A violência policial como teste às políticas de segurança pública
Luís Antônio Francisco de Souza
Débora Cristiane de Almeida Borges
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SOUZA, LAF., org. Políticas de segurança pública no estado de São Paulo: situações e perspectivas
a partir das pesquisas do Observatório de Segurança Pública da UNESP [online]. São Paulo: Editora
UNESP; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2009. 219 p. ISBN 978-85-7983-019-8. Available from
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A VIOLÊNCIA POLICIAL COMO TESTE ÀS
POLÍTICAS DE SEGURANÇA PÚBLICA
Luís Antônio Francisco de Souza1
Débora Cristiane de Almeida Borges2
Introdução
A discussão sobre a consolidação da democracia no Brasil atinge
um ponto crítico quando o assunto volta-se para a polícia e policiamento. A Constituição Federal do Brasil colocou a segurança pública
como direito do cidadão e dever do Estado. Também colocou ênfase
especial nas instituições policiais para a manutenção da ordem e da
segurança públicas. Mas as deficiências das polícias saltam evidentemente aos olhos de qualquer cidadão e, para tornar o problema mais
sério, a ineficiência é acompanhada de perto da violência policial e
do uso de métodos considerados ilegais na investigação criminal.
No Brasil, apenas recentemente começaram a surgir pesquisas
acadêmicas enfocando problemas do funcionamento das instituições
jurídico-policiais. Até metade da década de 1970, pouquíssimos pesquisadores da área de sociologia se aventuravam a desbravar o campo
das práticas policiais. Há várias razões para que isso ocorresse. Uma
delas, sem dúvida, era que o interesse dos sociólogos estava voltado
1 Professor-assistente doutor em Sociologia na Unesp, campus de Marília. Coordenador científico do Observatório de Segurança Pública.
2 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, Unesp, Marília
e pesquisadora do OSP.
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LUÍS ANTÔNIO FRANCISCO DE SOUZA
mais diretamente para as estruturas institucionais que tinham aberto
papel de repressão dentro da ditadura militar, iniciada com o golpe de
1964 e encerrada em 1985, com a eleição indireta de Tancredo Neves
à presidência da República. Portanto, os pesquisadores estavam mais
interessados em desvendar o papel que setores do Exército brasileiro
desempenhavam na manutenção da ditadura e o papel que órgãos
como o Departamento de Ordem Política e Social, DOPS, tinham
na repressão, ameaças e tortura de supostos dissidentes políticos. Por
outro lado, as polícias militares, sobretudo as Rondas Ostensivas
Tobias de Aguiar, ROTA, criadas com amplo mandato para combater as guerrilhas urbanas, enquanto instituições repressivas, não
estavam abertas para pesquisadores. Enfim, antes dos anos 80, não
havia clima institucional nem intelectual que motivasse o surgimento
de pesquisas sociológicas sobre a ação das polícias.
Com o processo de redemocratização em curso – sobretudo após
a promulgação da Constituição Federal, em 1988 – um novo quadro
institucional passou a ser construído. Contudo, as polícias pareciam
pouco afeitas a incorporarem as mudanças exigidas pela nova ordem
constitucional que procurava colocar os discursos dos direitos como
base de sustentação do edifício democrático. A aparente inconsistência entre os preceitos e garantias constitucionais e a prática pouco
transparente das polícias, provocou um considerável aumento de
interesse no estudo das instituições policiais. Na imprensa brasileira,
eram comuns os relatos a respeito da violência policial e do envolvimento de policiais com o crime organizado e com a corrupção.
Duas explicações apareciam frequentemente para dar conta das
denúncias veiculadas pela imprensa. Os representantes do governo
e da polícia afirmavam que a violência policial decorria do aumento
da violência do crime da formação inadequada dos policiais. Em
geral, os atos ilícitos cometidos pela polícia eram reputados a apenas
uma ínfima parcela dos policiais. Os pesquisadores afirmavam que
a violência e a corrupção decorriam do legado do regime militar, do
entulho autoritário.
