QUAL É O NOME ATUAL DO MAL-ESTAR DOCENTE?1
Marcelo Ricardo Pereira – UFMG
A depressão que espreita nossas sociedades, toda vez
que se esquecem de fazer guerras, poderia ser menos
pesada se nos autorizássemos a ter mais incertezas e
mais curiosidades. As certezas deserotizam a psique
(Radmila Zygouris).
Introdução: a depreciação do Eu
Mal-estar docente, angústia funcional, estresse, esgotamento emocional,
depressão, despersonalização, frustração, sentimentos contraditórios, adoecimento
mental e síndrome de Burnout (ESTEVE, 1999; CODO, 1999; PEREIRA, 2011) são
algumas das expressões cunhadas por diversos pesquisadores para nomear (e muitas
vezes aferir) queixas que docentes vêm revelando em seus discursos. A ideia da
existência de transtornos psíquicos em professores é algo amplamente alardeado, não
somente por eles mesmos e pelos meios nos quais se encontram, mas também pela
sociedade em geral, ou mais propriamente, pela sociedade ocidental.
Vivemos em tempos de mal-estar como efeito de uma cultura de excessos
generalizados, percebidos no hiperconsumo, na sobrevalorização da intimidade e em
formas de segregação. O mal-estar – outro nome da “angústia”, segundo Sigmund Freud
(1930/1980) – acomete incondicionalmente o campo da educação. Professores se dizem
cada vez mais destituídos, desrespeitados e desautorizados por uma civilização que
parece ter posto em declínio o “discurso do mestre” em favor do “discurso do
capitalista” (LACAN, 1974/2005). Aderidos a este último discurso, crianças e jovens
parecem levar às últimas consequências o confronto de gerações com aqueles que os
guiam. Isso – somado à proletarização, ao desprestígio e ao desgaste da profissão – tem
resultado, entre outras coisas, numa espécie de queixa uníssona a respeito do desajuste
social de professores e seus múltiplos sintomas.
Portanto, ao lado das precárias condições de trabalho e da reduzida prática
coletiva com colegas e gestores, podemos constatar hoje nos professores um fenômeno
crescente de esgotamento, absenteísmo e hipermedicalização, além da ocorrência de
licenças médicas e desvio de função, muitas vezes atribuídos ao desinteresse
generalizado dos alunos e à banalização da violência dentro da escola. Várias pesquisas
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O presente escrito é inédito, deriva-se de pesquisa recém concluída (PEREIRA, 2015) que será
transformada em livro e substancia o tema que apenas fora introduzido no artigo “Mal-estar docente”,
publicado pelo autor em Presença pedagógica, v. 20, p. 62-69, 2014.
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mostram como tal fenômeno ganhou a sala de aula e atualmente se tornou, para muitos
docentes, o grande dilema enfrentado no exercício da função. Com efeito, queixam-se
de uma certa paralisia profissional e de padecerem de depressão e fenômenos associados
como estresse, esgotamento, transtorno bipolar, alimentar, de pânico e consumo de
álcool.
O “mal-estar docente” não é prerrogativa dos tempos atuais. Existem registros
datados do século XIX acerca da insatisfação de professores com a profissão, que
viriam a se tornar objetos de pesquisas sistemáticas ao longo do século XX. A exemplo
disso, podemos citar o trabalho de Ida Berger (1957), que introduz originalmente a
expressão “mal-estar docente” em estudo sociológico realizado com 7500 professores
franceses. A autora lança mão de tal expressão para designar o “descontentamento dos
professores” daquela época, sobretudo, em consequência de baixos salários, precárias
condições de trabalho, poucas oportunidades de promoção e queda do prestígio social
da profissão.
Foi ao longo da década de 1980 que a expressão se consolidou. Nessa época,
José Manuel Esteve desenvolveu na Espanha uma extensa pesquisa, que se tornou uma
referência acerca do tema a partir de sua publicação, em 1987, com reedições revisadas
até 1999. O autor agrupa as fontes de esgotamento do trabalho dos professores em dois
núcleos, classificados como: fatores primários e fatores secundários.
Os fatores primários são aqueles que incidem diretamente sobre a ação do
professor em sala de aula, gerando tensões associadas a sentimentos e emoções
negativas. Os secundários referem-se às condições ambientais, no contexto em que se
exerce a docência, e têm ação indireta sobre os educadores, afetando a eficácia docente
por promover uma diminuição da motivação do professor no trabalho. Esteve afirma,
ainda, que os fatores secundários acumulados influem fundamentalmente sobre a
imagem que o professor tem de si mesmo e de seu trabalho profissional, gerando uma
crise de identidade que pode chegar à “depreciação do ego”. Diz o autor:
Os educadores correm o risco de esgotamento físico e mental sob o
efeito de dificuldades materiais e psicológicas associados a seu
trabalho. Essas dificuldades, além de chegar a afetar a saúde pessoal,
parecem constituir uma razão essencial para os abandonos observados
nessa profissão (ESTEVE, 1999, p. 58).
Incompatibilidade entre indivíduo e cultura: a hipótese do Supereu
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Não se pode desconsiderar, no entanto, que o termo “mal-estar” ganhou
notoriedade e densidade a partir do célebre livro de Freud, de cunho tanto antropológico
como psicanalítico: O mal-estar na civilização, de 1930. Desprezando a diferença entre
civilização e cultura, o autor desenvolve no mínimo duas teses sobre a origem ou causa
do mal-estar. De acordo com a primeira, existiria uma incompatibilidade estrutural entre
as pulsões de cada sujeito – que visam à satisfação imediata do desejo – e as normas
civilizatórias – que exigem renúncia pulsional. Assim, em nome da vida em sociedade,
o indivíduo recalcaria (reprimiria) suas pulsões ao preço de um contínuo mal-estar ou
angústia, por nela não poder realizar plenamente seu desejo.
