Polícia, violência e cidadania III Políticas públicas, direitos humanos e segurança pública 15 Alexandre Rocha 16 Polícia, violência e cidadania 6 Polícia, violência e cidadania: O desafio de se construir uma polícia cidadã Alexandre Rocha1 Introdução E ste artigo analisa em termos gerais as polícias brasileiras no contexto do acirramento da violência criminosa e da necessidade de valorização dos direitos humanos e de constituição da cidadania. Desse modo, questiona-se em que medida a incorporação de princípios sobre direitos humanos nas polícias muda a situação da violência policial. Até que ponto a não valorização dos direitos humanos é parte de um conjunto de limitações de outros direitos, por exemplo, a não universalização da cidadania. Com essas questões, o objetivo é apontar que a não observância aos direitos humanos por parte de segmentos das polícias brasileiras é mais do que uma prática cultural autoritária remanescente. Defende-se, assim, que os mais variados tipos de violência, em especial a violência policial, revelam um processo incompleto de cidadania, a despeito da conquista do Estado de direito democrático no Brasil. O legado autoritário está presente nas instituições policiais brasileiras, mesmo com a mudança do regime político recente. Por conta disso, a discussão sobre reformas nas polícias geralmente aborda a questão de incorporação de direitos humanos. Afinal, além das limitações técnicas e profissionais, as polí- 1 Alexandre Pereira da Rocha, graduação e mestrado em ciência política pela Universidade de Brasília (Ipol/UnB), doutorando em ciências sociais no Centro de Pesquisa e Pós-graduação sobre as Américas da Universidade de Brasília (Ceppac/UnB). Trabalha na polícia civil do Distrito Federal desde 2002. E-mail: <[email protected]>; <[email protected]>. 135 Alexandre Rocha cias brasileiras são carentes de aspectos culturais que valorizem os direitos individuais e civis. A violência policial é o traço comum de polícias autoritárias, o que é factual nas ações das polícias brasileiras (Pinheiro, 1997). Procedimentos autoritários e violentos – por exemplo, a tortura – fazem parte do cotidiano policial brasileiro (Kant de Lima, 1995). Isso se expressa em números, porque, entre os anos de 2004 e 2008, o Comando de Policiamento de Choque de São Paulo, grupo de operações especiais da polícia militar que contém as Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota), matou 305 pessoas e deixou somente 20 feridos. A letalidade das ações policiais coloca-as no principal alvo de críticas dos grupos defensores dos direitos humanos. A essa letalidade se adiciona a seletividade das ações de policiamento. Os indivíduos objetos do policiamento repressivo geralmente pertencem às regiões periféricas, às favelas, aos morros e são negros, pobres e jovens. Há uma população de policiáveis, de estigmatizados que são vigiados pelas polícias (Paixão, 1983; Coelho, 2005). Não é a integralidade da sociedade brasileira que vê a polícia como violenta, mas uma parcela de indivíduos marginalizados. Eles formam uma massa de indivíduos ou “classes perigosas”, as quais são mais propensas ao crime e merecem atenção especial das polícias (Kant de Lima, 1995; Paes Machado & Noronha, 2002). Ainda há o problema da corrupção policial – uma prática enraizada em certas organizações policiais –, que encontra abrigo na impunidade e retroalimenta a violência (Kant de Lima, 1995).2 Esse problema tem gerado percepções negativas da sociedade em relação às polícias, tanto que dados do Sistema de Indicadores de Percepção Social (Sips/Ipea) sobre segurança pública 2010 mostram que a polícia brasileira não tem passado uma boa imagem aos cidadãos, pois em nenhuma região do país mais que 6% da população dizem confiar no trabalho policial.3 Os problemas das polícias são eclipsados pelo acirramento da violência criminosa. Segundo dados do Suplemento de Vitimização e Justiça da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad/IBGE) de 2009, quase a metade 2 Cf. “São Paulo sob achaque”, disponível em: http://www.law.harvard.edu/programs/hrp/ documents/Sao_Paulo_sob_Achaque.pdf. Acessado em: 05.10.2011. 3 Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/SIPS/110330_ sips_seguranapublica.pdf. Acessado em: 15.08.2011. 136 Polícia, violência e cidadania (47,2%) dos brasileiros com dez anos ou mais de idade se sentem inseguros nas cidades onde vivem.4 Nesse mesmo sentido, dados do Sips/Ipea de 2010 revelam que 78,6% dos brasileiros têm muito medo de ser assassinados. Esse medo da violência faz com que parte da sociedade brasileira almeje uma polícia repressiva, dura e pronta para liquidar os criminosos. Políticas do tipo “tolerância-zero” e “guerra contra as drogas” são promovidas por governos e polícias com o aval público (Machado da Silva, 2004; Cano, 2011). Na verdade, exige-se que a polícia faça justiça nas ruas, logo os criminosos não merecem ir a julgamento, mas devem ser sentenciados pela polícia prontamente. Trata-se de um mandato implícito que é repassado às polícias. Uma espécie de acordo que só é rompido quando a polícia erra o alvo, quando atinge indivíduos que estão protegidos do cinturão de exclusão. Noutras palavras, quando a ação violenta ou corrupta da polícia recai sobre pessoas das classes abastadas, isto é, sobre aqueles que a ela compete proteger e deixar longe dos sujeitos do crime. O dilema proposto às polícias é agir com respeito aos direitos humanos num cenário que exige ações repressivas e duras contra a violência criminosa. Nessa situação, a variável direitos humanos pode ser relativizada dependendo de quem são os envolvidos (Cano, 2011). Essas contradições têm reforçado a ideia de um policiamento violento, corrupto e seletivo. Isso não representa só falta de técnica, de profissionalismo, de incapacidade de lidar com a criminalidade, de não reconhecimento dos direitos humanos, mas desvenda limites do próprio regime democrático, o qual pouco estendeu às ações das polícias uma concepção da valorização universal da cidadania. A hipótese é que, no Brasil, a questão policial não se restringe ao debate sobre os direitos humanos, contudo se insere na discussão sobre os limites da cidadania. Por conta disso, as críticas à moralidade vigente entre membros das forças policiais e à violência inscrita na própria cultura organizacional dos órgãos de repressão, suscitada pelos recorrentes casos de violência policial passaram a fazer parte da agenda de debate sobre a extensão da cidadania e a democratização das relações sociais (Machado da Silva, 1999: 116). Assim, mudanças nas polícias 4 Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/vitimizacao_acesso_justica_2009/pnadvitimizacao.pdf. Acessado em: 02.10.2011. 