.
Outro pressuposto da responsabilidade civil repousa no fato do dano decorrer da
configuração do ato ilícito. Neste ponto, a propósito, muitos ordenamentos jurídicos – como
se encontra disciplinado no Código Civil Brasileiro – estabeleceu como regra a incidência de
responsabilização civil, quando os danos decorressem da prática de atos ilícitos.
Ocorre, todavia, que a experiência e prática do direito permitiu a possibilidade de
haver indenização a danos que decorrem de um ato lícito. Neste diapasão, a propósito, o
ordenamento brasileiro estabeleceu que a hipótese de estado de necessidade3, apesar de ser
excludente de ilicitude, pode não excluir a responsabilização quando quem suportou o dano
1
A legislação civil brasileira disciplinou a cláusula geral da responsabilidade civil objetiva no parágrafo único
do Art. 927 do Código Civil pátrio, qual dispõe, in verbis: “Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano,
independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida
pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem”.
2
Segundo o douto portenho Jorge Oscar Rossi (2009,p.57), a classificação da responsabilidade civil em
subjetiva e objetiva configura os chamados “factores de atribuición”, quais são subjetivos, no que tange ao
apreço da culpa e do dolo, ou objetivos, no que tange à responsabilização objetiva, aferida independentemente de
culpa.
3
“O estado de necessidade consiste na situação de agressão a direito alheio, de valor jurídico igual ou inferior
àquele que se pretende proteger, para remover perigo iminente, quando as circunstâncias do fato não autorizam
outra forma de atuação” (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO. 2012, p.150).
não tenha sido o causador da situação de perigo que foi repelida em face da proteção de um
bem jurídico de valor equivalente ou superior ao que foi ameaçado4 (GAGLIANO;
PAMPLONA FILHO. 2012, p.151).
Destarte, ciente de que pode haver responsabilização diante de um dano que decorra
de uma ato lícito, não se pode reconhecer o ato ilícito como elemento da responsabilidade
civil, mas, apenas e tão somente, um pressuposto que, contextualizado diante da existência
dos elementos da responsabilidade civil, impõe o dever de indenizar.
2.2.
DOS ELEMENTOS DA RESPONSABILIDADE CIVIL
O estudo e efetiva compreensão da responsabilidade civil depende do apreço técnico
de três elementos que lhes são essenciais, são eles a conduta humana, o dano e o nexo de
causalidade.
Nas palavras de Sérgio Cavalieri Filho (2008, p.24), conduta humana seria o
“comportamento humano voluntário que se exterioriza através de uma ação ou omissão,
produzindo consequências jurídicas”. Em outras palavras, pode-se estabelecer que o
comportamento humano consciente e voluntário, na modalidade comissiva (por ação), ou
omissiva (por omissão) tem o poder de produzir efeitos e consequências no mundo jurídico.
Cientes de que a noção básica de responsabilização civil repousa na obrigação de
indenizar, reparando um dano, ou recompondo um prejuízo, tem-se na figura do dano não
apenas um elemento da responsabilidade civil, mas, sim um fato constitutivo e determinante
do dever de indenizar.
Neste contexto, pode-se dizer que o dano consiste numa ofensa ao direito de outrem,
violando um bem jurídico de natureza patrimonial ou extrapatrimonial. Quando o bem
jurídico tutelado tem natureza patrimonial, a sua efetiva lesão ocasiona a subtração ou
redução patrimonial a outrem, redução esta que abrange “aquilo que efetivamente se perdeu e
aquilo que se deixou de lucrar” (GONÇALVES, 2008, p.338), o que constrói os conceitos de
dano emergente e lucro cessante respectivamente.
Nesta ordem de ideias, Maria Helena Diniz (2009,p. 66) sustenta que o dano
patrimonial, também chamado de material consiste na “[...] lesão concreta, que afeta um
interesse relativo ao patrimônio da vítima, consistente na perda ou deterioração, total ou
parcial, dos bens materiais que lhe pertencem sendo suscetível de avaliação pecuniária e de
4
Apesar do estado de necessidade ser espécie de excludente de ilicitude, o Código Civil Brasileiro disciplinou a
exigência de reparação do dano, estabelecendo, assim, exceção à responsabilização apenas por ato ilícito.
indenização pelo responsável”.
Ocorre, porém, que muitas vezes o bem jurídico tutelado que fora ofendido não tem
expressão econômica. Configura-se assim, em face da efetiva lesão, um dano de natureza
extrapatrimonial (chamado também de dano moral), qual, em verdade, consiste na violação à
própria dignidade da pessoa humana (CAVALIERI FILHO, 2008, p.80), concebendo ofensa
aos seus direitos personalíssimos (ROSSI, 2009, p.47), quais são inatos, indisponíveis e
oponíveis erga omnes. Nesta ordem de ideias, as ofensas à honra, imagem, integridade física,
intimidade, privacidade, nome, reputação, entre outras configura um dano extrapatrimonial.
Conforme lição de Jorge Oscar Rossi (2009, p.47), o dano extrapatrimonial “és um
daño que no afecta ni directa ni indirectamente el patrimônio de la victima. El interes
legitimo lesionado son SUS afectos, emociones y/o sentimientos”.
