UNIVERSIDAD DE BUENOS AIRES FACULDAD DE DERECHO PROGRAMA DE POSGRADO DOCTORADO EM DERECHO CIVIL CLEVER AUGUSTO JATOBÁ MIRANDA RUBEM DE OLIVEIRA VALENTE NETO Buenos Aires 2012 CLEVER AUGUSTO JATOBÁ MIRANDA RUBEM DE OLIVEIRA VALENTE NETO A FUNÇÃO SOCIAL DO DANO EXTRAPATRIMONIAL: Um olhar sociológico e jurídico sobre o Punitive Damages. Trabalho apresentado à Disciplina Sociologia do Direito, como requisito parcial de avaliação do Módulo 2 de programa de pós-graduação em doutorado em Direito Civil pela UBA – Universidade Buenos Aires. Prof. Dr. Felipe Fucito. Buenos Aires 2012 1. INTRODUÇÃO A harmonia da vida em sociedade reclama do Direito a regulamentação de regras básicas de boa convivência, quais precisam ser respeitadas pelos indivíduos que a integrem. Diante da violação dos regramentos legais previamente estabelecidos, repercute perante o direito a noção básica de responsabilidade. Nesta ordem de ideias, uma vez estabelecidas as regras de convivência social e impondo-se aos indivíduos que integram este agrupamento (sociedade), tem-se um rol de deveres (e/ou obrigações) a nortearem o comportamento humano. Assim, obedecendo ou contrariando os regramentos desta ordem jurídica tem-se, respectivamente, a noção de ato lícito e ato ilícito. Ocorre, porém, que quando o comportamento tido como ilícito, por ofender os regramentos legais, venham a ocasionar um dano a alguém, compete ao ordenamento jurídico tomar as medidas necessárias ao restabelecimento da ordem e harmonia social, de modo a garantir a manutenção do equilíbrio das relações jurídicas interpessoais, materializando, assim, seu desiderato de garantir a paz social. Quando o ato ilícito ofende bens jurídicos tutelados pelo Direito Penal, caso tais situações estejam previamente tipificadas como crime (ou contravenções penais), impõe-se as correspondentes sanções penais, quais, em regra, estão vinculadas ao cerceamento da liberdade do indivíduo, aplicando-lhe pena correspondente à prisão (detenção ou reclusão), mas, que podem, por via de exceção, incidir sobre a aplicação de multa ou penas restritivas de direitos, nos casos previstos em lei. Fora as relações da esfera criminal, todas as demais relações jurídicas amoldam-se ao conceito amplo que harmoniza a convivência social no âmbito da ordem civil. Assim, quanto aos danos atrelados a esta realidade, não há que se falar em “prisão”, mas, sim em reparação, ressarcimento, quais buscam restabelecer o status quo ante, ou, quando não seja possível, busca-se ao menos compensar pecuniariamente o prejuízo suportado pela vítima. Tem-se, portanto, sedimentado o ponto distintivo entre a responsabilidade penal e a responsabilidade civil. Ao tempo em que coube ao direito penal punir aquele que comete crime (ou contravenção penal), no âmbito da ordem civil, aquele que cause dano deve reparálo, promovendo a recomposição do prejuízo sofrido, ou, ao menos, compensar a vítima pelo impacto maléfico do dano. Ocorre, que o direito vive em eterna ebulição, evoluindo pari passo com a sociedade, não podendo ter conceitos estanques, que vivam cristalizados de forma atemporal, pois, assim, implicaria em fechar suas portas às necessidades sociais, o que desaguaria na perda da sua razão de ser, como instrumento de regulamentação da vida social. Nesta ordem de ideias, surge a teoria do Punitive Damages, qual concebe a imposição indenizatória, não apenas como forma de recomposição do prejuízo, ou como instrumento compensatório, mas, sim, como uma forma de punir o causador do dano, com o escopo de desestimular a reiteração da prática de condutas que venham ferir a harmonia social. Ocorre, todavia, que tal teoria de origem anglo-saxônica, encontra-se sedimentada nos países vinculados ao common Law (como no direito norte-americano) não tendo diante dos países de tradição romano-germânica como uma modalidade indenizatória autônoma, estando, quando cogitada, embutida na compensação dos danos morais. Nesta ordem de ideias, muitos países pelo mundo à fora sequer regulamentam esta feição punitiva que almeja desestimular tais condutas ilícitas que ocasionam danos extrapatrimoniais. Tem-se, assim, uma lacuna normativa que pode desmerecer um fato social crescente, qual seja, o aumento no número de violações a bens jurídicos extrapatrimoniais, que causam constantemente e reiterados danos num universo cada vez maior de sujeitos das relações jurídicas e sociais. Esta conduta crescente e reiterada de ofensas que ocasionam danos extrapatrimoniais reclama uma resposta do Direito, visto que quando as normas de controle social não estão devidamente alinhadas para garantia da paz e harmonia social, oferecem um terreno fecundo aos desvios nas relações sociais que, por sua vez, vulneram os laços de solidariedade trazendo inúmeras consequências negativas para a sociedade. Em face à tal realidade, o desenfreado aumento na prática de danos extrapatrimoniais reiterados socialmente tem exigido uma releitura da realidade, de modo a desenhar os contornos da indenização de natureza punitiva, objetivando não apenas punir o causador do dano, mas frear e desestimular a repetição de tais condutas, garantindo, assim, a preservação do equilíbrio nas relações sociais, evitando o desenvolvimento incontornável de uma patologia social que vitime a própria dignidade humana. Diante de tal conjuntura, urge investigar: De que maneira deve se conceber legitimidade indenizatória de natureza punitiva como instrumento de harmonização social em consonância com a função social da reparação do dano extrapatrimonial? Estabelece-se como objetivo principal, investigar a legitimidade indenizatória de natureza punitiva como instrumento de harmonização social em consonância com a função social da reparação do dano extrapatrimonial, dando-lhe subsídio jurídico e sociológico. Para alcançar tal desiderato, buscaremos delinear a compreensão contemporânea da responsabilidade civil; estabelecendo a leitura dos seus elementos essenciais, desaguando na compreensão do dano extrapatrimonial. Em seguida, abordar-se-á, a concepção do direito à serviço da sociedade, de modo a desenhar o cenário do solidarismo social, compreendendo as anomias e patologias sociais, para que, diante de tal realidade, possamos edificar a legitimidade da indenização punitiva diante dos danos extrapatrimoniais, reconhecendo a sua função social no restabelecimento da harmonia social. Para tanto, debruçaremos na pesquisa bibliográfica como fonte legítima de pesquisa que, sob o prisma metodológico, venha alicerçar estruturalmente o presente trabalho científico, almejando, assim, contribuir com a legitimação da teoria do punitive damages no ordenamento jurídico brasileiro e Américo-latino. 