137 Alexandre Rocha brasileiras devem valorizar os direitos humanos não por uma questão de afronta a tais direitos ou por uma modernização dos órgãos coercitivos apenas, porém para se situarem como instituições basilares na ampliação da cidadania. Afinal, o que a polícia faz ou deixa de fazer afeta diretamente a vida dos cidadãos, sobretudo no que se refere ao poder de prender e ao uso da força física (Bayley, 2005). Este artigo está divido em três seções. A primeira, “Polícia, violência e crime”, discute como atualmente as polícias brasileiras enfrentam o dilema de proporcionar segurança num cenário de medo da violência. Nota-se que a brutalidade policial é eclipsada pela cultura do medo da violência. A segunda, “Direitos humanos e cidadania”, aborda as contradições na temática dos direitos humanos na atividade policial. Ademais, argumenta que limitações à cidadania refletemse nas ações policiais mais do que a incompreensão sobre os direitos humanos. A terceira, “À guisa de conclusão – Por uma polícia cidadã”, busca refletir sobre o desafio de se construir uma polícia cidadã num ambiente social e político permeado de violências, discriminações e preconceitos. Polícia, violência e crime A violência tem sido tema central de discussão na sociedade brasileira contemporânea. Dos meios de comunicação de massa às discussões governamentais, passando pelo debate acadêmico, a violência toma o imaginário e as ações das pessoas. A sensação é que se vive numa época mais violenta e insegura, mesmo que tais comparações tenham poucas constatações empíricas. Além disso, a violência não é a mesma de um período para o outro (Wieviorka, 1997). Mesmo assim, o espaço público, principalmente as ruas, torna-se lugar preferencial do crime. Mas, até lugares considerados seguros não estão imunes à violência, porquanto há violência no lar5 e na escola.6 O cotidiano das pessoas está invadido pela violência. 5 Sobre violência doméstica/familiar, cf. “A violência doméstica e as pesquisas de vitimização”. Disponível em: http://www.redesaude.org.br/BCOTXT/violencia%20e%20pesquisa.pdf. Acessado em: 06.10.2011. 6 Sobre violência escolar, cf. Alba Zaluar & Maria Cristina Leal, “Violência extra e intramuros”, Rev. Bras. Ci. Soc. [online]. 2001, Vol. 16, n. 45 [cited 2011-10-07], pp. 145- 138 Polícia, violência e cidadania Reflexões sobre a violência têm abordagens diversas. Em virtude disso, Zaluar (1999) apontou que as discussões sobre violência e crime assumem caráter disperso, embora a produção acadêmica no período de redemocratização recente tenha avançado. Para tanto, a concepção de violência adotada neste artigo é aquela classificada como excesso de poder, segundo Tavares dos Santos (2009). Essa violência é uma relação de alteridade que tem como característica o uso da força, o recurso à coerção e que atinge, com dano, o outro – é uma relação social inegociável, pois atinge, no limite, as condições de sobrevivência, materiais e simbólicas, daquele percebido como outro, anormal ou desigual, pelo agente da violência (Tavares dos Santos, 2009: 41). A definição de violência como excesso de poder contribui para entender tanto a violência oficial, operada pelos aparelhos do Estado, por exemplo, pelas polícias; como a violência entre indivíduos na sociedade, por exemplo, o poder dos traficantes ou das milícias frente à população civil. Esse tipo de violência se constitui numa relação assimétrica de poder, a qual coloca em lados opostos indivíduos que interagem pelo recurso da agressão moral e da força física. Nesse cenário, a relação social reforça preconceitos e discriminações, em vez de gerar alternativas para superar o problema da própria violência. Essa definição sobre a violência oferece demarcações teóricas, contudo não é suficiente para explicar suas causas. Por isso, neste artigo, não se pretende oferecer explicações para as causas da violência em geral. Isso porque se acredita que se trata de problema multifacetado e complexo. Nenhum fator isolado pode explicar porque alguns indivíduos se comportam com violência em relação a outros e porque a violência prevalece em algumas comunidades e não em outras (Pinheiro, 2003: 18). A violência como excesso de poder ainda é uma abordagem ampla. Por isso, mais especificamente, discute-se aqui a violência criminosa e urbana. Fala-se, portanto, em criminalidade violenta inserida no espaço urbano. Ela se baseia na percepção de diferença entre o passado, quando o crime era vivido como um 164. J. V. Tavares Dos Santos, “A violência na escola, uma questão global”. Disponível em: http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/violencia/dossantos.pdf. Acessado em: 01.10.2011. 