Artigo Original
Contaminantes químicos em águas
destinadas ao consumo humano no Brasil
Drinking water chemical contaminants in Brazil
Ana Marcela Di Dea Bergamasco1, Clarissa Sékula1, Mariely Helena Barbosa Daniel1,
Fernanda Barbosa Queiroz2, Adriana Rodrigues Cabral1
Resumo
A contaminação química da água destinada ao consumo humano foi, até recentemente, negligenciada no Brasil. No entanto,
grande quantidade e diversidade de substâncias nocivas são continuamente lançadas no ambiente, sem que se conheça
de forma satisfatória o perigo que representam à saúde. No sentido de preencher essas lacunas, o presente trabalho teve
como objetivo diagnosticar a condição das águas distribuídas à população a partir dos sistemas de abastecimento de
água (SAAs), por meio do levantamento de informações disponibilizadas no Sistema de Informações sobre Qualidade da
Água para Consumo Humano (SISAGUA). Detectou-se mercúrio por responsáveis pelo abastecimento em níveis acima do
permitido em SAAs de diversos Estados, ao contrário do que ocorreu com outros compostos inorgânicos e com a maioria
dos orgânicos. Por outro lado, os Trihalometanos (THMs) foram verificados em desacordo com o padrão estabelecido pela
Norma de Potabilidade (Portaria MS nº518/2004). Agrotóxicos também apareceram acima dos valores máximos permitidos.
Traçou-se um panorama preliminar da condição das águas para consumo humano, pois, no geral, o número de amostras
avaliadas foi reduzido, há deficiências no monitoramento das águas e no próprio sistema de informações que precisam ser
aprimorados. Mesmo diante deste quadro, as informações registradas no SISAGUA funcionaram como instrumento útil para
priorizar poluentes e regiões potencialmente mais afetadas, podendo nortear a tomada de decisão quanto a ações efetivas
para a melhoria da qualidade da água para consumo humano.
Palavras-chave: água doce; água potável; abastecimento de água; poluição da água; qualidade da água; monitoramento da água.
Abstract
Drinking water chemical contamination in Brazil was neglected for many years. However, a large amount of hazardous substances is constantly released in the environment and the threat that many of them represent to human health is unknown. In order
to fill this gap, the aim of this work was to evaluate the drinking water quality in Brazil based on the data registered in Drinking
Water Quality Information System (SISAGUA). Mercury could be detected above the tolerable daily intake by the responsible
for the water supply systems in drinking water around different States. Other inorganic and organic compounds could not be
detected in significant levels, with the exception of the disinfection byproduct Trihalometane (THM), the most frequent pollutant,
being present in high levels in drinking water from the supply systems; pesticides were also regularly observed. The information
available on SISAGUA was useful to make only a preliminary estimation of the drinking water quality in Brazil due to the fact that
the number of water samples analyzed was too small, the monitoring program and the information system need improvement
and the water suppliers are not prepared to provide all the information required by the regulations related to this subject. Still,
the SISAGUA was useful to indicate the priorities concerning the most important contaminants in drinking water to which the
population is potentially exposed and the areas where they are possibly more common.
Keywords: fresh water; potable water; water supply; potable water; water pollution; water quality; water monitoring. Trabalho realizado na Coordenação Geral de Vigilância em Saúde Ambiental (CGVAM); Departamento de Vigilância em Saúde Ambiental e Saúde do
Trabalhador (DSAST); Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS); Ministério da Saúde – Brasília (DF), Brasil.
1
Consultora Técnica do Programa de Vigilância em Saúde Ambiental Relacionada à Qualidade da Água para Consumo Humano (VIGIAGUA); Departamento de
Vigilância em Saúde Ambiental e Saúde do Trabalhador (DASAST) da Coordenação Geral de Vigilância em Saúde Ambiental (CGVAM); Ministério da Saúde
– Brasília (DF), Brasil.
2
Técnica Especializada do VIGIAGUA; DASAST da CGVAM; Ministério da Saúde – Brasília (DF), Brasil.
Endereço para correspondência: Ana Marcela Di Dea Bergamasco – Setor Comercial Sul – Quadra 04 – Bloco A – Edifício Principal – 6º andar – CEP: 70304-000 –
Brasília (DF), Brasil – E-mail: [email protected]
Fonte de financiamento: nenhuma.