Há quem sustente que o dano moral ou extrapatrimonial seria aquele onde a vítima
sofre com uma dor, humilhação, constrangimento, vexame, desconforto e sentimentos
negativos que ostentam as dores da alma. Ocorre, porém, que pode haver ofensa à dignidade
da pessoa humana sem que da vítima emanem tais sentimentos, pois como bem pondera
Carlos Roberto Gonçalves (2008, p.359) “O dano moral não é propriamente a dor, a angustia,
o desgosto, a aflição espiritual, a humilhação, o complexo que sofre a vítima do evento
danoso, pois esses estados de espírito consistem no conteúdo, ou melhor, na consequência do
dano”.
Ocorre, porém, que na prática, a doutrina e a jurisprudência tem compreendido os
contornos do dano moral atrelados à tais sentimentos negativos que decorrem da ofensa à
dignidade humana e aos direitos da personalidade, de modo que simples aborrecimentos não
configurariam o dano moral, por isso, assevera Sérgio Cavalieri Filho (2008, p.83):
[...] só deve ser reputado como dano moral a dor, vexame, sofrimento ou humilhação que,
fugindo à normalidade, interferir intensamente no comportamento psicológico do
indivíduo, causando-lhe aflições, angústias, e desequilíbrio em seu bem-estar. Mero
dissabor, aborrecimento, mágoa, irritação ou sensibilidade exacerbada estão fora da órbita
do dano moral [...]
Não se quer dizer, todavia, que só haja dano extrapatrimonial se tais sentimentos
negativos venham ser maximalizados, visto que basta a configuração da ofensa à dignidade ou
violação dos direitos da personalidade por si só configura um dano extrapatrimonial. Diante
de tal reflexão, entendemos haver como espécies do dano extrapatrimonial, o propriamente
dito (ou extrapatrimonial puro e simples), qual basta configura a ofensa a um bem jurídico
sem expressão econômica, independe destes sentimentos negativos; e o dano moral, no qual
tais sentimentos precisam ser determinantes ao desequilíbrio do bem-estar e à aflição
espiritual da pessoa.
Ultimamente, o ordenamento jurídico brasileiro passou a reconhecer como espécie
autônoma de dano extrapatrimonial, o dano estético, ou seja, aquele dano que ostenta uma
sequela irreparável que acompanha a pessoa por toda sua vida5.
Por fim, o último elemento da responsabilidade civil é o nexo de causalidade, ou seja,
o “elo etiológico, do liame, que une a conduta do agente (positiva ou negativa) ao dano”
(GAGLIANO; PAMPLONA FILHO. 2012, p.133).
Quando se diz que o nexo de causalidade consiste no liame entre a conduta humana e
o dano, quer se alcançar, em verdade, o que foi que deu causa ao respectivo dano, ou seja,
busca-se alcançar aquela conduta humana ou circunstância que se encontra direta e
imediatamente ligada ao dano produzido.
3. O DIREITO À SERVIÇO DA SOCIEDADE.
É cediço que o Direito, norma agendi, institui regras que organizam e disciplinam o
comportamento social. Entretanto, inúmeros pensadores, juristas, filósofos, teólogos,
sociólogos, desde a antiguidade questionam, sem uma resposta unânime, como nasce o
Direito. Deus e a natureza, Deus e o homem, a razão, o Estado e a consciência coletiva dos
povos já foram apontados como a causa, a razão de ser do Direito. É como se durante muito
tempo os pensadores simplesmente teorizassem a partir da indagação acerca da razão de ser
da existência do Direito.
Nesse contexto, percebe-se que desde Savigny, fundador da escola histórica, o Direito
passa a ser visto, inequivocamente, como um produto cultural, expressão natural de evolução
histórica, dos usos, costumes e tradições, criado a partir das necessidades sociais, portanto,
independente da razão arbitrária dos homens ou revelação divina. Como assevera Hermes
Lima (1983, p. 276), “é conquista definitiva da Escola Histórica a noção do caráter social dos
fenômenos jurídicos, com seus dois elementos essenciais: continuidade e transformação”. A
escola mostrou que os fundamentos do direito se encontram na vida social.
Com efeito, importa registrar que a Sociologia e o Direito, durante muito tempo,
ignoraram-se mutuamente, hostilizaram-se inclusive. Coube a Èmilie Durkheim, nos últimos
anos do século XIX, fixar em definitivo as relações entre Direito e Sociologia, obtendo o
5
Trata-se de construção jurisprudencial consolidada no ordenamento jurídico brasileiro pelo STJ – Superior
Tribunal de Justiça – qual editou em 01/09/2009 a súmula 387, qual dispõe, in verbis: “É possível a acumulação
das indenizações de dano estético e moral”.
mérito de reconhecer e evidenciar cientificamente a natureza social do Direito, sendo,
portanto, considerado por muitos autores, o Pai da Sociologia Jurídica. Paulo Nader (2004,
p.25-26) sintetiza, brilhantemente, esse momento importante da Ciência Jurídica:
Direito e sociedade são entidades congênitas e que se pressupõem. O Direito não tem
existência em si próprio. Ele existe na sociedade. A sua causa material está nas relações de
vida, nos acontecimentos mais importantes para a vida social. A sociedade, ao mesmo
tempo, é fonte criadora e área de ação do Direito, seu foco de convergência. Existindo em
função da sociedade, o Direito deve ser estabelecido à sua imagem, conforme as suas
peculiaridades, refletindo os fatos sociais, que significam, no entendimento de Émile
Durkheim, maneiras de agir, de pensar e de sentir, exteriores ao indivíduo, dotadas de um
poder de coerção em virtude do qual se lhe impõem.