A segunda tese mostra que, como efeito dessa incompatibilidade, o sujeito
passaria a ser dividido, de modo que uma parte desse sujeito – mesmo sofrendo –
identifica-se com as normas civilizatórias, as internaliza, as defende e, de modo
masoquista, cobra de si mesmo ser igual ao modelo moral que imagina que a cultura
exige de seus integrantes. Essa parte tópica do sujeito freudiano é o Supereu (Superego),
que funciona como uma consciência ou autoridade moral internalizada. Torna-se
impossível mascarar do Supereu aquilo que persiste como impulso (pulsão) de
satisfação do desejo que reside na outra parte tópica do sujeito: o Eu (Ego).
Nota-se que, de maneira sombria, Freud teoriza a tragédia da condição humana
ou a miséria do homem, pois a culpa gerada no sujeito pela cultura é representada no
inconsciente pelo Supereu e permanentemente vivida sob a forma de mal-estar. Por isso,
o sujeito tende a ser angustiado, atormentado, pois sabe de antemão que não é aquilo
que a sociedade espera dele, nem mesmo é aquilo que ele espera de si através do
julgamento superegoico. Para isso, não há renúncia pulsional suficiente para aplacar a
sua angústia. Diz Freud: “A culpa nada mais é do que uma variedade topográfica da
angústia […] que em parte aparece como uma espécie de mal-estar” (1930/1980, p.
159).
A hipótese do Supereu e da incompatibilidade entre indivíduo e cultura ajudamnos a aprofundar a análise sobre o mal-estar docente. Diversos trabalhos debruçaram
sobre tais hipóteses e ofertaram-nos resultados bastante consistentes e realísticos. É o
caso, por exemplo, do trabalho da psicanalista e educadora Anny Cordié (1998), que
relembra as demandas frequentemente contraditórias a que os professores devem
responder:

Demandas exteriores – proveniente dos organismos governamentais.
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
Demandas ocupacionais – como a do cumprimento de programa ou plano de
curso.

Demandas relacionais – vinculadas a dirigentes escolares, pais, alunos e
sociedade em geral.
O problema é que, por mais que o professor responda a todas essas demandas,
seu êxito profissional dependerá do “êxito de todos”, e isso o torna vulnerável.
Situando-se no epicentro desse fenômeno, ele sabe que grande parte do sucesso de seu
trabalho será julgada, por exemplo, pelo cumprimento de programas ou pelos resultados
de seus alunos. Mas a transmissão do saber não é uma atividade neutra. O professor terá
de afrontar o outro e não poderá cumprir tal missão sem que seu Eu não seja tão
fortemente avaliado pelo Supereu: suas faltas, suas fraquezas, sua pessoalidade.
Não obstante, a relação pedagógica se assenta também no dispositivo
transferencial. O aluno tende a “depositar” na pessoa do professor tanto uma posição de
dominação quanto uma posição de ideal ou, fundamentalmente, de “suposto saber”.
Mas isso não se dá sem ambivalências. A todo o momento o professor será checado,
interrogado, desafiado para saber se sua pessoa é digna de “suportar” esse ideal a ele
transferido. Cordiè nomeia esse fenômeno de “duplo título”: tanto o de uma pessoa real
quanto o de um mestre ideal, que evoca a transferência.
Seguindo os passos freudianos, a autora analisa entre outras coisas a
adolescência. Dada a ambivalência contra as imagos parentais (ou seja, as
representações dos pais internalizadas como autoridade no Supereu), o adolescente
tende a reportá-la aos professores que, como tal, encarnariam tanto o lugar de mestre
quanto o dos imperativos superegoicos. Desse modo, sem que tenham qualquer
controle, docentes se veem tomados por uma relação transferencial impregnada de
conflitos subjetivos que se originam nas relações primordiais com o aluno. Os efeitos
pedagógicos resultantes dessas relações são bastante imprevisíveis e a transmissão – que
é sempre uma transmissão de marcas simbólicas – jamais se dá integralmente.
Assim como o aluno, o professor também deverá compor essa relação com suas
próprias pulsões e seus próprios imperativos superegoicos. O professor avalia o aluno,
mas, na verdade, o que se avalia é o seu próprio trabalho. A suspeita reina sobre sua
competência. Todas as exigências impossíveis, as demandas, os confrontos, os
julgamentos, podem levá-lo ao sentimento de fracasso, à culpa, à impotência,
constituindo uma real prova contra seu narcisismo. Acreditando-se responsável pela
transmissão do saber, com base nos ideais pedagógicos que a formação e a sociedade
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ocidental lhe imprimem, e, ao mesmo tempo, sob ameaça contínua de não efetivá-la, o
professor tende a viver o fracasso como algo muito próprio.
Sabemos que boa parte dos professores de adolescentes consegue driblar
minimamente esse cenário trágico imposto pelo Supereu. Muitos buscam alternativas
razoáveis que não os fazem padecer mais do que a maioria das pessoas em geral. Nossos
estudos apontaram que – ao lado de entidades de classe, cientistas sociais, historiadores
da educação, pedagogos e psicólogos – alguns psicanalistas podem estar exagerando
seus diagnósticos ao concordarem com a hipótese do padecimento generalizado de
professores. Mas sempre há aqueles que, impotentes, parecem não criar outra saída
senão produzirem o pior para si mesmos, isto é, algum modo bastante específico de
mal-estar laboral.