É certo, de qualquer forma, que a queda da ditadura militar e a
volta da democracia coincidiam com um período extremamente tenso
POLÍTICAS DE SEGURANÇA PÚBLICA NO ESTADO DE SÃO PAULO
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da história brasileira. Já em finais da década de 1970, vivíamos um
período de profunda recessão econômica, cujos principais reflexos
eram o desemprego, a miséria urbana e rural, o processo inflacionário,
o aumento da dívida externa e constantes arrochos provocados nos
salários dos trabalhadores. Cada vez mais, o processo de repressão
política, de censura à imprensa e de suspensão de direitos políticos
deu espaço para a redemocratização.
Mas os problemas sociais criados ao longo de anos de desigualdade econômica e de corrupção política, característicos da ditadura,
foram se agravando. O recém-implantado regime democrático tinha,
portanto, em sua agenda, resolver os problemas legados pelo regime
militar. Mas a democracia não havia aparelhado as polícias para
cumprir seu papel dentro de um quadro de crise econômica e de
garantias constitucionais ampliadas. As polícias, que deveriam ser
a porta de entrada do sistema de justiça criminal, acabaram sendo
um dos fatores que contribuíam para o aumento das tensões sociais.
A violência policial no Brasil
A violência no Brasil possui graus acentuados de institucionalização, seja porque decorre frequentemente dos agentes públicos, seja
porque está incrustada nas várias esferas do poder público, seja por
se apoiar na complacência e na omissão do Estado.
A violação aos direitos humanos, no Brasil, é demonstrada principalmente pela violência oficial que se apresenta nas formas de tortura,
detenção arbitrária, bem como no ato de impunidade do comportamento policial arbitrário. “Os assassinatos extrajudiciais são chocantemente comuns, inclusive o assassinato de meninos de rua por policiais fora de serviço e a repressão aos trabalhadores rurais em luta por
terra e por direitos trabalhistas no Nordeste” (Pinheiro, 1997, p.44).
Para o autor, os mais afetados pela violência arbitrária são os
desempregados e os marginalizados que tanto aparecem como vítimas da violência policial como de crimes comuns contra a vida e a
propriedade.
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LUÍS ANTÔNIO FRANCISCO DE SOUZA
Almeida (2004), por sua vez, vai considerar que a relação entre
pobreza e criminalidade é equivocada, porque a violência encontra,
anteriormente, um quadro de extremas desigualdades produzidas
e processadas no conjunto contraditório das relações sociais fundamentais. Ou seja, o Brasil apresenta desigualdades estruturais que
imbricam as condições de classe, de gênero e as raciais, de forma
que as classes subalternas além de sofrerem a violência diária das
desigualdades sociais são atingidas por práticas de extermínio e de
execução sumária.
Dessa forma, para Almeida, não há consistência dos elementos
analíticos que estabelecem a conexão entre a criminalidade e a pobreza urbana. Há um contexto geral violento se isola e se focaliza a
realidade das áreas pobres (favelas e periferias), o que dá crédito a
hipótese dessa associação.
Além disso, conforme a autora, uma das dinâmicas fundamentais é a oposição trabalhador x bandido, que vinculada à concepção
presente no senso comum sobre as ameaçadoras classes perigosas,
constroem e atualizam a visão de uma aliança exclusiva entre os
habitantes das periferias e o narcotráfico. Por outro lado, a justiça
criminal no Brasil tem caráter altamente classista basta analisar os
censos penitenciários para verificar que os segmentos das classes
subalternas constituem quase a totalidade da população carcerária.
Tal associação ideológica posiciona as classes subalternas em
torno de comportamentos de discriminação e repressão, enquanto a
criminalidade que vitima as classes média e mais abastadas é a que
ganha maior visibilidade nos meios de comunicação, que gera protestos e mobiliza os formuladores e gestores de políticas de segurança
pública, favorecendo a naturalização da vinculação reducionista e
simplista entre pobreza e criminalidade (Almeida, 2004).