Conflito de interesse: nada a declarar.
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Ana Marcela Di Dea Bergamasco, Clarissa Sékula, Mariely Helena Barbosa Daniel, Fernanda Barbosa Queiroz, Adriana Rodrigues Cabral
INTRODUÇÃO
O Brasil é privilegiado em termos de disponibilidade hídrica
superficial. A vazão média dos rios brasileiros atinge 179.000 m3
(12% de toda a água doce superficial do mundo), sem incluir as
provenientes de território estrangeiro1. No entanto, a distribuição desse recurso é extremamente desigual no espaço. A região
Amazônica, com 8% da população, apresenta em torno de 74%
do total de água doce superficial do país. Além disso, uma parcela
significativa da água doce não é apropriada para abastecimento
público e destina-se a múltiplos usos, o que compromete a qualidade e quantidade disponível para consumo humano2.
De acordo com o Sistema Nacional de Informações sobre
Saneamento (SNIS), entre 2004 e 2008 aproximadamente 89%
da população urbana do país tinha acesso a alguma forma de
abastecimento de água. Entretanto esta taxa é bastante diferente
entre os Estados, e menor entre a população rural. Os piores
índices concentram-se na região Norte e no semiárido nordestino, onde, em média, 75% da população urbana é atendida
e, em algumas localidades, esse percentual é inferior a 40%.
Sudeste, Sul e Centro-Oeste têm perfil semelhante ao de países
desenvolvidos; neles, a cobertura de abastecimento de água
chega a suprir 95 a 98% da população urbana1,3. Estas informações dizem respeito a uma avaliação aproximada e quantitativa
e não ponderam que em grande parte dos sistemas de abastecimento (SAAs) não se realiza qualquer tratamento da água
antes de distribuí-la. Dos sistemas registrados no SISAGUA,
em aproximadamente 21% não se realiza tratamento antes da
distribuição. Portanto, não é possível saber se a água que chega
aos consumidores está de acordo com o padrão de potabilidade
vigente (Portaria MS nº518/2004)4.
Com relação ao esgotamento sanitário, o cenário é bastante
distinto. A maior parte das redes coletoras de esgotos se localiza
nas grandes cidades e capitais e atendem, no máximo, 74% da
população, especialmente em São Paulo. Nos outros Estados,
sobretudo do Norte e Nordeste, em média 20% da população
urbana tem acesso à rede coletora, condição que é agravada
considerando que a maior parte do esgoto (53%) não sofre
tratamento e é lançado in natura no ambiente. Em torno de
60% dos resíduos sólidos gerados, mesmo quando coletados,
vão para lixões, áreas alagadas e aterros sem estrutura adequada para recebê-los, podendo atingir mananciais, poços, outras
áreas de captação de água e a água destinada ao consumo3.
Informações relacionadas às fontes de poluição da água,
ao diagnóstico da situação dos corpos hídricos e ao abastecimento público ainda são insuficientes no país. Muitos Estados
não contam com redes de monitoramento, o que inviabiliza o
desenvolvimento de programas e projetos efetivos no combate
e prevenção da poluição e de seus efeitos nocivos à saúde. No
intuito de preencher tais lacunas, o Ministério da Saúde (MS)
480 Cad. Saúde Colet., 2011, Rio de Janeiro, 19 (4): 479-86
realiza e fomenta estudos relacionados à contaminação das
águas destinadas ao consumo humano.
Uma das ferramentas que permite traçar um panorama
das condições de abastecimento de água e acompanhar sua
evolução é o Programa Nacional de Vigilância em Saúde Ambiental Relacionada à Qualidade da Água para Consumo Humano (VIGIAGUA), cujo foco é o desenvolvimento de ações
de monitoramento, fiscalização e melhoria da qualidade da
água que garantam à população acesso à água em quantidade
suficiente e qualidade compatível com o padrão de potabilidade estabelecido na legislação5.
O Sistema de Informações sobre a Qualidade da Água para
Consumo Humano (SISAGUA) é um importante instrumento
do processo. Nele são registradas de forma padronizada informações referentes à qualidade da água distribuída à população
pelos responsáveis pelos sistemas e outras formas de abastecimento (atividade denominada controle) e aquelas geradas pela
ação da Vigilância em Saúde Ambiental. Os níveis de contaminantes químicos devem ser examinados e notificados às Secretarias Municipais de Saúde ao menos uma vez por semestre5.