Na pesquisa-intervenção que realizamos (PEREIRA, 2015), registramos as
impressões nos espaços de fala de mais de 50 professores de adolescentes de escolas
públicas municipais e estaduais de Belo Horizonte; e, de maneira sistemática, o
depoimento de 15 deles através da entrevistas de orientação clínica, nos quais disseram
padecer eles próprios e colegas de profissão devido à lida com os alunos e com a escola
atual como um todo. Muitos denunciaram de maneira dramática e pouco inibida o abuso
de psicofármacos (dos citados, a maioria se reduz a ansiolíticos, antidepressivos e
hipnóticos), bem como os diagnósticos comuns a muitos, como os vários modos de
estados depressivos, de ansiedade, de estresse (largamente, os mais apontados), de
transtorno bipolar, de pânico, de TOC, de problemas alimentares e do uso de álcool;
resultando em afastamentos ou desvios de função.
Não desconhecemos que vivemos numa sociedade sobremedicalizada devido,
entre outras coisas, ao avanço das pesquisas e da indústria de psicofármacos, à
facilidade de acesso a eles, aos diagnósticos aligeirados feitos à revelia por médicos de
várias especialidades clínicas, ao imperativo de satisfação de uma sociedade cada vez
mais hedonista, imediatista e intolerante à dor, bem como à sensação sufocante de
desamparo e de vazio que a objetificação e mercantilização dos laços sociais imprimem
em cada um de nós. Ora, multiplicam-se os medicamentos, multiplicam-se as novas
psicopatologias – nessa ordem.
Nossa sociedade parece inspirar, sobremaneira, essas novas psicopatologias ou,
mais exatamente, essas novas modalidades clínicas do sintoma. Elas talvez
fundamentem o próprio estatuto do sujeito contemporâneo ou pós-moderno, pois tal
sujeito já não é mais o mesmo desde as utopias contraculturais dos anos 1960 e 1970.
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Não seria mais a repressão ou a renúncia que o regeria, mas o excesso. O sujeito é
levado à obrigação de se satisfazer sob a pena superegoica de achar-se em defasagem. O
Supereu mostra assim sua face mais sadiana e mortífera: o sujeito se culpa por não
consegui gozar tanto quanto a civilização lhe exige. Nota-se hoje o quanto os interditos
simbólicos e os valores da tradição cederam. A angústia viria como consequência
insuportável da falta de regulação do prazer; e o estado depressivo, da incapacidade de
satisfação com tal desregulação.
No campo educacional, essa angústia deriva-se, como vimos, de demandas
frequentemente contraditórias a que o professor deve sempre responder: demandas
exteriores; demandas ocupacionais; e demandas relacionais. Seu sucesso depende disso
e, pior, depende também do sucesso dos outros; fato que pode levá-lo ao sentimento de
fracasso, de impotência, de culpa superegoica, constituindo uma real prova contra seu
narcisismo.
O que quer um docente que se diz em estado depressivo?
Considerando a escuta dos professores com quem estivemos, dificilmente
poderemos concluir que os problemas que narraram sejam os alunos, pois não são. De
fato, a relação com eles pode até contribuir para disparar alguma morbidade ou
padecimento mental. Mas, ao contrário, o que se revelou aqui foi algo de outra natureza;
algo, talvez, que diga respeito muito mais a uma certa “covardia moral”, a um “recuo do
desejo” ou a uma “fuga para a doença” – expressões freudianas –, que parecem
reatualizadas na “miséria neurótica” que esses professores, em geral, apresentam com
seus dramas microfísicos e cotidianos.
Sabemos que um sujeito, nas condições em que se acham nossos depoentes,
parece ser incapaz de “aproveitar a vida e realizar-se” (FREUD, 1917/1980, p. 529). É
incapaz de aproveitá-la porque seu investimento não se dirige a nenhum objeto real, mas
a uma sucessão de objetos imaginários (“objetos irreais da libido”), de produção
empobrecida subjetivamente, que lhe roubam grande quantidade de valiosa energia ao
empregá-la no sentido de manter seus assaltos sob controle. Seus sintomas parecem
propiciar algo que, mesmo subtraindo-lhes a possibilidade de aproveitar a vida, os faz
gozar um pouco dela. Esse caráter bifásico do sintoma – de problema e solução – não
deixa de estar presente nas atitudes repetitivas dos docentes ouvidos.
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O sintoma pode representar, por um lado, um ato de “covardia moral” (FREUD,
1893/1980, p. 170), em que se cede de seu desejo em nome de certo apagamento ou
demissão subjetiva; e, por outro, uma medida defensiva que se acha à disposição do Eu;
medida essa que não viria a favor do desejo, mas contra ele. Em todo caso, como
assinala Freud, “uma dose maior de coragem moral teria sido vantajoso para a pessoa
em causa” (ibid, p. 171).
