Via Campesina: um projeto contra-hegemônico? Flávia Braga Vieira∗ Resumo: Este artigo discute a Via Campesina, um processo atual de articulação internacional popular. A Via Campesina surgiu e se desenvolveu em contraponto ao avanço das formas de produção capitalista para a agricultura em nível mundial nas últimas décadas. Esta articulação ganhou centralidade nas lutas anti-globalização, pois, para além das questões específicas da agricultura, as organizações-membro da Via Campesina enfrentam os organismos internacionais capitalistas e defendem um projeto alternativo que se materializa na proposta da soberania alimentar. A partir de entrevistas feitas com dirigentes e da análise de documentos e bibliografia, este trabalho apresenta a experiência de construção da Via Campesina e seu projeto contra-hegemônico. Palavras-chave: globalização; movimentos sociais; campesinato. Via Campesina: a counter-hegemonic project? Abstract: This article discusses Via Campesina, a contemporary process of international popular articulation. Via Campesina had emerged and developed in response to the recent advance of capitalist forms of production of agriculture at global level. This articulation achieved centrality in the struggles against globalization, cause it goes beyond specific issues of agriculture and its member-organizations confront international capitalist institutions and claim for an alternative project, so-called food sovereignty. Based in interviews of leaderships of the movement and analysis of documents and bibliography, this article presents the experience of construction of Via Campesina and its counterhegemonic project. Key words: globalization; social movements; peasantry. Introdução O presente trabalho se insere nas discussões acerca do que nas ciências sociais convencionou-se chamar de “globalização”, analisando um processo atual, particular, de articulação internacional popular, a Via Campesina. A Via Campesina surge e se desenvolve em contraponto ao avanço das formas de produção capitalista para a agricultura em nível mundial, nas últimas décadas. Através da reformulação do conceito de campesinato, da elaboração de pautas que unem trabalhadores rurais dos mais diferentes tipos, da constituição de uma cultura política e uma identidade próprias, esta articulação ganhou centralidade nas lutas anti-globalização. Esta centralidade foi alcançada, pois, para além das questões específicas da agricultura, as organizaçõesmembro da Via Campesina enfrentam os organismos internacionais capitalistas e defendem um projeto alternativo que se materializa na proposta da soberania alimentar. ∗ Graduada em Ciências Sociais e Mestre em Sociologia e Antropologia pela UFRJ, doutoranda em Planejamento Urbano e Regional do IPPUR/UFRJ. End. eletrônico: [email protected] A partir de entrevistas feitas com dirigentes e da análise de documentos e bibliografia, este trabalho apresenta a experiência de construção da Via Campesina e seu projeto contrahegemônico. Um novo ator Diversos analistas indicam que, a partir dos anos 1980, teria ocorrido uma crescente internacionalização da agricultura. Segundo estas análises, a principal característica deste processo seria a concentração do sistema de produção de alimentos nas mãos de poucas empresas multinacionais que, ou gerem elas próprias a produção, ou sub-contratam agricultores, integrando-os todos ao mesmo sistema. Esta concentração não seria apenas na produção, mas também na distribuição dos produtos, acabando por homogeneizar até mesmo o consumo de alimentos no mundo. O processo se estenderia para a concentração de terras e seu resultado seria a expulsão de trabalhadores do campo ou o empobrecimento e total dependência dos pequenos agricultores em relação às grandes empresas capitalistas. Grande parte dos autores afirma que as mudanças no mundo rural estão incluídas, portanto, no formato recente do capitalismo, isto é, na chamada globalização neoliberal. Em resposta a esta nova tendência de expansão capitalista no campo, estaria ocorrendo um ressurgimento dos movimentos sociais em vários regiões do mundo: No último quartel do século XX, profundas mudanças sócio-econômicas e políticas foram implantadas no meio rural dos países da periferia. Sob o peso dos programas de ajuste estrutural, as populações rurais viram suas condições de vida deterioradas, levando a uma busca desesperada por alternativas econômicas e políticas (MOYO e YEROS, 2005, p. 1) Em decorrência das