139 Alexandre Rocha problema menos angustiante, e o presente, período em que a criminalidade se torna progressivamente mais violenta e organizada. Esse último caso, corresponderia a um momento em que essas práticas se organizam em empreendimentos coletivos e permanentes, evidenciando dificuldades inusitadas de manutenção da ordem pública que tornam dramaticamente insegura a vida cotidiana (Machado da Silva, 1999). A compreensão sobre a violência criminosa serve para distinguir violência e crime. Os termos são usados como se fossem sinônimos, mas a distinção mostra que o controle social tem mais efeito sobre o crime do que sobre a violência. O crime é um comportamento penalizado e valorado pelo direito, que ameaça seu autor de uma pena. Portanto, o direito não penaliza todo tipo de violência, apenas certas formas de violência sob determinadas condições (Robert, 2010: 19). Assim, o crime está em permanente oferta. Atos passíveis de criminalização são como recurso natural ilimitado. Pouco pode ser considerado crime – ou muito. Atos não são, eles se tornam; seus significados são criados no momento em que ocorrem (Christie, 2011: 28). Uma vez definido o universo do crime, a criminalidade violenta é um tipo de violência que tem face, que pode ser identificada e combatida. Ela não é uma evolução da criminalidade difusa, pois os dois tipos coexistem. A diferença é que a criminalidade difusa é transindividual e, como tal, indivisível, em que as vítimas são pessoas indeterminadas (Lucas, 2007). Os autores dessa criminalidade, embora possam ser determinados, formam uma massa de criminosos de difícil controle pelas polícias. Na criminalidade violenta é diferente, porque o desenvolvimento do crime organizado põe em questão, nos termos mais imediatos, a relação entre dois agentes: de um lado, os criminosos e, de outro, os policiais enquanto encarregados diretos da atividade institucional de controle e repressão (Machado da Silva, 1999). Em grande parte do Brasil, a violência que hoje se teme é a criminosa. De modo geral, a sensação de insegurança, ou seja, o medo da violência dos brasileiros teve sua escalada nos anos 1980 e 1990, justamente o momento de instituição do novo regime democrático (Adorno, 1988; Caldeira, 2000). Os crimes que se destacam nas estatísticas criminais são roubos a mão armada, assaltos, sequestros, homicídios, tráfico de entorpecentes. Na pesquisa de vitimização do 140 Polícia, violência e cidadania IBGE realizada em 2010, o medo do crime se comprova, porque cerca de 47,2% da população de 10 anos ou mais de idade declararam não se sentir seguras na cidade em que residiam. Contudo, ao analisar esta informação para as vítimas dos crimes de roubo ou furto, esse percentual subiu para 70,4%. Nesse contexto da violência entendida amplamente como excesso de poder e especificamente classificada como criminosa é que as polícias se inserem. Às polícias competem o controle do crime, isto é, o combate à violência criminosa, que é motivadora da sensação de insegurança e que imprime medo à sociedade. Para o alcance de tal competência, o uso da violência em excesso por parte das polícias é um recurso que encontra validade nos discursos e práticas da atividade policial, de governos e da sociedade. Na atualidade, o medo produz expectativas e demandas de segurança contra e não com os outros. A função da polícia passa a ser vista pelas camadas mais abastadas como um muro de contenção ao intercâmbio de indivíduos e maneiras de viver, em vez de ser um meio orgânico de sua regulação (Machado da Silva , 2008: 14). Esse tipo de polícia, uma instituição que segrega e diferencia as pessoas e os espaços territoriais, não é novidade. Em momento algum da história brasileira se teve uma polícia diferente. Aliás, desde a criação das primeiras forças policiais no século XIX, governos autoritários têm consistentemente subvertido a polícia para propósitos de contenção das profundas transformações social e política (Hinton, 2005: 94). Enfim, práticas de violência e arbitrariedade, o tratamento desigual para pessoas de grupos sociais diferentes, o desrespeito aos direitos e a impunidade daqueles responsáveis por essas práticas são constitutivos da polícia brasileira, em graus variados (Caldeira, 2000:142). A violência criminosa de hoje, que afeta o cotidiano das pessoas, não transformou as polícias brasileiras. A violência policial encontra explicações numa tradição histórica de autoritarismo e discriminação. Os abusos de poder, a usurpação de funções do judiciário, a tortura e o espancamento de suspeitos, presos e trabalhadores em geral são práticas policiais profundamente fincadas na história brasileira (Caldeira, 2000: 143). A novidade nessa história é que tais práticas das polícias são realizadas num contexto de democracia e de valorização dos direitos da pessoa humana. Ou seja, o novo é a contradição entre uma ordem normativa democrática e uma realidade autoritária no universo da atividade policial. 141 Alexandre Rocha Por isso, a violência policial continua a demarcar as fronteiras de quem são os cidadãos. Ela age seletiva e discriminatoriamente configurando os espaços do crime, ou seja, os pontos e as populações propensos à violência criminal. Nessas zonas, valores de direitos humanos e outros direitos fundamentais são relativizados. A cidadania é redesenhada para atender às políticas de contenção da criminalidade. A consequência é que as ações de enfrentamento à criminalidade reforçam as discriminações, pois são operadas com tenacidade contra segmentos sociais pobres. O medo da criminalidade se reifica e ganha espacialização nos perigos imputados aos territórios da pobreza, cujo caso exemplar na representação social são as favelas, vista como lugares prenhes de uma violência descontrolada (Machado da Silva , 2008: 14). Há fortes indícios da violência policial, sobretudo no aspecto letal, contudo a comprovação fica difícil diante da polarização das categorias “agentes do Estado no combate ao crime” e “indivíduos criminosos afrontando as leis”. Dados da Human Rights Watch (2009) dão indícios da dimensão da violência letal de algumas polícias brasileiras. Por exemplo, entre o período de 1º de abril de 2004 e 31 de março de 2009, uma análise comparativa entre os dados estatísticos da violência policial na África do Sul e nos Estados Unidos revela o quão desproporcional são as mortes por policiais no Rio de Janeiro e em São Paulo, mesmo quando comparados a outros lugares violentos. Durante os últimos cinco anos, houve mais mortes em supostos episódios de “resistência seguida de morte” no estado de São Paulo (2.176 mortes) do que mortes cometidas pela polícia em toda a África do Sul (1.623), um país com taxa de homicídio muito superior a São Paulo.7 Além disso, segundo survey do Latin America Public Opinion Project (Lapop) de 2009, projeto que pertence ao barômetro das Américas, o qual realizou pesquisa de vitimização sobre as ações dos agentes do Estado, o abuso policial foi relatado por 6,3% da população brasileira. Num total de 20 países das Américas, o Brasil ocupa a sexta posição, ficando à frente de países com regimes políticos desestruturados, como, por exemplo, o Haiti, onde relato de violên7 Human Rights Watch (HRW), “Força letal, violência policial e segurança pública no Rio de Janeiro e em São Paulo”, Washington, Human Rights Watch (HRW), 2009. 