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8º ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA
DE CIÊNCIA POLÍTICA – ABCP
Gramado 2012 – 1 a 4 de agosto
AT11 - Segurança Pública e Segurança Nacional
3º dia (04/08)
5ª Sessão: Polícia, Judiciários e Prisões
A Gramática Política da Polícia: comparação das polícias
do Brasil e do Chile nos regimes políticos
Alexandre Pereira da Rocha1
Resumo: O objetivo deste artigo é realizar estudo comparado entre as polícias do Brasil e do
Chile nos regimes políticos autoritários e democráticos. Analisa especificamente o problema da
violência policial, que a despeito das transições políticas do autoritarismo para democracia,
ainda é marcante na América Latina. Essa violência faz questionar: o papel da instituição
policial varia em decorrência do regime político, seja ele autoritário ou democrático; ou varia
conforme questões mais profundas do sistema político ou de interesses da própria polícia?
Palavras-chave: polícia; violência policial; regimes políticos; autoritarismo; democracia.
1
Mestre em Ciência Política – IPOL/UNB. Doutorando em Ciências Sociais no Centro de Pesquisa e Pós-graduação sobre as
Américas da Universidade de Brasília – CEPPAC/UNB. Email: <[email protected]> <[email protected]>
2
Polícias autoritárias são as marcas de
governos não democráticos.
David Bayley, 2005
Introdução
O tema segurança pública, em especial o tópico das instituições policiais, tem despertado
o interesse de governos, acadêmicos e sociedade civil de diversos países da América Latina. Isso
devido à necessidade de consolidar valores democráticos e direitos humanos em meio ao
aumento dos índices de criminalidade e de insegurança2. As sociedades dos países que deixaram
os regimes autoritários, marcados pela violência política, vislumbraram na democracia a solução
para diversos problemas, inclusive os de afrontas aos direitos humanos. Contudo, transcorrido
algumas décadas de experiência democrática, as mesmas sociedades convivem com variadas
formas violência. Esse é o caso, por exemplo, da violência oficial praticada pelas polícias, a qual
é presente nos regimes democráticos.
Destarte, se nos países da América Latina – por exemplo, Argentina, Brasil e Chile –, os
regimes políticos transitaram do estágio autoritário para o democrático, o que justifica a
ocorrência da repressão policial abusiva nos dias de hoje? Dados estatísticos, pesquisas e
noticiários relatam casos de violência policial, 3 sobretudo, contra os grupos sociais menos
favorecidos, favelados, minorias étnicas, afrodescendentes, jovens de periferia. Este traço de
violência é herança do passado autoritário? Será que as mudanças institucionais propostas pelo
regime político não são suficientes para alterarem as práticas das organizações policiais? Enfim:
o papel da instituição policial varia em decorrência do regime político, seja ele autoritário ou
democrático; ou varia conforme questões mais profundas do sistema político ou de interesses da
própria polícia?
Para responder a tais questionamentos, esse ensaio realiza estudo comparado sobre o
papel das polícias nos regimes autoritários e democráticos do Brasil e do Chile. O propósito não
é realizar uma abordagem revisionista dos períodos autoritário e democrático, mas uma análise
das polícias sob esses regimes. Para tanto, adota uma abordagem institucional, na qual a
2
Vide, por exemplo: “O Brasil precisa deixar claro que respeita o Estado de Direito”, diz ONG internacional. Disponível em:
<http://blogs.estadao.com.br/roldao-arruda/o-brasil-precisa-deixar-claro-que-respeita-o-estado-de-direito-diz-ong-internacional/>
Acessado em: 23/04/2012.
3
Vide: Human Rights Watch (2009): Força Letal: Violência Policial e Segurança Pública no Rio de Janeiro e em São Paulo;
Justiça Global e Núcleo de Estudos Negros (2003): “Relatório de Execuções Sumárias no Brasil -1997/2003”; Observatorio
Ciudadano, Amnistía, Internacional e outros (2008): “ALTO AHÍ! – Basta de Violencia Policial”. Disponível em:
<http://www.londres38.cl/1937/articles-82945_recurso_1.pdf> Acessado em 14/04/2012.
3
violência policial encontra abrigo numa perspectiva de violência institucional que está impressa
no arranjo de certas instituições, como, por exemplo, as coercitivas (ADORNO, 2005;
PINHEIRO, 1997, 2000, LOUBET DEL BAYLE, 1992). Também, considera-se a relevância da
abordagem que analisa a violência policial no contexto das práticas policiais construídas na
relação polícia-sociedade (PORTO, 2007; BRETAS, 1997, MONJARDET, 2003). Essas
abordagens combinadas demonstram a coexistência de instrumentos institucionais criados nas
forças policiais a partir de orientações políticas e práticas culturais socialmente rotinizadas no
âmbito das ações policiais.
Desse modo, num primeiro momento, analisam-se algumas circunstâncias nas quais as
polícias participaram da repressão política no autoritarismo. Num segundo momento, observa os
dilemas das polícias no contexto democrático, onde, certas vezes, o uso legítimo da força para
manutenção da ordem se torna violência desnecessária. Para tal objetivo, destacam-se a Polícia
Militar de São Paulo, Brasil; e, Carabineros, no Chile.
Todavia, a atuação de outras polícias será considerada a título de exemplo. Isso porque
na comparação entre Brasil e Chile, as diferenças nas formas de Estado – respectivamente, um
sendo federativo e outro unitário – demonstra a existência de modelos diferentes na organização
do sistema policial. No Brasil, o sistema policial é pluralista, que conta com polícias nacionais
(Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal) e com polícias estaduais de caráter militar e civil.
Por outro lado, no Chile, o modelo é dualista, o qual conta com duas polícias de caráter nacional,
sendo uma militarizada, os Carabineros, e outra civil, a Policía de Investigaciones – PDI
(FRÜHLING, 2009).
Com este trabalho se faz reflexão para compreender o motivo das persistências da
violência policial na transição dos regimes políticos, em vez de uma descrição quantitativa delas.
A violência é a negação da política, logo estudar os instrumentos de violência e repressão de
uma sociedade é mergulhar no interior da cultura política desta sociedade (CANCELLI,
2001:12). Por isso, defende-se que existem conjecturas políticas na ideia de policiamento que
não podem ser omitidas, assim, a violência oficial jamais é desprovida de sentido. Ela tem o
consentimento, ou pelo menos a omissão, de Estados, de governos, da sociedade. Por causa
disso, as polícias são atores relevantes nas definições das políticas de segurança pública, visto
que lidam com várias formas de violência e repressão.
Este artigo está divido em três seções. A primeira, busca uma compreensão conceitual da
polícia no contexto político. O objetivo é operar uma gramática política da polícia, isto é,
4
analisar a relação política e polícia e como isso influência o policiamento. A segunda, analisa a
polícias brasileira e chilena, respectivamente sob os períodos autoritários de 1964-1985 e de
1973-1990. Argumenta-se que a polícia não tinha uma concepção neutra de policiamento,
porque dentro do seu espectro de seletividade passou a funcionar, em certos casos, como polícia
do regime, isso a despeito das suas funções tradicionais de combate à criminalidade. A terceira,
observa as mesmas polícias nos regimes democráticos iniciados ao fim dos anos 1980.
Demonstra-se que os avanços na ordem democrática não implicaram necessariamente mudanças
nas polícias.
A Gramática Política da Polícia
A polícia é entendida como instituição encarregada de possuir e mobilizar os recursos de
forças decisivos, com objetivo de garantir ao poder o domínio (ou a regulação) do emprego da
força nas relações sociais internas (MONJARDET, 2003:27). Ademais, a polícia analisada aqui
é um órgão estatal e público autorizado pela coletividade para regular as relações sociais via a
utilização, se necessário, da força física (SAPORI, 2007:99). Portanto, é uma das representações
do legítimo monopólio do uso da força física buscado pelos Estados modernos, conforme
preceitua Weber (2011).
A polícia é, por natureza, uma instituição política. Na literatura de ciências sociais isso é
evidente em obras de autores, como, por exemplo, Bayley (1971, 1979, 2006); Huggins, (1998);
Loubet del Bayle (1998); Polizcer (1988); Kalmanowiecki (1995); Pinheiro (1982, 1997, 1982);
Reiner (2004); Soares (2000); Skolnick (1972); Zaverucha (2005). Desse modo, no geral,
entende-se que a polícia civil é uma organização social criada e apoiada pelos processos
políticos, para aplicar os conceitos dominantes de ordem pública (SKOLNICK, 1972).