possibilidades de articulação, contato e intercâmbio que se desenvolveram no contexto da globalização, surgiu, então, uma organização internacional de camponeses: A Via Campesina. O surgimento e desenvolvimento de organizações camponesas em diversas partes do mundo e sua articulação em nível internacional são muitas vezes analisados como um processo novo e surpreendente, (...) Via Campesina se revelou como um ator principal nas lutas populares internacionais contra o neoliberalismo que, entre outras coisas, exigem responsabilidades das agências inter-governamentais, enfrentam e se opõem ao controle corporativo sobre os recursos naturais e a tecnologia, e defendem a soberania alimentar. Além disso, desempenhou um papel destacado em campanhas de grande polêmica política como, por exemplo, as dirigidas contra a OMC, contra os gigantes corporativos mundiais como o McDonalds, e contra os organismos geneticamente modificados (OGM) e as multinacionais que os fomentam, como a Monsanto. (BORRAS, 2004, p.3) Também os movimentos sociais que compõem a Via Campeisna identificam o novo formato de agricultura no mundo como o ponto de partida para o aparecimento de movimentos rurais que acabaram por construir esta articulação internacional. Segundo vários dirigentes, o próprio nome Via Campesina é uma tentativa de construir uma alternativa ao modelo dominante na agricultura. A percepção de que havia um modelo em curso, e de que este modelo era nocivo aos interesses dos trabalhadores rurais, levou à construção de uma proposta alternativa, de uma via, de um caminho diferenciado, A gente se colocou um grande desafio de constituir, de gerar uma via alternativa ao modelo neoliberal. E é por isso que se chama Via Campesina, não é a confederação, não é a união internacional, é esse processo em que nós estamos levando a cabo a construção de uma via alternativa, a partir dos camponeses, frente às políticas neoliberais (entrevista com Francisca Rodríguez de ANAMURI - Asociación Nacional de Mujeres Rurales e Indígenas do Chile, em 19/03/07). A idéia de uma organização mundial de camponeses surge, então, em abril de 1992 em Manágua (Nicarágua), quando vários líderes camponeses da América Central, América do Norte e Europa foram convidados para o congresso da Unión Nacional de Agricultores y Ganaderos (UNAG), Nós, na Europa, já tínhamos há alguns anos relações com variadas organizações européias porque era claro que deveríamos defender nossos valores e interesses frente às políticas de nossos países e também da União Européia. Entendíamos que as políticas agrárias vinham de dinâmicas muito mais globais. E partindo disso, percebíamos que fazia falta uma voz camponesa. (...) Então, a Coordenação Camponesa Européia (CPE) levou a esse encontro a idéia sobre a necessidade de uma voz camponesa global (entrevista com Paul Nicholson, da CPE, em 17/05/07). Estas primeiras articulações se consolidaram quando a Fundação Paulo Freire, uma ONG holandesa, organizou, em maio de 1993 em Mons (Bélgica), um encontro de 55 organizações camponesas de 36 países. A entidade anfitriã não havia planejado, contudo, que o encontro fosse posteriormente considerado a conferência de fundação de um movimento político. As formulações dos europeus, juntamente com o expressivo movimento de massas latino-americano criou e consolidou a Via Campesina, (...) nos encontramos lá porque eles pagaram a passagem de todo mundo. (...) os europeus tinham uma visão mais estratégica. Eles sacaram que era importante ter uma articulação internacional (...). Os europeus estavam bem articulados na comissão que eles tinham. E nós já estávamos articulados dentro da CLOC. Aí nós viramos a mesa e a entidade [organizadora] ficou puta da cara porque na verdade ela armou o circo e não pode comemorar (entrevista com João Pedro Stédile, do MST, em 19/12/07). Nem todos os dirigentes, contudo, concordam com a idéia de que o berço da Via Campesina seria compartilhado entre europeus e latino-americanos. Alguns afirmam que a Via Campesina só se consolidou, pois os movimentos latino-americanos alcançavam então um expressivo enraizamento nas bases e uma profunda articulação regional, Nos nossos encontros começaram a participar também os dirigentes da Europa. Os primeiros passos da Via Campesina foram dados na Nicarágua. Mas, te digo: surge pelo ambiente que se criou na América Latina. (...) Se não tivesse havido a Campanha dos 500 anos, se não tivéssemos mantido os movimentos, se não