2. DA COMPREENSÃO CONTEMPORÂNEA DA RESPONSABILIDADE CIVIL Em tempos remotos, Ulpiano, jurisconsulto romano da antiguidade, prenunciou diretrizes de como estar em acordo com o direito, seriam elas: Honeste vivere (viver honestamente), Neminem Laedere (não lesar outrem), Suum cuique tribuere (dar a cada um, o que é seu). De tais brocados em latim, o direito contemporâneo reconheceu tais preceitos como máximas jurídicas, ou princípios gerais do direito. Daí, no que tange à responsabilidade civil, configurou-se, na diretriz do “não lesar a ninguém” o Princípio do Neminem Laedere, o qual determina que a ninguém é dado o direito de lesar, causar dano, ou prejuízo a outrem. Caso tal circunstância se concretize, aquele que causar dano a outrem terá o dever de repará-lo, recompondo o prejuízo, ou, ao menos, compensando-o. Tem-se, portanto, sob a ótica da clássica teoria geral do direito, que com base neste princípio, cabe à responsabilidade civil reparar um dano, recompondo o prejuízo, ou, ao menos, compensando a vítima pela lesão suportada. Estuda-se, para tanto, os elementos e pressupostos da responsabilidade civil. Sob esta tônica, seriam pressupostos a culpa e o ato ilícito; ao tempo em que, para constituir o dever de indenizar, dependeria do apreço dos elementos, quais sejam: a conduta humana, o nexo de causalidade e o dano. 2.1. DOS PRESSUPOSTOS DE RESPONSABILIDADE A compreensão da essência da responsabilidade civil repousa na imposição da obrigação de indenizar a quem tenha causado dano a outrem. Para o alcance de tal finalidade, há muito se sedimentou a responsabilização daquele que, por culpa, veio a ofender um bem jurídico alheio, ocasionando-lhe um dano. Tem-se, portanto, sedimentada a modalidade de responsabilidade civil subjetiva, qual seja, aquela fundada na culpa. A culpa, no âmbito civil, tem uma feição lato sensu, englobando além das condutas negligentes, imprudentes ou por imperícia, a própria conduta dolosa. Assim, conforme leciona Caio Mário da Silva Pereira (2009, p.) “Procede por negligência se deixa de tomar os cuidados necessários a evitar um dano; age por imprudência ao abandonar as cautelas normais que deveria observar; atua por imperícia quando descumprem as regras a serem observadas na disciplina de qualquer arte ou oficio”. Ocorre, porém que, em contraposição à tal modalidade de responsabilidade, tem-se a responsabilidade civil objetiva, qual é imputada independentemente de culpa, nos casos previstos em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo causador do dano implicar em risco ao direito de outrem1. Nesta ordem de ideias, não se pode reconhecer a culpa como elementar à responsabilidade civil, haja visto o fato de direito contemporâneo reconhecer a existência da modalidade de responsabilização independente do apreço da culpa2. Outro pressuposto da responsabilidade civil repousa no fato do dano decorrer da configuração do ato ilícito. Neste ponto, a propósito, muitos ordenamentos jurídicos – como se encontra disciplinado no Código Civil Brasileiro – estabeleceu como regra a incidência de responsabilização civil, quando os danos decorressem da prática de atos ilícitos. Ocorre, todavia, que a experiência e prática do direito permitiu a possibilidade de haver indenização a danos que decorrem de um ato lícito. Neste diapasão, a propósito, o ordenamento brasileiro estabeleceu que a hipótese de estado de necessidade3, apesar de ser excludente de ilicitude, pode não excluir a responsabilização quando quem suportou o dano 1 A legislação civil brasileira disciplinou a cláusula geral da responsabilidade civil objetiva no parágrafo único do Art. 927 do Código Civil pátrio, qual dispõe, in verbis: “Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem”. 2 Segundo o douto portenho Jorge Oscar Rossi (2009,p.57), a classificação da responsabilidade civil em subjetiva e objetiva configura os chamados “factores de atribuición”, quais são subjetivos, no que tange ao apreço da culpa e do dolo, ou objetivos, no que tange à responsabilização objetiva, aferida independentemente de culpa. 3 “O estado de necessidade consiste na situação de agressão a direito alheio, de valor jurídico igual ou inferior àquele que se pretende proteger, para remover perigo iminente, quando as circunstâncias do fato não autorizam outra forma de atuação” (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO. 2012, p.150). não tenha sido o causador da situação de perigo que foi repelida em face da proteção de um bem jurídico de valor equivalente ou superior ao que foi ameaçado4 (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO. 2012, p.151). Destarte, ciente de que pode haver responsabilização diante de um dano que decorra de uma ato lícito, não se pode reconhecer o ato ilícito como elemento da responsabilidade civil, mas, apenas e tão somente, um pressuposto que, contextualizado diante da existência dos elementos da responsabilidade civil, impõe o dever de indenizar. 2.2. DOS ELEMENTOS DA RESPONSABILIDADE CIVIL O estudo e efetiva compreensão da responsabilidade civil depende do apreço técnico de três elementos que lhes são essenciais, são eles a conduta humana, o dano e o nexo de causalidade. Nas palavras de Sérgio Cavalieri Filho (2008, p.24), conduta humana seria o “comportamento humano voluntário que se exterioriza através de uma ação ou omissão, produzindo consequências jurídicas”. Em outras palavras, pode-se estabelecer que o comportamento humano consciente e voluntário, na modalidade comissiva (por ação), ou omissiva (por omissão) tem o poder de produzir efeitos e consequências no mundo jurídico. Cientes de que a noção básica de responsabilização civil repousa na obrigação de indenizar, reparando um dano, ou recompondo um prejuízo, tem-se na figura do dano não apenas um elemento da responsabilidade civil, mas, sim um fato constitutivo e determinante do dever de indenizar. Neste contexto, pode-se dizer que o dano consiste numa ofensa ao direito de outrem, violando um bem jurídico de natureza patrimonial ou extrapatrimonial. Quando o bem jurídico tutelado tem natureza patrimonial, a sua efetiva lesão ocasiona a subtração ou redução patrimonial a outrem, redução esta que abrange “aquilo que efetivamente se perdeu e aquilo que se deixou de lucrar” (GONÇALVES, 