Historicamente, sempre foi dada mais atenção aos parâmetros microbiológicos da água, tendo em vista a grande incidência de doenças infecciosas de veiculação hídrica no Brasil.
Ocorre que a contaminação química é problema crescente em
todas as localidades, e o conhecimento sobre ocorrência de
poluentes nas águas para consumo é baixo frente à realidade
de degradação do ambiente. As informações existentes são
frequentemente negligenciadas, dando-se prioridade aos indicadores de presença dos organismos patogênicos. Usualmente,
a comunidade científica se restringe a pesquisar casos pontuais
de poluição em situações específicas, como desastres de grande
abrangência, com base em métodos e premissas distintos entre
si, não possibilitando avaliação integrada dos resultados.
Os impactos na saúde causados pela contaminação química
são de difícil avaliação, uma vez que muitos elementos interferentes podem inviabilizar a identificação dos fatores determinantes das enfermidades associadas à toxicidade dessas substâncias. Muitos dos efeitos são crônicos, o que representa outro
obstáculo para que se defina a relação causa-efeito, isto é, se a
origem da doença é o consumo de água. É de suma importância
aprofundar o conhecimento sobre essa classe de contaminantes
na água destinada ao consumo, de modo que se compreenda a
real ameaça que representam à saúde da população.
Para incluir ou excluir determinados parâmetros da Norma de Potabilidade, é necessário avaliar a probabilidade de
sua ocorrência no ambiente (consumo, dinâmica ambiental,
eficiência de tratamento para sua remoção), periculosidade,
inclusão em normas internacionais e ocorrência nas águas
superficiais e para consumo humano.
Contaminantes químicos em águas destinadas ao consumo humano
Conforme as normas brasileiras de potabilidade foram
sendo revistas, desde a primeira Portaria de 1977, grande número de substâncias nocivas foi incluído, seguindo o avanço
da indústria na produção de compostos orgânicos, agrotóxicos
e produtos de desinfecção6. Foram inseridos 13 contaminantes orgânicos, dez agrotóxicos e seis produtos secundários de
desinfecção4,7,8. A Tabela 1 apresenta os parâmetros químicos
constantes na Norma de Potabilidade atual4.
Diante do contexto apresentado, este trabalho teve como
objetivo diagnosticar o nível de poluição química de águas
distribuídas a partir de SAAs para consumo humano no
Brasil e subsidiar ações para melhoria da condição das águas
destinadas ao abastecimento.
MATERIAL E MÉTODOS
A análise foi baseada em levantamento de informações
disponibilizadas no SISAGUA sobre o controle e vigilância de
qualidade da água para consumo humano, com relação aos
contaminantes químicos em amostras avaliadas em SAAs ao
longo do ano de 2010. As autoridades de saúde responsáveis
pela vigilância da qualidade da água para consumo humano
nos municípios alimentam o sistema preenchendo os formulários online, nos quais é obrigatória a inclusão dos parâmetros mínimos e atendimento ao planejamento amostral
determinado pela própria vigilância.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Mercúrio (Hg)
Embora o número de municípios com SAAs cadastrados
no SISAGUA seja crescente, saltando de 2.953 em 2007 apara
4.883 em 2010, as análises de contaminantes químicos ainda são
incipientes. Os dados de qualidade da água fornecidos pelos responsáveis pelos SAAs revelam que há ampla discrepância entre a
quantidade de amostras obrigatórias e a que é efetivamente avaliada. No período de janeiro a dezembro de 2010, 13.555 SAAs
estavam cadastrados no SISAGUA, porém somente 17,4% do
total de amostras registradas foram analisadas para pelo menos
um contaminante químico. Do total, 45,6% não apresentavam
informações sobre as concentrações de Hg, único poluente medido pelas autoridades responsáveis por realizar a vigilância da
qualidade da água para consumo humano.
O mercúrio foi selecionado pela vigilância devido à presença recorrente em águas superficiais brasileiras, principalmente em regiões de garimpo nos Estados do Norte e em mananciais que recebem efluentes industriais no Sudeste9-11. Ele
é bioacumulável e neurotóxico na forma de metilmercúrio,
acarretando danos irreversíveis ao sistema nervoso central12.