tivéssemos mantido a consciência política e de classe do movimento camponês na América Latina, a Via Campesina não existiria. (...) Mesmo que tenha se constituído em Mons, a Via Campesina tem raízes latino-americanas (entrevista com Francisca Rodríguez em 19/03/07). Mesmo o nome “Via Campesina”, ressalta seu caráter latino. Em todo o mundo o nome La Vía Campesina não é traduzido. As versões sobre os motivos desta opção são variadas, mas em geral indica-se que reflete a congregação das forças que criaram a Via Campesina em Mons e que, até hoje, são os movimentos mais fortes dentro da articulação, ou seja: latino-americanos e europeus do sul, Olha, tem um sentido. Na Europa, a maior parte dos movimentos camponeses que estava participando era latino. Mesmo em espanhol, os italianos entendiam, os franceses também, os espanhóis, claro! E da América Latina todo mundo, inclusive os brasileiros. (...) Eu não sei se não foi uma demagogiazinha dos europeus para ganhar todos nós. Mas, de qualquer maneira, a hegemonia era latina (entrevista com João Pedro Stédile em 19/12/07). A Via Campesina seguiu se encontrando e ampliando. Em abril de 1996 ocorreu a II Conferência da Via Campesina, em Tlaxcala (México), e estiveram presentes 69 organizações de 37 países. Na II Conferência foram discutidas as bases do que posteriormente viria a ser intitulado como conceito de “soberania alimentar”. Durante a Conferência ocorreu o massacre de 19 militantes do MST em Eldorado do Carajás (Pará-Brasil). A Via Campesina condenou os assassinatos e declarou que o 17 de abril seria celebrado anualmente para lembrar as vítimas da luta pela terra e este seria o Dia Internacional da Luta Camponesa. A III Conferência da Via Campesina foi realizada em Bangalore (Índia), em outubro de 2000. Contou com a participação de mais de 100 delegados de 40 países. Naquele momento, a proposta da soberania alimentar já estava avançada. Os debates se concentraram, então, nos desafios de construção da identidade da Via Campesina. Em Bangalore foi criada a palavra de ordem “globalizemos a luta, globalizemos a esperança!”, A palavra de ordem “globalizemos a luta, globalizemos a esperança!” foi da Conferência da Índia. A gente tinha essa compreensão de que era preciso aumentar a capacidade de luta, no sentido de resistir, não é? Assim, tinha que fazer a luta internacional, mundial. Mas tinha também o outro lado, que era a questão da esperança, a idéia do projeto alternativo. Então combinamos as duas coisas numa frase só (entrevista com Egídio Brunetto, do MST, em 23/03/07). A IV Conferência da Via Campesina ocorreu, em junho de 2004, na cidade de Itaici (São Paulo - Brasil), reunindo mais de 400 delegados de 76 países. Na Conferência de Itaici mais de 40 novas organizações camponesas se incorporaram à Via Campesina, e a África foi incorporada como uma oitava região1. A Conferência de Itaici, cujo comitê organizador estava sob responsabilidade do MST e de outros movimentos brasileiros da Via Campesina2, teve como principal característica a inclusão de linguagens e processos diferenciados de debate. A realização de “místicas”, comuns nos movimentos brasileiros, deu o tom do evento. Após a IV Conferência, a Via Campesina seguiu ampliando sua atuação e prepara-se para realizar em Moçambique, ainda no ano de 2008, a V Conferência Internacional, Estamos nos preparando para receber a V Conferência Internacional. Vai ser um momento político muito importante para o fortalecimento da Via Campesina na África e para a aproximação das organizações de camponeses africanas ao maior movimento de luta dos camponeses no mundo. Há bastante tempo existe uma intenção de fortalecer a Via no continente, mais ainda não houve ações concretas definidas (...). Esta vai ser a grande oportunidade (entrevista com Diamantino Nhampossa, da UNAC – União Nacional de Camponeses de Moçambique, em 25/07/2007). A Via Campesina se define como “um movimento internacional de camponeses e camponesas, pequenos e médios produtores, mulheres rurais, indígenas, sem terras, jovens rurais e trabalhadores agrícolas” (VIA CAMPESINA, 2007), que defende os valores e interesses de seus membros. Atualmente, reúne organizações de 56 países da Ásia, África, Europa e Américas. A Via Campesina se desafia a formular propostas em relação aos seguintes temas: reforma agrária, biodiversidade e recursos genéticos, soberania alimentar, direitos humanos, 1 Até a IV Conferência a Via Campesina tinha sete