2008, p.338), o que constrói os conceitos de dano emergente e lucro cessante respectivamente. Nesta ordem de ideias, Maria Helena Diniz (2009,p. 66) sustenta que o dano patrimonial, também chamado de material consiste na “[...] lesão concreta, que afeta um interesse relativo ao patrimônio da vítima, consistente na perda ou deterioração, total ou parcial, dos bens materiais que lhe pertencem sendo suscetível de avaliação pecuniária e de 4 Apesar do estado de necessidade ser espécie de excludente de ilicitude, o Código Civil Brasileiro disciplinou a exigência de reparação do dano, estabelecendo, assim, exceção à responsabilização apenas por ato ilícito. indenização pelo responsável”. Ocorre, porém, que muitas vezes o bem jurídico tutelado que fora ofendido não tem expressão econômica. Configura-se assim, em face da efetiva lesão, um dano de natureza extrapatrimonial (chamado também de dano moral), qual, em verdade, consiste na violação à própria dignidade da pessoa humana (CAVALIERI FILHO, 2008, p.80), concebendo ofensa aos seus direitos personalíssimos (ROSSI, 2009, p.47), quais são inatos, indisponíveis e oponíveis erga omnes. Nesta ordem de ideias, as ofensas à honra, imagem, integridade física, intimidade, privacidade, nome, reputação, entre outras configura um dano extrapatrimonial. Conforme lição de Jorge Oscar Rossi (2009, p.47), o dano extrapatrimonial “és um daño que no afecta ni directa ni indirectamente el patrimônio de la victima. El interes legitimo lesionado son SUS afectos, emociones y/o sentimientos”. Há quem sustente que o dano moral ou extrapatrimonial seria aquele onde a vítima sofre com uma dor, humilhação, constrangimento, vexame, desconforto e sentimentos negativos que ostentam as dores da alma. Ocorre, porém, que pode haver ofensa à dignidade da pessoa humana sem que da vítima emanem tais sentimentos, pois como bem pondera Carlos Roberto Gonçalves (2008, p.359) “O dano moral não é propriamente a dor, a angustia, o desgosto, a aflição espiritual, a humilhação, o complexo que sofre a vítima do evento danoso, pois esses estados de espírito consistem no conteúdo, ou melhor, na consequência do dano”. Ocorre, porém, que na prática, a doutrina e a jurisprudência tem compreendido os contornos do dano moral atrelados à tais sentimentos negativos que decorrem da ofensa à dignidade humana e aos direitos da personalidade, de modo que simples aborrecimentos não configurariam o dano moral, por isso, assevera Sérgio Cavalieri Filho (2008, p.83): [...] só deve ser reputado como dano moral a dor, vexame, sofrimento ou humilhação que, fugindo à normalidade, interferir intensamente no comportamento psicológico do indivíduo, causando-lhe aflições, angústias, e desequilíbrio em seu bem-estar. Mero dissabor, aborrecimento, mágoa, irritação ou sensibilidade exacerbada estão fora da órbita do dano moral [...] Não se quer dizer, todavia, que só haja dano extrapatrimonial se tais sentimentos negativos venham ser maximalizados, visto que basta a configuração da ofensa à dignidade ou violação dos direitos da personalidade por si só configura um dano extrapatrimonial. Diante de tal reflexão, entendemos haver como espécies do dano extrapatrimonial, o propriamente dito (ou extrapatrimonial puro e simples), qual basta configura a ofensa a um bem jurídico sem expressão econômica, independe destes sentimentos negativos; e o dano moral, no qual tais sentimentos precisam ser determinantes ao desequilíbrio do bem-estar e à aflição espiritual da pessoa. Ultimamente, o ordenamento jurídico brasileiro passou a reconhecer como espécie autônoma de dano extrapatrimonial, o dano estético, ou seja, aquele dano que ostenta uma sequela irreparável que acompanha a pessoa por toda sua vida5. Por fim, o último elemento da responsabilidade civil é o nexo de causalidade, ou seja, o “elo etiológico, do liame, que une a conduta do agente (positiva ou negativa) ao dano” (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO. 2012, p.133). Quando se diz que o nexo de causalidade consiste no liame entre a conduta humana e o dano, quer se alcançar, em verdade, o que foi que deu causa ao respectivo dano, ou seja, busca-se alcançar aquela conduta humana ou circunstância que se encontra direta e imediatamente ligada ao dano produzido. 3. O DIREITO À SERVIÇO DA SOCIEDADE. É cediço que o Direito, norma agendi, institui regras que organizam e disciplinam o comportamento social. Entretanto, inúmeros pensadores, juristas, filósofos, teólogos, sociólogos, desde a antiguidade questionam, sem uma resposta unânime, como nasce o Direito. Deus e a natureza, Deus e o homem, a razão, o Estado e a consciência coletiva dos povos já foram apontados como a causa, a razão de ser do Direito. É como se durante muito tempo os pensadores simplesmente teorizassem a partir da indagação acerca da razão de ser da existência do Direito. Nesse contexto, percebe-se que desde Savigny, fundador da escola histórica, o Direito passa a ser visto, inequivocamente, como um produto cultural, expressão natural de evolução histórica, dos usos, costumes e tradições, criado a partir das necessidades sociais, portanto, independente da razão arbitrária dos homens ou revelação divina. Como assevera Hermes Lima (1983, p. 276), “é conquista definitiva da Escola Histórica a noção do caráter social dos fenômenos jurídicos, com seus dois elementos essenciais: continuidade e transformação”. A escola mostrou que os fundamentos do direito se encontram na vida social. Com efeito, importa registrar que a Sociologia e o Direito, durante muito tempo, ignoraram-se mutuamente, hostilizaram-se inclusive. Coube a Èmilie Durkheim, nos últimos anos do século XIX, fixar em definitivo as relações entre Direito e Sociologia, obtendo o 5 Trata-se de construção jurisprudencial consolidada no ordenamento jurídico brasileiro pelo STJ – Superior Tribunal de Justiça – qual editou em 01/09/2009 a súmula 387, qual dispõe, in verbis: “É possível a acumulação das indenizações de dano estético e moral”. mérito de reconhecer e evidenciar cientificamente a natureza social do Direito, sendo, portanto, considerado por muitos autores, o Pai da Sociologia Jurídica. Paulo Nader (2004, p.25-26) sintetiza, brilhantemente, esse momento importante da Ciência Jurídica: Direito e sociedade são entidades congênitas e que se pressupõem. O Direito não tem existência em si próprio. Ele existe na sociedade. A sua causa material está nas relações de vida, nos acontecimentos mais importantes para a