142 Polícia, violência e cidadania cia policial foi identificado em 4% da população. Esse survey apontou fatores associados aos abusos policiais, sendo que, no caso do Brasil, grande parte das vítimas era composta de jovens do sexo masculino e residentes nas cidades. No geral, os abusos policiais estão relacionados a questões de gênero, idade e local de residência, enfim fatores sociais e demográficos (Cruz, 2009). Diante disso, entende-se aqui que a violência policial é um tipo de excesso de poder, que é reproduzida pela tradição autoritária das instituições e pelos preconceitos e hierarquizações da sociedade. Por certo, ela se desenvolve numa sociedade, cuja estrutura social é explicitamente desigual, quer dizer, a disputa não se concretiza no espaço público porque as regras de precedência que o definem previamente regulam, de fora, a convivência entre os desiguais (Kant de Lima, 2003). Nisso, não há uma polícia para a sociedade, mas contra ela. Na verdade, o Estado e a polícia definem-se como instituições não só separadas, mas externas ao conjunto dos cidadãos que precisam não apenas controlar, mas, fundamentalmente, manter em seu devido lugar, reprimir (Kant de Lima, 2003). A violência policial, portanto, não é exclusivamente resultante da falta de técnica, de profissionalismo, de incapacidade de lidar com a criminalidade. Ela é fenômeno entranhado na cultura policial e que se sustenta numa estrutura social de desigualdade. A brutalidade policial é perversa porque atinge mais uns indivíduos do que outros, ou seja, ela é gradualmente acentuada na medida em que os indivíduos se afastam de um tipo ideal de cidadão. A função da polícia se caracteriza, assim, por ser eminentemente interpretativa, partindo não só dos fatos, mas, principalmente, da decifração do lugar de cada uma das partes em conflito na estrutura social para proceder à correta aplicação das regras de tratamento desigual aos estruturalmente desiguais (Kant de Lima, 2003). Enfim, no contexto do acirramento da violência criminosa, a brutalidade policial significa um excesso de poder que discrimina e criminaliza segmentos da sociedade brasileira carentes de cidadania. Os conceitos de crimes na democracia, embora definidos seguindo normas de universalidade e imparcialidade, continuam sendo interpretados casuisticamente pelas polícias. Aqui, há margens não só para violência, mas também para corrupção. Contudo, tais questões são mitigadas diante da cultura do medo da violência, a qual só tem retroalimentado o estereótipo da polícia repressiva como suficiente para conter a criminalidade. 143 Alexandre Rocha Direitos humanos e cidadania A discussão sobre direitos humanos no Brasil está acoplada à luta por democratização, ou seja, a emergência dos direitos humanos como questão pública e política ocorreu na esteira da resistência contra a ditadura militar que perdurou entre 1964 e 1985 (Adorno, 2008:199). Isso porque durante o regime militar se intensificaram atos de repressão, por exemplo, prisões, tortura, execuções extrajudiciais, limitação das liberdades civis. Em nome da segurança nacional, os interesses do Estado autoritário foram postos acima dos da sociedade civil, o que abriu caminho para violências operadas pelos órgãos coercitivos, isto é, forças armadas e polícias. Na transição política dos anos 1980, sobretudo na Assembleia Constituinte de 1987, o debate sobre direitos humanos foi enviesado por interesses de aliados ao regime repressor e defensores da democracia. Nesse cenário, as demandas por incorporação dos direitos não ascenderam diretamente da sociedade civil para os textos constitucionais. Elas foram mediadas e traduzidas por juristas, operadores do direito e pela classe política. Com isso, formaram-se poderosas forças conservadoras comprometidas com os próceres da ditadura militar, que se opuseram com tenacidade à introdução de preceitos inspirados nos direitos humanos (Adorno, 2008: 201). A democracia e as novas demandas da sociedade civil se apresentaram como perigosas aos órgãos coercitivos da ditadura militar. Diante disso, nos debates da nova Carta Constitucional foram presentes e atuantes os lobbies corporativos, principalmente relacionados às forças repressivas, com o propósito de manter intocável a organização das Forças Armadas e das polícias militares, grupos sequiosos de que mudanças institucionais pudessem representar perda de poder – e o mais temido – criar condições institucionais favoráveis para que denunciados por crimes contra os direitos humanos viessem a ser julgados por tribunais civis e, ao final, condenados (Adorno, 2008: 201-202). Uma das consequências negativas desse episódio foi o processo de marginalização dos direitos humanos. Forças conservadoras e contrárias à ampliação dos direitos humanos encontram na ebulição social, política e econômica dos anos 1980 condições favoráveis para desacreditar o discurso dos defensores dos direitos humanos. A escalada da violência criminosa já era uma trágica realidade nas 144 Polícia, violência e cidadania regiões metropolitanas do Rio de Janeiro e São Paulo. Com isso, elas conseguiram, com êxito, associar direitos humanos à “defesa dos direitos dos bandidos”, qualificando-os como privilégios em uma sociedade – a sociedade brasileira –, na qual o trabalhador honesto, “homem de bem”, não tem a proteção das leis, das políticas sociais e do poder público (Caldeira, 2000: 344). A despeito dessas forças conflitantes, a Constituição de 1988 trouxe consideráveis mudanças