regiões: América do Norte, América do Sul, América Central, Caribe, Europa, Sul e Sudeste da Ásia, Sul da Ásia. 2 Participam da Via Campesina as seguintes organizações brasileiras: o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST, o Movimento dos Atingidos por Barragens - MAB, o Movimento dos Pequenos Agricultores – MPA, e o Movimento de Mulheres Camponesas – MMC. agricultura camponesa sustentável, migração e trabalhadores rurais, questão de gênero. Cada um dos temas trabalhados compõe uma Comissão Temática e as organizações membro devem participar de pelo menos uma destas comissões. A estrutura organizativa da Via Campesina é bastante simples. A Conferência é seu órgão máximo de decisão política e se reúne a cada 4 anos em países diferentes, de forma a cobrir as diferentes regiões do mundo. O Comitê Coordenador Internacional (CCI) é escolhido na Conferência e cada uma das 8 regiões tem um coordenador e uma coordenadora, sendo estes de organizações diferentes de forma a partilhar, entre pelo menos dois movimentos, a responsabilidade de articulação regional. Os escritórios regionais são responsáveis pelas relações e articulações dentro de cada região e é aí que se realiza a maior parte do trabalho da Via Campesina. A Secretaria Operativa Internacional coordena as comunicações e executa as resoluções das instâncias políticas, Fora das Conferências Internacionais o CCI é o organismo chave das decisões políticas e de coordenação da Via Campesina. Todas as decisões maiores são tomadas em consulta aos 16 membros. Em temas-chave o processo de consulta vai além do CCI, porque cada coordenador regional deve refletir as necessidades, concepções e decisões da sua própria região. É apenas através das extensas comunicações e consultas que os coordenadores regionais ganham autoridade para apresentar posições e resoluções ao CCI. Para as organizações da Via Campesina, as regiões são os pontos centrais de interseção entre as comunidades e as lutas nacionais e internacionais (DESMARAIS, 2007, p. 30). A Via Campesina tem acumulado algumas vitórias, tanto no que diz respeito ao fortalecimento e unificação das organizações-membro, como no embate com seus adversários mais diretos (OMC e demais organismos multilaterais). Em 1999, a Via Campesina participou da grande mobilização de Seattle, nos Estados Unidos, e contribuiu decisivamente para o desmantelamento da Conferência Ministerial da OMC. Em 2003, a Via Campesina organizou uma forte mobilização, com aproximadamente 10 mil camponeses, contra a Conferência Ministerial da OMC em Cancun, México. A exigência era a retirada da agricultura da pauta de debates da OMC. Ainda que este objetivo não tenha sido alcançado, a conferência também foi mal sucedida e, como a de Seattle, não chegou aos acordos esperados. Desta forma, a Via Campesina tem se apresentado internacionalmente como movimento de luta contra o neoliberalismo, compondo uma frente com os demais movimentos. Para levar a pauta agrícola ao movimento anti-globalização e enfrentar seus adversários a Via Campesina criou e tem insistido na idéia da “soberania alimentar”. Um novo projeto As construções da identidade interna e da imagem externa da Via Campesina têm sido marcadas pela noção de soberania alimentar. O conceito foi pela primeira vez divulgado na Conferência Mundial sobre Alimentação (Roma, 1996). Naquele momento, soberania alimentar era definida como “o direito de cada nação de manter e desenvolver sua própria capacidade de produzir alimentos básicos, respeitando a diversidade cultural e produtiva” (VIA CAMPESINA, 1996). Posteriormente o conceito foi ampliado e incluiu-se a idéia de que “os povos têm o direito de definir sua política agrícola e de alimentos” (VIA CAMPESINA, 2000). Assim, a noção deixou de estar referida apenas aos Estados nacionais e construiu-se uma idéia de soberania societária, comunitária ou, como dizem alguns dirigentes, cidadã. Isto não significa dizer que, para a Via Campesina, desaparecem os Estados, mas que, na política agrícola e de alimentos, esta não é a única unidade de medida, Soberania alimentar não é o nacionalismo do passado. O conceito de soberania alimentar é cidadão, partindo do que comemos, como comemos, quem produz, e quem controla estes alimentos. (...) nossa perspectiva é que a soberania alimentar é uma proposta principalmente dos povos, desde o local, e que, na medida em que conseguimos que governos comecem a compreender-lo e mudar de lógica, isto terá um