Os responsáveis pelos SAAs dos Estados do Acre (AC), Alagoas (AL), Amazonas (AM), Amapá (AP), Distrito Federal (DF),
Maranhão (MA), Paraíba (PB) e Rondônia (RO) não informaram às autoridades da saúde quanto aos níveis de Hg nas águas
Tabela 1. Parâmetros químicos da norma de potabilidade (Portaria MS 518/2004)
Inorgânicos
Antimônio
Arsênio
Bário
Cádmio
Cianeto
Chumbo
Cobre
Cromo
Fluoreto
Mercúrio
Nitrato (como N)
Nitrito (como N)
Selênio
Orgânicos
Acrilamida
Benzeno
Benzo[a]pireno
Cloreto de Vinila
1,2 Dicloroetano
1,1 Dicloroeteno
Diclorometano
Estireno
Tetracloreto de Carbono
Tetracloroeteno
Triclorobenzenos
Tricloroeteno
Classe dos compostos
Produtos de secundários de desinfecção
Bromato
Clorito
Cloro livre
Monocloroamina
2,4,6 Triclorofenol
Trihalometanos Totais
Agrotóxicos
Alaclor
Aldrin e Dieldrin
Atrazina
Bentazona
Clordano (isômeros)
2,4 D
DDT (isômeros)
Endossulfan
Endrin
Glifosato
Heptacloro e Heptacloro epóxido
Hexaclorobenzeno
Lindano (g-BHC)
Metolacloro
Metoxicloro
Molinato
Pendimetalina
Pentaclorofenol
Permetrina
Propanil
Simazina
Trifluralina
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Ana Marcela Di Dea Bergamasco, Clarissa Sékula, Mariely Helena Barbosa Daniel, Fernanda Barbosa Queiroz, Adriana Rodrigues Cabral
Contaminantes orgânicos e inorgânicos
Para outros parâmetros inorgânicos e orgânicos, o nível de
adequação das amostras dos SAAs de todos os Estados foi alto,
ultrapassando 90%. Antimônio, Cádmio, Cianeto, Chumbo,
Cromo, Nitrato, Selênio, Cloreto de Vinila, 1,2-Dicloroetano,
1,1-Dicloroeteno, Tetracloreto de Carbono, Bromato, Clorito, Monocloroamina, 2,4,6-Triclorofenol e Trihalometanos
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(THMs) estiveram acima do VMP em pelo menos uma amostra. Outra vez, mesmo dentro do VMP, foram detectados Cádmio (no CE, SP e GO), Cromo, Antimônio, Nitrato, Bromato
(no RJ), Clorito e Monocloroaminas (em MG e PR).
O Chumbo merece atenção especial devido aos seus
comprovados efeitos adversos no sistema nervoso central
(SNC), como doença de Alzheimer, deterioração do sistema
reprodutivo e aumento da incidência de abortos. O Cádmio
também tem grande importância em termos de saúde pública, podendo afetar a massa óssea, levar à insuficiência renal e
problemas reprodutivos e no desenvolvimento dos embriões,
todos agravados pela exposição prolongada. O consumo de
água contendo cromo hexavalente pode resultar em reações
alérgicas, úlceras, redução de respostas do sistema imune,
câncer e outras alterações do material genético13.
Arsênio, Bário, Cobre, Nitrito, Acrilamdida, Benzeno,
Benzo[a]pireno, 1,2-Dicloroetano, Estireno, Triclorobenzenos e Tricloroeteno não foram detectados. Nesse caso,
também se deve considerar o reduzido número de amostras
efetivamente avaliadas, somente possibilitando que se analisasse qualitativamente os dados do SISAGUA. Não se pode
descartar a hipótese de que os compostos não detectados
estavam presentes.
A classe de substâncias mais frequentes foi a dos THMs. Goiás apresentou maior número de amostras com THMs acima do
VMP – 88% estavam em desacordo com o padrão. No CE e SE
50%, em MG 35%, em SP e PR em torno de 12%, e na BA 7,5%.