As forças policiais militarizadas do Brasil, que surgiram sobre os
governos militares, estão entre as mais assassinas do mundo. Sendo
que os crimes praticados por policiais militares podem decorrer de
ação isolada ou mesmo de grupos de extermínio.
Nos últimos vinte anos, o debate sobre as mortes ocorridas em
ações da Polícia Militar foi pautado pela tese da persistência do
POLÍTICAS DE SEGURANÇA PÚBLICA NO ESTADO DE SÃO PAULO
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autoritarismo, pela impunidade proporcionada pela Justiça Militar,
pela suposta legitimação das ações violentas da polícia por parte do
público e pela necessidade de julgamento dos policiais considerados
violentos. Nos anos 90, houve considerável esforço para que o julgamento dos policiais da justiça militar para a justiça comum.
Em 1995, de fato, os homicídios cometidos por policiais militares
passaram à jurisdição da justiça comum. O indiciamento e a investigação desses crimes passaram a ser divididos entre a corregedoria
da polícia militar e o delegado de polícia. Os homicídios praticados
por policiais militares em serviço ou em que há utilização de arma
da PM são apurados tanto pela Polícia Civil quanto pela Militar. Os
inquéritos da Polícia Civil são distribuídos às Varas Criminais, mas
os inquéritos da Polícia Militar, por versarem especificamente sobre
o homicídio, são distribuídos à Justiça Militar que os remete às Varas
do Júri caso haja indícios de crime doloso contra a vida (Mesquita
Neto, 1999).
Não obstante, a Corregedoria Militar classifica esses crimes como
“resistência seguida de morte” e não como homicídios. Essa tipificação não encontra correlação no Código Penal Brasileiro. Olhando
mais de perto, a “resistência seguida de morte”, segundo a lógica
processual, implica três delitos: o fato gerador da ação policial; a
resistência à prisão e o homicídio cometido pelo policial. Durante
a instrução do inquérito, as provas não são coletadas de forma
independente e a conduta do policial não acaba sendo investigada.
Na verdade, a investigação e as peças probatórias apontam sistematicamente para a culpabilidade do criminoso morto. O Ministério
Público, que no Brasil tem o papel de zelar pelo interesse público e
pela regularidade processual, em geral, tem se posicionado: a) pelo
arquivamento dos autos em função da morte do agente, b) denúncia
dos criminosos que sobrevivem à ação policial; c) requerimento
de remessa da cópia dos autos à Vara do Júri, para apreciação do
homicídio. Segundo a lei brasileira, os homicídios dolosos devem
ser distribuídos às varas do Júri. Contudo, as resistências seguidas
de morte são distribuídas às varas criminais comuns, ferindo o preceito legal. Dados da Ouvidoria de Polícia do estado de São Paulo
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LUÍS ANTÔNIO FRANCISCO DE SOUZA
mostram que, em média, apenas metade dos homicídios envolvendo
policiais chega às Varas do Júri. Desses três quartos são arquivados,
alegando-se a tese da “legítima defesa” ou do “estrito cumprimento
de dever legal”.
A violência letal da polícia de São Paulo está abaixo do número
recorde de 1.421, no ano de 1992. Mesmo assim, os índices sofreram
forte crescimento no ano de 2000, quando foram mortos 837 indivíduos em ações policiais. Em 2007, foram contabilizadas 444 mortes.