Em se tratando dos professores que escutamos, essa covardia moral e essa defesa
do Eu têm um nome próprio: o estado depressivo. Situamos este estado muito mais no
campo da “miséria neurótica” do que no campo da melancolia e de modalidades
fronteiriças dos delírios psicóticos. A depressão – ao lado de fenômenos associados
como a ansiedade, a angústia, a irritabilidade e o pânico – protagoniza o quadro
sintomático da grande maioria dos docentes que estiveram conosco, seja através de
diagnóstico médico, do autodiagnóstico ou da influência discursiva de como este quadro
vem se alastrando e se banalizando em nossos tempos. Não se pode dizer, porém, que
todos os docentes que se disseram depressivos realmente sejam. A força de
generalização desse diagnóstico parece imperar entre eles. Não apuramos rigidamente
sua incidência entre os 50 que participaram dos espaços de fala, mas entre aqueles que
foram entrevistados pudemos auscultar a pertinência do estado depressivo em pelo
menos 12 dos 15 professores ouvidos. Na verdade, parece prevalecer entre eles uma
certa nebulosa diagnóstica ou um certo espectro do estado depressivo que se deriva de
modos fronteiriços e não bem definidos da estrutura e do sintoma psíquico, mas que não
deixa de lhes garantir o benefício do afastamento laboral. Para todos eles, a psicanálise
convencional pode se mostrar insuficiente, e vai requer que a tencionemos ao seu limite.
Empregamos a expressão “estado depressivo”, em vez de “depressão”, já que
“estado” indica essa situação imprecisa, instável e episódica, não sendo propriamente
estrutural ou organizada, evitando, assim, o mal-entendido causado pelo empuxo
psiquiátrico – uma tendência atual – de nomear, classificar e curar algo que se molda
aos manuais diagnósticos e estatísticos dos transtornos mentais. Tais manuais – a
exemplo do DSM 5 – parecem dar estabilidade ao que é essencialmente instável. De
maneira curiosa, revela Colette Soler (2005), quanto mais se diagnosticam deprimidos,
em nome do saber suposto do médico, mais haverá pessoas que se dirão deprimidas.
Logo, acreditamos que o problema da consistência dos fenômenos descritos pela
psiquiatria clássica está no quanto eles se mimetizam muito rapidamente, pois o que se
constata é que os sintomas psíquicos mudam tanto quanto muda a história. E mudam
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inclusive com o tempo de vida: “os mesmos sintomas aos 15 ou aos 40 anos não
possuem o mesmo estatuto, nem o mesmo prognóstico” (LE BRETON, 2012, p. 41). Se
o sintoma médico é fixo, dada sua precisão orgânica, o sintoma mental ou psíquico é
volátil, sugestionável, contagiante, isto é, discursivo, pois remete às formas de
subjetivação que os indivíduos encontram para se inscreverem e lidarem com as
exigências sociais de seu tempo. Todos nós somos assim sintomáticos, pois todos nós
lidamos com tais exigências. O sintoma é a forma como cada um subjetiva as “demanda
do outro social”.
O problema é que o professor que apresenta um quadro depressivo, como a
maioria daqueles que estiveram conosco, conseguem muito pouco desviar-se do
imperativo superegoico de satisfazer o outro com suas demandas. “Quando mais ele se
esconde, mais fica à mercê dele” (KEHL, 2009, p. 21).
Assombra perceber que vivemos numa sociedade do direito ao gozo, que por
isso deveria ser uma sociedade antidepressiva, com a promoção de ideais ligados ao
prazer, à alegria, à fruição. No entanto, o que vemos é uma sociedade mais e mais
depressiva, chegando ao abuso da prescrição de psicofármacos voltados para reversão
do caráter insuportável do prazer não regulado.
Nossa hipótese para o estado depressivo relaciona-se a uma posição que o
sujeito ocupa de se demitir subjetivamente. O sujeito se deprime justamente por sofrer a
culpa do Supereu que a psicanálise lacaniana estabelece como ceder de seu desejo.
Ceder dessa dimensão do desejo é equivalente a desistir de ser, a entregar-se à lassidão:
“Ou o sujeito trai a sua via, trai a si mesmo, e é sensível para si mesmo [...]. Aqui,
podem estar certos de que se reencontra a estrutura que se chama ceder de seu desejo”
(LACAN, 1959-60/1988, p. 384-5, grifo do autor).
Em um estado depressivo, suspeitamos de que o sujeito que cede de seu desejo é
aquele que se deixa cair antes da queda. Essa é a hipótese precisa de Mauro Dias
(2004), também lembrada por Rita Kehl (2009), que pode nos mostrar o quanto o
sujeito nesse estado se inibe antes de se por à prova. A dimensão de inibição está posta
neste cenário, pois “temos aqui um ponto a partir do qual deve ser possível chegar a
uma compreensão da condição da inibição geral que caracteriza estados depressivos”
(FREUD, 1926/1980, p. 110-11).
O autor considera que a inibição no trabalho, fato com o qual lidamos como um
sintoma isolado dos professores pesquisados, leva o sujeito ou viver uma diminuição do
seu prazer nele, ou tornar-se menos capaz de realizá-lo bem, ou ainda experimentar
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certas reações no tocante à própria atividade laboral, como esgotamento, estresse,
irritabilidade etc. Isso ocorreria justamente devido ao sujeito ser obrigado a prosseguir
com o mesmo, ainda que em condição de defesa. Uma sensação de desistência parece
acompanhar a maioria desses professores, que resultam em prostração, conversões
orgânicas, alimentares e funcionais, além de uma tendência à distração, à dissimulação e
à perda de tempo com delongas narcísicas e repetições. Aproveita-se pouco a vida desse
modo, pois muitos tendem a revelar certa paixão pela ruína ao se aterem ao real a ponto
de saberem antecipadamente que o pior sempre vence. Não é de se estranhar que
atitudes de pessimismo, de auto-vitimização, de autopunição, com claros sentimentos de
impotência e inferioridade, levem esses sujeitos a se inibirem frente ao pior e a se
satisfazerem exatamente pelo fato de não se colocarem à prova.