Em decorrência da natureza política da polícia, mudanças na ordem sociopolítica afetam
os modos de policiamento. Inclusive na América Latina as forças policiais têm sido fortemente
politizadas, vulneráveis e ligadas aos regimes políticos (KALMANOWIECKI, 1995: 335).
Diante disso, os regimes políticos, sejam autoritários ou democráticos, impactam nas forças
policiais, mas como isso ocorre depende da intensidade do regime e das características das
instituições policiais.
Basicamente se entende por regime político um conjunto de normas, regras,
procedimentos de formação e funcionamento das instituições de certo Estado (PASQUINO,
2004:14). Ademais, o regime político é um sistema de mediações entre Estado e sociedade civil,
logo quando se fala em regimes autoritários, refere-se a uma determinada pauta de sistemas e
5
mediações (GARRETÓN, 1983: 67). No que concerne ao regime, a polícia se configura como
um dos mecanismos de mediação, sendo que nos governos autoritários tem como uma de suas
funções a proteção do regime; nos democráticos, a defesa dos direitos dos cidadãos (BAYLEY,
2001).
A polícia é uma das instituições tradicionalmente responsáveis pelo controle social, pela
mantença da ordem e respeito às leis. 4 Por conta disso, o papel dela nos regimes autoritários
seguem a legalidade existente.5 Com efeito, a polícia cumpre suas funções, mesmo nos
momentos e ações de repressão à sociedade civil e, inclusive, na realização de torturas e mortes
de perseguidos políticos.6 Em outras palavras, a polícia não foge às suas funções, ela a executa
cumprindo o que o ordenamento legal impõem, o que os governantes determinam, ou seja, o que
o sistema político em vigor considera como questões de segurança. Isso, por certo, levou à
participação das polícias nas ações cruéis de regimes autoritários.
Nesse sentido, as polícias, em graus e formas distintas, foram instituições importantes de
controle e vigilância dos regimes autoritários da América Latina. Isso porque elas estavam em
contato com os mais variados segmentos da sociedade e terem maior capacidade de identificar os
agitadores, os comunistas, os grevistas, os guerrilheiros. Assim, muitas vezes, as polícias foram
responsáveis por “enquadrar”, “rotular”, “classificar” muitos indivíduos no rol de suspeitos de
“inimigos do regime”. Tais indivíduos foram considerados não só inimigos do regime, mas
criminosos, pois muito do que a polícia toca se converte em crimes e criminosos, e
interpretações alternativas de atos e atores se desvanecem (CHRISTIE, 2011:23). Com efeito,
muitos indivíduos foram detidos, torturados e mortos em nome das políticas de segurança
nacional. Por certo, partes das polícias latino-americanas contribuíram para essa forma de
violência oficial legalizada7.
Com o esfacelamento dos governos autoritários nos anos 1980 e 1990 e com a transição
para os regimes democráticos, as doutrinas do controle social passam por ajustes na América
Latina. Valores de respeito aos direitos individuais e a integridade da pessoa humana foram
impressos nas novas cartas constitucionais. Por conta disso, as instituições de justiça criminal
4
Conforme Becker (2008) as polícias podem ser vistas como impositores de regras, são os agentes que verificam a aplicabilidade
de regras morais, sem questionar o seu conteúdo.
5
Para uma visão sobre a questão dos regimes militares avocarem a legalidade para se legitimar vide: Ditadura e Repressão: o
autoritarismo e o Estado de direito no Brasil, Chile e Argentina (2010), de Anthony Pereira.
6
Para revisão sobre a atuação da polícia no regime militar brasileiro, vide: Operários da Violência: policiais torturadores e
assassinos reconstroem as atrocidades brasileiras (2006), de Martha K. Huggins, Mika Haritos-Fatouros e Philipe G. Zimbardo.
7
Vide a obra: “Operários da Violência: policiais torturadores e assassinos reconstroem as atrocidades brasileiras”, de Martha K.
Huggins, Mika Haritos-Fatouros, Philip G. Zimbardo (2006), Ed. UnB. Nela os autores através de pesquisa e relatos de policiais
envolvidos na estrutura de repressão do governo militar. É possível ver a dimensão em que as polícias brasileiras se envolveram
no autoritarismo, seguindo valores da lei e da ordem.
6
(polícias, Ministério Público, tribunais judiciais, sistemas penitenciários) devem se legitimar
segundo preceitos de um Estado de direito democrático. Para tanto, a lei deve ser balizada como
elemento universal de relacionamento entre Estado e sociedade civil, e isso deve perseguir os
valores democráticos, sobretudo os das decisões públicas serem amplamente submetidas ao crivo
popular. Do mesmo modo, a ordem pública não deve ser imposta pela exclusiva vontade de uma
minoria, mas construída numa relação que considere diversos atores e interesses. Nesse ponto,
até temas anteriormente excluídos do debate público passam por transformações, é caso, por
exemplo, da segurança.
No regime democrático o Estado de direito democrático se fortalece e legitima na
proporção em que reconhece as garantias individuais e os direitos humanos. Nesse contexto, as
polícias são instituições fundamentais, haja vista serem responsáveis pela manutenção da ordem
e respeitos às leis. Ressalta-se o que a polícia faz pode afetar profundamente a vida dos cidadãos,
sobretudo no que se refere ao poder de prender e ao uso da força física (BAYLEY, 2005:17-18).
Nesse quesito, sob a democracia, a relação da polícia não pode ser mais de exclusiva
representante de governos, mas ser uma instituição responsável pelas demandas de segurança da
sociedade. Assim, por exemplo, cabe às polícias democráticas proteger os direitos humanos,
especialmente aqueles que são necessários para o exercício pleno das atividades políticas, os
quais são a marca da democracia (BAYLEY, 2001:11).
No entanto, nos regimes democráticos do Brasil e do Chile, não raras vezes, as polícias
agem de forma violenta, prendem arbitrariamente, praticam torturas, arrancam confissões à força
de suspeitos, executam criminosos extrajudicialmente, enfim passam por cima de direitos
fundamentais da pessoa humana seguindo as doutrinas de “lei e ordem”. Tais ações operadas em
regimes autoritários são vistas como parte do “ofício policial”, mas num Estado de direito
democrático elas são excessos do poder da polícia.
A violência policial na democracia é um contrassenso, sobretudo quando é endereçada às
camadas sociais menos favorecidas e alijadas de direitos fundamentais. Porém, é isso o que
acontece em muitos casos nos quais o uso legítimo da força física para o enfrentamento da
criminalidade e, até mesmo, em situações cotidianas de contenção de manifestações civis nas
ruas, torna-se ações de violência. Isso é uma forma de violência oficial tolerada, embora as
autoridades públicas teimem em reconhecer. A violência, nesses casos, não é mais usada como
política de contenção de movimentos contra governos, como foi nos períodos autoritários. Ela
não chega a ser uma política de governo, mas é uma prática persistente nas corporações
policiais.
7
Alguns eventos recentes na América Latina demonstram a violência policial funcionando
como mecanismo de segurança e policiamento, mesmo com a conquista do Estado de direito
democrático no Brasil e no Chile nos últimos anos.