em termos de direitos humanos. Tais direitos estão inscritos no Título II – “Dos direitos e garantias fundamentais”. Direitos humanos também comparecem em vários outros títulos e capítulos que tratam de matérias relacionadas à organização do Estado e à ordem social (Adorno, 2008: 205). Legislações infraconstitucionais, por exemplo, o Estatuto da Criança e Adolescente (ECA), também incorporaram ideias de direitos humanos. No entanto, essas mudanças normativas não alteraram significativamente traços culturais autoritários das instituições brasileiras. Com isso, os direitos humanos de segmentos da população brasileira continuaram sendo afrontados pelas polícias, por exemplo. No Brasil, assim como em muitos outros países da América Latina, há uma grande lacuna entre o que está escrito na lei e a realidade brutal da aplicação da lei. Os direitos à vida, à liberdade e à integridade pessoal foram reconhecidos, e a tortura e a discriminação racial são considerados crimes. No entanto, apesar do reconhecimento formal desses direitos, a violência oficial continua (Pinheiro, 1997: 43). O discurso de que direitos humanos é “coisa de bandido” ecoa na sociedade civil e se expressa nas ações policiais. A conivência com a violência policial ou, pelo menos, o não interesse em combatê-la, comprova que os direitos humanos podem ser relativizados dependendo de quem são os alvos. Estabelece-se, assim, de forma implícita, uma equação perversa, que parece acreditar que o abuso dos direitos de alguns, os criminosos, é indispensável para a preservação dos direitos da maioria (Cano, 2011: 34). À época da ditadura militar, em nome da segurança nacional, medidas violentas dos aparelhos coercitivos eram realizadas contra dissidentes políticos. Agora, sob a democracia, em nome do combate à criminalidade, procedimentos semelhantes em termos de violência recaem sobre segmentos sociais marginalizados. O medo do crime e a guerra contra ele ofuscam a violência policial. Por 145 Alexandre Rocha conta disso, muitas pessoas ainda acreditam que os direitos humanos são um obstáculo na luta contra o delito. Segundo Cano (2011), a sociedade brasileira tem visões contraditórias sobre direitos humanos, tanto que 45% da população manifestam acordo com a frase “bandido bom é bandido morto”, o que pode ser entendido como defesa aberta do extermínio dos criminosos e um incentivo às execuções sumárias. Essas contradições da sociedade se expressam numa relativização dos direitos humanos. No trabalho já citado, Cano (2011) revela que a afirmação “direitos humanos deveriam ser só para pessoas direitas” – formulação que encarna como nenhuma outra a ideia de que os direitos não são universais nem automáticos, mas restritos apenas àqueles que os merecem ou, quando menos, àqueles que não fizeram nada para perdê-los – tem a concordância de um terço dos brasileiros. São nessas visões contraditórias da sociedade civil que as ações policiais violentas encontram aquiescências. A estrutura social brasileira potencializa as desigualdades e cria distorções na forma como os direitos humanos são considerados. As instituições policiais não estão à margem dessa tessitura, ao contrário, são a comprovação de que a aplicação universal de direitos não é uma realidade absoluta, a despeito dos avanços do Estado de direito democrático. Por causa disso, conforme Kant de Lima (2003), as polícias continuam interpretando o conflito de acordo com o lugar de cada uma das partes na estrutura social. Assim, nem todos os indivíduos têm direito aos mesmos direitos. Ao analisar essa característica da sociedade brasileira, no que se refere à aplicação do direito, a discussão sobre reformas das polícias adquire sutilezas que não podem ser desconsideradas. A principal delas é que, para extirpar a prática da brutalidade, reformas nas organizações policiais podem não ser suficientes. Isso porque o comportamento da polícia parece estar de acordo com as concepções da maioria, que acredita que a boa polícia é dura e que os atos ilegais são aceitáveis. Assim, o apoio popular aos abusos da polícia sugere a existência não de uma simples disjunção institucional, mas de um padrão cultural muito difundido e incontestado que identifica a ordem e a autoridade ao uso da violência (Caldeira, 2000: 136). Kant de lima (2003) reflete sobre esse problema a partir da seguinte questão: o que chamamos de mau desempenho é realmente mau desempenho ou é de146 Polícia, violência e cidadania sempenho segundo um modelo que, na raiz, legitima as ações que estamos questionando? É preciso saber se os policiais fazem aquilo que consideramos errado porque não sabem o que é correto ou se, sabendo-o, simplesmente deliberam fazer o contrário (Kant de Lima, 2003). O questionamento de Kant de Lima mostra que os policiais não são figuras desajustadas ao contexto social. Ou seja, a polícia não é uma instituição autoritária e violenta sobreposta a uma sociedade igualitária e justa. Tampouco os policiais são indivíduos que desconhecem absolutamente os conteúdos de direitos humanos e outros direitos, por isso agem de forma violenta contra segmentos sociais marginalizados. As contradições da questão policial no Brasil estão permeadas por fatores que ultrapassaram as fronteiras do universo policial. Nesse cenário, a temática direitos humanos não é algo a ser meramente injetado nas polícias. A incorporação de princípios de direitos humanos nas polícias, a qual vem sendo realizada por mudanças curriculares nos cursos de formação, é ambígua aos olhos dos próprios policiais. Para eles, o estereótipo “direitos humanos é coisa de bandido” repercute porque eles não se veem atendidos por tais direitos. Esse ponto não pode ser desconsiderado ao analisar o comportamento dos policiais. Ora, pouco se conhece sobre a realidade dos policiais enquanto vítimas de violações aos direitos humanos. Contudo, ao se conhecer essa face da realidade, pode-se, por exemplo, identificar parte das razões pelas quais tantos de nossos policiais terminam por reproduzir atitudes desrespeitosas, preconceituosas e, não