Não obstante, a análise da violência policial não deve se deter a esses
números. Por exemplo, a violência policial está ligada ao aumento
das mortes violentas nas periferias e nas regiões metropolitanas das
principais capitais do Brasil, já que policiais têm participação em
grupos de extermínio, de execução sumária ou de milícias. As chacinas em São Paulo vêm crescendo. Foram registradas 34 chacinas,
contabilizando um total de 134 mortes, em 1994. Entre maio de
2006 (quando ocorreu o pico de mortes no rastro da reação contra
os ataques do PCC) até dezembro de 2007, a Ouvidoria de Polícia
registrou 166 ações classificadas como execução sumária ou chacina,
que vitimaram 355 pessoas em todo o estado. O problema da persistência da violência na sociedade brasileira contemporânea provoca
perplexidade, na medida em que o País viveu nos últimos anos uma
relativa estabilidade econômica que não foi seguida necessariamente
pela paz social.3 Além disso, é notório o uso constante e excessivo
da força física nas operações de despejo de sem-teto e de sem-terra,
bem como no policiamento de choque em manifestações e greves
(Mendonça, 2008).
Enquanto a violência policial continua sendo um problema de
difícil solução no Brasil contemporâneo, as elites da segurança pública
continuam afirmando a necessidade de ampliar o sistema policial para
3 O Brasil ocupa o 70º lugar no ranking mundial do IDH, apresentando um índice
de 0,800, que é considerado alto pelo PNUD. O país apresenta melhoria constante em seus indicadores sociais desde o ano de 1975. As regiões metropolitanas
mais violentas do Brasil não podem ser consideradas as mais pobres. Recife,
Vitória; Rio de Janeiro e São Paulo apresentam indicadores sociais considerados
satisfatórios se comparados a outras regiões do País.
POLÍTICAS DE SEGURANÇA PÚBLICA NO ESTADO DE SÃO PAULO
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uma repressão qualificada da criminalidade. Mas é exatamente em
relação ao crime que as polícias têm sua eficácia e seu sucesso mais
questionados. Os índices de solução de crimes são muito baixos. Os
recursos cada vez maiores dirigidos para a implementação de táticas
para a prevenção eficaz do crime também oferecem resultados insatisfatórios. Os estudiosos sobre o assunto não chegaram a nenhum
consenso quanto à capacidade das polícias em controlar e, muito menos, em diminuir a ocorrência de crimes. Mais ainda, não há nenhuma
prova de que o investimento em tecnologia tenha sido o principal
responsável pela diminuição da violência policial ou da redução das
taxas de criminalidade atualmente experimentada nas principais
cidades norte-americanas (Bayley, 1994; 1998; Brodeur, 1994).
A polícia do estado de São Paulo tem apresentado altas taxas de
prisões. Mesmo assim, as taxas de criminalidade continuam altas,
exceção aos casos de homicídios. A polícia parece ineficaz na contenção dos chamados crimes contra o patrimônio. O resultado dessas
medidas de detenção é que o sistema penitenciário do Estado passou
a sofrer com a superpopulação. O estado de São Paulo conta com
144 presídios e a construção de mais 60 unidades já está prevista em
orçamento. O mesmo raciocínio está valendo para as unidades de
detenção de jovens em conflito com a lei. Além do uso excessivo de
medidas de encarceramento, na instituição ainda vigora situação de
ilegalidade que marca as relações (agressões, drogas e acertos) entre
os funcionários e os adolescentes.
Das pesquisas realizadas até o presente momento, é possível indicar algumas conclusões principais: 1) É muito difícil coletar dados
sobre as ocorrências policiais envolvendo morte, sobretudo os procedimentos de investigação; 2) Há evidente, e estranha, desproporção
entre pessoas mortas e feridas, em decorrência da ação policial;
3) É baixo o índice de perícias realizadas nos locais dos incidentes;
4) É baixo o índice de recolhimento das armas de fogo utilizadas
nos eventos; 5) É baixo o índice de perícias realizadas nessas armas;
6) Na maioria dos casos, não há testemunhas que não sejam policiais;
7) A maioria das mortes de não policiais ocorreu em hospitais; 8) Não
houve uma adequada preservação do local do crime; 9) A maioria das
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mortes de policiais ocorreu nas folgas; 10) É evidente a desproporção
entre não policiais e policiais mortos.4
Violência policial: entre a punição e o controle
O debate sobre as mortes ocorridas em ações da polícia militar
tem sido direcionado para a mudança do julgamento dos policiais da
justiça militar para a justiça comum (Mesquita Neto, 1999). Mas a
mudança não foi suficiente. Estudos realizados pela Ouvidoria das
polícias de São Paulo têm demonstrado que a prática da corregedoria
militar em classificar esses crimes como “resistência seguida de morte”, além de já conter uma avaliação prévia que inocenta o policial,
tem provocado erros de distribuição dos processos no poder judiciário. Esse tipo “resistência seguida de morte” não existe no Código
Penal Brasileiro, e ele consiste, na verdade, em dois tipos penais,
homicídio e resistência. Segundo a lógica processual, portanto, três
delitos deveriam ser objeto de processo: o crime gerador da ação
policial; a resistência à prisão e o homicídio cometido pelo policial.