O primeiro deles ocorreu em janeiro de 2012, envolvendo a Polícia Militar de São Paulo
numa operação de desocupação na área de Pinheirinho, em São José dos Campos, estado de São
Paulo. A ação policial que foi montada para cumprir a determinação judicial assumiu aspectos
bélicos e cenas de guerras tomaram as ruas da região. Cerca de 2 mil policiais, helicópteros e
carros blindados foram destacados para desocupação da área em litígio judicial. 8 O confronto
entre policiais e civis foi inevitável, sendo que a ação truculenta e militarizada da polícia foi
usada para retirar idosos, mulheres, crianças, trabalhadores de suas casas. 9 Mas essa ação de
violência não foi um fato isolado, pois a Polícia Militar de São Paulo é conhecida pelo uso
abusivo da força, tanto que ela foi responsável por um a cada cinco assassinatos na cidade de
São Paulo, em 2011.10
O segundo evento envolveu os Carabineros do Chile no controle das manifestações civis
que tomaram algumas cidades do Chile, principalmente a capital Santiago, em meados de 2011 e
início de 2012. Milhares de estudantes, professores e trabalhadores protestaram contra as
disparidades do sistema educacional. As manifestações foram pacíficas, mas a dimensão que
assumiram nas ruas levou ao confronto com a força policial Carabineros. O objetivo da ação
policial era manter a ordem, mas, na verdade serviu para sufocar os movimentos
reivindicatórios. Os protestos civis ficaram tão intensos que o governo chileno invocou a “Ley
de Seguridad del Estado” com a finalidade de penalizar lideranças promotoras das marchas e
manifestações contra governo. A referida lei foi criada no governo de Augusto Pinochet (19731990) para garantir a ordem do regime autoritário, que pode ter deixado mais de 40 mil vítimas
entre torturados, desaparecidos e mortos. 11
Assim, nota-se que no contexto do regime político democrático, muitas vezes na prática
as polícias agem de forma contrária aos preceitos democráticos, de maneira aética, atécnica, o
que se configura em práticas policialescas (ZAVERUCHA, 2003:30). Como explicar a
ocorrência de tais práticas? São meros desvios? São práticas institucionalizadas? Afinal, porque
elas persistem?
8
PM e moradores voltam a entrar em conflito após reintegração. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/pais/pm-moradoresvoltam-entrar-em-conflito-apos-reintegracao-3733561> Acessado em 19/04/2012.
9
Resistir e lutar: somos todos Pinheirinhos. Disponível em:
<http://www.vermelho.org.br/editorial.php?id_editorial=1028&id_secao=16> Acessado em 19/04/2012.
10
“Um em cada 5 mortos em São Paulo é vítima de PM”. Folha de São Paulo, 27/01/2012.
11
Chile deve elevar número de vítimas da ditadura. Disponível em: <http://www.cartacapital.com.br/internacional/chile-deve-elevarnumero-de-vitimas-da-ditadura/> Acessado em: 15/04/2012.
8
A herança autoritária e a experiência de governos opressores na América Latina, decerto,
ajudam a explicar o caso de países que passaram por períodos de repressão política, porém são
insubsistentes em países com amplo histórico de liberdade política. É intrigante, mas em 2001, o
condado de Los Angeles, nos Estados Unidos, foi obrigado pela Justiça a pagar
aproximadamente sete milhões de dólares em indenizações as pessoas que foram vítimas de
violência policial (LEMGRUBER).12 Portanto, explicações que se concentram na tese de um
espólio maldito deixado por regimes autoritários incorrem o risco de serem reducionistas.
A relação polícia e política é bem mais complexa do que as expressões isoladas de
regime político autoritário ou democrático podem apreender. Assim, é oportuno estudar essa
relação em regimes políticos, Estados, sistemas políticos, polícias e sociedades diversos 13. Isso,
por um lado, ajuda a observar como o processo político influencia a questão do policiamento. De
outro lado, contribui para desvendar que as polícias têm certa autonomia, isto é, que não são
totalmente instrumentalizadas por governos e elites políticas ou apenas apêndices de outras
instituições, como, por exemplo, das Forças Armadas (FFAA).
É preciso ampliar o horizonte de análise sobre o papel das polícias na política, para tanto
a reflexão sobre “como elas são organizadas, como são controladas, como se comportam” tem
mais a dizer do que as mudanças políticas (BAYLEY, 1971: 92). Ademais, qualquer conjunto de
hipóteses, qualquer teoria, que comece e termine dentro de um regime é necessariamente
incompleta e talvez não se aplique, ou tenha uma aplicação mais modesta, em regimes diferentes
ou em mudanças e transições. Trabalhar com dados limitados a um regime impede conhecer a
influência do próprio nome dentro do qual se trabalha (SOARES, 2005). 14
Para entender o papel da polícia, destarte, é preciso analisar para além do regime político.
Isso implica dizer que regimes políticos democráticos podem ter hibridamente polícias
autoritárias, pois as instituições são afetadas por fatores diversos, bem como podem desenvolver
conceitos e valores próprios de atuação. No entanto, se os regimes políticos per se não explicam
a instituição policial, o contrário pode ser verdadeiro, porque a forma como a polícia age tem
muito a dizer sobre a validade de um regime político. Na verdade, a polícia pode ser um
excelente exemplo da profundidade de certo regime político (POLICZER,1998).
12
LEMGRUBER, Julita. Quando a polícia mata...em Los Angeles. Disponível em:
<http://www.carceraria.org.br/fotos/fotos/admin/Sistema%20Penal/Seguranca_Publica/Violencia_Policial_Los_Angeles.pdf>.
Acessado em: 14/04/2012.
13
Este trabalho faz parte de pesquisas realizada no doutoramento em Ciências Sociais na CEPPAC/UNB. As pesquisas ainda
estão em andamento, logo os resultados discutidos são preliminares.
14
SOARES (2005). Nesse trabalho o autor faz correlação do regime político com a violência, na proporção que “transformar os
regimes em variáveis, o que permite visualizar o seu efeito sobre o crime, a violência e o homicídio”.
9
Com essas considerações, tem-se que para se chegar ao papel da polícia na política é
preciso compreender qual é a sua função na comunidade, o seu lugar na organização do Estado e
a sua postura frente ao regime político. Assim, a violência policial significar mais do que uma
prática tradicional, pois se configura numa questão política. A função policial basicamente
consiste em assegurar a regulação interna de uma sociedade global e o respeito a certo número
de regras, as quais a regem por um recurso eventual de intervenções coercitivas que implicam o
emprego da força (LOUBET DEL BAYLE, 1998:10). Como essa função é modulada depende
de decisões políticas, as quais têm muito a dizer sobre as formas de policiamento e as políticas
de segurança.
As Polícias dos Regimes Autoritários
As pesquisas nas ciências sociais sobre o período autoritário na América Latina, em
grande parte, concentram-se no papel das instituições dos Militares. Trabalhos como “Os
Militares na Política (1975)” e “Os Militares: da Abertura à Nova República (1986)”, de Alfred
Stepan; “Los Militares en la Política Chilena”, de Liisa North (1975) desvendam a atuação das
Forças Armadas nos regimes autoritários, bem como as implicações disso na formação dos
regimes democráticos. A relevância dos estudos sobre os integrantes das FFAA decorre do fato
de eles terem tomado a frente dos regimes ditatoriais.
O militarismo irrompe com força na América Latina por meio de fórmulas que vão do
caudilhismo até os golpes autoritários e ditaduras dos anos 1960 e 1970 com a finalidade de
proteger interesses particulares ou de grupos (SAINT-PIERRE, 2007). Por conta disso, na
América Latina, historicamente, os Militares foram identificados como conversadores e aceitos
pelas elites, o que possibilitou que eles se tornassem proeminentes no cenário político. Com
efeito, nos golpes políticos dos anos 1960 e 1970, os Militares tiveram por intuito a preservação
da ordem, a supressão da via política, a “higienização” do sistema sociopolítico das ideias
comunistas e a vinculação dos Estados aos interesses capitalistas15.
Nada obstante, nos regimes autoritários latino-americanos as polícias também tiveram
participação acentuada, a qual pode dizer muito a respeito delas próprias, não apenas dos
regimes políticos. No caso do Brasil, as polícias militares se constituíram em estruturas de
reserva das FFAA, e as polícias civis foram importantes no procedimento de investigação dos
supostos “inimigos do regime”. Particularmente, no tocante à Polícia Militar brasileira até o
15
Vide: ROUQUIÉ, Alain. O Estado Militar na América Latina. Tradução: Leda Rita Cintra Ferraz. São Paulo : Ed. AlfaOmega, 1984.
10
momento do regime ela se encarregava de uma reduzida série de operações relacionadas com a
repressão de distúrbios civis e manutenção da ordem. Depois do golpe de 1967, foi designado a
ela responsabilidade de “levar a cabo, vestindo o uniforme, atividades policiais ostensíveis, que
serão planejadas por autoridades policiais competentes com o fim de garantir o cumprimento da
lei, a manutenção da ordem pública e o Exército terá a faculdade de constituí-las”
(ZAVERUCHA, 2008:133).