raro, abertamente violentas em suas relações com o público (Sares & Silva Ramos, 2009). Por conta disso, acredita-se que é necessário observar as polícias brasileiras largamente e não apenas pelo lado das limitações técnicas e profissionais. Assim, antes que se proponham currículos e metodologias, cumpre levar em conta que a formação do policial no Brasil ainda é marcada por uma concepção autoritária do emprego da polícia e que os próprios policiais não estão infensos a valores culturais de uma sociedade fortemente preconceituosa e hierarquizada (Kant de Lima, 2003). Os princípios de direitos humanos já não são valores desconhecidos pelos brasileiros, tampouco pelos policiais. A formação, na função policial, que vem exigindo nível de escolaridade médio ou universitário, bem como a sua condi147 Alexandre Rocha ção de cidadão, oferece-lhes conhecimentos sobre os direitos humanos. Ademais, o lema das polícias, enquanto força pública, é agir dentro dos marcos da lei e da ordem, segundo o dilema proposto por Skolnick (1994). Vale, portanto, questionar: Por que os direitos humanos não são respeitados? Por que persiste a violência policial? Lugar comum dessas questões é observar as polícias como instituições retrógradas, autoritárias e despreparadas. Tais elementos existem e devem ser mitigados por reformas. Todavia, é necessário considerar que a não observância aos princípios de direitos humanos está inserida, num nível inicial, numa “ética policial”, que, conforme Kant de Lima (2003), discrimina os indivíduos, ou numa “lógica-em-uso”, que, segundo Paixão (1983), opera a suspeita sistemática a certos indivíduos. Num outro nível, encontra-se numa limitação da cidadania presente nas instituições brasileiras. A polícia é uma delas, a qual desperta atenção porque lida justamente com a maioria dos indivíduos destituídos dos padrões universais de cidadania. Ou seja, o policiamento recai rotineiramente nas regiões marginalizadas, nas favelas, nos morros e contra populações pobres, para quem a polícia funciona como verdadeiro dispositivo de confinamento (Machado da Silva , 2008: 14). A persistência da violência policial – que não é padrão absoluto das ações policiais, mas se apresenta nas investidas contra populações discriminadas – revela que o não respeito aos direitos humanos de grupos sociais específicos está imerso numa desvalorização mais ampla de direitos. A desigualdade de tratamento nas ações policiais, as quais são violentas para com alguns e outros não, comprova as assimetrias do convívio do espaço público. Nesse sentido, o tema da violência trata claramente de uma situação em que a cidadania não se impôs como valor nem implementou mecanismos democráticos que possibilitem o desenvolvimento de um sistema sociopolítico minimamente satisfatório para a maior parte da população do país (Velho, 2000: 15). A cidadania, em sua expressão mais clássica, consiste numa total igualdade dos membros numa comunidade nacional (Marshall, 1967). De forma conceitual, ela pode ser apreendida a partir de dois ângulos – o individual e o social. Considerando-se o indivíduo, pode-se entender a cidadania como o conjunto de direitos que o habilita a participar de forma plena da vida pública. Do pon148 Polícia, violência e cidadania to de vista da sociedade, os direitos que compõem a cidadania representam os graus de tolerância com as desigualdades (Sadek, 2009: 9). Todavia, mesmo com os avanços do Estado de direito democrático pós-1988, a cidadania plena continua sendo privilégio de poucos. Não há igualdade de tratamento. Seja no ângulo individual, em que se despreza rotineiramente os direitos de alguns, nesse caso, a violência policial mostra que nem todos os indivíduos têm os mesmos direitos, pois os direitos humanos de certos segmentos sociais são desconhecidos; seja no ângulo social, em que o diferente precisa ser enquadrado numa dada conduta, nessa situação, observa-se a suspeição contra expressões culturais e comportamentais das populações pobres. Tais processos são o que Coelho (2005) definiu como a criminalização da marginalidade. O debate sobre a violência policial no contexto democrático não se faz exclusivamente pela falta de controle sobre as polícias. A nova ordem constitucional estabeleceu mecanismos de controle da atividade policial, por exemplo, o controle externo exercido pelo Ministério Público, conforme o Art. 129, VII, da Constituição de 1988. No entanto, observa-se que, embora existam mecanismos voltados para o controle do uso ilegal e ilegítimo da força física pelos policiais, inexistem, ou são débeis, os mecanismos voltados para o controle do uso irregular e/ou pouco profissional da força física pelos policiais. Esse controle seletivo da violência não é acidental, está associado à distribuição extremamente desigual do poder político na sociedade brasileira, que sempre favoreceu as elites políticas e policiais em detrimento dos cidadãos e dos policiais que trabalham em contato direto com os cidadãos (Mesquita Neto, 1999: 146). O acesso à cidadania segue os passos das hierarquizações e preconceitos de uma sociedade desigual. Logo, a depender da posição do indivíduo na escala social, mais ou menos cidadania terá. Existem graus de cidadania. No topo se situam os cidadãos de primeira classe, que contam com a proteção integral da lei. Na posição intermediária, os cidadãos de segunda classe, que estão sujeitos aos rigores e benefícios da lei. Na base, os “elementos” do jargão policial, os cidadãos de terceira classe, que são a grande população marginal das grandes cidades. Esses “elementos” são parte da comunidade política nacional apenas nominalmente, porque, na prática, ignoram seus direitos civis ou os têm sistematicamente desrespeitados por outros cidadãos, pelo governo, pela polícia (Carvalho, 2008: 216). 