Há propriamente uma íntima relação entre o estado depressivo e a inibição.
Podemos dizer que a sociedade tende a ver seus indivíduos neste estado como sujeitos
inibidos. Isso porque, para dar provas de sua autossuficiência e de sua originalidade,
com base na imagem que o outro social oferece a si mesmo, tais sujeitos sentem-se
permanentemente convocados a agir. Porém, as identificações com os pares, isto é, com
as imagens daqueles que os circulam, mostram-se insuficientes para pautar a sua ação.
Ninguém parece digno de ser identificado. Logo, com esta fragilidade identificatória,
tais sujeitos não se sentem impelidos à ação. No caso do professor, agir em nome de
quê? Por qual motivo? Para esses jovens pobres que nada querem saber? Para essa
escola e educação falidas? Para essa sociedade doente? Mover em nome de qual desejo?
Os professores que escutamos, em sua maioria, não nos escondem o quanto se
demitem subjetivamente. Não há outro que os motive a reagir. Isso parece se
intensificar quando se trabalha com pessoas para as quais se tem pouquíssima ou
nenhuma expectativa. Esses professores revelam uma menos-valia explicita atribuída
aos adolescentes. Em geral, são jovens pobres, moradores de favelas, vilas ou bairros
periféricos, atendidos por uma escola que não lhes dá nem perspectiva, nem futuro. Em
reflexo,
os
docentes
demonstram
fazer
o
mesmo.
Julgam
suas
“famílias
desestruturadas”, com sérios problemas sociais, que fazem com que seus filhos tenham
uma frágil noção de limite e de interdito. Associam facilmente muitos jovens ao mundo
ilícito das drogas e da contravenção, como o faz o senso comum. Uma vez nostálgicos,
tendem a lamentar a inexistência da figura paterna na vida deles para assegurar-lhes
algum vetor da lei. As figuras que hoje ocupam esse lugar não parecem aptas a fazê-lo.
Como denunciam, “eles têm mais padrasto do que qualquer coisa!”.
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Ora, do ponto de vista genealógico, como estar em uma profissão sem cumprir
sua função de modificar o outro para poder governá-lo? Como estar nela sem acreditar
que o outro possa ser transformado a ponto de fazer parte de outra ordem social e
política para a qual são educados? Os professores com quem estivemos demonstram
saber, de saída, ainda que não claramente, que são incapazes de cumprir os desígnios
genealógicos de sua função; que são incapazes de servir de mola propulsora para
catapultar seus “pobres” alunos a outra ordem diferente das suas de origem. Ora, se não
podem fazer isso de fato, que se possa ter pelo menos a ilusão de vir a fazê-lo. Mas não
é o que acontece. Então, não se deve estranhar que o professor, sem qualquer ilusão de
modificação daqueles que guia, não escolha outra coisa senão o ato de “jogar a toalha!”.
“Ganho proveniente da doença”
E o que quer afinal o professor que se demite subjetivamente? Desçamos mais
aos detalhes, pois está em jogo aqui uma posição de recuo em relação à sua própria
potência. Os professores que escutamos demonstram, em sua maioria, retirar-se do jogo
antes de serem desmascarados.
Amiúde, eles parecem narcisicamente rechaçar qualquer iniciativa de
apropriarem-se de sua potência, de sustentá-la, de externá-la e, como tal, colocá-la à
prova, com todos os riscos que disso deriva. Esses professores parecem mesmo cair
antes da queda. Inibem-se antes de se mostrar. Daí, os desafios do cotidiano, como o
desinteresse dos alunos, as afrontas juvenis, as fragilidades da organização escolar; bem
como os dramas particulares, os desencontros conjugais, os lutos procrastinados e os
secretos crimes privados, são capazes de promover uma inibição generalizada a ponto
de paralisá-los com um amargo sentimento mortal de impotência.
Mas por que cedem ou por que fazem recuar sua própria potência e evitam o
enfrentamento? Porque sabem de antemão que não a tem. Sabem de antemão, como
qualquer mortal, que não são capazes de responder às demandas do outro e preferem se
evadir. Não parecem aceitar narcisicamente sua condição de mortalidade e de finitude.
Ao contrário, presos à necessidade de perfeição, a semblantes de potência e até a falsos
selfs, preferem agarrar-se à sua “doença da alma”, à falta de ânimo sacrificial, do que se
colocar à prova. Ser professor é admitir uma alta cota de narcisismo; é uma profissão
bastante narcísica, de pleno investimento em si, mas é também uma profissão de muita
rivalidade, muita afronta, com demasiado risco de deposição. Aceitar essa “profissão de
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risco” é aceitar um forte componente de incerteza e de conflito que podem ofender
esforços de mascaramentos narcísicos.
Ora, todo narcisismo trás em si uma aura de infantilismo; não uma aura de
criança ou de materialidade infantil, mas de infantilismo. E o sintoma é um modo de
fazer isso retornar. O sentimento de impotência é só a maneira final de algo que se
inicia neste pathos pela “doença”, isto é, nesta “forma infantil [e narcísica] de
satisfação”. Aliás, apresentar-se de saída como impotente, como ocorreu com a grande
maioria dos professores, não deixa de revelar-nos uma pretensão de onipotência secreta
que esses docentes preservam ao não se colocarem em risco diante de seus desafios
pedagógicos cotidianos ou mesmo diante das atribulações de suas vidas particulares.