No Chile, a principal força policial, os Carabineros, compunha a estrutura do governo
militar. Sob o regime militar, a partir de 1974 as polícias passaram a depender do Ministério da
Defesa, sendo que a instituição que melhor aproveitou o novo regime para aumentar suas
atribuições foram os Carabineros. Eles entraram na área investigativa e se fizeram presente no
regime político incrementando sua autonomia institucional (FRÜHLING, 2009).
Disso resulta que no período de repressão política acirrada do Brasil e do Chile as
polícias foram atores ativos na contenção dos movimentos anti-regime, no controle de motins, na
perseguição de suspeitos, enfim, elas contribuíram para sustentação aos regimes autoritários.
Ademais, as forças policiais locais poderiam ser transformadas em um “sistema de alerta
precoce” para a detecção – e subsequente eliminação – de movimentos políticos de esquerda,
antes que eles explodissem em rebelião armada (MAECHILING 1988 apud HUGGINS,
1998:123).
Os governos militares do Brasil e do Chile utilizaram a função policial para conter as
demandas por mudanças políticas. Em graus variados de atuação, as polícias tiveram
participação no desenho dos regimes autoritários. No Brasil, a participação das polícias foi
subsidiária, pois elas serviam como expansão das ações militares e não foi uma orientação para o
conjunto das polícias. Foram desenvolvidas dentro da estrutura policial divisões próprias para
defender os interesses do governo autoritário. No Chile, diferentemente das polícias brasileiras,
as polícias, sobretudo os Carabineros, estabeleceram intensos mecanismos de vigilância nas ruas
em prol dos interesses do regime autoritário. Isso foi possível porque a polícia Carabineros é
instituição historicamente militarizada (PRIETO, 1990). Dessa forma, as polícias são definidas
como estruturas do regime, isto é, um braço armado do governo para atuar na sociedade civil.
No Brasil, entre as divisões que foram criadas para lidar com a repressão, destacam-se os
Departamentos de Ordem Política e Social (DOPS), que contavam com delegados e policiais
treinados para identificar, incriminar e “fichar” supostos indivíduos contrários ao regime. Ainda,
existiam outras estruturas do regime militar com presença das polícias, como, por exemplo, o
11
Destacamento de Operações e Informações (DOI), junta com Centro de Operações de Defesa
Interna (CODI), os quais eram organizações responsáveis pela inteligência e repressão política
do governo. Essas estruturas ficaram mais conhecidas com a sigla “DOI-CODI” e reuniam
militares das três Armas, policiais militares estaduais, polícia civil e federal, tudo sob um mesmo
comando (MAECHILING 1988 apud HUGGINS, 1998).
Por sua vez, no Chile, os Carabineros assumiram intensamente a função de polícia do
regime, sendo inclusive instituição com capacidade participativa nas decisões do governo
autoritário, como membro da Junta do Governo ou Junta Militar (os Comandantes Chefes do
Exército, da Força Aérea, da Armada, e Geral Diretor de Carabineros). Através da Direção de
Comunicações de Carabineros (DICOMCAR), por exemplo, atuou na identificação dos
oposicionistas do regime. Essa direção criada em 1981 e tinha a responsabilidade de liderar
ataques contra insurgentes durante o período marcado pelo crescimento da resistência aberta ao
regime (ANTUNES, 2008).
Por causa disso, argumenta-se que concomitante ao Estado Militar se formou no
cotidiano da repressão política um Estado policialesco – em razão dos graus elevados de
liberdade das agências de repressão – que com constante controle policial foi fundamental no
estabelecimento dos Estados burocrático-autoritários presentes no Brasil e no Chile.
Os regimes militares concederam maiores poderes e tarefas institucionais às polícias com
a finalidade de que elas pudessem atuar repressivamente. Isso comprova a tese de que o local da
organização militar no regime político é um parâmetro importante na forma de policiamento e
organização da polícia, especialmente na extensão do envolvimento da polícia na política
(KALMANOWIECKI, 1995:20).
O papel das polícias nos regimes autoritários do Brasil e do Chile foi se posicionar como
instrumento apolítico, cujo objetivo era manter a ordem pública, utilizando-se da força física
caso necessário. A finalidade precípua das polícias é o combate ao crime comum, trata-se,
portanto, de uma polícia dos tipos ostensiva e criminal. Essas são as funções básicas das polícias
modernas. Isso não foi alterado com os regimes autoritários, o que mudou significativamente foi
parte do conteúdo dos alvos das polícias. Com os governos autoritários, muitos indivíduos foram
considerados não apenas manifestantes contra regime, mas criminosos. Lidar com criminosos é
tarefa da polícia, não necessariamente das FFAA. A polícia, portanto, continuou a lidar com
criminosos, mas o adjetivo criminoso passou abarcar dissidentes políticos, comunistas,
estudantes, grevistas. A polícia concedia um “ar de profissionalismo” e “neutralidade”, assim as
12
perseguições aos “criminosos políticos” podam não representavam ações do regime, porém parte
da rotineira ação policial de lidar com o crime.
Desse modo, o subproduto significativo dessas mudanças foi neutralizar as conexões
entre a polícia e o poder organizado, tornando esses vínculos menos visíveis (HUGGINS,
1998:13). Com efeito, muitos dissidentes políticos foram considerados criminosos comuns e as
manifestações contra os regimes autoritários foram representadas como ações criminosas.
Repreender e deter tais indivíduos se tornou mero trabalho de manutenção da ordem e contenção
do crime. Com isso, o criou-se a ilusão de que certas ações policiais não decorriam dos
interesses do regime autoritário.
Nota-se que “quando uma polícia independentemente... luta contra multidão, ... o
antagonismo volta-se para a polícia, não contra a estrutura de poder” (CAIN, 1979 apud
HUGGINS, 1998:14). Logo, entrelaçar as instituições policiais em uma burocracia civil
complicada – colocando a polícia civil entre o Estado e as FFAA de um lado, e o povo do outro
– torna muito menos óbvia a repressão estatal como instrumento de proteção de prerrogativas de
classe e do próprio Estado (HUGGINS, 1998:14). Decerto, a polícia repressiva é símbolo de
governo autoritário, contudo, devido a mimetizações de combate ao crime, as ações polícias
contra dissidentes políticos estavam justificadas pela necessidade da imposição da ordem e
respeito às leis. Elas eram, portanto, “coisas de polícia”.
Assim, a atuação das polícias no regime político autoritário não é de fácil constatação,
visto que ela se confunde com a própria função do trabalho policial. Talvez por isso as polícias
não tenham merecido tanta atenção quando se analisa os períodos autoritários na América
Latina. Todavia, no Brasil o Golpe de 1964 implantou uma polícia política bastante complexa no
país – que mesclava polícia civil, polícia militar, militares das três forças e até mesmo bombeiros
e polícia feminina – e foi responsável pelos principais episódios de tortura e extermínio.
Representou a vitória completa da antiga "força autônoma". As turmas de busca e interrogatório
faziam o trabalho sujo que a "utopia autoritária" pressupunha (FICO, 2008:123).
No Chile, junto aos Carabineros criou o “Servicio de Inteligencia de Carabineros”
(SICAR), em substituição à Comisión Civil de Carabineros. Já em 1974 esse serviço seria
substituído pela “Dirección de Inteligencia de Carabineros” (DICAR), mas várias de suas
funções desenvolvidas no interior do país permaneceriam funcionando sob a chancela do
SICAR, dificultando a delimitação temporal de atuação desse órgão (ANTUNES, 2008).
13
O que observou na prática foi que regime militar empoderou as polícias brasileiras e
chilenas. Isso foi feito a partir de instrumentos legais que permitiam maior capacidade de
policiar e prender. Portanto, nota-se que durante os regimes autoritários da América Latina a
ubíqua presença dos militares na política afetou a forma e o estilo de policiamento adotado
(KALMANOWIECKI, 1995:21). Esse fato, como será visto no próximo tópico, ainda persiste.
Couberam às polícias no regime autoritário participar de um processo de “limpeza”, que
se espalhou pelas ruas, onde batidas policiais e militares eram feitas com frequência. Ocorreram
buscas, detenções e prisões em massa. No Brasil no final da primeira semana após o golpe
militar de 1964, mais de 7 mil pessoas haviam sido detidas (BACK, 1977 apud HUGGINS,
HARITOS-FATOUROS & ZIMBARDO, 2006:139). No Chile, durante o processo de
contestação civil contra o governo autoritário, entre 1983 e 1984, o número de detidos foi de
mais de 5 mil pessoas (HUNEEUS, 1986: 112). Essas foram vistas como ações rotineiras do
trabalho policial.