149 Alexandre Rocha Nesse cenário, a violência policial, ou seja, a violação aos direitos humanos não é só uma “coisa de polícia”, um desvio a ser corrigido, reprimido ou punido, enfim, um mal a ser extirpado via reformas. É preciso observar em que medida o comportamento desviante da polícia não é padrão aceito pela sociedade, reforçado pelos discursos governamentais de “guerra ao crime” e “tolerância zero” e reiterado nas práticas das polícias. A pesquisa de Cano (2011) mostra que 45% dos entrevistados são coniventes com a letalidade policial contra bandidos e que um terço concorda que os direitos humanos podem ser relativizados. Com efeito, segundo Kant (1995), é pertinente refletir até que ponto a violência policial não se funda nos valores de uma sociedade cujos direitos civis não foram universalmente conquistados pelo conjunto dos cidadãos. À guisa de conclusão – Por uma polícia cidadã As análises sobre a violência policial brasileira têm revelado contraditoriamente a compatibilidade entre Estado de direito democrático e violação a direitos humanos de segmentos sociais marginalizadas (Pinheiro, 1997; Mesquita Neto, 2009; Caldeira, 2000). É uma configuração bizarra e perversa, a qual segrega pessoas e as submete a violências ilegais conforme a posição delas na estrutura social. Nesse ambiente, a polícia atua como uma espécie de cinturão, sendo, por exemplo, um limite entre quem tem direito assegurado e quem não tem. No enfrentamento da criminalidade, ela age reproduzindo práticas desiguais, discriminatórias e excludentes sobre uma parcela da população colocada à margem, ou situada na periferia do pacto social (Muniz & Paes Machado, 2010: 440). Contudo, como se defende neste artigo, a violência policial no Brasil não é apenas desvio institucional, mas tem assento em tradições e valores de governos e da sociedade. As violações aos direitos humanos se encaixam numa sequência maior de desrespeito a outros direitos, o que representa limitações à universalização da cidadania na sociedade brasileira. Assim, como cogitar uma polícia cidadã num espaço social que continuamente refuta a cidadania? Em verdade, construir uma polícia cidadã é um desafio que começa com o conceito. A polícia é entendida como instituição encarregada de possuir e mobilizar os recursos de força decisivos, com o objetivo de garantir ao poder o domínio (ou 150 Polícia, violência e cidadania a regulação) do emprego da força nas relações sociais internas (Monjardet, 2003: 27). Ou, ainda, numa acepção mais ampla, é uma força que tem a autorização em nome da comunidade para agir nas questões conflituosas (Bayley, 2006). A polícia cidadã não muda esses conceitos. O novo aqui é o termo cidadão, porque exige transformações radicais nas polícias brasileiras. A cidadania, segundo Marshall (1967), requer uma igualdade dos membros numa dada comunidade, logo a polícia não pode ser instrumento de discriminações não permitidas. Ela deve dispensar policiamento igualitário para todos os cidadãos. Essa forma de policiar colide com o tipo de policiamento dispensado por grande parte das polícias brasileiras, na medida em que atuam justamente reproduzindo as desigualdades e as discriminações sociais. Em virtude disso, classifica-se conceitualmente aqui a polícia cidadã em duas perspectivas. Numa primeira, estrita, ela é uma estratégia de policiamento. Nesse tópico, polícia cidadã equivale a polícia comunitária.8 Assim, a questão da participação comunitária, que inexiste na polícia tradicional, pois ela não foi concebida para isso, é um fator permanente na polícia cidadã, pela aproximação de seus integrantes à população e pelo comprometimento com a segurança pública no local de trabalho, surgindo aí o policiamento comunitário (Bengochea, Guimarães, Gomes & Abreu, 2004). Noutra perspectiva, ampla, a polícia cidadã não é apenas uma estratégia de policiamento, mas mudança paradigmática que introjeta valores democráticos nas polícias. Nesse sentido, observa-se que a política de emprego da polícia numa sociedade democrática é parte da política geral de expressão da cidadania e da universalização dos direitos; a polícia é um serviço público para proteção e defesa da cidadania; e o fundamento da autoridade policial é sua capacidade de administrar conflitos (Kant de Lima, 2003). A partir dessa conceituação, observa-se que, no caso brasileiro, uma polícia cidadã representa mudanças sociopolíticas na questão do controle social, o que não depende apenas da vontade das polícias. Em verdade, é preciso romper com paradigmas entranhados nas polícias, no Estado e na sociedade civil. De8 Cf. “Polícia comunitária: Avaliando experiências”, 2000. Disponível em http://www.ilanud.org.br/pdf/polic_comunit_rel_final.pdf. Acessado em: 10.10.2011. 151 Alexandre Rocha fende-se, assim, que uma agenda para construção de uma polícia efetivamente cidadã no Brasil deve atravessar três dimensões, a saber: organizacional, institucional e cultural. Elas podem ser realizadas isoladamente, embora sejam interdependentes. O que se coloca nessas dimensões são algumas sugestões, não soluções definitivas. Na dimensão organizacional, por exemplo, a mudança pode começar com revisões das estruturas de comando das polícias, as quais são hierarquizadas de forma excludente e elitizada, o que reforça o ethos repressivo e violento dos policiais no dia a dia, conforme foi identificado por Kant de Lima (2003). Hierarquia e disciplina – base das polícias – devem ser modificadas para que sejam fundamentadas em valores democráticos, não se pressupondo que o comandante seja aquele que tudo sabe, mas aquele que melhor habilitação tem para administrar com eficiência e legitimidade a ação coletiva (Kant de Lima, 2003). Na dimensão institucional, uma mudança significativa é fundamentar a legitimidade da ação policial no governo da coletividade, o que significa romper com as ideologias autoritárias de polícia como organização a serviço apenas de governos. Para tanto, é necessário alterações constitucionais, porque, apesar do controle civil sobre as polícias militares, a concepção militarizada da segurança pública, formulada pelos governos militares depois de 1967, foi confirmada na Constituição de 1988, que manteve intocada a organização policial, por meio do Título V, Capítulo III, “Da segurança pública”, Artigo 144, um dos textos mais flagrantes da grande insensibilidade para a necessidade de desmilitarizar o aparelho do Estado depois da ditadura como condição de plena formalidade da democracia (Pinheiro, 1999: 56). Na dimensão cultural, a mudança precisa descortinar na sociedade civil a ideia de que a polícia repressiva e violenta é solução para a criminalidade. O medo do crime não pode ser motivo para relativizar os direitos civis e humanos, porque o apoio que uma parte da comunidade confere às ações extrajudiciais da polícia constitui um questionamento ao estado de direito muito superior ao representado pela ação extrajudicial propriamente dita. A polícia pode excederse ou atuar fora das atribuições que a lei lhe outorga, mas isso não representaria um risco tão grande para a democracia e a legitimidade se não tivesse o apoio dos cidadãos (Briceño-Léon, Carneiro & Cruz, 1999: 125). 