vida social. A sociedade, ao mesmo tempo, é fonte criadora e área de ação do Direito, seu foco de convergência. Existindo em função da sociedade, o Direito deve ser estabelecido à sua imagem, conforme as suas peculiaridades, refletindo os fatos sociais, que significam, no entendimento de Émile Durkheim, maneiras de agir, de pensar e de sentir, exteriores ao indivíduo, dotadas de um poder de coerção em virtude do qual se lhe impõem. Em síntese, não haveria o direito sem sociedade. Daí a verdade do antigo brocado: ubi societas, ibi jus delineando a ideia de que onde está a sociedade está o Direito. Mas, por óbvio, a recíproca é também verdadeira: ubi jus, ibi societas - onde está o Direito está a sociedade -; a vinculação entre ambas é tal que um não pode existir sem o outro. Destarte, Miguel Reale (2007, p.2) arremata: “O Direito não existe senão na sociedade e não pode ser concebido fora dela. Uma de suas características é a socialidade, a sua qualidade de ser social”. O Direito tem, pois, uma relação dialética com a realidade social, com os fatos que nela ocorrem, o que permitiu que se afirmasse: “Não existe o direito e o fato, pois, segundo a forma exata de Sforza, o fato e o direito existem enquanto coexistem” (SILVA, 1990, p. 6-7). Por muito tempo a existência do Direito teve uma origem divina; neste período, apenas os nobres, sacerdotes e altas castas sociais a ele tinham acesso. Ao passar a ter por fundamento a razão, a ele tinham acesso os sábios, filósofos e juristas. Todavia, o Direito foi sendo democratizado quando passou a ter origem na sociedade, sendo esta, uma das mais importantes consequências da visão sociológica. Nessa perspectiva, especialmente após a 2ª guerra mundial, os valores e instrumentos de dignidade humana e eticidade; acesso à justiça e simplicidade; a socialidade e função social, bem como outros institutos correlatos de democratização do Direito ganharam força nos ordenamentos e na Ciência do Direito. A indagação do “porque do Direito” cedeu, portanto, à um questionamento mais empírico-social alcançando o “para que o Direito”. Desta estrutura, a inicial concepção do direito como instrumento de regulamentação da vida social abre espaço para uma feição de harmonizador social, onde lhe incumbe, mais do que regulamentar previamente as relações interpessoais, definindo o que é lícito e ilícito, cabe diante de uma eventual crise social, sua intervenção para restabelecimento da ordem, harmonia, equilíbrio e paz social. 3.1. SOLIDARISMO SOCIAL, ANOMIA E PATOLOGIAS SOCIAIS Um dos mais importantes conceitos da teoria de Durkheim foi o de solidarismo 6 social . É fato que existem laços que nos unem e impelem a vivermos em coletividade, a alimentarmos ideais comuns e nos organizarmos em vida coletiva. É o que os racionalistascontratualistas denominam de pacto social ou acordo entre sociedade e governo, sendo que de um lado a sociedade renuncia parte da liberdade individual em troca de garantias fundamentais e proteção. Nesse contexto, as instituições sociais possuem papel de destaque, pois são as guardiãs dos valores e metas culturais da sociedade exercendo relevante papel na manutenção da ordem social; dos laços de solidariedade que nos mantém unidos e livres de uma realidade anárquica. Por serem mais estáveis do que as representações individuais as instituições sociais são a base dos conceitos de um grupo ou de uma nação. São, portanto, depositárias dos valores sociais e, ao mesmo tempo, de uma realidade objetiva, independente do sentimento ou da importância que alguém individualmente lhes atribui, exercendo sobre todos uma autoridade específica. Ocorre, porém, que o convívio social se submete às regras morais, muitas sob influências religiosas, bem como às regras jurídicas, as quais o Direito estabelece com a finalidade de conter conflitos e manter a harmonia e paz social, sedimentada no equilíbrio das relações intersubjetivas, disciplinando comportamentos permitidos, ou vedados, quais se concretizam na contemplação dos atos lícitos e ilícitos (ou seja, atos em conformidade ou não com os ditames do ordenamento jurídico). Diante desta estrutura é imperioso decifrarmos outro conceito importante à ciência social do Direito, qual seja, o da expressão Anomia. Tal palavra tem origem grega, tendo sua essencial raiz etimológica na combinação a + nomos, onde a significa ausência, falta, privação, inexistência; e nomos quer dizer lei, norma. Etimologicamente, portanto, anomia significa falta de lei ou ausência de norma de conduta eficaz. Foi com esse entendimento que Durkheim usou a palavra pela primeira vez, em seu famoso estudo sobre a divisão do trabalho social, num esforço para explicar certos fenômenos que ocorrem em sociedade (CAVALIERI FILHO, 2007). 6 DURKHEIM, Èmile. As Regras do Método Sociológico. 2.ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. DURKHEIM, Èmile. A divisão do Trabalho Social. São Paulo: Martins Fontes, 1995. Eficácia, como se sabe, é a força do ato para produzir os seus efeitos, assim, malgrado o fato das leis terem como características próprias no universo jurídico a sua cogência, podemos, todavia, dizer que lei eficaz é aquela que tem substancialmente força para realizar os efeitos sociais para os quais foi elaborada. Uma lei, entretanto, só tem essa força quando está adequada às realidades sociais, ajustada às necessidades do grupo. Só aí ela penetra no mundo dos fatos sociais e consegue dominá-los. Sociologicamente, portanto, a palavra anomia pode, apriori, ser usada quando inexistir norma de controle social que discipline determinada conduta ou relação entre indivíduos e/ou grupos sociais; ou mesmo quando houver norma sem eficácia social. Assim sendo, percebese que a anomia indica comportamento desviante em razão de não existir norma capaz de penetrar no mundo dos fenômenos sociais e moldá-los em acordo com os objetivos culturais de cada civilização. Em 1938 Robert K. Merton, sociólogo americano teve o mérito de estabelecer os fundamentos de uma teoria geral da anomia. O artigo foi posteriormente revisto e aumentado pelo autor, transformando-se em parte da sua obra clássica “Teoria e Estrutura Sociais”. Partindo de uma análise da sociedade americana, Merton sustentou que em toda sociedade existem metas culturais a serem alcançadas, devendo ser entendido como tais os valores socioculturais que norteiam a vida dos indivíduos. Para atingir essas metas existem os meios, que são os recursos institucionalizados pela