No regime autoritário a violência policial estava justificativa nos interesses das políticas
de defesa nacional. É o que se pode chamar de violência oficial legalizada. Era necessário usar a
força para deter os “inimigos internos”, o que muitas vezes levava a excessos. A tortura contra
os dissidentes políticos começou de forma restrita aos centros de inteligência militar, mas depois
praticamente se institucionalizou no âmbito dos órgãos de segurança, como, por exemplo, nas
polícias (HUGGINS, 1998).
No Brasil na década de 1970, não só houve um aumento notável da tortura e do
assassinato pelas forças de segurança, mas ainda essa violência tornou-se plenamente
institucionalizada como política de governo (HUGGINS, HARITOS-FATOUROS &
ZIMBARDO, 2006:1159-60). Por sua vez no Chile, os Carabineros se tornou a principal força
responsável pela vigilância dos locais de detenção e tortura sob responsabilidade da DINA, além
de realizar detenções, interrogatórios e torturas. Mesmo os policiais Carabineros que não
trabalhavam vinculados à DINA, a ela disponibilizavam todas as pessoas que haviam detido por
razões políticas. Essa comunicação seria realizada através da Central de Radiopatrullas de
Carabineros, que mantinha uma frequência de rádio secreta com a DINA. Dessa forma, não
havia nenhum registro formal de que a pessoa teria sido presa e muito menos que teria sido
transferida para as mãos da DINA (ANTUNES, 2008).
Com essas constatações sobre os períodos de autoritarismo do Brasil e do Chile, observase que as polícias eram forças do regime. Elas atuavam ora como polícia de ordem ora como
14
polícia criminal, segundo a tipologia de Monjardet (2003). Nesta mescla, o que era função de
polícia praticamente sumia nos interesses do governo autoritário. Ressaltava-se o critério de
ordem, o que significa uma polícia de soberania, cujo intuito é ser um braço armado do Estado
na ordem interna. Nessa função as polícias, sobremodo, as militares, eram, por exemplo,
encarregadas de dominar as manifestações nos espaços públicos. Foi justamente assim que as
polícias militares brasileiras e chilenas atuaram contra passeatas civis, manifestações estudantis
pró-democratização.
Por sua vez, quando as polícias exerciam o critério criminal, muitas vezes ele era
distorcido em benefício do regime autoritário. Por policial criminal entende-se aquela que
instrumentaliza a força e os meios de ação não contratuais para reprimir os segmentos da
sociedade que recusam a lei (MONJARDET, 2003:282). Conforme Monjardet (2003): essa
polícia reintegra a sociedade no sentido em que exprime o fato de que esta “designa” em seu seio
esta ou aquela categoria de atores ou de comportamentos como alvo, o que é objetivo dos
códigos penais. Com esse instrumento, os governos autoritários do Brasil e do Chile
conseguiram criminalizar os dissidentes políticos, segundo parâmetros técnicos e legais.
Diante disso, quando se aplica ao caso das polícias brasileiras e chilenas nos períodos
autoritários as dimensões – como são organizadas, como são controladas, como se comportam –
, observa-se que o regime político não necessariamente mudou as polícias, mas reforçou uma
tradição histórica. Vale refletir se as polícias brasileiras e chilenas tinham papéis diversos ou
atuavam diferentemente antes do regime autoritário-militar. Num questionamento simples: a
polícia, em algum momento da História, atuou em prol das populações mais carentes com o
objetivo de garantir-lhes o mínimo dos seus direitos de cidadania? (PEDROSO, 2005).
Ao analisar as contextualidades históricas, culturais, políticas e sociais da formação do
Estado brasileiro, nota-se que as polícias foram formatadas no conjunto de pensamentos e
práticas autoritárias das elites políticas. Tem-se que a mentalidade autoritária no Brasil teve
como pressupostos básicos o modelo jurídico, o poder centralizado e elitizado e a organização
das forças policiais que se incumbiram de perseguir as camadas sociais desprivilegiadas. Ordem
pública e segurança interna encontram-se na raiz da construção da ideologia de Estado
(PEDROSO, 2005:49).
No Chile o processo de formação das polícias não foi diferente. Os traços da cultura
autoritária formaram polícias semelhantes às forças militares. Com isso, no país se estruturou um
aparato policial centralizado e militarizado, a imagem e semelhança das FFAA, similar a países
15
como Espanha e Itália, que possuem uma larga tradição latifundiária e de instituições políticas
tradicionais (PRIETO, 1990).
O comportamento das polícias sob os regimes autoritários, portanto, seguiu sua trajetória
de histórica de tipificar criminosos dentro de um espectro de preconceitos definidos por ordens
políticas. Afinal, governos autoritários têm consistentemente subvertido a polícia para propósitos
de contenção das profundas transformações social e política (HINTON, 2005:94).
A gramática política das polícias nos regimes militares do Brasil e do Chile reforçou
falas autoritárias praticadas desde a gênese de suas polícias. A violência policial nos regimes
autoritários foi mais outra faceta das inúmeras violências oficiais dos aparatos de coerção contra
segmentos sociais marginalizados. O problema é que muitos indivíduos rotulados de criminosos
nas Ditaduras Militares geralmente não pertenciam às classes subalternas, o que incomodou as
elites fora do poder. A partir daí as ações violentas das polícias passaram a ser relacionadas a
intenções políticas.
Em suma, ao pensar o papel das polícias brasileiras e chilenas nos regimes autoritários,
tem-se que o autoritarismo não criou novas polícias repressivas, não transformou polícias
comunitárias em braços armados do governo. O que ele fez foi intensificar o que já era feito: o
controle da ordem social pela força policial num contexto de assimetrias sociais, preconceitos e
discriminações.
As Polícias nos Regimes Democráticos
Nos regimes democráticos latino-americanos um dos principais paradoxos das transições,
decisivo na consolidação democrática, é a sobrevivência de práticas autoritárias. Em tese as
transições representam oportunidades para mudanças e rupturas que permitam a emergência (ou
retomada) de padrões de relacionamento e de controle, mas condizente com a democracia
(CARDIA, 1999: 10). Nesse paradoxo se destacam o papel das polícias, pois, em vez de se
amoldarem às demandas por novos direitos, como, por exemplo, os direitos humanos, elas
passaram rechaçá-los.
No Brasil, as polícias despontaram como objeto de pesquisa, em virtude do problema de
conciliar soluções para o aumento da violência criminosa em meio a instituições de segurança
sucateadas, pouco eficazes, corruptas e violentas. 16 Por isso, dois temas têm recebido bastante
destaque: uma redução nos índices de criminalidade e a necessidade de reformas nas instituições
16
Para análise das polícias brasileira no regime democrático, vide o relatório do Núcleo de Estudos da Violência – USP,
“Continuidade Autoritária e Construção da Democracia” (1999).
16
policiais, quem permitam uma maior adequação ao contexto sociopolítico dos regimes
democráticos (COSTA, 2004: 47).
No Chile, os estudos sobre criminalidade não focam as polícias, pois há um importante
grau de conformidade com a estrutura do sistema policial chileno. As polícias, portanto, são
vistas como capazes de controlar a delinquência, logo quando se fala sobre as polícias os temas
mencionam quase exclusivamente recursos e atribuições (FRÜHLING, 2009). Todavia, observase a contradição, pois o Chile é um dos poucos países democráticos onde as denúncias por
violência policial se processam através de tribunais militares (ÁLVARES & FUENTES, 2005).
Nada obstante, as situações nacionais sejam distintas, existe consciência da necessidade
imperiosa de reestruturar as forças policiais (FRÜHLING, 2009: 84). Nota-se que as instituições
policiais entraram na cena democrática com as mesmas vestes de tempos passados. A elas não
foi permitido uma transição lenta, gradual e segura, pois caíram num contexto de criminalidade
crescente, acirrados problemas sociais, econômicos, políticos, e, ainda, uma sociedade mais
exigente. O ideal democrático não foi formalmente apresentado às polícias. Ele foi empurrado
sem se importar com ajustes necessários. O resultado disso são polícias carentes de identidade
no novo ordenamento democrático, as quais não conta mais com a segurança do militarismo,
tampouco têm condições de se transformar numa instituição cidadã.