No ES, MT, PE, RJ, RN, RS e TO nenhuma amostra avaliada
ficou acima do VMP. Em alguns desses Estados, os resultados
negativos não foram conclusivos devido ao reduzido universo
amostral. Em RO, PB, AL, AM e DF não havia informações
sobre os níveis desse produto de desinfecção na água (Figura 1).
Também não existiam dados da vigilância para o parâmetro.
A ocorrência de THMs e outros produtos de cloração
é problema preocupante e a descoberta de seus efeitos
nocivos é relativamente recente. Sua formação se deve, em
parte, à prática da pré-cloração em águas com elevada con-
100
90
80
70
60
50
40
30
20
10
0
Porcentagem de Amostras
Fora do Padrão
que distribuem e/ou não analisaram os parâmetros químicos. A
vigilância também não tem conseguido fazer avaliação satisfatória desses compostos. No mesmo ano, foi realizada vigilância
do mercúrio em 3,4% do total de amostras obrigatórias para o
controle; todas apresentaram concentração dentro do padrão de
potabilidade. Com relação aos resultados das análises de água
feitas pelos prestadores de serviço, 24,1% das amostras de Tocantins (TO) apresentaram teor de Hg acima do Valor Máximo
Permitido (VMP) na legislação. Em São Paulo (SP) esse índice
foi 3%, e em Minas Gerais (MG) 1%.
Na Bahia (BA), Ceará (CE), Espírito Santo (ES), Goiás
(GO), Mato Grosso (MT), Mato Grosso do Sul (MS), Pará
(PA), Pernambuco (PE), Piauí (PI), Paraná (PR), Rio de Janeiro (RJ), Rio Grande do Norte (RN), Roraima (RO), Rio
Grande do Sul (RS), Santa Catarina (SC) e Sergipe (SE) todas
as amostras estavam dentro do VMP para Hg.
Para muitos Estados, não foi possível concluir se a qualidade da água distribuída é de fato adequada, uma vez que há
número reduzido de amostras efetivamente analisadas. Nessa
situação destacam-se CE, RN e SE.
De acordo com a regulamentação, os limites de detecção
(LD) dos métodos analíticos devem ser necessariamente inferiores aos VMPs dos compostos, de modo que se possa verificar
se a concentração do poluente atende aos requisitos preconizados pela Norma e se garanta que a água fornecida não oferece
risco à saúde. Quanto menor o LD e o limite de quantificação
(LQ) da técnica, isto é, a menor concentração possível de ser
mensurada –, maior a capacidade de detectar um poluente e,
portanto, melhor a capacidade de monitoramento. Sendo assim,
quando determinada substância é encontrada acima do limite
de detecção, sua concentração deve ser registrada no SISAGUA.
Esta informação é importante uma vez que, ainda que abaixo
do valor máximo permitido, se um poluente é detectado no
ambiente, alguma medida de prevenção deve ser tomada.
Na maioria dos relatórios de controle, em 2010 não foi
notificada a quantidade exata de substâncias detectadas,
tendo sido indicado somente que encontrava-se abaixo do
VMP. Se o responsável pelo SAA não informar corretamente
a vigilância sobre o nível em que um poluente ocorre, as ações
preventivas não serão tomadas, o que acarretará consequências para a população.
BA CE ES GOMG MS MT PE PR RJ RN RS SC SE SP TO
Figura 1. Porcentagem de amostras fora do padrão para os Estados
em que foi feita quantificação de Trihalometanos (THMs) em água para
consumo humano em Sistemas de Abastecimento de Água (SAAs)
Contaminantes químicos em águas destinadas ao consumo humano
centração de cianobactérias. A matéria orgânica de outras
origens na água bruta clorada também pode gerar esses
subprodutos na água tratada14,15. Quanto maior o tempo de
contato da água contendo matéria orgânica com o cloro,
maior quantidade de THM é formada. Consequentemente,
ao longo da rede de distribuição há mais probabilidade das
concentrações de produtos de desinfecção serem maiores
que na saída do tratamento, local em que a maioria das
amostras de água são coletadas pelo controle16.
Os subprodutos de desinfecção (DBPs) são comprovadamente cancerígenos (como Clorofórmio e Bromodicloroetano) e mutagênicos (3-cloro-4-(diclometil)-5-hidroxi-2(5H)furanona)16-18. Os DBPs podem igualmente causar danos ao
desenvolvimento e reprodução, não só na biota como em
humanos18.