sociedade, aos quais aderem normas de comportamento. De um lado, portanto, metas socioculturais, e de outro, meios socialmente prescritos para atingi-los. Nessa linha de intelecção, percebe-se que as normas morais e jurídicas exercem papel de destaque uma vez que delimitam os meios para se alcançar as metas culturais, sendo certo que quando essas normas de controle social não estão devidamente alinhadas aos objetivos para os quais são criadas oferecem margem ao comportamento anômano (de desvio) que, por sua vez, vulneram os laços de solidariedade trazendo inúmeras consequências negativas para a sociedade. Assim, surge o conceito de patologia social como sendo a relativamente prolongada ausência ou alteração da normalidade de uma instituição, de uma organização, do sistema econômico, do sistema de saúde, do sistema de ensino ou da sociedade em termos globais. Essa falta de normalidade sociológica pode ser explicada por diversos aspectos, como a recusa de certos atores ou grupos sociais se orientarem segundo o quadro normativo de uma sociedade, pela fraca implementação do universo normativo, ou pela ruptura deste. O desequilíbrio entre metas e meios sociais, núcleo da teoria de Merton, é sem dúvida alguma, a causa remota da anomia que, por sua vez, promove uma reação em cadeia, verdadeira bola de neve social, que acaba provocando comportamentos anômicos e patologias sociais de diferentes gravidades. 4. DA FUNÇÃO SOCIAL: DO DANO MORAL AO PUNITTIVE DAMAGES O movimento a respeito da função social ganha força no mundo jurídico a partir de uma obra escrita por Noberto Bobbio na década de 70 entitulada “Da estrutura à função”. Nesta obra o autor sustenta que os juristas historicamente se preocupavam em estudar a estrutura do direito, atentando á ideia doo que é o direito, contudo, muito mais importante, lembrava, para que serve o direito. Assim, ele já anunciava uma evolução no direito no sentido de que tenderíamos a focar os estudos sobre a função em detrimento da estrutura das normas e sistema jurídico. Nesta ordem de ideias, todo instituto jurídico, a seu turno, deve servir para a pacificação social, assim, função social, evidentemente, consagra-se como o “para que” serve o instituto jurídico. A função social busca, portanto, superar uma compreensão egoística dos institutos jurídicos uma vez que estabelece que todo exercício de direitos deve atender aos interesses sociais aos quais se destinam, alcançando, assim, o bem comum. O ponto primordial que estimula as reflexões de Bobbio sobre tal função teleológica é o surgimento do Estado Social e a atribuição de novo papel ao direito, a saber, seus atributos promocionais7. Com isso, o direito não mais se restringe a sua função meramente repressiva e ou ressarcitória, passando a incentivar e dirigir os comportamentos sociais, das mais variadas formas, em direção ao ideal social que propaga. Sob a ótica das ciências sociais, o Funcionalismo é um dos seus ramos que tem como postulado a interdependência das instituições sociais que, por sua vez, mantêm o equilíbrio e harmonia da sociedade na medida em que exercem funções sistematicamente ajustadas, uma vez que tem-se por postulado a ideia de que “la sociedad es um conjunto de partes ajustadas y mutuamente dependientes” (FUCITO, 2003, p. 299) O Funcionalismo é tradicionalmente ligado ao pensamento de Èmile Durkheim (1995) e, mais recentemente, Talcott Parsons (2010), que enfatizava a formação de um sistema integrado de funções moldados pela cultura de cada sociedade. 7 Neste sentido, Felipe Fucito (2003, p.229) recorda que “la ideia de Bobbio, para quien lãs inquistudes sobre funciones del derecho tienen su origen em La conciencia de que han aumentado, por La transfirmación del Estado liberal em Estado social, lãs funciones observables”. Diante da ausência de reflexões sobre tal dimensão do direito dentre as preocupações formalistas, a sociologia do direito passa a desempenhar papel fundamental no estudo jurídico como fundamento para adequar os institutos jurídicos às funções a que se destinam. Nessa linha de raciocínio assevera Felipe Fucito, (2003, p 247): “Las normas jurídicas tienen uma o várias funciones que son positivas, cuáles son estas funciones y como se lãs ejercita. Son estos puntos, precisamente, los que, al no ser aceptados, sino debatidos, dan lugar a la teoría funcional del derecho.” No âmbito da responsabilidade civil, por sua vez, tem sido cristalizado a ideia de que a indenização tem como finalidade garantir a reparação de um dano, recompondo os prejuízos e restabelecendo as coisas ao seu status quo ante, determinando, se, inclusive, que o valor da indenização será medido pela proporção dos danos sofridos. No que tange aos danos de natureza patrimonial, por serem estes suscetíveis de avaliação pecuniária, os mesmos podem ser reparados pela reposição em dinheiro (VENOSA, 2009.p.39), assim, buscar-se-á recompor o dano sofrido, restabelecendo o que fora diminuído do patrimônio da vítima (dano emergente), ou “os ganhos que a vítima deixou de auferir, que impedem o aumento do seu patrimônio” (lucro cessante), conforme leciona Elpídio Donizetti e Felipe Quintella (2012, p.400). Por seu turno, mais delicado é a indenização dos danos extrapatrimoniais, visto que não se pode mensurar a proporção do dano, nem tampouco quantificar pecuniariamente de forma eficaz e adequada os danos decorrentes da ofensa de um bem jurídico que não tem expressão econômica. Nesta seara, imperioso se reconhecer que a indenização não teria o condão de recompor o prejuízo, restabelecendo as coisas na mesma condição em que se encontrava no momento anterior à lesão. Assim, tem sido sedimentado a ideia de que a natureza jurídica do dano extrapatrimonial seria compensatória, onde a indenização teria o condão de compensar a vítima pela lesão sofrida, acalentando-lhe como forma de não deixar tal situação impune diante do Direito. Tem-se, portanto, que diante dos danos extrapatrimoniais, como o bem jurídico violado não pode ser mensurado em pecúnia, por não ter expressão econômica, a indenização de natureza pecuniária não repara o dano, mas, simplesmente, busca compensar e acalentar a vítima pelo dano suportado. Conforme leciona Jorge Oscar Rossi (2009, p.21), “compensar ES volver a equilibrar La balanza, previamente desequilibrada por El daño. La noción de Justicia está vinculada com La Idea Del restabelecimiento Del equilíbrio perdido”. (grifos do autor). Neste cenário o direito norte americano cunhou a Teoria do Punitive Damages8, também chamada de exaplary damages, vindictive damages ou smart money (MARTINSCOSTA; PARGENDLER. 