Além dos problemas relativos à distribuição, não são produzidas,
durante a fase do inquérito, provas sobre a conduta do policial.
Mesmo quando são anexados laudos, o que nem sempre ocorre, eles
são peças probatórias extremamente frágeis.
A Ouvidoria observou que o Ministério Público não tem posição
definida quanto ao problema. Em geral, os promotores posicionam-se
a) pelo arquivamento dos autos em função da morte do agente e não
aprecia o fato morte em si; b) os criminosos que sobrevivem são de-
4 A partir da publicação da pesquisa, a principal medida adotada pela Secretaria
de Segurança Pública foi a constituição de uma Comissão Especial para a Redução de Letalidade em Ações Envolvendo Policiais. A Comissão, composta por
representantes da Secretaria, das Polícias, da Ouvidoria e da Sociedade Civil,
iniciou seus trabalhos neste ano de 2001, e tem como finalidade, em síntese, a
formulação de políticas de redução da letalidade nas ações policiais. A questão
da accountability também entrou no cenário das propostas de reforma policial
no País (Fórum Nacional de Ouvidores de Polícia, 2000).
POLÍTICAS DE SEGURANÇA PÚBLICA NO ESTADO DE SÃO PAULO
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nunciados, mas não há apreciação do homicídio; c) o arquivamento
dos autos em decorrência da morte do agente, com requerimento de
remessa da cópia dos autos à Vara do Júri, para apreciação do homicídio. Mas esse último caso parece ser exceção à regra. Enquanto
os homicídios dolosos devem ser distribuídos às varas do Júri, as
resistências seguidas de morte parecem estar sendo distribuídas às
varas criminais comuns.
A Ouvidoria identificou que 85% dos casos de mortes em ações
policiais foram arquivados. A tese de “legítima defesa” ou “estrito
cumprimento de dever legal” aparece como regra quase absoluta. Do
total de processos abertos, 45% não chegaram a ser apreciados pelo
Ministério Público e pelo Poder Judiciário. Dos inquéritos instaurados pela Polícia Civil, apenas 50,8% chegam à fase da instrução e
desse total, 44,4% são arquivados (www.ouvidoria-policia.sp.gov.br).
E a punição de policiais ainda passa pelo critério hierárquico.
Por exemplo, em matéria da Folha de S. Paulo, de 20/4/2007, com
o título “Corregedoria pune menos os coronéis”, aponta-se que das denúncias recebidas pela Ouvidoria, entre 1998 e 2006, e encaminhadas
para a Corregedoria da Polícia Militar, menos de 1% dos coronéis
foi punido. A situação não é diversa na Polícia Civil. Conforme
dados divulgados na mesma matéria, a despeito do número alto
de denúncias dirigidas contra delegados de polícia, apenas 2,95%
delas são convertidas em punição efetiva. As punições, quando
ocorrem, são mais requentes entre os cargos menos prestigiosos da
instituição.