A absorção gastrintestinal após ingestão é o principal
fator de risco associado à exposição aos THMs. A inalação e
absorção pela pele (por serem voláteis e lipossolúveis) são vias
de exposição que também devem ser consideradas18. Alguns
THMs comumente detectados em águas de abastecimento
são: Triclorometano ou clorofórmio (CHCl3); Bromodiclorometano (CHBrCl2); Dibromoclorometano (CHBr2Cl); e
Tribromometano ou bromofórmio (CHBr3)19,20. Em outras
localidades, já se identificou em torno de 600 diferentes DBPs
na água21. Atualmente, a norma brasileira só indica que devem ser medidos os teores de THMs total, mas há pesquisas
que advertem sobre a importância das diferentes formas dos
DBPs para a saúde da população22.
Existem algumas alternativas para regulamentar estes
compostos, o que levaria à obrigatoriedade dos prestadores de
serviço avaliarem a presença de cada um nas águas, garantindo
que técnicas de tratamento eficientes na sua remoção fossem
adotadas. Nas legislações relacionadas à potabilidade da água
e qualidade de águas brutas, é possível adotar como um dos
requisitos para atendimento aos padrões a realização de ensaios toxicológicos. Essa prática pode indicar a presença de
compostos e misturas prejudiciais à saúde, sem que sejam necessariamente identificados, o que torna o monitoramento de
qualidade da água menos oneroso. A inclusão desse parâmetro
poderia auxiliar no controle de substâncias tóxicas, inclusive
dos produtos de desinfecção23.
Indicadores biológicos e bioensaios são ferramentas
cada vez mais empregadas para estimar riscos associados à
poluição da água. O biomonitoramento pode complementar
a avaliação química da contaminação, auxiliando o estabelecimento de fatores de incerteza com base em extrapolações e
definição dos padrões ambientais e de potabilidade24.
O relatório da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental (ABES) de 2010 indica que “A Agência
Ambiental norte-americana (United States Environmental
Protection Agency – USEPA), além dos THMs, fixa o teor
máximo de AHA5 (ácido monocloroacético, ácido dicloroacético, ácido tricloroacético, ácido bromoacético, ácido
dibromoacético) em 60 μg/L”. O grupo recomendou adotar
no Brasil o mesmo valor máximo da USEPA para os AHA5,
seguindo o princípio da precaução. Sabe-se que tanto os
THMs quanto os AHA5 são parâmetros sazonais e a média
móvel dos 12 meses anteriores permitiria melhor análise da
tendência deste parâmetro ao invés dos resultados mês a mês.
No documento, a sugestão é de que se aplique esse critério
para THMs e AHA515.
Agrotóxicos
Em termos de concentração de agrotóxicos, a concordância com a Norma ficou acima de 82% considerando a média
de todas as amostras realizadas no país. A Tabela 2 exibe informações do controle com relação à detecção e incidência de
agrotóxicos na água distribuída por SAAs. O herbicida 2,4D
só foi encontrado em amostras do Estado do Tocantins.
Todas as amostras da vigilância com dados de agrotóxicos
estavam de acordo com o padrão para os agrotóxicos contemplados na Portaria MS nº 518/2004. A discrepância entre
informações do controle e vigilância deve-se ao fato de que a
vigilância analisa poucas amostras em relação ao controle.