Tendem a apegar-se, lúcida e orgulhosamente, às suas desgraças a ponto de confirmar
seus pessimismos em relação ao trabalho, aos alunos, aos pares, à vida. Desse modo,
eles se privam ao máximo das demandas sociais e de se medirem com o outro.
Suspeitamos de que no temor do desmascaramento de suas onipotências
secretas, infantis e narcísicas é que reside boa parte do motivo de caírem antes da queda.
O estado depressivo é o sintoma “escolhido” – sim, porque se trata de uma escolha
forçada! – como uma defesa inibitória antecipada, uma defesa contra a angústia, mas
que, por ser uma escolha malsucedida, deixa o professor à mercê dela. Não se trataria
aqui de uma angústia como afeto que não se engana ou como um “afeto típico da
relação com o real inassimilável” (SOLER, 2005, p. 76), mas de uma tristeza
petrificada, ansiosa e abatida que acomete o sujeito e lhe mostra seu empobrecimento
advindo do malsucedido de sua escolha.
Ao ampliarmos a lente, percebemos que, na fala dos professores, a exceção de
um ou dois, todos demonstram ter conhecimentos muito primários do que seja a
sociedade contemporânea, a educação moderna e pós-moderna, a política pública que os
rege, a escola de nossos tempos e muito menos do que seja a adolescência e a juventude
atuais, nem as novas formas de subjetividade e de diversidade cultural. Por mais que se
dizem submeter a infindáveis cursos de formação para tal, algo lhes parece
impermeável, pois seus estudos não os levam a ultrapassar o repetido conteúdo que
ministram com rotineiros recursos pedagógicos. Aqueles que ultrapassam essa fronteira
tendem a reduzir suas incursões culturais a mantras, mapas astrais, leituras religiosas,
orientalismos e notícias do dia. Assim, não deixamos de entender e dar crédito à fala de
uma delas, ao assim dizer em nossa intervenção: “acho que vocês vão descobrir isso:
quanto mais estudo mais livre, melhor trabalha!”
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No que concerne à educação, os professores da pesquisa-intervenção, em geral,
não parecem saber muita coisa além do senso comum sobre o sujeito com o qual lidam
– os adolescentes –, tampouco sobre o aparelho político-social em que estão inseridos –
a escola. É certo que o saber e a formação em si não são garantias de um trabalho
cotidiano melhor, mas, sem eles, fica muito restrita a possibilidade de manejá-lo. Um
docente deve ser capaz de subjetivar o saber e a formação a ponto deles fazerem parte
de sua própria pessoalidade. Mas, ao inquirir os pesquisados, notamos o quanto amiúde
eles não dizem mais do que a maioria das pessoas comuns diriam sobre a escola e os
adolescentes. E isso sob um tom nostálgico, desistente, queixoso e sacrificial. Tal fato
pode ser um problema agudo para uma profissão narcísica como a docência. Como
realizá-la sem mostrar para o outro social, que tanto lhes demanda ação e uma imagem
potente para exercê-la, que eles são ineptos em temas que se situam no epicentro
fundacional de sua profissão?
Quiçá muitos professores tenham se tornado exímios dissimuladores de suas
fragilidades conceituais, políticas, sociais e subjetivas. Boa parte, além de queixar-se de
forma uníssona do desinteresse generalizado dos alunos, delata as condições precárias, a
reduzida infra-estrutura escolar e a organização problemática do trabalho docente,
fazendo coro com as pesquisas mais ou menos militantes da área. A maioria dos
professores, em geral, parece aceitar certo rebaixamento narcísico do ofício, e conduzir
seus cotidianos como pode fazê-lo, ou seja, com algum empobrecimento subjetivo e
pedagógico, escondido por detrás de rotinas standars.
Mas há outros, como aqueles com quem lidamos em nossa pesquisa-intervenção,
que por razões ainda desconhecidas por nós demonstram não admitir esse rebaixamento
narcísico, essa deposição de si, e convertem para seus corpos os efeitos malsucedidos
dessa escolha. Fixados a objetos imaginários, tentam a duras penas mascarar suas
debilidades pessoais, suas fragilidades conceituais, sua má formação e suas ações
despolitizadas, “elegendo” para si o sintoma social de uma época: o estado depressivo.
Nesse sentido, parece estratégico cair antes da queda: “cair atirando para todos
os lados” – diria a máxima. Deprime-se justamente antes de o outro social saber da falha
de sua pretensa e secreta onipotência, de seu narcisismo sem fundamento, de evitar agir
em conformidade com o seu desejo. O estado depressivo não seria assim apenas
padecimento, mas gozo.
Se podemos dizer que sempre que um neurótico enfrenta um conflito
ele empreende uma fuga para a doença, assim mesmo devemos
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admitir que em determinados casos, tal fuga se justifica plenamente
[...]. Em circunstancias comuns, reconhecemos que, refugiando-se na
neurose, o Eu obtém internamente um certo ganho proveniente da
doença; uma vantagem externa que se converte em uma arma na
batalha contra o dominador – arma que pode usar para sua defesa e da
qual pode abusar para sua vingança (FREUD, 1917/1980, p. 446 –
grifos do autor).
A notável observação freudiana para as neuroses, com suas fugas, ganhos e
armas, pode muito bem ser estendida para os estados depressivos de que tratamos em
nossa pesquisa-intervenção. O professor tolera este estado que, afinal, não pode evitar.