2005, p.16), desenhando uma nova feição à indenização por dano moral ou extrapatrimonial, estabelecendo que a indenização nestes casos comportaria também, além da finalidade compensatória, uma função punitiva ou pedagógica (pena privada), visando a desestimular o ofensor, especialmente em ilícitos graves ou reincidentes. Nesta ordem de ideias, a indenização punitiva estaria a serviço do restabelecimento do equilíbrio social, combatendo os desvios que a proliferação crescente dos danos extrapatrimoniais tem causado na própria conjuntura social. 4.1. COMPREENSÃO DO PUNITIVE DAMAGES Segundo historia Judith Martins-Costa e Mariana Souza Pargendler (2005, p.16) a indenização de natureza punitiva teve sua origem no Direito anglo-saxônico com o Statue of Coucester, na Inglaterra nos idos de 1278, sendo, todavia, desenvolvida a partir do século XVIII, quando se criou a doutrina dos exemplary damages para justificar a “atribuição de indenização quando não havia prejuízo tangível, ou seja, no caso de danos extrapatrimoniais” (MARTINS-COSTA; PARGENDLER. 2005, p. 18). Acrescenta Anderson Schreiber (2012, p.209), que o primeiro caso de indenização punitiva nos EUA foi o Genary v. Norris, datado de 1784, quando um médico, após ter aceitado um desafio para um duelo de pistolas, inseriu secretamente na taça de vinho do seu adversário uma dose considerável de cantaridina, propondo um drinque de conciliação. Conforme relata o autor, “a Suprema Corte da Carolina do Sul entendeu que as dores extremas provocadas à vítima pela malícia do médico mereciam, naquelas circunstâncias, uma ‘punição exemplar’.” (grifos do autor). A teoria do punitive damages consiste no arbitramento judicial de uma indenização cujo valor além de compensar as dores suportadas pela vítima de danos extrapatrimoniais, venha punir o ofensor pelo dano causado, direcionado ao desestímulo da reiteração da referida conduta lesiva pelo próprio ofensor, bem como servindo ainda de exemplo àqueles que fiquem tentados a repetir a mesma prática danosa. 8 Apesar da expressão punitive damages em tradução livre significar danos punitivos, tecnicamente a tradução não vede ser utilizada para contemplar o instituto, uma vez que é a indenização que tem o caráter punitivo e não o dano, assim, o mais coerente é sempre fazer menção à indenização de caráter punitivo. Neste sentido, inclusive, SHIREBER (2012, p.209). Neste diapasão, leciona Anderson Schreiber (2012, p.209), que os punitive damages tratam-se de uma “indenização adicional assegurada à vítima com a finalidade de punir o ofensor e não simplesmente compensar os danos sofridos”, mantendo, portanto, uma “função pedagógica, dissuasiva ou de desestímulo”. Com base nesta teoria, a natureza jurídica da indenização imposta diante dos danos extrapatrimoniais comportaria uma tríplice feição, pois além de permitir a compensação da vítima pelo dano suportado, albergaria a punição do ofensor e serviria de exemplo social, pois agiria como um desestímulo à reiteração daquele comportamento ilícito e essencialmente antisocial. Os punitive damages na práxis norte-americana tem sido estendido à responsabilidade patrimonial, revestindo-se da função de exemplaridade social (MARTINS-COSTA; PARGENDLER. 2005, p.18), todavia, nos cabe sinalizar, que como os danos materiais devem ser aferidos com base na real redução patrimonial suportada (dano emergente) e no que efetivamente se deixou de ganhar (lucro cessante), não seria razoável a incidência de uma indenização punitiva neste contexto, pois desaguaria num flagrante enriquecimento sem causa. Outrossim, o arbitramento de uma indenização punitiva só deve ser acatado quando dano extrapatrimonial, qual não tem como aferir exatamente a proporção do dano sofrido. Segundo Anderson Schreiber (2012, p.209), a aplicação dos punitive damages pelas cortes atualmente no Brasil, tem sido norteada por quatro critérios: a gravidade do dano; capacidade econômica da vítima; grau de culpa do ofensor; e a capacidade econômica do ofensor, assim, percebe-se que a indenização transcende à noção de simples extensão do dano. 4.1.1. Dos obstáculos à indenização punitiva Uma teoria importada do direito estrangeiro não pode ser aplicada igualmente, sem sequer apreciar as peculiaridades locais e sua adequação ao ordenamento jurídico pátrio, sob pena de ferir de morte o equilíbrio jurídico do país, vitimando, inclusive, sua soberania o poder de autodeterminação na esfera nacional, ocasionando uma série de antinomias no ambiente jurídico. Neste contexto, alguns impasses surgem como obstáculos à aplicação da teoria do punitive damages no Brasil, que carece uma breve apreciação. No processo evolutivo do Direito, o âmbito civil foi se dissociando do âmbito penal, assim, ao tempo em que a responsabilidade civil por meio da indenização alicerçou-se na reparação do dano, a responsabilização penal preservou sua natureza punitiva, retribuindo ao criminoso o mal que impingiu à sociedade. Neste contexto, a atribuição de uma indenização de natureza punitiva permitiria a invasão do universo civil pela seara penal. Tal impasse não se encontra propriamente enraizado na teoria do direito, mas, sim, na necessidade de uma maior dialética que comporte não apenas o diálogo das fontes normativas, mas, sim, o diálogo dos fundamentos jurídicos, que devem se desenvolver no terreno fecundo da interpretação teleológica do Direito, deixando tal diálogo agasalhado pela própria hermenêutica jurídica. Assim, não podemos conceber o Direito como algo estanque e de conceitos cristalizado pelo tempo, mas, sim, faz-se necessário que a sua leitura acompanhe a complexidade das relações sociais contemporâneas, não permitindo que esta divisão temática vitime a necessidade social de uma resposta efetiva do Direito diante da exigência da pacificação social para alcançar o bem comum. Outro ponto relevante diz respeito à ausência de previsão legal expressa da indenização punitiva, o que coloca em questionamento a legalidade da sua aplicação, visto que, nesta ordem de ideias, a falta de previsão legal seria um obstáculo à aplicação dos punitive damages visto que nullo poena sine legem. No que tange à eventual falta de norma jurídica que venha permitir a punição civil, não se pode olvidar que, ao enquanto Direito Penal trabalha com o sistema de subsunção da conduta típica ao tipo penal previamente