Em síntese, não haveria o direito sem sociedade. Daí a verdade do antigo brocado: ubi
societas, ibi jus delineando a ideia de que onde está a sociedade está o Direito. Mas, por
óbvio, a recíproca é também verdadeira: ubi jus, ibi societas - onde está o Direito está a
sociedade -; a vinculação entre ambas é tal que um não pode existir sem o outro. Destarte,
Miguel Reale (2007, p.2) arremata: “O Direito não existe senão na sociedade e não pode ser
concebido fora dela. Uma de suas características é a socialidade, a sua qualidade de ser
social”.
O Direito tem, pois, uma relação dialética com a realidade social, com os fatos que
nela ocorrem, o que permitiu que se afirmasse: “Não existe o direito e o fato, pois, segundo a
forma exata de Sforza, o fato e o direito existem enquanto coexistem” (SILVA, 1990, p. 6-7).
Por muito tempo a existência do Direito teve uma origem divina; neste período, apenas
os nobres, sacerdotes e altas castas sociais a ele tinham acesso. Ao passar a ter por
fundamento a razão, a ele tinham acesso os sábios, filósofos e juristas. Todavia, o Direito foi
sendo democratizado quando passou a ter origem na sociedade, sendo esta, uma das mais
importantes consequências da visão sociológica.
Nessa perspectiva, especialmente após a 2ª guerra mundial, os valores e instrumentos
de dignidade humana e eticidade; acesso à justiça e simplicidade; a socialidade e função
social, bem como outros institutos correlatos de democratização do Direito ganharam força
nos ordenamentos e na Ciência do Direito. A indagação do “porque do Direito” cedeu,
portanto, à um questionamento mais empírico-social alcançando o “para que o Direito”.
Desta estrutura, a inicial concepção do direito como instrumento de regulamentação da
vida social abre espaço para uma feição de harmonizador social, onde lhe incumbe, mais do
que regulamentar previamente as relações interpessoais, definindo o que é lícito e ilícito, cabe
diante de uma eventual crise social, sua intervenção para restabelecimento da ordem,
harmonia, equilíbrio e paz social.
3.1.
SOLIDARISMO SOCIAL, ANOMIA E PATOLOGIAS SOCIAIS
Um dos mais importantes conceitos da teoria de Durkheim foi o de solidarismo
6
social . É fato que existem laços que nos unem e impelem a vivermos em coletividade, a
alimentarmos ideais comuns e nos organizarmos em vida coletiva. É o que os racionalistascontratualistas denominam de pacto social ou acordo entre sociedade e governo, sendo que de
um lado a sociedade renuncia parte da liberdade individual em troca de garantias
fundamentais e proteção.
Nesse contexto, as instituições sociais possuem papel de destaque, pois são as guardiãs
dos valores e metas culturais da sociedade exercendo relevante papel na manutenção da
ordem social; dos laços de solidariedade que nos mantém unidos e livres de uma realidade
anárquica.
Por serem mais estáveis do que as representações individuais as instituições sociais
são a base dos conceitos de um grupo ou de uma nação. São, portanto, depositárias dos
valores sociais e, ao mesmo tempo, de uma realidade objetiva, independente do sentimento ou
da importância que alguém individualmente lhes atribui, exercendo sobre todos uma
autoridade específica.
Ocorre, porém, que o convívio social se submete às regras morais, muitas sob
influências religiosas, bem como às regras jurídicas, as quais o Direito estabelece com a
finalidade de conter conflitos e manter a harmonia e paz social, sedimentada no equilíbrio das
relações intersubjetivas, disciplinando comportamentos permitidos, ou vedados, quais se
concretizam na contemplação dos atos lícitos e ilícitos (ou seja, atos em conformidade ou não
com os ditames do ordenamento jurídico).
Diante desta estrutura é imperioso decifrarmos outro conceito importante à ciência
social do Direito, qual seja, o da expressão Anomia. Tal palavra tem origem grega, tendo sua
essencial raiz etimológica na combinação a + nomos, onde a significa ausência, falta,
privação, inexistência; e nomos quer dizer lei, norma. Etimologicamente, portanto, anomia
significa falta de lei ou ausência de norma de conduta eficaz. Foi com esse entendimento que
Durkheim usou a palavra pela primeira vez, em seu famoso estudo sobre a divisão do trabalho
social, num esforço para explicar certos fenômenos que ocorrem em sociedade (CAVALIERI
FILHO, 2007).
6
DURKHEIM, Èmile. As Regras do Método Sociológico. 2.ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
DURKHEIM, Èmile. A divisão do Trabalho Social. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
Eficácia, como se sabe, é a força do ato para produzir os seus efeitos, assim, malgrado
o fato das leis terem como características próprias no universo jurídico a sua cogência,
podemos, todavia, dizer que lei eficaz é aquela que tem substancialmente força para realizar
os efeitos sociais para os quais foi elaborada. Uma lei, entretanto, só tem essa força quando
está adequada às realidades sociais, ajustada às necessidades do grupo. Só aí ela penetra no
mundo dos fatos sociais e consegue dominá-los.