Em São Paulo, outras formas de controle foram tentadas. Foi o
caso do Proar (Programa de Acompanhamento de Policiais Militares Envolvidos em Ocorrências de Alto Risco), que foi pensado
após a morte dos 111 detentos da Casa de detenção do Carandiru e
implantado em 1995. O programa não poderia ser pensado apenas
como um apoio para policiais que se envolveram em circunstâncias
traumáticas. Também como uma forma de controle da violência
policial e dos altos índices de letalidade em ações policiais. Até
1999, o programa havia atendido 2.884 policiais militares, sendo
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LUÍS ANTÔNIO FRANCISCO DE SOUZA
que a maioria era de baixa patente. Nos anos de 1997 e 1998 foram
incluídos no programa caso de insubordinação e ocorrências com
lesão corporal, além de ocorrências com disparo de arma de fogo,
aumentando consideravelmente o número de PMs no programa.
A Ouvidoria de São Paulo tem reiterado sugestões para a redução
da letalidade em ações policiais: 1) Observância do disposto na Resolução SSP-21, de 11/4/90, da OS nº PM3-005/2/99 e da OS nº
PM3-025/02/01, que proíbem a utilização de armas de fogo contra
veículos em movimento e determinam a realização de “cercos” e de
negociações para a rendição de suspeitos; 2) Observância ao art. 6º
do Código de Processo Penal e à Resolução SSP-382, de 01/9/99,
que regulamentam a preservação dos locais de crime com imposição
de rigorosas punições quando de seu descumprimento; 3) Redução
da discricionariedade do policial nas ações que envolvam conflito
armado, mediante a padronização de procedimentos específicos;
4) Disponibilização de novos tipos de arma e equipamento que
possibilitem o uso da força apropriada para diferentes situações;
5) Implementação de métodos de treinamento e instrução de tiro
que habilitem os policiais a atuar armados em defesa da sociedade
com redução na quantidade de resultados letais; 6) Implementação de rigorosos mecanismos de controle das armas adquiridas,
portadas e utilizadas por policiais, entre outros (Ouvidoria de Polícia, 2000).
Políticas sobre o uso da força no Brasil
Para mudar esse quadro, é preciso que as polícias brasileiras adotem políticas sobre o uso da força e, particularmente, sobre o uso da
força letal. Recentemente, foi o que ocorreu no estado do Rio Grande
do Sul. Além de estabelecerem regras precisas quanto à necessidade
do uso e quanto ao uso seguro da arma de fogo (a segurança de terceiros, do próprio policial e do criminoso deve ser garantida), o governo
do estado também definiu que o policial deve fazer saber ao criminoso
POLÍTICAS DE SEGURANÇA PÚBLICA NO ESTADO DE SÃO PAULO
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que está armado. Essas regras foram elaboradas em consonância com
os princípios sobre o uso da força da ONU.5
Tanto em SP quanto no RJ, aos policiais é permitido o uso de
pelo menos uma arma pessoal em serviço; nem sempre essa arma
é registrada e nem sempre ela é apresentada para perícias quando a
situação exige. Não há controle sobre munições e os próprios policiais
compram a munição de que precisam. Portanto, não há como verificar
o número real de disparos por parte do policial em uma situação real
de confronto armado. Tanto em SP quanto no RJ, os policiais estão
morrendo mais em folga do que em serviço. A preocupação com a
letalidade decorrente das ações regulares de policiamento é muito
recente, no Brasil. Ela data de, pelo menos, dez anos. Mas, somente
agora, as mortes de civis e policiais passaram a ser entendidas como
sendo um problema de gerenciamento e de qualidade do serviço
prestado pela polícia e, assim, tendo de ser compreendidas, diagnosticadas e minimizadas, através de políticas públicas específicas.6
Essas políticas devem procurar aprimorar o uso da força e reduzir
o nível do uso excessivo da força para estabelecer princípios para uma
Política de Redução da Letalidade que envolve, segundo a experiência
internacional, estabelecer princípios gerais para uma Política de Uso
da Força em ações da polícia. A primeira iniciativa para a elaboração
dessa política seria a elaboração de conceitos capazes de articular a
coleta de dados sobre uso da força, o monitoramento permanente do
uso da força e os princípios que orientam as ações da polícia.