legislado para garantia da sua pena correspondente, no âmbito cível não se tem como tipificar cada hipótese de violação aos infinitos bens jurídico tutelados, assim, a responsabilidade civil se respalda diante da disciplina de cláusulas gerais, quais têm sua aplicação norteada pela amplitude da interpretação do fato social onde se materializou o dano. Está-se diante de flagrante anomia, uma vez que a falta (ou ineficácia) de normatização pode indicar o caminho de um desvio comportamental passivo de ser trilhado com tamanha frequência que chegará a vitimar o próprio equilíbrio social. Não se pode dizer que a falta de previsão legal expressa tenha afastado a possibilidade de se reconhecer a função punitiva ou pedagógica da responsabilidade civil pelo ordenamento jurídico brasileiro, ao contrário, deixou-se, apenas, para ser delineada interpretativamente no contexto da extensão do dano, de modo a permitir compensar a vítima, punir o ofensor e desestimular que a reiteração da conduta venha ferir o equilíbrio social e a harmonização das relações interpessoais. Contudo, vale sinalizar que tramita no Congresso Nacional Brasileiro o Projeto de Lei n.º 6.960/2002, de autoria do Prof. Ricardo Fiuza9, que busca estabelecer uma espécie de autorização genérica ao julgador para acrescentar uma parcela punitiva ao valor da indenização, com o intuito de desestimular o agressor, com o seguinte texto (in verbis): “a reparação do dano moral deve constituir-se em compensação ao lesado e adequado desestímulo ao lesante”. Por fim, o último ponto repousa no enriquecimento sem causa que decorrerá da imposição da indenização punitiva, uma vez que o valor aferido seja convertido em favor da vítima, já que o montante em dinheiro, ao agasalhar a punição e garantir o desestímulo da repetição do comportamento danoso, transcende à compensação da vítima nos limites da extensão do dano10. No que tange à titularidade do direito à indenização ser direcionada à vítima, leva-se em conta o fato desta ser a pessoa diretamente ofendida pela conduta ilícita danosa, assim para que não haja indenização basta não ter ofensa ao bem jurídico da vítima, o que, por sua vez, que depende apenas da conscientização do agente causador do dano. Desta forma a indenização punitiva terá um critério pedagógico de imensa funcionalidade social. Outrossim, vale acrescentar que o entendimento cristalizado nas Jornadas Brasileiras de Direito Civil promovidas pela Justiça Federal Brasileira tem sido favoráveis à imposição da indenização punitiva, concebendo que inexiste obstáculo à sua imposição. 4.2. DA FUNÇÃO SOCIAL DA INDENIZAÇÃO PUNITIVA O alicerce básico da responsabilização civil consiste na imposição da obrigação de indenizar os danos suportados pela vítima decorrentes, em regra, da prática de um ato ilícito11. Assim, sedimenta-se a ideia de que o valor da indenização deve ser medido na proporção da extensão do dano. Quando o dano é patrimonial, tal assertiva pode ser facilmente regulada com precisão matemática, pois basta computar a real redução patrimonial suportada, englobando o que foi ofendido diretamente e o que efetivamente se deixou de ganhar, para, assim, poder alcançar o quantum indenizatório. 9 Jurista brasileiro com grande atuação acadêmica, que atua politicamente como Deputado Federal no Brasil. 10 A proibição do enriquecimento sem causa tem seu alicerce na construção de Tomás de Aquino, para quem deveria ser banido qualquer transferência injustificadada de riquezas de um sujeito para outro. 11 Como explicamos anteriormente, apesar de poder haver excepcionalmente a responsabilização civil diante de danos decorrentes de um ato lícito, a regra geral é que todo ato ilícito que causar dano impõe o dever de reparálo. No que tange às hipóteses de dano extrapatrimonial, por sua vez, o cálculo da indenização sempre conviverá com graus de incertezas, visto que os bens jurídicos eventualmente ofendidos não têm expressão econômica (dignidade, honra, imagem, intimidade, privacidade, nome, etc.). Sedimentou-se, assim, o entendimento de que a quantificação da indenização estaria direcionada, não ao restabelecimento do status quo ante, mas, sim, à compensação da vítima. No mundo contemporâneo, a partir do momento em que a pessoa humana passou a merecer uma proteção especial do direito, como forma de preservar a sua dignidade, tendo sido tutelados direitos e garantias fundamentais, colocados em evidência nas diretrizes dos Direitos Humanos, passou-se a enxergar o número infinito e cada vez mais crescente de hipóteses de ofensas à dignidade da pessoa humana, bem como da violação dos direitos da personalidade, quais se fazem crescentes inclusive no mundo virtual da internet. Conforme Caio Mário da Silva Pereira (1999, p.55): Quando se cuida do dano moral, o fulcro do conceito ressarcitório acha-se deslocado para a convergência de duas forças: caráter punitivo para que o causador do dano, pelo fato da condenação se veja castigado pela ofensa que praticou; e o caráter compensatório para a vítima, que receberá uma soma que lhe proporcione prazeres como contrapartida do mal sofrido. Tem-se, portanto, que a impossibilidade de se restabelecer as coisas como eram antes do dano extrapatrimonial (ou moral) causado, por si só dá margem a uma indenização de natureza compensatória e punitiva. O papel do Direito não se restringe apenas em regulamentar a vida em sociedade, mas, sim, garantir a paz e harmonia social, garantindo a manutenção do equilíbrio nas relações sociais, evitando a proliferação de patologias sociais. Assim, diante do crescente número de ofensas à dignidade da pessoa humana e das violações aos direitos da personalidade, ocorridos em relação de massa, o dano não faz apenas uma vítima direta (aquele que diretamente suportou a ofensa e efetiva lesão), mas, sim, alcança como vítima indireta a coletividade que materializa a própria sociedade. Nas relações jurídicas de massa (relação de consumo, relação laboral, ambiental, etc.), toda a sociedade tem ficado refém da proliferação reiteradas de condutas ilícitas que causam danos extrapatrimoniais12, situação, esta que reclama uma resposta eficaz do Direito, para 12 Senão vejamos alguns exemplos, apenas com o intuito ilustrativo: É muito comum a pessoa contratar um seguro de saúde e, quando da necessidade de utilizá-lo em uma situação extrema, ter o tratamento correspondente ilicitamente negado; outra situação mais comum ainda diz respeito à negativação indevida nos cadastros