Introdução Quando pensamos nos portugueses, logo vêm à mente: o fado, a saudade, as viagens marítimas e os colonizadores, Camões, Nossa Senhora de Fátima, os imigrantes de bigodões ou tamancos, as piadas, o bacalhau, o vira e o cantor Roberto Leal, o dono da padaria da esquina... Não necessariamente todas elas e nem nessa ordem, mas certamente várias dessas indefectíveis imagens surgirão. Podemos também associar Portugal a assuntos muito diferentes, como as Santas Casas de Misericórdia, espalhadas por todos os cantos onde os portugueses se instalaram desde o século xvi, mas também como o destino escolhido por muitos brasileiros emigrados nos últimos anos ou a fonte de investimentos econômicos diversificados aqui no Brasil. Talvez lembremos de José Saramago, único autor até o presente que escreveu na língua de Camões reconhecido internacionalmente com o Nobel de Literatura, ou do Novo Acordo Ortográfico, a pautar obrigatoriamente a escrita culta a partir de 2013. O mundo da moda, dos perfumes e das grifes internacionais também tem tempero português: a estilista Ana Salazar, “a senhora da moda portuguesa”. Se o tema é esporte, os fãs evocam portugueses destacados em diversas modalidades. O futebol bonito de Luís Figo e Cristiano Ronaldo, entre outros tantos “da terrinha”, integrantes dos principais times do mundo. No exclusivo e milionário circo da Fórmula1, Pedro Lamy. E entre os vencedores da tradicional Corrida de São Silvestre, a invejável Rosa Mota, campeã por seis anos consecutivos! Cinéfilos certamente conhecem Manoel de Oliveira, diretor premiado em Veneza e Cannes, ou o ator Joaquim de Almeida, por papéis em filmes e seriados nos Estados Unidos, além ter sido o Sherlock Holmes da produção luso-brasileira O xangô de Baker Street, baseada no livro homônimo de Jô Soares. Os vínculos de Portugal e dos portugueses com o Brasil são antigos, embora as relações entre os povos e os países tenham oscilado bastante ao longo do tempo. Em alguns momentos foram mais próximas, em outros, distantes. Amistosas ou tensas. Com interesses comuns ou conflitantes. De um modo ou de outro, nossa compreensão não pode prescindir de um fato crucial: muito da história de Portugal está ligada 12 | Os portugueses à nossa, desde o desembarque dos portugueses no Novo Mundo, no século xvi, até hoje, por conta do intenso fluxo migratório de brasileiros para Portugal nas três últimas décadas. Boa parte da trajetória portuguesa foi moldada a partir da ideia de construir um império. O pequeno território europeu, desde o século xv, voltou-se para o exterior, explorou rotas oceânicas e as transformou em importantes vias de comunicação, integração e manutenção de um domínio plurissecular: do “império da pimenta”, erguido no Oriente com base no comércio das especiarias, passando pela edificação do “império americano”, só perdido no início do século xix, à tentativa de reeditar na África os “Novos Brasis”, definitivamente frustrada, por fim, no ocaso do neocolonialismo. Nas últimas décadas, os portugueses optaram por uma virada decisiva em direção à Europa, consagrada com a inclusão do país no seleto grupo da União Europeia. Até aqui, já percorreram um longo caminho, pleno de sucessos, fracassos, embates e dilemas de toda ordem. Recentemente, vivenciaram transformações profundas em uma história escrita com tintas fortes: a derrubada de uma das mais duradouras e reacionárias ditaduras do século xx; a perda dramática das últimas colônias; a adesão ao euro. Hoje, Portugal e os portugueses se encontram em outro patamar de desenvolvimento, que contrasta vivamente com a imagem de país atrasado, de estrutura social arcaica, que predominou por todo o século passado. O processo intenso de mudanças afetou a política, a economia, a sociedade e a própria cultura portuguesa. Entretanto, sobrevive, em muitos pontos, a caracterização de um povo muito tradicional, apegado à religião, a rígidos valores morais, até sovina algumas vezes... Então, como caracterizar os portugueses? Por tudo isso e por muito mais, como veremos neste livro, sem esquecermos, evidentemente, um aspecto que nos interessa sobremaneira: a relação dos portugueses com os brasileiros e a nossa relação com eles. * * * A parte i – “O que faz dos portugueses, portugueses” – trata de temas centrais para se entender os personagens. Começa com os relacionamentos contraditórios de Portugal com o Brasil e com os brasileiros. Continua com os traços fundamentais que definem o povo e o país, dos contrastes da terra e de seus habitantes à ligação vital e secular que os portugueses estabeleceram com o mar, o destino associado às navegações. Sua complexa relação com os espanhóis é o tema seguinte, seguido pelos movimentos populacionais que contribuíram decisivamente para a conformação da identidade portuguesa. Introdução | 13 A parte ii – “Uma história em cinco atos” – é uma viagem pelo tempo. Ela começa antes mesmo de Portugal existir, quando o extremo ocidental da Europa era habitado por populações celtiberas, prolongando-se até os finais do século xiv. Em seguida, aportamos no período que vai da consolidação do Império Colonial ao ocaso dessa era dourada, com a perda da colônia brasileira. Acompanhamos então os portugueses em suas tentativas de sobreviver às perdas territoriais e econômicas, na procura de novos caminhos, passando pela monarquia constitucional, pela Primeira República, pela ditadura salazarista e, finalmente, pela emblemática Revolução dos Cravos, considerada a virada decisiva para Portugal e seu povo. A partir de então, nem melhor, nem pior: diferente. Observamos com detalhes o processo que converteu a potência atlântica em um “Portugal europeu”, estabelecendo uma nova etapa em que os portugueses não esqueceram do passado, pelo contrário, continuam a ele recorrendo para dar sentido ao seu lugar no mundo. Na recriação de identidades, a lusofonia ganha agora papel de destaque. No epílogo são amarrados todos os fios dessa teia baseada em extensa pesquisa histórica, inúmeras leituras e (por que não?) na experiência pessoal de uma brasileira que viveu anos em Portugal e observou de perto os portugueses com seu frequente pessimismo, sua crença arraigada no fado (destino), suas oscilações de humor ou suas maneiras de fazer conviver a rusticidade com as sutilezas de uma formalidade bem característica. Todas as páginas que seguem são devedoras do grande leque de obras, artigos e textos consultados que vai indicado no final. Pela natureza do livro, não cabe uma infinidade de notas referenciando cada uma delas. Porém, desde já explicito o meu débito em relação a todos os trabalhos citados na bibliografia, além das longas horas de conversa sobre o tema que tive com amigos e colegas, portugueses e brasileiros. As palavras em português de Portugal que são diferentes do português brasileiro foram tratadas neste livro como se fossem estrangeiras, ou seja, vêm grafadas em itálico com uma “tradução” ao lado. Vamos agora soltar as amarras e embarcar nessa viagem para “descobrir” Portugal e os portugueses... * * * Para minha filha Thaís (1993-2007), uma das 199 vítimas do Voo Tam JJ3054. Sua ausência me ensinou o significado da palavra “saudade”. Para Dario, meu “porto seguro”, sempre...