5
No estado de São Paulo, houve uma iniciativa nesta direção. Em 2002, a Secretaria de Segurança Pública criou uma comissão específica para a análise da
letalidade nas ações policiais e para a elaboração de políticas específicas para a
redução desta letalidade, que incluía entre outras ações, a definição de critérios
sobre o uso da força. Nos últimos anos, entretanto, essa comissão foi desmantelada e o acesso aos dados sobre letalidade foi dificultado.
6 Essa realidade vem sendo mudada nos EUA desde o famoso caso de Frank
Sérpico (Chevigny, 1991); mas não é possível minimizar o impacto dos casos
de Rodney King, Amadou Diallo e Adner Louima (Skolnick & Fyfe, 1993).
No Brasil, convivemos com uma polícia altamente violenta desde o período da
ditadura militar, mas apenas no final da década de 1990 é que começaram a ser
feitos estudos mais sérios no sentido de dimensionar o problema e apontar para
mecanismos de controle (Cano, 1997; 1998; Mesquita Neto, 1999).
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LUÍS ANTÔNIO FRANCISCO DE SOUZA
A literatura especializada tem afirmado que o uso da força é o
principal instrumento de ação da polícia. Alguns poucos estudos
se debruçaram, no início dos anos 70, nos Estados Unidos, sobre o
problema específico do uso da força letal, por policiais. No entanto,
esses estudos não faziam uma distinção clara entre o uso da força letal
e a brutalidade policial. A partir de 1980, principalmente, algumas
pesquisas foram realizadas sobre incidentes envolvendo disparo
de tiros e uso próprio ou impróprio da força letal, a maioria delas
foi realizada nos Estados Unidos e apenas uma no Canadá. Nos
demais países, as pesquisas sobre letalidade não foram realizadas
independentemente de outras pesquisas sobre poder discricionário
da polícia, sobre racismo ou sobre corrupção, como na Inglaterra,
França, África do Sul e Austrália.7
Todas as pesquisas constataram que a maioria dos departamentos
de polícia estava apenas começando a fazer o registro das ocorrências
sobre uso da força excessiva e sobre o envolvimento repetido de policiais com incidentes de tiro, o que prejudicava qualquer iniciativa
de prevenção. Após quase duas décadas de pesquisas, começou a ser
consenso, entre especialistas e membros do staff policial a necessidade
de criação de um sistema de registro de disparo de armas pela polícia.
Em 1992, o Procurador Geral de Justiça de New Jersey estatuiu que
“Todos os policiais devem ser obrigados a relatar e todas as agências
de polícia devem coletar informações sobre incidentes envolvendo uso
da força”. Os pesquisadores, então, passaram a apontar a necessidade
da coleta desses dados e sua disponibilidade, em nível nacional, e a especificar quais dados deveriam ser coletados, tratados e monitorados.
Essas pesquisas e iniciativas, bem como as solicitações de pesquisadores e de agências policiais, resultaram no Crime Act de 1994.
A partir daí, apontou-se não somente a necessidade da existência
de informações sobre força letal, mas também dados sobre o uso da
força em geral, para comparações, monitoramento, conhecimento e
implementação de políticas de uso de força não letal.
7 É o caso da pesquisa pioneira, realizada por solicitação das autoridades americanas (Milton et al., 1977). É preciso, no entanto, lembrar que há autores que
já pensam que a informação, e não a força, é o que caracteriza o poder de polícia
(Ericson & Haggerty, 1997).