impacto muito maior (entrevista com Paul Nicholson em 17/05/07). Segundo Desmarais (2007), o conceito de soberania alimentar surgiu em contraposição à idéia de segurança alimentar defendida pela FAO e por ONGs internacionais, segundo a qual deveria ser produzido em cada país uma quantidade suficiente de alimentos e esta alimentação básica deveria estar à disposição de todos os indivíduos. No conceito de soberania alimentar, igualmente importante é o tipo de alimentação que é produzida, como ela é produzida e em que escala. Assim, o conceito de soberania alimentar é um guarda-chuva que inclui a idéia de segurança alimentar, uma vez que discute também quantidades básicas de alimentos per capita, mas a transcende, pois debate as condições de produção, e as escolhas coletivas com relação à alimentação dos povos. Para a Via Campesina, soberania alimentar significa: O direito dos povos, comunidades, e países de definir suas próprias políticas sobre a agricultura, o trabalho, a pesca, a alimentação e a terra que sejam ecologicamente, socialmente, economicamente e culturalmente adequados às suas circunstâncias específicas. Isto inclui o direito a se alimentar e produzir seu alimento, o que significa que todas as pessoas têm o direito a uma alimentação saudável, rica e culturalmente apropriada, assim como, aos recursos de produção alimentar e à habilidade de sustentar a si mesmos e as suas sociedades (VIA CAMPESINA, 2002). A ênfase na alimentação dos povos, o que inclui a prioridade de alimentação da população dentro de cada país, entra em contradição com o mercado internacional de produtos agrícolas. Desta forma, mesmo que a noção de soberania advogada não seja restrita à idéia de soberania ligada ao Estado nação, ela coloca em cheque o modelo de agricultura hegemônico na contemporaneidade. Este modelo, como visto anteriormente, centraliza a produção de alimentos e produtos agrícolas nas mãos de empresas multinacionais e divide o mundo em áreas de cultivo de determinados produtos, homogeneizando a produção em cada parte do globo. Através do conceito de soberania alimentar, a Via Campesina propõe, então, o contrário do modelo dominante. A Via Campesina defende que a agricultura seja descentralizada através da produção, por cada população, de seus próprios alimentos, e diversificada, uma vez que os agricultores de cada país vão produzir a totalidade de seus produtos agrícolas. Há, assim, uma ênfase no combate ao comércio internacional de produtos agrícolas. Para a Via Campesina, a soberania alimentar passa também por um conceito amplo de reforma agrária que vai além da distribuição de terra, envolvendo uma mudança no sistema agrícola de forma a favorecer a pequena agricultura. Existem muitas diferenças entre as organizações da Via Campesina no que diz respeito ao modelo de reforma agrária. Estas diferenças baseiam-se nas distintas experiências das organizações e também no contexto histórico de relação com a terra e a propriedade. Alguns acordos, entretanto, têm sido alcançados em nível internacional, Um ponto em que concordamos, a nível internacional, é que precisamos ter um tipo de reforma agrária que possa democratizar a terra – tanto como base para a democracia política, quanto para construir uma agricultura de outro tipo. (...) a inspiração para a reforma agrária [no passado] era a idéia de que a terra pertencia a quem nela trabalhava. Hoje, precisamos ir além disso. (...) Nós queremos uma prática agrícola que transforme agricultores em guardiões da terra, e uma forma diferente de produzir que garanta equilíbrio ecológico e que a terra não seja vista como propriedade privada (STÉDILE, 2002, pp. 99-100). Para a Via Campesina, outro elemento indispensável para a soberania alimentar é o controle democrático dos recursos e do patrimônio genético. Por isso, desde a III Conferência Internacional, as organizações da Via Campesina declararam sua total recusa ao patenteamento das formas de vida. Segundo os documentos da Via Campesina, as sementes são um meio de produção básico e até recentemente estiveram nas mãos dos agricultores. As recentes iniciativas de patenteamento de plantas, animais e seus componentes teriam tirado o controle tradicional das mãos dos camponeses e indígenas, significando a imposição de novas formas de controle sobre as nações e os povos. Neste sentido, foi lançada na IV Conferência Internacional a campanha “Sementes: patrimônio dos povos a serviço da humanidade”. Desde então, a