152 Polícia, violência e cidadania A reflexão ampla sobre essas mudanças mostra que a polícia cidadã é um chamado à responsabilidade. Na polícia tradicional, apenas executora da vontade dos governantes ou de grupos específicos, as polícias podem se eximir dos erros cometidos no uso da força. Já na polícia cidadã, a responsabilidade de violações aos direitos dos cidadãos é da própria polícia. Ou seja, se no ordenamento jurídico não há previsão legal para o uso excessivo da força física, o que geralmente ocasiona afrontas aos direitos civis e humanos, qualquer ação policial nesse sentido é ilegal, ilegítima e de encargo das polícias. A responsabilidade das organizações policiais cidadãs é a consciência de que sua ação afeta as circunstâncias de vida de todos os cidadãos (Bayley, 2005; Manning, 2010). Na estrutura do Estado de direito democrático, portanto, as polícias têm a obrigação de agir justamente (Manning, 2010: xii). Além disso, a suposição sobre tais mudanças mostra que uma polícia cidadã vem a complementar uma variedade de direitos civis e humanos garantidos. A relação da polícia com a cidadania revela, assim, uma tensão criadora e criativa que põe em relevo os modos concretos do governar e seus efeitos em uma dimensão mais sensível e crítica: o exercício autorizado do poder coercitivo ali “nas esquinas” entre nós, que explicita, questiona e redefine os limites e os sentidos do fazer policial pela afirmação de direitos constituídos ou na emergência de direitos difusos e novos direitos (Muniz & Paes Machado, 2010: 440). A polícia cidadã certamente não é uma estratégia que se propõe de imediato à solução da violência criminosa. Ela visa mudar a relação polícia e cidadão, a qual não concebe mais a brutalidade como forma de solucionar conflitos. É claro que, na solução dos conflitos, as tensões entre polícia e indivíduos são inerentes; mas, com a polícia cidadã, elas não podem ser suprimidas pela via da brutalidade. Cabe, portanto, à polícia cidadã o controle da ordem pública, que se impõe certamente pela lei e pela ordem, porém sem abdicar da responsabilidade pública e institucional, que recomenda que sejam respeitados os direitos dos cidadãos e que não haja abusos de poder de qualquer espécie desencadeados por quem quer que ocupe a função pública, em especial agentes encarregados de aplicar as leis penais (Adorno, 2002). Pode-se afirmar, ainda, que a polícia cidadã se situa no que Soares (2000) denominou de terceira via, a qual é a possibilidade de combinar eficiência policial 153 Alexandre Rocha com respeito aos direitos humanos, aos direitos civis e às leis. Nesse cenário, é imperativo a valorização das instituições policiais como protetoras da vida e da liberdade e promotoras do direito de todos a uma vida pacífica, que é, afinal, o significado último da segurança pública num contexto verdadeiramente democrático (Soares, 2000: 49). Além disso, como acentua Kant de Lima (2003), é preciso formar e reformar policiais dentro de uma nova concepção, em que todos os cidadãos – incluindo os policiais –, independentemente de sua condição social, sejam vistos como sujeitos de direitos e destinatários da proteção da polícia. A construção de uma polícia cidadã se encaixa num cenário complexo, já traçado ao longo deste artigo, de acirramento da violência criminosa e da necessidade de valorização dos direitos humanos e constituição da cidadania. Assim, é preciso entender que a violência e o crime não existem isoladamente na sociedade brasileira, mas sim num tenso diálogo com a consolidação democrática (Caldeira, 2000: 45). Tudo isso lança um desafio maior que é o controle democrático da violência e, por conseguinte, da instauração do Estado de direito, o qual reside no monopólio estatal de violência física legítima (Adorno, 2002). É esse monopólio legítimo – que não tolera, segundo Soares (2000), nem a tirania de criminosos, nem o despotismo da polícia – a base para um policiamento cidadão. Em suma, a polícia cidadã deve ser uma força pública instituída para “garantia dos direitos” e “vantagem de todos”, para a promoção de cidadania, a qual, conforme Monjardet (2002), é posta a serviço dos valores que uma sociedade democrática inscreveu em suas leis. No Brasil, bem como em outros países da América Latina com passado autoritário e presente marcado pela violência, uma polícia com essas características não é uma realidade, mas um desafio intercalado ao processo de democratização, à ampliação da cidadania, à valorização dos direitos humanos e às reformas nas polícias. 154 Polícia, violência e cidadania Referências Adorno, Sérgio. “Monopólio estatal da violência na sociedade brasileira contemporânea”, in Sérgio Miceli (org) O que ler na ciência social brasileira (1970-2002), Vol. 4 , São Paulo, Sumaré/Anpocs, 2002. ——— . “Direito humanos”, in Ruben G. Oilven, Marcelo Ridenti & Gildo M. Brandão (orgs), A Constituição de 1988 na vida brasileira, São Paulo, Aderaldo & Rothschild Editores, 2008. Bayley, David H. Changing the guard. Developing democratic police abroad, Nova York/ Oxford, Oxford University Press, 2005. ———. Padrões de policiamento, São Paulo, Edusp, 2006. 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