POLÍTICAS DE SEGURANÇA PÚBLICA NO ESTADO DE SÃO PAULO
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Os diferentes relatórios produzidos nos EUA revelam que a ausência de uma sólida política de uso da força por parte das polícias
tem sido responsável pelo uso excessivo da força. Particularmente,
o relatório da Comissão Independente sobre o Departamento de
Polícia de Los Angeles, de 1991, concluiu que “os policiais que
usam excessivamente a força tendem a usar a força excessiva.” Por
causa dessas avaliações, os autores estão afirmando a necessidade de
implantar uma clara política de uso da força. E de fato, ao longo dos
anos 90, na administração Clinton, várias iniciativas foram feitas no
sentido da implementação de políticas consistentes de controle do
uso da força, de disseminação de técnicas não letais e em conexão
com a implantação de sistemas de informação sobre o uso da força.
Essa política, mesmo na era Bush foi se expandindo e hoje é conhecida como a política do continuum da força. Em outros termos, essa
política prevê a disseminação de armas não letais (armas de impacto:
bastões e lanternas; armas químicas: spray de pimenta; armas elétricas; armas lançadoras de diferentes projéteis não letais; uso de cães
etc.) como meio necessário para tornar o uso da arma de fogo raro e
controlado (Brown & Langan, 2001; Skolnick & Fyfe, 1993).
No Brasil, afora a ampla campanha nacional voltada para a aprovação do Estatuto do Desarmamento e para a redução do número de
armas leves nas mãos de não policiais, quase nada vem sendo feito
para a implantação de uma política nacional sobre o uso da força nas
instituições policiais. É bem verdade que, por meio do Ministério da
Justiça, houve um estímulo à formação de equipes de gerenciamento
de crises nas polícias do País. Entretanto, o tema do uso da arma de
fogo continua sendo considerado tabu e as consequências disso são
visíveis pelo nível alto de uso da arma de fogo nas situações mais
diversas, com consequências problemáticas.
Conclusão
As pesquisas recentes têm mostrado a falência do sistema policial
tal qual existe no Brasil. As experiências internacionais também
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LUÍS ANTÔNIO FRANCISCO DE SOUZA
apresentam problemas parecidos com que deparamos no Brasil.
De todas as experiências conhecidas, sabe-se, hoje, que são duas
as tendências de mudança em termos de policiamento. A) Polícia
Comunitária; B) Controle Civil sobre o trabalho policial. Em grande
parte, no estado de São Paulo, já podemos contar com experiências
que caminham nessa direção.
A polícia comunitária é um tipo de policiamento que implica
uma mudança radical a respeito do que conhecemos como polícia.
Em primeiro lugar, o referencial muda da proteção do Estado, para
a proteção ao cidadão; em segundo, o policiamento visa auxiliar a
comunidade no sentido de resolver seus problemas com segurança,
trabalhando em conjunto com a população e em caráter preventivo;
em terceiro, diminuição radical do uso da força física, sobretudo armas de fogo: a polícia deve procurar resolver os conflitos de
forma pacífica, sendo o uso da força um último e grave recurso. O
policial que usar arma deve fazer relatório completo do ocorrido e,
independentemente disso, passa por um processo de investigação;
em quarto, os policiais passam a ser formados principalmente em
cursos superiores e exige-se deles vasto conhecimento, sobretudo
em áreas ligadas à psicologia e sociologia; a formação policial é mais
rígida, bem como as exigências profissionais, o que corresponde a um
salário digno e todas as garantias profissionais que qualquer cidadão
merece ter; em quinto, o mandato da polícia muda, deixando de ser
exclusivamente de combate ao crime, passando a ser de resolução de
problemas junto à comunidade.
O controle civil significa fazer que o trabalho policial, sobretudo
nas áreas de investigação, ganhe transparência. Na medida em que
um órgão independente passe a investigar as denúncias de abusos
e corrupção dentro das polícias, mais policiais são punidos e mais
a população passa a confiar na instituição. Em São Paulo, temos o
exemplo da Ouvidoria de Polícia, criada em 1996, que tem prestado
importante serviço à democracia, na medida em que impede que os
policiais executem suas atividades sem que haja controle e interesse
popular. É uma experiência importante e que deve ser mantida e
aprimorada no futuro.
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