Campanha das Sementes vem tendo ampla divulgação, principalmente através dos coletivos de mulheres da Via Campesina. Segundo os documentos da Via Campesina, as mulheres camponesas, historicamente tiveram o papel de guardar as sementes e, exatamente por isso, as militantes da Via estariam liderando esta campanha. Desta forma, a proposta da soberania alimentar ganhou um papel importante de resgate de tradições e de saberes da cultura camponesa. A Campanha das Sementes e a liderança que desempenham as mulheres nas ações e eventos dela são apontadas como fundamentais. Além disso, o conceito de soberania alimentar inclui uma valorização do modo de vida camponês no que diz respeito à sua relação com a natureza e os alimentos. Esta valorização é bastante clara quando se define a visão a respeito da biodiversidade que, para a Via Campesina, também inclui a diversidade cultural, política e de produção, Cada região tem uma característica. Isso significa costumes, diversidades de paladar e também nutricional. Hoje o capitalismo impõe alguns alimentos que não são nutritivos. Essa nossa diversidade está ligada a sabores e a saberes. Então, temos que recuperar as técnicas tradicionais de produção dos alimentos saudáveis (entrevista com Egídio Brunetto, em 23/03/07). A biodiversidade tem uma base fundamental no reconhecimento da diversidade humana, na aceitação de que somos diferentes e que cada pessoa tem a liberdade de pensar e de ser. Vista desta forma, a biodiversidade não é apenas flora, fauna, terra, água e ecossistemas; é também cultura, sistemas de produção, relações humanas e econômicas, formas de governo: em essência, é liberdade (VIA CAMPESINA, 2000b). Segundo Desmarais (2007), o modelo alternativo da Via Campesina não é, portanto, uma rejeição da modernidade ou da tecnologia. É uma proposta que junta os aspectos tradicionais, locais, do saber camponês com o conhecimento da tecnologia onde e quando as populações considerarem apropriado. A Via Campesina procura um modelo que possa unir a ciência ao conhecimento tradicional e melhorar as condições de vida da população. Por trás da idéia de soberania alimentar está, então, um conflito de modelos de agricultura que alguns autores têm identificado como de “contra-hegemonia”. Esta é uma construção bastante sofisticada, pois apesar de muitos movimentos anti-globalização proclamarem a luta por “um outro mundo”, a maioria de suas pautas diz respeito às reformas do modelo dominante sem a proposição de um projeto alternativo. A Via Campesina é, assim, um novo ator nas lutas internacionais que articula seu projeto anti-hegemônico através do conceito de soberania alimentar. O que muitos autores questionam é se o campesinato poderia ser a classe social portadora da transformação, do movimento de contra-hegemonia. A seguir será analisado o conceito de campesinato construído pela Via Campesina. Um novo conceito de campesinato A explicação mais freqüente para a adoção do conceito de camponês pela Via Campesina é a idéia de que nesta palavra unificam-se todas as categorias de trabalhadores do campo. Neste sentido, apesar de existirem muitos tipos de trabalhadores, e em cada região as denominações são variadas, existiria uma unidade dada pelo trabalho na agricultura, De fato, é um debate muito grande para nós o conceito de camponês. Eu acho que na Via, e aqui no MST também, nós colocamos sempre o camponês, não num sentido acadêmico, mas no sentido de quem está no campo. Você pode ser um assalariado rural, ou um sem terra, mas o que importa é que sua participação no processo produtivo está no campo. (entrevista com Geraldo Fontes, do MST, em 24/09/07) Além disso, o camponês entendido como o trabalhador do campo é também uma maneira de construir uma identidade fora das denominações dos trabalhadores urbanos. O próprio nascimento da Via Campesina se dá no momento em que as formas históricas de organização dos trabalhadores estão em declínio. Assim, alguns dirigentes afirmam que a Via Campesina precisava construir uma nova identidade por conta da falência das experiências dos trabalhadores de outros setores, Apesar do golpe que sofriam os trabalhadores do mundo com a queda do socialismo, nós levantávamos bandeiras a partir dos camponeses. (...) Muitas de nossas organizações participavam dos setores rurais de algumas centrais sindicais mundiais, mas nos juntamos e rompemos as barreiras anteriores e criamos um movimento que se diferencia dos movimentos que havia nos