Com efeito, a transição democrática não representou modificações significativas nas
instituições policiais no Brasil e do Chile, tanto que se pode afirmar, segundo Pinheiro (2000):
“O retorno ao constitucionalismo democrático pouco fez para erradicar as
práticas autoritárias presentes no Estado e na sociedade. Apesar do da proteção
constitucional, a violência ilegal continua. Governos falharam em controlar o
abuso de poder e em lutar contra a impunidade. Como resultado do fracasso nas
democracias na América Latina em refrear a polícia como a imposição de
maiores controles civis, um dos sinais mais visíveis é a ocorrência de práticas
abusivas frequentes contra suspeitos e prisioneiros”
Em consequência desse dilema se questiona: como sistemas policiais constituídos numa
longa tradição autoritária, a qual foi intensificada pelos regimes militares, inserem-se no
contexto democrático?
A referida pergunta lança dúvidas sobre a influência do regime político na formatação
das instituições, em especial as polícias. Já foi visto que o sistema policial tem relação umbilical
com o sistema político, embora não possa se desprezar a já citada autonomia das polícias, em
virtude de seus conhecimentos e saberes. Assim, mudanças de regime político afetam o sistema
17
policial, porém em que medida, como e quando isso se dá também depende de transformações
profundas no Estado ou sistema político, bem como nas instituições policiais.
A violência policial, por exemplo, constitui-se num traço de polícias autoritárias
(BAYLEY, 2001). Nada obstante, observa-se que no Brasil esse tipo de violência é um
acontecimento relativamente raro no universo das interações entre policiais e não-policiais. Mas
é um tipo de violência que afeta um grande número de pessoas. Pesquisa de vitimização
realizada pelo CPDOCFGV/Iser mostra que entre agosto de 1995 e agosto de 1996, na Região
Metropolitana do Rio de Janeiro, 5,3% da população foram desrespeitados, 2,3% foram
ameaçados e 1,1% foi agredido fisicamente por policiais. Isso significa que num período de um
ano, pelo menos 835.454 pessoas sofreram algum tipo de violência policial (MESQUITA 1999).
No Chile a violência policial não pode ser dissociada de outras violências, isso porque a
violência neste país provém quase sempre do Estado e dos setores dominantes. Assim, a
violência policial está ligada a repressão política. Mesmo sob o regime democrático a polícia
tem usado excessiva violência para repremir manifestações, tomadas de locais públicos, greves e
outras ações consideradas ilegais (VERGARA-ESTÉVEZ, 1990). Além disso, entre 1990 e 2004
os Carabineros responderam por mais de 6 mil casos de violências desnecessárias e abusos
(ÁLVARES & FUENTES, 2005).
Dados da Human Rights Watch (2009)17 dão indícios da dimensão da violência letal de
algumas polícias brasileiras. Por exemplo, entre o período de 1 de abril de 2004 a 31 de março
de 2009, uma análise comparativa entre os dados estatísticos da violência policial na África do
Sul e nos Estados Unidos, revela o quão desproporcional são as mortes por policiais no Rio de
Janeiro e em São Paulo, mesmo quando comparados a outros lugares violentos. Durante os
últimos cinco anos, houve mais mortes em supostos episódios de “resistência seguida de morte”
no estado de São Paulo (2.176 mortes) do que mortes cometidas pela polícia em toda a África do
Sul (1.623), um país com taxa de homicídio muito superior a São Paulo.
Ainda segundo dados da Human Rights Watch (2012)18 para o Chile, desde 2002 a
polícia tem sido responsável pela morte de pelo menos três mapuches (maior grupo indígena do
Chile). A violência policial contra a população Mapuche é uma das mais graves e impunes, já
que se ampara numa discriminação histórica que tem sofrido essa população originária, além de
17
Human Rights Watch (2009). Police Violence and Public Security in Rio de Janeiro and São Paulo. Disponível em:
< http://www.hrw.org/sites/default/files/reports/brazil1209web.pdf> Acessado em: 14/04/2012.
18
Human Rights Watch (2012). Informe Mundial. Disponível em:
< http://www.hrw.org/sites/default/files/related_material/wr2012spwebwcover-1.pdf> Acessado em: 14/04/2012.
18
uma permissão política governamental, a qual ao mesmo tempo em que criminaliza as demandas
Mapuche, tolera e justifica a ação policial em torno dessas comunidades 19.
Quando se analisa a violência policial no contexto do regime democrático, ela pode
representar persistências de tradições autoritárias, cujas mudanças do sistema político não foram
capazes de suplantar. Este legado autoritário, por exemplo, encontra suporte nas legislações
sobre as polícias, visto que em termos político-institucionais, quase não ocorreram mudanças
substanciais. Mas esse legado convive com outros – e também se transforma através dos tempos.
Portanto, não há como só atribuir práticas do presente a não-superação do passado. Durante
várias décadas de história republicana, a violência, com destaque a violência oficial, afetou
sobretudo os grupos sociais mais desprovidos de recursos, como os pobres e afrodescendentes
(PINHEIRO, 2003:32).
Com efeito, a despeito das mudanças de regime, as polícias brasileiras ainda não
reformaram suas práticas violentas. Segundo Zaverucha (2005; 2008), Pinheiro (1991; 1998;
1999; 2003) as instituições de segurança pública brasileira ainda ostentam ainda fortes laços
legais herdados da estrutura do regime autoritário. Ou seja, apesar do controle civil sobre as
polícias militares, a concepção militarizada da segurança pública, formulada pelos governos
militares depois de 1967, foi confirmada na Constituição de 1988, que manteve intocada a
organização policial, por meio do TÍTULO V, CAPÍTULO III, Da Segurança Pública, artigo
144, um dos textos mais flagrantes da grande insensibilidade para a necessidade de
desmilitarizar o aparelho do Estado depois da ditadura com condição de plena formalidade da
democracia (PINHEIRO, 1999:56).
No Chile, o governo autoritário estabeleceu arranjos institucionais que limitaram a
transição política em diversos aspectos. Por isso, um constante esforço governamental desde o
começo da transição foi tentado para incrementar as atribuições das autoridades
democraticamente eleitas com respeito às polícias, em principal os Carabineros. A Lei Orgânica
Constitucional de Carabineros do Chile, publicada no Diário Oficial quatro dias antes de se
iniciar o regime democrático, concedia amplas atribuições ao Geral Diretor de Carabineros para
estabelecer os serviços policiais que julgara necessários (FRÜHLING, 2004). Em consequência
disso, atos de violência policial cometidos pelos Carabineros ainda se processam através de
tribunais militares, mesmo com as instituições policiais não integrando o Ministério da Defesa.
19
“ALTO AHÍ! – Basta de Violencia Policial, ibidem.
19
Com o processo de democratização dos anos 1980 e 1990, esperava-se que as polícias
brasileiras e chilenas mudassem suas formas de atuação junto à sociedade. Todavia, o que se
observa é certos traços de repressão política persistem, sobretudo no aspecto institucional e
organizacional. Nota-se, por exemplo, uma falta de accountability, a qual se evidencia no
predomínio repressivo das políticas de segurança pública, na visão militarista de enfrentamento
do crime, ou ainda, nas limitados reconhecimentos de violência policial, detenções arbitrárias,
torturas, execuções extrajudiciais.
Assim, o projeto Barômetro das Américas, em 2009, realizou pesquisa para medir o
abuso policial. A pergunta utilizada foi: “nos últimos doze meses algum policial lhe maltratou
verbalmente ou fisicamente? Quantas vezes?” As respostas mostram a persistência da violência
policial em diversos países da América Latina, sendo que no Brasil, 6,3% afirmou ter sofrido
abuso policial, e no Chile, 3,7%. 20
No geral, as polícias brasileiras são identificadas por terem um déficit de eficiência e um
superávit em violências indevidas (OLIVEIRA, 2007) 21. Com isso, observa-se um misto de
baixa eficiência no trabalho policial e desconfiança por parte da população. Portanto, entre as
instituições brasileiras, a polícia é uma das que a sociedade menos confia. Dados coletados pelo
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em 2010, para compor o Sistema de
Indicadores de Percepção Social (Sips) sobre Segurança Pública, evidenciam que a polícia
brasileira não tem boa imagem junto aos cidadãos. É lamentável, mas em nenhuma região do
País mais que 6% da população diz confiar muito no trabalho policial. Além dessa desconfiança
por parte dos cidadãos, destaca-se outro agravante: a baixa eficiência do trabalho policial.