Sociologicamente, portanto, a palavra anomia pode, apriori, ser usada quando inexistir
norma de controle social que discipline determinada conduta ou relação entre indivíduos e/ou
grupos sociais; ou mesmo quando houver norma sem eficácia social. Assim sendo, percebese que a anomia indica comportamento desviante em razão de não existir norma capaz de
penetrar no mundo dos fenômenos sociais e moldá-los em acordo com os objetivos culturais
de cada civilização.
Em 1938 Robert K. Merton, sociólogo americano teve o mérito de estabelecer os
fundamentos de uma teoria geral da anomia. O artigo foi posteriormente revisto e aumentado
pelo autor, transformando-se em parte da sua obra clássica “Teoria e Estrutura Sociais”.
Partindo de uma análise da sociedade americana, Merton sustentou que em toda sociedade
existem metas culturais a serem alcançadas, devendo ser entendido como tais os valores
socioculturais que norteiam a vida dos indivíduos. Para atingir essas metas existem os meios,
que são os recursos institucionalizados pela sociedade, aos quais aderem normas de
comportamento. De um lado, portanto, metas socioculturais, e de outro, meios socialmente
prescritos para atingi-los.
Nessa linha de intelecção, percebe-se que as normas morais e jurídicas exercem papel
de destaque uma vez que delimitam os meios para se alcançar as metas culturais, sendo certo
que quando essas normas de controle social não estão devidamente alinhadas aos objetivos
para os quais são criadas oferecem margem ao comportamento anômano (de desvio) que, por
sua vez, vulneram os laços de solidariedade trazendo inúmeras consequências negativas para a
sociedade.
Assim, surge o conceito de patologia social como sendo a relativamente prolongada
ausência ou alteração da normalidade de uma instituição, de uma organização, do sistema
econômico, do sistema de saúde, do sistema de ensino ou da sociedade em termos globais.
Essa falta de normalidade sociológica pode ser explicada por diversos aspectos, como a
recusa de certos atores ou grupos sociais se orientarem segundo o quadro normativo de uma
sociedade, pela fraca implementação do universo normativo, ou pela ruptura deste.
O desequilíbrio entre metas e meios sociais, núcleo da teoria de Merton, é sem dúvida
alguma, a causa remota da anomia que, por sua vez, promove uma reação em cadeia,
verdadeira bola de neve social, que acaba provocando comportamentos anômicos e patologias
sociais de diferentes gravidades.
4. DA FUNÇÃO SOCIAL: DO DANO MORAL AO PUNITTIVE DAMAGES
O movimento a respeito da função social ganha força no mundo jurídico a partir de
uma obra escrita por Noberto Bobbio na década de 70 entitulada “Da estrutura à função”.
Nesta obra o autor sustenta que os juristas historicamente se preocupavam em estudar a
estrutura do direito, atentando á ideia doo que é o direito, contudo, muito mais importante,
lembrava, para que serve o direito. Assim, ele já anunciava uma evolução no direito no
sentido de que tenderíamos a focar os estudos sobre a função em detrimento da estrutura das
normas e sistema jurídico.
Nesta ordem de ideias, todo instituto jurídico, a seu turno, deve servir para a
pacificação social, assim, função social, evidentemente, consagra-se como o “para que” serve
o instituto jurídico. A função social busca, portanto, superar uma compreensão egoística dos
institutos jurídicos uma vez que estabelece que todo exercício de direitos deve atender aos
interesses sociais aos quais se destinam, alcançando, assim, o bem comum.
O ponto primordial que estimula as reflexões de Bobbio sobre tal função teleológica é
o surgimento do Estado Social e a atribuição de novo papel ao direito, a saber, seus atributos
promocionais7. Com isso, o direito não mais se restringe a sua função meramente repressiva e
ou ressarcitória, passando a incentivar e dirigir os comportamentos sociais, das mais variadas
formas, em direção ao ideal social que propaga.
Sob a ótica das ciências sociais, o Funcionalismo é um dos seus ramos que tem como
postulado a interdependência das instituições sociais que, por sua vez, mantêm o equilíbrio e
harmonia da sociedade na medida em que exercem funções sistematicamente ajustadas, uma
vez que tem-se por postulado a ideia de que “la sociedad es um conjunto de partes ajustadas
y mutuamente dependientes” (FUCITO, 2003, p. 299) O Funcionalismo é tradicionalmente
ligado ao pensamento de Èmile Durkheim (1995) e, mais recentemente, Talcott Parsons
(2010), que enfatizava a formação de um sistema integrado de funções moldados pela cultura
de cada sociedade.
7
Neste sentido, Felipe Fucito (2003, p.229) recorda que “la ideia de Bobbio, para quien lãs inquistudes sobre
funciones del derecho tienen su origen em La conciencia de que han aumentado, por La transfirmación del
Estado liberal em Estado social, lãs funciones observables”.
Diante da ausência de reflexões sobre tal dimensão do direito dentre as preocupações
formalistas, a sociologia do direito passa a desempenhar papel fundamental no estudo jurídico
como fundamento para adequar os institutos jurídicos às funções a que se destinam. Nessa
linha de raciocínio assevera Felipe Fucito, (2003, p 247): “Las normas jurídicas tienen uma o
várias funciones que son positivas, cuáles son estas funciones y como se lãs ejercita. Son
estos puntos, precisamente, los que, al no ser aceptados, sino debatidos, dan lugar a la teoría
funcional del derecho.”