restritivos de crédito; o uso indevido de imagens com fins comerciais; as ofensas e violações à honra, quais se proliferam inclusive pela internet; as constantes ofensas à intimidade e privacidade, veiculadas em garantir o equilíbrio das relações intersubjetivas, preservando (ou restabelecendo) a harmonia e a paz social. Quando se fala que a indenização deve ser medida pela extensão do dano, não se exclui a indenização punitiva, visto que, muitas vezes, o dano social da reiteração da conduta lesiva se prolifera como verdadeira patologia social, vitimando as diversas relações intersubjetivas causando insegurança ao ofender a paz e harmonia social. Neste contexto, a função de desestímulo da indenização punitiva passa a ter grande função social, visto que passa a agir como medida pedagógica, dissuadindo aqueles que lançam mão da prática lesiva e desestimulando os que por ventura viriam a se aventurar na prática ilícita ofensiva aos bens jurídicos sem expressão econômica. Acreditamos, pois, que o valor pago a titulo de indenização nas hipóteses de danos extrapatrimoniais (e nunca diante de danos materiais) deve transcender aos limites da simples compensação da vítima, contemplando a extensão indireta do dano à sociedade, impingindo o seu caráter punitivo e pedagógico gerando desestímulo à repetição da conduta danos e servindo de exemplo aos demais integrantes do seio social. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Partindo-se da premissa de que o Direito está a serviço da sociedade, a este coube além de regulamentar a vida social, desempenhar a função de garantidor da harmonia e paz social, sendo um dos principais fatores de equilíbrio das relações sociais. Por sua vez, os episódios de desequilíbrio social no universo do Direito, mais precisamente no âmbito cível, quando das práticas de atos ilícitos que acarretem dano a outrem, deságua no contexto da responsabilidade civil, qual por sua vez se estabelece diante da imputação de indenização que busca restabelecer o status quo ante, compensar a vítima e até punir o ofensor, garantindo com esta punição o desestímulo da reiteração das condutas lesivas e fazendo do ofensor exemplo para a sociedade. Buscou-se com o presente trabalho de pesquisa, investigar a legitimidade social da indenização punitiva, passeando pelo solidarismo social, onde tomamos as instituições sociais como ponto de equilíbrio das relações intersubjetivas. Neste contexto, apreciou-se as situações de anomias, quais são flagradas diante falta de normas ou pelo menos ausência de meios de comunicação em massa, tanto em via física quanto digital (virtual); os programas de comunicação e jornalismos, que extrapolam os limites da notícia de modo a ofender diretamente a pessoa objeto da notícia, entre muitas outras situações. eficácia das normas existentes, para que neste cenário seja possível apreciar a situação da aplicação dos Punitives Damages no ordenamento jurídico brasileiro, amparado pela sua finalidade social. Neste contexto, apreciou-se a responsabilidade civil como instrumento de preservação, ou restabelecimento da harmonia social. Assim, quando estivermos diante de um dano patrimonial, basta identificar a efetiva diminuição do patrimônio da vítima, de modo a restabelecer o estado anterior ao dano, indenizando o que perdeu e o que efetivamente se deixou de ganhar. No que tange à indenização por dano extrapatrimonial, definitivamente não é tarefa das mais fáceis arbitrar o valor do quantum indenizatório, pois que o julgador precisa adentrar num terreno de ordem essencialmente subjetiva, em face da impossibilidade de se quantificar com exatidão a extensão de um dano, uma vez que não se pode quantificar pecuniariamente o valor de bens que não comportam expressão econômica. Nesta ordem de ideias, utilizando-se de alguns critérios, como a condição do ofendido, a intensidade da ofensa e o grau de culpa do ofensor; o nexo entre o dano punitivo e o prejuízo sofrido; a eventual prática anterior de condutas equivalentes; a lucratividade da conduta ofensiva (caso em que o valor dos danos punitivos deverá ser superior ao lucro obtido); a situação financeira das partes; o valor das custas judiciais; a consideração das sanções penais eventualmente já aplicadas, de forma que a indenização seja correspondentemente reduzida, dentre outros instrumentos pautados nos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, pode-se chegar à quantia ideal a ser ressarcida. Malgrado o fato de tal realidade, urge compreender que a finalidade da indenização nestes casos é essencialmente compensatória, pois busca oferecer uma satisfação pessoal à vítima, de modo a compensar pelos males suportados. Por seu turno, a indenização, nestes casos, não se restringe apenas a tal feição, pois comporta uma feição punitiva, castigando o ofensor e desestimulando que o mesmo repita tal conduta, ou que seja reiterada por outrem, uma vez que tal punição servirá de exemplo à toda sociedade. Diante da complexidade das relações sociais atuais, tanto na esfera intersubjetiva, como diante da evolução tecnológica que permite por intermédio do mundo virtual (internet) uma nova amplitude de exposição das pessoas, as indenizações punitivas são uma excelente ferramenta jurídica de controle social a serviço da responsabilidade civil, qual atende à função social de garantir o equilíbrio, harmonia e paz social no globalizado mundo contemporâneo. Alguns impasses normalmente são suscitados à aplicabilidade da indenização punitiva, todavia, todos estes sucumbem diante da funcionalidade social da indenização punitiva, que irá servir de eficaz instrumento de preservação da harmonia social, garantindo o bem de todos, ou, ao menos, restabelecendo o equilíbrio das relações interpessoais que se encontrarem abaladas diante da proliferação de eventuais danos. Assim, podemos dizer que a indenização punitiva atenderá à sua função social, ajudando a educar os integrantes da sociedade para que juntos seja possível trilhar um caminho em direção à evolução social. BIBLIOGRAFIA BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função. São Paulo: Manole, 2006. CARBONIER, Jean. Sociologia Jurídica. Trad. De Diogo Leite Campos. Coimbra:Liv. Almedina, 1979. DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. Responsabilidade Civil. v.3. São Paulo: Saraiva, 2009. DONIZETTI, Elpídio. QUINTELLA, Felipe. Curso Didático de Direito Civil. São Paulo: Atlas, 2012. 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