A distribuição de ocorrência dos pesticidas nos SAAs não
é homogênea no território: enquanto há Estados com 100%
de amostras em conformidade, outros apresentam teores
desses compostos recorrentemente fora do VMP. Há que se
Tabela 2. Lista de agrotóxicos encontrados em águas destinadas a
consumo humano no Brasil pelo controle e distribuídas a partir de
Sistemas de Abastecimento de Água (SAAs)
Agrotóxicos
mais comuns
Aldrin e Dieldrin
Clordano e Isômeros
Endrin
Heptacloro
Heptaclorohepóxido
Agrotóxicos
detectados
Aldicarbe
Atrazina
DDT
Glifosato
Hexaclorobenzeno
Lindano
Pendimentalina
2,4 D
Agrotóxicos não
detectados
Alaclor
Bentazona
Endossulfan
Lindano
Metolacloro
Metoxicloro
Molinato
Pentaclorofenol
Permetrina
Propanil
Simazina
Trifuralina
A primeira coluna se refere aos agrotóxicos mais comuns, a segunda aos
detectados em ao menos uma amostra – em ambos os casos há ocorrência
acima do Valor Máximo Permitido (VMP) – e a terceira diz respeito aos
compostos não detectados em nenhuma amostra de nenhum Estado que
realizou controle em 2010
Cad. Saúde Colet., 2011, Rio de Janeiro, 19 (4): 479-86 483
Ana Marcela Di Dea Bergamasco, Clarissa Sékula, Mariely Helena Barbosa Daniel, Fernanda Barbosa Queiroz, Adriana Rodrigues Cabral
10
9
8
Porcentagem %
7
6
5
4
3
2
1
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Figura 2. Porcentagem de amostras no Brasil fora do padrão de potabilidade para agrotóxicos presentes na Portaria MS 518/2004 com base
nas informações do controle ao longo de 2010
considerar também que nem todas as regiões fazem controle
de agrotóxicos e passaram pela vigilância.
As regiões Norte e Nordeste apresentaram poucos dados
e em alguns Estados não há nenhum registro sobre presença
de agrotóxicos nas águas consumidas. Não foi feito controle
nem vigilância de agrotóxicos em SAAs no AC, AL, AP, AM,
DF, MA, PA, PB, PI, RN, RO e RR. As demais localidades das
regiões Sudeste, Sul e Centro-Oeste apresentaram informações do controle sobre agrotóxicos de ao menos uma amostra.
BA e SE tiveram 100% de conformidade de suas amostras de
água com o padrão da Norma tanto no controle quanto para
a vigilância (Figura 2).
Os maiores níveis de Aldrin e Dieldrin nas águas tratadas
ocorreram no ES, TO e GO. Os parâmetros também estiveram
fora do padrão em amostras da maioria dos Estados.
Clordano e seus isômeros foram detectados em níveis
acima do VMP em amostras de todos os Estados que realizaram controle, com exceção de BA e SE, No entanto, o
número de amostras por Estado em desconformidade foi
baixo. Endrin também foi detectado acima do padrão, especialmente em ES, MG e SP. Em MG, ES, SC, SP e TO até
60% das amostras estavam em desacordo com o padrão para
Heptacloro (Figura 2).
Todos os pesticidas encontrados afetam a saúde humana
quando em concentrações maiores que as permitidas. Aldrin
e Dieldrin são organoclorados sintéticos que podem levar
484 Cad. Saúde Colet., 2011, Rio de Janeiro, 19 (4): 479-86
à tontura, náusea, vômito, tremor muscular e convulsões,
quando a exposição é aguda, e a câncer hepático e biliar como
resultado da intoxicação crônica25. Já o Clordano causa danos
ao sistema gastrointestinal e afeta as funções neurológicas.
A exposição prolongada foi associada à maior incidência de
linfoma, mieloma e leucemia26. Endrin também induz ao funcionamento anômalo do SNC e afeta a formação dos ossos.
Estudos com relação a seus aspectos carcinogênicos foram
inconclusivos27. Heptacloro é irritante para olhos e pele. A
ingestão leva ao aumento de ocorrência de câncer na bexiga e,
embora não haja informações para seres humanos, é carcinogênico para outros animais superiores28.
Além dos encontrados no SISAGUA e já incluídos na
norma de potabilidade, alguns agrotóxicos considerados
prioritários no Brasil são: Ametrina, Clomazona, Hexazinona, Picloram, Sulfentrazona, Tebutiurom, Aldicarbe, Carbofurano, Clorpirifós, Diquate, Azinfos-metílico e Paraquate15.
Esses compostos merecem atenção especial por serem ou terem sido amplamente utilizados, apresentarem características
químicas e físicas que propiciam sua ocorrência em água e/ou
já terem sido detectados em águas brasileiras.