Refugia-se na “doença”, mas paga caro demais por essa fuga. Com seus depoimentos
espontâneos e verdadeiros, os docentes exibem, contra isso, as maiores lamentações e
queixas acerca de seus sofrimentos, demonstrando decisão de cooperarem e de se
exporem a fim de se ter alguma chance de sair dessa condição mórbida. Mas é bem o
inverso disso. Estabelece-se “uma espécie de modus vivendi” – diz Freud (ibid., p. 448)
–, pois o “ganho proveniente da doença” já lhes subtraiu alguma coragem moral para
fazê-lo, ao se ter cedido de seu desejo.
A diferença do neurótico comum, de que fala Freud, para o neurótico em estado
depressivo, como aqui o expomos, reside no fato de que o primeiro, mediante o vazio de
ter cedido de seu desejo, preencherá seu mundo com coisas, atuações e dramas a fim de
obter algum tipo de reconhecimento do outro, lutando intimamente contra o fracasso; ao
passo que o segundo, fugindo da culpa (lê-se angústia) de não agir conforme seu desejo,
inibir-se-á a ponto de evitar-se colocar à prova, eximindo-se, inclusive, da necessidade
de buscar esse reconhecimento do outro. Sabe de antemão que tal reconhecimento não
viria sem o excesso opressivo da presença dele.
Assim, estamos em melhores chances de entender o estado depressivo dos
docentes ouvidos como inibição e fuga. É inibição, pois, como vimos, se evita o
enfretamento do conflito, tentando permanentemente anulá-lo. Daí sua queda precoce. E
é fuga, pois, diferentemente do mecanismo de defesa típico dos neuróticos, que tenderia
a garantir algum êxito ao Eu, os docentes parecem evadir-se da demanda do outro
social. Por isso, o sujeito deprimido defende-se mal. O máximo que ele faz é fugir para
esse estado da alma – desanimado e sacrificial – por não dispor de recursos simbólicos
suficientes para defender-se da voracidade do outro que o demanda a agir. Eis a sua
arma contra o dominador!
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A medicalização dos professores em estado depressivo, através de múltiplos
rótulos de psicofármacos cujos usos detectamos maciçamente em nossos pesquisados,
pode acentuar a covardia moral de refugiar-se em relação ao conflito. Em vez de
ajudarem o sujeito a enfrentá-lo, os antidepressivos, ansiolíticos, hipnóticos e
estabilizadores de humor, prescritos a catorze dos quinze entrevistados, bem como a
inúmeros que participaram dos espaços de fala, podem produzir não uma coragem de
viver, mas um apaziguamento de si que corresponderia a um apagamento da dimensão
conflitiva e a um empobrecimento da vida subjetiva e do laço social de cada um. Isso
apenas mostra, como afirma Kehl (2009), uma falência teórica da psiquiatria que já não
conta com hipóteses etiológicas para a compreensão de padecimentos mentais.
Diríamos que, ao se alinhar a bases neurocientíficas da medicina e se distanciar
de bases mais etiológicas e clínicas de fenômenos psicológicos, como se deu em seu
passado recente, a psiquiatria corre o risco de ser reduzida a um ramo da neurologia,
como especialidade médica, ou a ela ser sucumbida. Uma vez não se situando mais na
turva área na qual se mesclam o somático e o psíquico, e fundamentando-se tão-somente
na biomedicina, a psiquiatria contemporânea abandona sua associação histórica à
psicanálise, senão sua dependência, e se entrega aos desígnios discursivos de estudos
sobre a química e o funcionamento do sistema nervoso central. As descobertas
psicofarmacológicas, sobretudo dos últimos decênios, aceleraram bastante esse
processo. Mas se do ponto de vista biológico isso pode ter sido um avanço, do ponto de
vista subjetivo pode ter se tornado um desastre. Medicam-se, agora, tristezas, humores e
comportamentos sem se dar a chance mínima ao sujeito de poder ter o tempo suficiente
para elaborá-los por meio de seus próprios dispositivos simbólicos e, assim, poder sair
deles mais fortalecido. Em um mundo em que se rechaça todo e qualquer nível de dor,
tenta-se a todo custo sedar a angústia e eliminar as excitações e as paixões que a
causam. A menos que essa dor seja suficientemente desorganizadora do sujeito, a ponto
de ameaçar sua inserção social, não vemos porque – e aqui reside nossa defesa – não se
promover alguma forma que o leve a ser clinicamente acolhido antes de classificado ou
de ser devidamente escutado antes de medicado.
Conclusão: a escuta de professores
Longe de culpabilizações inconsequentes, que só penalizariam o lado da balança
em que se encontram os professores (PEREIRA, 2003), o que especulamos aqui é a
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possível existência de elementos de mal-estar relacionados a certo grupo formado por
aqueles que não conseguem driblar os reveses laborais, os avatares pedagógicos e,
sobremaneira, as atribulações de suas vidas privadas. Logo, julgamos ser fundamental
que formadores e gestores entendam que dificilmente conseguiremos avançar sem que
algo específico da prática do professor seja recolocado no epicentro do debate: repensar
suas condições de trabalho, sua remuneração, suas relações com o saber e com a
formação, como preconiza Esteves (1999), são essenciais, mas, sobremaneira,
precisamos auxiliar o professor a recuperar sua coragem moral para atuar em situações
de incerteza e descontinuidades, para dar respostas mais ou menos rápidas mediante tais
situações, para lidar com a apatia do alunado sem se tornar também apático e para
entender as formas de “mal-estar na civilização” que continuam a assolar o mundo de
maneira geral, inclusive o mundo pedagógico.