Analisando apenas o crime de homicídio – que tem maior repercussão e mobiliza maiores
esforços das polícias – o número de casos solucionados é irrisório. Em média, 5% a 10% dos
homicídios são esclarecidos pelas polícias brasileiras. Tais cifras ficam piores quando se cogita
outros tipos de crimes de menor impacto junto à opinião pública (ROCHA, 2012).
No Chile a situação é distinta, pois suas polícias são avaliadas positivamente em termos
de não serem corruptas e gozarem de respaldo público. A polícia uniformizada do Chile, os
Carabineros, é uma das menos corruptas da América Latina, a sociedade manifesta altos níveis
de confiança nela e através dos meios de comunicação são poucos os casos de abuso policial que
chegam a ser destacados. Ademais, polícia chilena é considerada como respeitosa nos quesitos
20
Cruz, José Miguel. Maltrato policial em América Latina. Barómetro de las Américas de LAPOP. AmericasBarometer
Insights: 2009 (No.11)
21
Prof. Luciano Oliveira na apresentação do livro Polícia, Democracia e Sociedade (2007).
20
de direitos das pessoas. Mesmo não tendo quantidade de casos expressivos de violência policial,
a situação é preocupante porque as denúncias aos tribunais por “violência desnecessária” são
frequentes (FUENTES, 2004).
Por causa disso, acredita-se que novas alternativas para a questão policial no Brasil e no
Chile, principalmente, mudanças na forma como algumas polícias ainda agem contra os direitos
humanos, não decore isoladamente de ajustes procedimentais na área de segurança pública, mas
de empenho político. A violência policial se situa nos limites da política. Ela é a prova da
existência de formas distintas de policiamento, a depender de quem é o alvo e dos interesses das
elites políticas. Nota-se que a violência policial não atinge a todos da sociedade igualmente, ela
distribuída segundo padrões seletivos e discriminatórios. No Brasil e no Chile a violência
policial é seletiva, a despeito das diferencias institucionais entre as polícias.
Em virtude disso, a análise das polícias sob a democracia não está adstrita às
características desse regime político. Afinal, da mesma forma que os regimes autoritários do
Brasil e do Chile não criaram polícias autoritárias, os enclaves do processo democrático não
fomentam isoladamente polícias violentas. No entanto, é considerável que os regimes militares
na América Latina, particularmente no Brasil e no Chile, reforçaram o ideal militarista nas
polícias e isso apresenta traços até hoje, sobretudo na organização das polícias e no controle do
crime. A novidade é que, no contexto democrático, o militarismo ressurge como uma forma
efetiva de policiamento. Isso é conveniente em espaços onde o combate à criminalidade assume
a postura de guerra. É por isso que no Brasil, as atividades do Exército estão cada vez mais
entrelaçadas com as da polícia. Nisso o processo de militarização das Forças Armadas se dá
simultaneamente com a militarização da polícia (ZAVERUCHA, 2008:133). No Chile, por sua
vez, a longa trajetória militarizada da polícia Carabineros não foi colocada em cheque pela
democratização (PRIETO, 1990).
Assim, é oportuno voltar à questão: que fatores explicam as resistências à mudança?
Acredita-se que no Brasil a questão do espólio autoritário, ou seja, a manutenção das práticas
policiais herdadas dos regimes militares passados com forças de segurança autônoma explica,
em parte, a persistência da violência policial. Com isso, a violência policial se justifica pelas
características institucionais e culturais (CHEVIGNY, 2000; PINHEIRO, 1997, 2000;
MÉNDEZ, 2000; RATTON, 2007).
No Chile, essa visão é limitada, pois a despeito das atuações violentas da polícia na
democracia, ela é bem avaliada pela sociedade chilena. Nesse caso, acredita-se na existência de
21
uma tradição de autoritarismo que influencia os valores dos atores políticos no uso da força
(FUENTES, 2004). Com efeito, no Chile, survey do Latinobarômetro de 2004 constatou que
45% dos chilenos preferem viver numa sociedade ordenada, apesar disso gerar restrições às
liberdades (FRÜHLING, 2008: 116).
De toda forma, a persistência da violência policial no regime democrático em graus
variados no Brasil e no Chile oscila conforme apoios políticos. As causas das persistências
podem decorrer de fontes diferentes, mas as continuidades são similares no jogo democrático.
Com isso, para explicar os persistentes padrões de violência policial nos regimes democráticos
requer analisar a estrutura de incentivos e posições de poder dos atores chaves no sistema. O
debate sobre a violência policial tem de ser visto como um debate mais amplo sobre a
manutenção da ordem pública frente à proteção dos direitos dos cidadãos (FUENTES, 2004).
A violência policial, portanto, trata-se de uma opção ou falta de opção política, na qual
classe política, corporações policiais e cidadãos enfrentam o dilema do controle da criminalidade
e proteção aos direitos humanos. Assim, como prescreve Fuentes (2004):
“Num cenário democrático, os funcionários enfrentam pressões simultâneas para
reduzir o crime, manter a estabilidade do país e proteger o direito dos cidadãos.
Mas ainda, os governos desejam contribuir com o poder apoiando políticas que
sejam atrativas para seu eleitorado. Dessa forma, se a coalizão pró-ordem tem a
força e capacidade para conceber a delinquência e o crime como principal
preocupação da sociedade, é provável que o status quo prevaleça. Ao contrário,
se a coalizão a favor dos direitos humanos tem força e capacidade para conceber
a proteção dos direitos individuais como principal preocupação da sociedade e a
violência policial como parte do problema de violência social, então os governos
se comprometem em fazer reformas para transformar os corpos policiais.”
Na América Latina a insegurança se converteu na principal preocupação cidadã e em
objeto de debates políticos sobre mecanismos e iniciativas mais adequados para enfrentar seu
incremento (DAMMERT, 2007). Com efeito, as crescentes taxas de criminalidade
acompanhadas do aumento da sensação de insegurança por partes dos cidadãos preocupam
brasileiros e chilenos. Essas demandas ocupam mais pauta dos governos e das autoridades
policiais do que mudanças em prol de direitos humanos e adequação das polícias ao regime
democrático. Isso é a fonte principal para violência oficial tolerada. Assim sendo, o apoio
popular aos abusos das polícias sugere não a existência de uma simples disfunção institucional,
mas de um padrão cultural muito difundido e incontestado que identifica a ordem e autoridade
ao uso da violência (CALDEIRA, 2008).
Diante disso, observar o papel das polícias no Brasil e no Chile sob o regime democrático
a partir das dimensões – como são organizadas, como são controladas, como se comportam –
22
evidencia certas persistências. No regime democrático a gramática da polícia oscila entre
sintaxes e semânticas. Aos governos, aos comandantes e chefes das polícias, aos grupos
conservadores da classe política e da sociedade cabem às sintaxes. Eles apontam as mudanças
formais no ordenamento jurídico como prova de que as polícias agem conforme as leis. Todavia,
numa análise aprofundada, como a expressa na literatura aqui abordada, nota-se que tais leis
pouco alteraram o caráter autoritário, violento, discriminatório, seletivo da ação policial. Os que
enxergam essas contradições semânticas estão em várias partes, estão no Estado, na sociedade, e
também nas polícias, contudo, eles não têm a força política necessária para propor mudanças
substanciais.