No âmbito da responsabilidade civil, por sua vez, tem sido cristalizado a ideia de que a
indenização tem como finalidade garantir a reparação de um dano, recompondo os prejuízos e
restabelecendo as coisas ao seu status quo ante, determinando, se, inclusive, que o valor da
indenização será medido pela proporção dos danos sofridos.
No que tange aos danos de natureza patrimonial, por serem estes suscetíveis de
avaliação pecuniária, os mesmos podem ser reparados pela reposição em dinheiro (VENOSA,
2009.p.39), assim, buscar-se-á recompor o dano sofrido, restabelecendo o que fora diminuído
do patrimônio da vítima (dano emergente), ou “os ganhos que a vítima deixou de auferir, que
impedem o aumento do seu patrimônio” (lucro cessante), conforme leciona Elpídio Donizetti
e Felipe Quintella (2012, p.400).
Por seu turno, mais delicado é a indenização dos danos extrapatrimoniais, visto que
não se pode mensurar a proporção do dano, nem tampouco quantificar pecuniariamente de
forma eficaz e adequada os danos decorrentes da ofensa de um bem jurídico que não tem
expressão econômica. Nesta seara, imperioso se reconhecer que a indenização não teria o
condão de recompor o prejuízo, restabelecendo as coisas na mesma condição em que se
encontrava no momento anterior à lesão. Assim, tem sido sedimentado a ideia de que a
natureza jurídica do dano extrapatrimonial seria compensatória, onde a indenização teria o
condão de compensar a vítima pela lesão sofrida, acalentando-lhe como forma de não deixar
tal situação impune diante do Direito.
Tem-se, portanto, que diante dos danos extrapatrimoniais, como o bem jurídico
violado não pode ser mensurado em pecúnia, por não ter expressão econômica, a indenização
de natureza pecuniária não repara o dano, mas, simplesmente, busca compensar e acalentar a
vítima pelo dano suportado.
Conforme leciona Jorge Oscar Rossi (2009, p.21), “compensar ES volver a
equilibrar La balanza, previamente desequilibrada por El daño. La noción de Justicia está
vinculada com La Idea Del restabelecimiento Del equilíbrio perdido”. (grifos do autor).
Neste cenário o direito norte americano cunhou a Teoria do Punitive Damages8,
também chamada de exaplary damages, vindictive damages ou smart money (MARTINSCOSTA; PARGENDLER. 2005, p.16), desenhando uma nova feição à indenização por dano
moral ou extrapatrimonial, estabelecendo que a indenização nestes casos comportaria
também, além da finalidade compensatória, uma função punitiva ou pedagógica (pena
privada), visando a desestimular o ofensor, especialmente em ilícitos graves ou reincidentes.
Nesta ordem de ideias, a indenização punitiva estaria a serviço do restabelecimento do
equilíbrio social, combatendo os desvios que a proliferação crescente dos danos
extrapatrimoniais tem causado na própria conjuntura social.
4.1.
COMPREENSÃO DO PUNITIVE DAMAGES
Segundo historia Judith Martins-Costa e Mariana Souza Pargendler (2005, p.16) a
indenização de natureza punitiva teve sua origem no Direito anglo-saxônico com o Statue of
Coucester, na Inglaterra nos idos de 1278, sendo, todavia, desenvolvida a partir do século
XVIII, quando se criou a doutrina dos exemplary damages para justificar a “atribuição de
indenização quando não havia prejuízo tangível, ou seja, no caso de danos extrapatrimoniais”
(MARTINS-COSTA; PARGENDLER. 2005, p. 18).
Acrescenta Anderson Schreiber (2012, p.209), que o primeiro caso de indenização
punitiva nos EUA foi o Genary v. Norris, datado de 1784, quando um médico, após ter
aceitado um desafio para um duelo de pistolas, inseriu secretamente na taça de vinho do seu
adversário uma dose considerável de cantaridina, propondo um drinque de conciliação.
Conforme relata o autor, “a Suprema Corte da Carolina do Sul entendeu que as dores
extremas provocadas à vítima pela malícia do médico mereciam, naquelas circunstâncias, uma
‘punição exemplar’.” (grifos do autor).
A teoria do punitive damages consiste no arbitramento judicial de uma indenização
cujo valor além de compensar as dores suportadas pela vítima de danos extrapatrimoniais,
venha punir o ofensor pelo dano causado, direcionado ao desestímulo da reiteração da referida
conduta lesiva pelo próprio ofensor, bem como servindo ainda de exemplo àqueles que
fiquem tentados a repetir a mesma prática danosa.
8
Apesar da expressão punitive damages em tradução livre significar danos punitivos, tecnicamente a tradução
não vede ser utilizada para contemplar o instituto, uma vez que é a indenização que tem o caráter punitivo e não
o dano, assim, o mais coerente é sempre fazer menção à indenização de caráter punitivo. Neste sentido,
inclusive, SHIREBER (2012, p.209).
Neste diapasão, leciona Anderson Schreiber (2012, p.209), que os punitive damages
tratam-se de uma “indenização adicional assegurada à vítima com a finalidade de punir o
ofensor e não simplesmente compensar os danos sofridos”, mantendo, portanto, uma “função
pedagógica, dissuasiva ou de desestímulo”.