Tal mundo cuidou para que, hoje, tenhamos um sem número de políticas de
formação e de trabalho docente voltadas para um educador genérico, abstrato e teórico.
Apela-se, desse modo, à inflação de saberes que são amiúde sustentados ou pelas
referências às obras clássicas e seus mestres ou por modismos de teorias passageiras,
que de tempos em tempos afligem o universo educativo. Mas, em oposição a isso,
parece estar havendo em nossos dias uma espécie de sobrelevação daquilo que o sujeito
julga como mais genuíno e digno de ser narrado: sua experiência, seus impasses e seus
próprios modos de subjetivação – fato que não é mais do que consequência de um
século, o passado, que veio a propagar disseminadamente as vozes de seus sujeitos por
meio dos mais diversos campos de saber, como a psicologia, a psiquiatria, a sociologia,
a comunicação social e a própria pedagogia.
Enquanto a grande maioria de ações educativas, de políticas públicas, de
propostas escolares de intervenção etc. demonstra estar muito mais direcionada a
modelos superegoicos de formação e de exercício docente, as respostas dos sujeitos vão
à contramão disso. Para além de simples inchaço do Eu ou de individualismos acéfalos,
muitas vezes propiciados pelos diversos campos de saber que ora sublinhamos, as
respostas dos sujeitos revelam o quanto as políticas assentadas em modelos
superegoicos não alcançam àqueles que majoritariamente se assentam no dizer de sua
própria experiência sem que tenham espaços institucionais para fazê-lo; espaços
verdadeiros, sem simulacros, sem demagogias. O que essas respostas revelam, na
realidade, é a décalage que há entre experiência e política.
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Talvez seja necessário aos agentes formadores, aos gestores pedagógicos e aos
sistemas educativos em geral proporem ações mais efetivas que venham a aproximar,
sem nunca extinguir, a distancia entre o que se busca – a política – e o que se faz – a
experiência. Seria uma política que passe a levar em conta também a escuta e a “fala
plena” (LACAN, 1953/1998) daqueles que realizam cotidianamente o ato de ensinar.
Sabemos que, para isso, “nosso trabalho sempre terá de desenvolver-se por
caminhos diferentes dos comuns” (AICHHORN, 1925, p. 114). A orientação clínica e a
escuta de professores foram a única maneira possível divisada por nós para que se possa
proceder tal política. Acreditamos que seja plausível aos formadores e aos gestores de
professores que admitem a orientação psicanalítica instituírem fóruns ou espaços de fala
individuais e coletivos nos quais os docentes possam expor livremente seus impasses,
experiências e subjetividades; que tenham, com isso, a chance de destravar formas fixas
de sintoma, movendo-o e elaborando-o.
A fala – e, em especial, a “fala plena” – alcançaria o estatuto fundante de uma
outra política para o exercício docente capaz de admitir algo da ordem clínica, ou seja,
algo que, fazendo vacilar o sintoma, propicie desidentificações ou deslocamentos
subjetivos. Da mesma forma que conduzimos nossa pesquisa-intervenção, ofertando a
palavra para que ela possa produzir efeitos de elaboração, pensamos ser vital que haja
nas escolas um profissional, na pessoa do pedagogo, do coordenador dessa área ou do
formador de professores, que opere inspirado na técnica freudiana “recordar, repetir e
elaborar” (FREUD, 1914/1980). Para isso, como já assinalamos, deverá ter sido ele
escutado subjetivamente, ter interrogado seus próprios sintomas, consentir com o
inconsciente e oferecer-se como suporte transferencial de suposto saber para os que lhe
procuram. Esse profissional deverá ser aquele que promova uma escuta apurada e,
igualmente, faça intervenções mínimas – nunca longas –, sempre um pouco atrás, de
modo a fazer a palavra circular em francos espaços de fala coletivos e individuais.
Lembremos de que a clínica trabalha com a palavra, mas esta palavra é, sobretudo, a do
sujeito, e não de quem o dirige.
Assim achamos possível operar aquilo que Claudine Blanchard-Laville (2005)
chama “clínica profissional do laço” ou “clínica de acompanhamento de profissionais
do campo da educação e da formação” – títulos que já explicam a si mesmos.
E acrescentamos o que temos aqui preconizado: será vital que essa clínica opere
pela via do sintoma, fazendo-o ser falado e elaborado, heuristicamente, de modo a
permitir a inscrição do sujeito no laço social de forma menos destrutiva, sem tanto fugir
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para a doença, e manejando a si a ponto de saber-fazer algo próprio com sua inscrição
sintomática. Há para isso que se dispor a escutá-la, e estamos seguros de que, no que
concerne à investigação, a pesquisa-intervenção e a orientação clínica são operadores
formidáveis para fazer circular a palavra e permitir novos modos de subjetivação de
professores. Quem sabe, assim, se possa esperar que eles venham a fazer laços menos
destrutivos com o real e reverter esse que parece ser o nome atual do mal-estar docente:
o estado depressivo.
Referências
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original de 1925).
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levar à falência da educação. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.
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psychanalyse. Paris: Seuil, 1998.
DIAS, Mário. Cadernos de seminário: neurose e depressão. Campinas: EPC, 2004.
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FREUD, Sigmund. Conferências introdutórias de psicanálise. Edição Brasileira das
Obras Completas, vol. XVI, Rio de Janeiro: Imago, 1980 (publicação original de
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FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Edição Brasileira das Obras
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