É inegável que o regime democrático modifica a temática policial. Mas no caso do Brasil
e do Chile elas estão mais no campo das possibilidades. A persistência da violência policial
comprova o quanto é complexo superar culturas e legados autoritários enraizados nas
corporações policiais, nos governos e nas sociedades. Há tentativa de reformas policiais
operadas no Brasil, por exemplo, nos estados de São Paulo com a questão policiamento
comunitário e controle das polícias (LOCHE & MESQUITA, 2003; NEME, 2007), de Minas
Gerais, com a integração das polícias e melhorias no aparato de gestão das polícias (SAPORI,
2007, 2008), contudo o difícil é saber a consistência delas frente à política. No Rio de Janeiro,
por exemplo, entre os anos 1998 e 2000, uma reforma significativa foi proposta pela equipe do
antropólogo Luiz Eduardo Soares, mas ela foi abortada precocemente por interesses políticos do
governador carioca da época22. No Chile, só recentemente com atuação violenta dos Carabineros
no enfrentamento com manifestantes civis em busca de reformas no sistema educacional se
cogitaram mudanças nos procedimentos da polícia. No geral, existia certa conformidade com o
sistema policial chileno, logo o assunto das reformas trilhava no sentido da eficiência no
trabalho policial e mudanças na estrutura corporativa das polícias (FRÜHLING, 2001).
Com efeito, o que se vê em termos de reforma policial nos países latino-americanos são
ajustes para busca de eficiência, aparelhamento das organizações, capacitação profissional. Tais
reformas são importantes, mas, elas quase não tocam na equação controle, organização e
comportamento das polícias, logo não geram mudanças substanciais na estrutura de
policiamento. O problema é que qualquer reforma implica mudança de paradigma na
organização policial, ou seja, na cultura policial, de tal maneira que permita a instituição
adaptar-se aos princípios e regras do jogo democrático (POBLETE, 2011: 141).
22
Relato da delicada passagem de Luiz Eduardo Soares à frente da segurança pública do Rio Janeiro está na obra: Meu Casaco
de General, 500 dias no front da segurança pública do Rio de Janeiro (2000).
23
Nas democracias, mais do que nunca, as polícias estão sujeitas às decisões políticas. O
problema é que, nos casos do Brasil e do Chile, tais decisões geralmente não são discutidas
publicamente, tampouco trilham no sentido das essenciais demandas de segurança da população.
Na verdade, na maioria das vezes, elas são ofuscadas pelas campanhas sob o slogan “a lei e a
ordem”, as quais segundo Monjardet (2003) são a expressão privilegiada das alianças políticopoliciais, que ora atendem às pretensões político-partidárias dos governantes, ora, aos interesses
corporativos das elites policiais.
Conclusão
A comparação do papel das polícias no Brasil e no Chile nos regimes políticos revelou
que, certos traços considerados legados do passado autoritário recente, não são justificáveis. A
reflexão sobre a violência policial mostrou que ela se assenta num histórico arraigado de outras
violências institucionais. Na verdade, ela está presente no arranjo da própria atividade policial, a
qual tem em si um cunho discriminatório que não pode ser ignorado, cujo problema não está na
existência de conduta movida pela suspeição; mas, no conteúdo de tais percepções
preconceituosas, compartilhadas pela cultura policial e por vários setores da sociedade
(REINER, 2004).
Neste sentido, por exemplo, a violência policial aqui discutida, de forma alguma,
significa uma tentativa estatal de reforçar o monopólio da violência. O que se observa no Brasil
e no Chile, com suas polícias ainda atuando com brutalidade e arbitrariamente no contexto
democrático, não é ação de resgate de valores e normatizações dos períodos autoritários. A
violência policial hoje tem características próprias, por que esse tipo de violência tende, cada vez
mais, a se autonomizar face ao sentido que seria originalmente orientador de sua conduta,
vinculado à manutenção da ordem, em benefício de interesses pessoais, ou seja, privados
(PORTO, 2010:225).
Por causa disso, observa-se que a violência policial está para além das características do
regime político. É preciso considerar ainda que, instituições de policiamento desempenham um
papel fundamental em qualquer tipo de regime; seja em contextos democráticos ou autoritários, a
polícia carrega o fardo de manter a ordem e a segurança interna sob controle (MARENIN,
1996). No controle da ordem e no alcance da segurança tão almejados pelas sociedades latinoamericanas acometidas pela criminalidade e diversos tipos de agressões, a violência é um
recurso legitimado nos discursos e nas práticas de políticos, governantes, cidadãos e policiais.
24
Por isso, a discussão da violência policial – seja a legalizada praticada no autoritarismo,
seja a tolerada na democracia – é assunto que atravessa a política. Na análise dos regimes
autoritário e democrático é possível encontrar finalidades ou omissões políticas na violência
policial, sobretudo quando operados de maneira particularizada para benefício de grupos
específicos. Em termos de policiamento, o que o Estado faz ou deixa de fazer é parte da política.
Se ele promove ações policiais violentas ou caso se omita de fiscalizar os crimes de policiais,
existem intenções políticas. Afinal, como argumenta Giddnes (2008): o policiamento nos
Estados modernos nunca pode ser uma questão meramente “técnica” de administração.
A gramática política da polícia observada a partir dos regimes aduz que novos arranjos
político-institucionais não eliminam imediatamente velhas estruturas socioculturais, bem como
novos discursos não geram necessariamente novas práticas. Afinal, o estudo do papel das
polícias do Brasil e do Chile corrobora a hipótese de Bayley (1971), para quem as características
dos sistemas policiais contemporâneos, como, por exemplo, suas estruturas, formas de controle e
imagens mudam lentamente. Isso fica expresso ao se confrontar as polícias com as dimensões:
como elas são organizadas, como são controladas, como se comportam. A despeito da mudança
política, velhas rotinas autoritárias persistem nas instituições policiais brasileiras e chilenas. Há
um hibridismo institucional, no qual coexistem práticas autoritárias numa estrutura legalmente
democrática, o que confirma os limites do processo de democratização.23
Ao pensar as polícias no regime democrático, o questionamento que transpassa todas
essa discussão é se os enclaves autoritários, a perspectiva de uma polícia pouco democrática e
não accountable, o enfrentamento militarista do crime, a violência institucional do Estado, não
passam de simples constrangimentos ou incômodos que os democratas precisam erradicar de
alguma maneira. É oportuno notar que as instituições de mando, por exemplo, as polícias, têm
suas próprias histórias, dinâmicas e interesses, separadas de tal ou qual regime político. Assim, o
desafio não é tanto a erradicação de enc1aves autoritários remanescentes, mas a articulação de
uma estrutura institucional mais permanente que concorde com os princípios democráticos
(POLICZER,1998). Neste sentido, não existem mudanças expressivas nas polícias brasileiras e
chilenas, mas continuísmos.
De todo forma, apesar dos paradoxos das polícias brasileiras e chilenas, na democracia,
vale frisar que elas já não são instituições exclusivamente do regime. O papel da polícia é cada
vez mais complexo. Hoje não competem às polícias apenas as funções de uso legítimo da força
23
Vide os trabalhos de Zaverucha (2000, 2005, 2008), que desenvolve a ideia de hibridismo institucional.
25
física em situações extremas, vigilância, investigação, realização de prisões. Embora repletas de
contradições, elas estão assumindo local privilegiado no desenho das políticas de segurança
pública. A polícia influencia a política de diferentes maneiras, mas é particularmente pela
prevenção do crime e violência que ela se destaca (KALMANOWIECKI, 1995). No caso do
Brasil e do Chile – onde a insegurança, segundo dados Barômetro das América de 2010,
preocupa respectivamente 38,2% e 40,76% da população 24 – as polícias são instituições
ativamente políticas.
A democratização lança desafios às polícias brasileiras e chilenas, mas nem todas elas
veem uniformemente a urgência de redefinições de seu papel, isto é, de reformas em seus
aspectos institucionais, organizacionais, culturais. Nesse caso, é preciso ampliar os horizontes na
temática das reformas policiais, pois elas não são somente ajustes estruturais nas políticas de
segurança pública e nas organizações policiais, elas são questões políticas que interferem
inclusive na profundidade do regime político. Afinal, toda reforma policial é política no sentido
que afeta a posição de interesses de diferentes grupos no interior e exterior da polícia (BAYLEY,
2001).
Na nova ordem democrática do Brasil e Chile, portanto, é necessário à classe política e às
instâncias de comando das polícias refletirem sobre as políticas públicas para enfrentamento de
maneira eficaz da criminalidade, diminuição dos altos índices de violência e transformação das
polícias em instituições democráticas e cidadãs. Esta gramática, no entanto, ainda está por ser
escrita.
24
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Democracia no Brasil: uma visão da cidadania / Lúcio Rennó, Amy E. Smith, Mattheu L. Lloyd e Frederico Batista Pereira. –
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