Com base nesta teoria, a natureza jurídica da indenização imposta diante dos danos
extrapatrimoniais comportaria uma tríplice feição, pois além de permitir a compensação da
vítima pelo dano suportado, albergaria a punição do ofensor e serviria de exemplo social, pois
agiria como um desestímulo à reiteração daquele comportamento ilícito e essencialmente
antisocial.
Os punitive damages na práxis norte-americana tem sido estendido à responsabilidade
patrimonial, revestindo-se da função de exemplaridade social (MARTINS-COSTA;
PARGENDLER. 2005, p.18), todavia, nos cabe sinalizar, que como os danos materiais devem
ser aferidos com base na real redução patrimonial suportada (dano emergente) e no que
efetivamente se deixou de ganhar (lucro cessante), não seria razoável a incidência de uma
indenização punitiva neste contexto, pois desaguaria num flagrante enriquecimento sem
causa. Outrossim, o arbitramento de uma indenização punitiva só deve ser acatado quando
dano extrapatrimonial, qual não tem como aferir exatamente a proporção do dano sofrido.
Segundo Anderson Schreiber (2012, p.209), a aplicação dos punitive damages pelas
cortes atualmente no Brasil, tem sido norteada por quatro critérios: a gravidade do dano;
capacidade econômica da vítima; grau de culpa do ofensor; e a capacidade econômica do
ofensor, assim, percebe-se que a indenização transcende à noção de simples extensão do dano.
4.1.1. Dos obstáculos à indenização punitiva
Uma teoria importada do direito estrangeiro não pode ser aplicada igualmente, sem
sequer apreciar as peculiaridades locais e sua adequação ao ordenamento jurídico pátrio, sob
pena de ferir de morte o equilíbrio jurídico do país, vitimando, inclusive, sua soberania o
poder de autodeterminação na esfera nacional, ocasionando uma série de antinomias no
ambiente jurídico. Neste contexto, alguns impasses surgem como obstáculos à aplicação da
teoria do punitive damages no Brasil, que carece uma breve apreciação.
No processo evolutivo do Direito, o âmbito civil foi se dissociando do âmbito penal,
assim, ao tempo em que a responsabilidade civil por meio da indenização alicerçou-se na
reparação do dano, a responsabilização penal preservou sua natureza punitiva, retribuindo ao
criminoso o mal que impingiu à sociedade. Neste contexto, a atribuição de uma indenização
de natureza punitiva permitiria a invasão do universo civil pela seara penal.
Tal impasse não se encontra propriamente enraizado na teoria do direito, mas, sim, na
necessidade de uma maior dialética que comporte não apenas o diálogo das fontes normativas,
mas, sim, o diálogo dos fundamentos jurídicos, que devem se desenvolver no terreno fecundo
da interpretação teleológica do Direito, deixando tal diálogo agasalhado pela própria
hermenêutica jurídica.
Assim, não podemos conceber o Direito como algo estanque e de conceitos
cristalizado pelo tempo, mas, sim, faz-se necessário que a sua leitura acompanhe a
complexidade das relações sociais contemporâneas, não permitindo que esta divisão temática
vitime a necessidade social de uma resposta efetiva do Direito diante da exigência da
pacificação social para alcançar o bem comum.
Outro ponto relevante diz respeito à ausência de previsão legal expressa da
indenização punitiva, o que coloca em questionamento a legalidade da sua aplicação, visto
que, nesta ordem de ideias, a falta de previsão legal seria um obstáculo à aplicação dos
punitive damages visto que nullo poena sine legem.
No que tange à eventual falta de norma jurídica que venha permitir a punição civil,
não se pode olvidar que, ao enquanto Direito Penal trabalha com o sistema de subsunção da
conduta típica ao tipo penal previamente legislado para garantia da sua pena correspondente,
no âmbito cível não se tem como tipificar cada hipótese de violação aos infinitos bens jurídico
tutelados, assim, a responsabilidade civil se respalda diante da disciplina de cláusulas gerais,
quais têm sua aplicação norteada pela amplitude da interpretação do fato social onde se
materializou o dano.
Está-se diante de flagrante anomia, uma vez que a falta (ou ineficácia) de
normatização pode indicar o caminho de um desvio comportamental passivo de ser trilhado
com tamanha frequência que chegará a vitimar o próprio equilíbrio social.
Não se pode dizer que a falta de previsão legal expressa tenha afastado a possibilidade
de se reconhecer a função punitiva ou pedagógica da responsabilidade civil pelo ordenamento
jurídico brasileiro, ao contrário, deixou-se, apenas, para ser delineada interpretativamente no
contexto da extensão do dano, de modo a permitir compensar a vítima, punir o ofensor e
desestimular que a reiteração da conduta venha ferir o equilíbrio social e a harmonização das
relações interpessoais.
Contudo, vale sinalizar que tramita no Congresso Nacional Brasileiro o Projeto de Lei
n.º 6.960/2002, de autoria do Prof. Ricardo Fiuza9, que busca estabelecer uma espécie de
autorização genérica ao julgador para acrescentar uma parcela punitiva ao valor da
indenização, com o intuito de desestimular o agressor, com o seguinte texto (in verbis): “a
reparação do dano moral deve constituir-se em compensação ao lesado e adequado
desestímulo ao lesante”.
Por fim, o último ponto repousa no enriquecimento sem causa que decorrerá da
imposição da indenização punitiva, uma vez que o valor aferido seja convertido em favor da
vítima, já que o montante em dinheiro, ao agasalhar a punição e garantir o desestímulo da
repetição do comportamento danoso, transcende à compensação da vítima nos limites da
extensão do dano10.