O Instituto Nacional de Meio Ambiente e Recursos
Naturais Renováveis (IBAMA) divulgou em 2010 uma lista
com os principais agrotóxicos comercializados no Brasil
ao longo do ano de 2009. Existe evidente relação entre a
presença no ambiente e intensidade de uso dos produtos no
Contaminantes químicos em águas destinadas ao consumo humano
país. As classes de compostos mais vendidas são herbicidas,
fungicidas e inseticidas; principalmente Glifosato, Cipermetrina, Óleo mineral, Óleo vegetal, Enxofre, 2,4-D, Atrazina,
Metamidofós, Acefato e Carbendazim. Merece destaque a
ampla distribuição de Glifosato no Estado do Rio de Janeiro,
seguido do Amapá e Rio Grande do Sul, bem como a compra
de Cipermetrina e Enxofre no Estado de São Paulo29.
O arcabouço legal que trata de padrões de qualidade de
água deve conter parâmetros relevantes para a saúde pública,
consequentemente os indícios de presença em água e comercialização indiscriminada de agrotóxicos no país mostram
que a população está exposta e são elementos que devem ser
aproveitados para subsidiar posteriores revisões da legislação
aplicada à potabilidade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os Estados do Sudeste apresentaram o maior número de
amostras de água para consumo humano com contaminantes
químicos acima dos VMPs, especialmente agrotóxicos. Isso
pode ser explicado pelo fato de a região ter apresentado maior
volume de dados e não necessariamente maior grau de poluição em relação às outras regiões.
As regiões Norte e Nordeste são as mais deficientes no
que se refere a volume e qualidade dos dados fornecidos ao
SISAGUA. Para avaliar as causas e desenvolver atividades
corretivas quanto às ações do controle, é necessária ampliação da atuação da vigilância em termos de infraestrutura de
laboratórios, treinamentos e capacitações junto aos técnicos
da área da saúde dos Estados e Municípios. Uma alternativa é
aumentar a abrangência das atividades online, de menor custo e que já vêm sendo realizadas no âmbito do VIGIAGUA,
como videoconferências e cursos para profissionais.
É importante voltar mais atenção para as soluções alternativas coletivas e individuais de abastecimento com relação
à avaliação da qualidade da água distribuída. Essas formas
são justamente as que apresentam maior dificuldade para a
realização do controle da qualidade da água, cabendo à vigilância desenvolver programas eficazes junto às populações
por elas atendidas.
As ações e projetos desenvolvidos pela vigilância e controle devem estabelecer metas claras e factíveis, de modo que
se possa reavaliar continuamente o programa VIGIAGUA e
adaptá-lo às particularidades de cada local.
Quanto à atuação do controle, é necessário que se padronize os métodos analíticos para comparações entre
as informações geradas. Mesmo quando disponíveis, são
muitas vezes registrados de maneira incorreta no Sistema
de Informação. Os responsáveis devem ser mais bem orientados quanto ao significado dos dados que dispõem, a sua
aplicação e formas de registro.
O SISAGUA poderia incluir um campo com a obrigatoriedade de o controle registrar os limites de detecção de seus
métodos e, acima de tudo, os teores de contaminantes encontrados acima dos limites de quantificação, mesmo quando
em conformidade com a Norma. Essas modificações serão
implantadas na revisão do programa. Como mencionado anteriormente, ainda que se encontrem abaixo dos VMPs, o fato
de determinados contaminantes ocorrerem na água sinaliza a
necessidade de ações de prevenção por parte das autoridades
competentes e serve como subsídio para novas revisões das
Normas de Potabilidade.
A condição das águas dos mananciais deveria ser associada às ações relacionadas à melhoria de qualidade de água para
abastecimento, uma vez que permite verificar quais técnicas
de tratamento de água são necessárias bem como auxiliar no
desenvolvimento de projetos para melhoria desses mananciais, visando integralidade dos serviços de saneamento.
Em termos de saúde pública, é necessário que sejam implementadas atividades visando identificar em que medida a
poluição da água destinada ao consumo humano tem causado
agravos à saúde e a que fatores específicos estão associados.
As informações do SISAGUA advertem para a necessidade de melhor avaliar a questão da contaminação química
da água no país e não esgotam o tema. Esse instrumento
representa grande avanço no que diz respeito às ações de
vigilância em saúde ambiental e revela a importância desse
sistema como ferramenta promissora no diagnóstico da
situação da água consumida no Brasil. Os resultados apresentados sugerem regiões e contaminantes prioritários,
como os THMs e agrotóxicos, para os quais as ações das
autoridades devem se voltar na prevenção e controle de
agravos à saúde que potencialmente estejam associados à
exposição à poluição química.
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