sindicatos internacionais (...). Claro que existem matizes, mas não estamos parados nesta briga sobre se somos ou não camponeses. Eu creio que o que nos define é o trabalho na agricultura (entrevista com Francisca Rodríguez em 19/03/07). Outros dirigentes afirmam que a utilização da idéia de camponês é também um resgate das lutas camponesas. De alguma forma ao utilizar este conceito estariam acionando as experiências passadas nas quais os trabalhadores do campo fizeram parte das lutas mais amplas da sociedade, como no atual momento se faria necessário, No meu país, por exemplo, a luta pela libertação foi baseada nos camponeses, que apoiaram a Frente de Libertação de Moçambique. (...) E isto não apenas em Moçambique. Na maior parte do continente africano, nas frentes de libertação, estiveram os camponeses. Eu acho que o que acontece hoje é uma continuação do que ocorreu no passado (entrevista com Diamantino Nhampossa em 25/07/2007). Por fim, a utilização do conceito de campesinato é associada à construção de uma identidade de classe para os trabalhadores do campo. Esta identidade busca raízes nas conceituações do marxismo clássico mesmo que, de forma contraditória, este mesmo marxismo tenha dado tão pouco valor ao campesinato como agente da transformação social, Nós achamos mais correto usar “campesinato” porque recupera a questão de classe (...). Se é para ter um rótulo que tenha um que ajude a ideologizar o movimento. (...) O conceito de camponês é uma construção política e necessária. (...) E talvez uma das contribuições da Via Campesina seja recuperar os conceitos clássicos, do Marx, do Lênin, do Mao, e entender direito o que acontece. Assim como a Via Campesina está ajudando muito a recuperar o conceito clássico do imperialismo, saindo dessas coisas de neoliberalismo e globalização (entrevista com João Pedro Stédile em 19/12/07). Considerações finais A Via Campesina é uma articulação internacional de trabalhadores que constrói sua identidade em contraposição ao modelo dominante de agricultura, afirmando a economia, a cultura, os valores, os modos de vida do campesinato. Ao mesmo tempo, busca estabelecer relações com outros movimentos e organizações, pois entende o modelo agrícola como parte do formato mais geral do capitalismo mundial na contemporaneidade. A Via Campesina delineia um projeto de sociedade, materializado na proposta da soberania alimentar. Afirma que sua luta não é apenas reivindicativa ou corporativa, mas que contempla valores que extrapolam o ambiente rural no questionamento ao modelo dominante. O projeto de contra-hegemonia da Via Campesina envolve diferentes elementos. Por um lado, representa uma re-significação da própria idéia de soberania, a qual passa a ser baseada nos povos e não nos Estados nacionais e que inclui novas relações norte-sul no que diz respeito à produção e à comercialização dos produtos agrícolas. Este novo significado amplia também a noção de segurança alimentar, passando a englobar não apenas a quantidade de alimentos, mas a forma e a escala de produção dos mesmos. Por outro lado, a soberania alimentar representa a re-significação do tema da reforma agrária, não apenas compreendida como acesso à terra e modernização do campo, mas como democratização da terra – bem comum e patrimônio da humanidade – que não pode ser apropriado privadamente. Junto a isso, questiona-se também a propriedade de outros bens naturais como a água, os recursos genéticos e, em especial, as sementes. Por fim, o projeto defendido pela Via Campesina, valoriza os saberes tradicionais e culturais dos camponeses, mas não defende o retorno a algum ideal bucólico tantas vezes referido ao mundo camponês. Pelo contrário, afirma-se seu caráter de projeto que une visões políticas contemporâneas, e incorpora o debate sobre a tecnologia e as bases materiais da modernidade. Referências BORRAS, Saturnino. La Via Campesina: un movimiento en movimiento. Amsterdã: Transnational Institute, 2004. DESMARAIS, Annette. La Vía Campesina: globalization and the power of peasants. London: Pluto Press, 2007. MOYO, Sam; YEROS, Paris. Reclaiming the land: the resurgence of rural movements in Africa, Asia and Latin America. London: Zed Books, 2005. STÉDILE, João Pedro. Landless Battallions. New Left Review, nº 15, mai/jun, 2002. VIA CAMPESINA. La voz de los campesinos e de las campesinas del mundo. Folder de divulgação, julho de 2007. VIA CAMPESINA. 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