No que tange à titularidade do direito à indenização ser direcionada à vítima, leva-se
em conta o fato desta ser a pessoa diretamente ofendida pela conduta ilícita danosa, assim
para que não haja indenização basta não ter ofensa ao bem jurídico da vítima, o que, por sua
vez, que depende apenas da conscientização do agente causador do dano. Desta forma a
indenização punitiva terá um critério pedagógico de imensa funcionalidade social.
Outrossim, vale acrescentar que o entendimento cristalizado nas Jornadas Brasileiras
de Direito Civil promovidas pela Justiça Federal Brasileira tem sido favoráveis à imposição
da indenização punitiva, concebendo que inexiste obstáculo à sua imposição.
4.2.
DA FUNÇÃO SOCIAL DA INDENIZAÇÃO PUNITIVA
O alicerce básico da responsabilização civil consiste na imposição da obrigação de
indenizar os danos suportados pela vítima decorrentes, em regra, da prática de um ato ilícito11.
Assim, sedimenta-se a ideia de que o valor da indenização deve ser medido na proporção da
extensão do dano.
Quando o dano é patrimonial, tal assertiva pode ser facilmente regulada com precisão
matemática, pois basta computar a real redução patrimonial suportada, englobando o que foi
ofendido diretamente e o que efetivamente se deixou de ganhar, para, assim, poder alcançar o
quantum indenizatório.
9
Jurista brasileiro com grande atuação acadêmica, que atua politicamente como Deputado Federal no Brasil.
10
A proibição do enriquecimento sem causa tem seu alicerce na construção de Tomás de Aquino, para quem
deveria ser banido qualquer transferência injustificadada de riquezas de um sujeito para outro.
11
Como explicamos anteriormente, apesar de poder haver excepcionalmente a responsabilização civil diante de
danos decorrentes de um ato lícito, a regra geral é que todo ato ilícito que causar dano impõe o dever de reparálo.
No que tange às hipóteses de dano extrapatrimonial, por sua vez, o cálculo da
indenização sempre conviverá com graus de incertezas, visto que os bens jurídicos
eventualmente ofendidos não têm expressão econômica (dignidade, honra, imagem,
intimidade, privacidade, nome, etc.). Sedimentou-se, assim, o entendimento de que a
quantificação da indenização estaria direcionada, não ao restabelecimento do status quo ante,
mas, sim, à compensação da vítima.
No mundo contemporâneo, a partir do momento em que a pessoa humana passou a
merecer uma proteção especial do direito, como forma de preservar a sua dignidade, tendo
sido tutelados direitos e garantias fundamentais, colocados em evidência nas diretrizes dos
Direitos Humanos, passou-se a enxergar o número infinito e cada vez mais crescente de
hipóteses de ofensas à dignidade da pessoa humana, bem como da violação dos direitos da
personalidade, quais se fazem crescentes inclusive no mundo virtual da internet.
Conforme Caio Mário da Silva Pereira (1999, p.55):
Quando se cuida do dano moral, o fulcro do conceito ressarcitório acha-se deslocado para a
convergência de duas forças: caráter punitivo para que o causador do dano, pelo fato da
condenação se veja castigado pela ofensa que praticou; e o caráter compensatório para a
vítima, que receberá uma soma que lhe proporcione prazeres como contrapartida do mal
sofrido.
Tem-se, portanto, que a impossibilidade de se restabelecer as coisas como eram antes
do dano extrapatrimonial (ou moral) causado, por si só dá margem a uma indenização de
natureza compensatória e punitiva.
O papel do Direito não se restringe apenas em regulamentar a vida em sociedade, mas,
sim, garantir a paz e harmonia social, garantindo a manutenção do equilíbrio nas relações
sociais, evitando a proliferação de patologias sociais. Assim, diante do crescente número de
ofensas à dignidade da pessoa humana e das violações aos direitos da personalidade,
ocorridos em relação de massa, o dano não faz apenas uma vítima direta (aquele que
diretamente suportou a ofensa e efetiva lesão), mas, sim, alcança como vítima indireta a
coletividade que materializa a própria sociedade.
Nas relações jurídicas de massa (relação de consumo, relação laboral, ambiental, etc.),
toda a sociedade tem ficado refém da proliferação reiteradas de condutas ilícitas que causam
danos extrapatrimoniais12, situação, esta que reclama uma resposta eficaz do Direito, para
12
Senão vejamos alguns exemplos, apenas com o intuito ilustrativo: É muito comum a pessoa contratar um
seguro de saúde e, quando da necessidade de utilizá-lo em uma situação extrema, ter o tratamento
correspondente ilicitamente negado; outra situação mais comum ainda diz respeito à negativação indevida nos
cadastros restritivos de crédito; o uso indevido de imagens com fins comerciais; as ofensas e violações à honra,
quais se proliferam inclusive pela internet; as constantes ofensas à intimidade e privacidade, veiculadas em
garantir o equilíbrio das relações intersubjetivas, preservando (ou restabelecendo) a harmonia
e a paz social.
Quando se fala que a indenização deve ser medida pela extensão do dano, não se
exclui a indenização punitiva, visto que, muitas vezes, o dano social da reiteração da conduta
lesiva se prolifera como verdadeira patologia social, vitimando as diversas relações
intersubjetivas causando insegurança ao ofender a paz e harmonia social. Neste contexto, a
função de desestímulo da indenização punitiva passa a ter grande função social, visto que
passa a agir como medida pedagógica, dissuadindo aqueles que lançam mão da prática lesiva
e desestimulando os que por ventura viriam a se aventurar na prática ilícita ofensiva aos bens
jurídicos sem expressão econômica.
Acreditamos, pois, que o valor pago a titulo de indenização nas hipóteses de danos
extrapatrimoniais (e nunca diante de danos materiais) deve transcender aos limites da simples
compensação da vítima, contemplando a extensão indireta do dano à sociedade, impingindo o
seu caráter punitivo e pedagógico gerando desestímulo à repetição da conduta danos e
servindo de exemplo aos demais integrantes do seio social.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Partindo-se da premissa de que o Direito está a serviço da sociedade, a este coube
além de regulamentar a vida social, desempenhar a função de garantidor da harmonia e paz
social, sendo um dos principais fatores de equilíbrio das relações sociais.
Por sua vez, os episódios de desequilíbrio social no universo do Direito, mais
precisamente no âmbito cível, quando das práticas de atos ilícitos que acarretem dano a
outrem, deságua no contexto da responsabilidade civil, qual por sua vez se estabelece diante
da imputação de indenização que busca restabelecer o status quo ante, compensar a vítima e
até punir o ofensor, garantindo com esta punição o desestímulo da reiteração das condutas
lesivas e fazendo do ofensor exemplo para a sociedade.
Buscou-se com o presente trabalho de pesquisa, investigar a legitimidade social da
indenização punitiva, passeando pelo solidarismo social, onde tomamos as instituições sociais
como ponto de equilíbrio das relações intersubjetivas. Neste contexto, apreciou-se as
situações de anomias, quais são flagradas diante falta de normas ou pelo menos ausência de
meios de comunicação em massa, tanto em via física quanto digital (virtual); os programas de comunicação e
jornalismos, que extrapolam os limites da notícia de modo a ofender diretamente a pessoa objeto da notícia, entre
muitas outras situações.
eficácia das normas existentes, para que neste cenário seja possível apreciar a situação da
aplicação dos Punitives Damages no ordenamento jurídico brasileiro, amparado pela sua
finalidade social.
Neste contexto, apreciou-se a responsabilidade civil como instrumento de preservação,
ou restabelecimento da harmonia social. Assim, quando estivermos diante de um dano
patrimonial, basta identificar a efetiva diminuição do patrimônio da vítima, de modo a
restabelecer o estado anterior ao dano, indenizando o que perdeu e o que efetivamente se
deixou de ganhar.
No que tange à indenização por dano extrapatrimonial, definitivamente não é tarefa
das mais fáceis arbitrar o valor do quantum indenizatório, pois que o julgador precisa adentrar
num terreno de ordem essencialmente subjetiva, em face da impossibilidade de se quantificar
com exatidão a extensão de um dano, uma vez que não se pode quantificar pecuniariamente o
valor de bens que não comportam expressão econômica.
Nesta ordem de ideias, utilizando-se de alguns critérios, como a condição do ofendido,
a intensidade da ofensa e o grau de culpa do ofensor; o nexo entre o dano punitivo e o
prejuízo sofrido; a eventual prática anterior de condutas equivalentes; a lucratividade da
conduta ofensiva (caso em que o valor dos danos punitivos deverá ser superior ao lucro
obtido); a situação financeira das partes; o valor das custas judiciais; a consideração das
sanções penais
eventualmente já aplicadas,
de forma que a indenização
seja
correspondentemente reduzida, dentre outros instrumentos pautados nos princípios da
razoabilidade e da proporcionalidade, pode-se chegar à quantia ideal a ser ressarcida.
Malgrado o fato de tal realidade, urge compreender que a finalidade da indenização
nestes casos é essencialmente compensatória, pois busca oferecer uma satisfação pessoal à
vítima, de modo a compensar pelos males suportados. Por seu turno, a indenização, nestes
casos, não se restringe apenas a tal feição, pois comporta uma feição punitiva, castigando o
ofensor e desestimulando que o mesmo repita tal conduta, ou que seja reiterada por outrem,
uma vez que tal punição servirá de exemplo à toda sociedade.
Diante da complexidade das relações sociais atuais, tanto na esfera intersubjetiva,
como diante da evolução tecnológica que permite por intermédio do mundo virtual (internet)
uma nova amplitude de exposição das pessoas, as indenizações punitivas são uma excelente
ferramenta jurídica de controle social a serviço da responsabilidade civil, qual atende à função
social de garantir o equilíbrio, harmonia e paz social no globalizado mundo contemporâneo.
Alguns impasses normalmente são suscitados à aplicabilidade da indenização punitiva,
todavia, todos estes sucumbem diante da funcionalidade social da indenização punitiva, que
irá servir de eficaz instrumento de preservação da harmonia social, garantindo o bem de
todos, ou, ao menos, restabelecendo o equilíbrio das relações interpessoais que se
encontrarem abaladas diante da proliferação de eventuais danos. Assim, podemos dizer que a
indenização punitiva atenderá à sua função social, ajudando a educar os integrantes da
sociedade para que juntos seja possível trilhar um caminho em direção à evolução social.
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