Figura: MORANDO NUM ABRIGO PARA IDOSOS, MARIA SANTIAGO VIVE DE MUITAS RECORDAÇÕES E DE PEQUENAS ALEGRIAS O difícil exercício de ENVELHECER Maria, 84 anos, supera média de longevidade no Recife. Os filhos não tiveram a mesma chance “Quando eu for embora para bem distante e chegar a hora de dizer adeus, fica nos meus braços só mais um instante, deixa os meus lábios se unirem aos seus... Índia, a sua imagem sempre comigo vai”, canta baixinho Maria José Santiago, 84 anos, com os olhos emocionados. Ela não esquece os versos dessa música que os levam de volta ao passado. A década de 1950. “Naquela época, me chamavam de Índia. Eu era nova, forte, tinha os cabelos bonitos, negros como a noite”, lembra Santiago, citando mais uma vez um trecho da canção Índia, composta nos anos 50 pela dupla Cascatinha e Inhana e regravada, recentemente, por Roberto Carlos. Na pele negra marcada pelo tempo e nos olhos azuis que parecem os de uma menina, está escrita a história de contrastes de Maria Santiago e, nas entrelinhas da sua história, está um pouco da evolução demográfica do Recife e do Brasil. Maria Santiago é um dos resultados do aumento da expectativa de vida da população. Quando ela nasceu, na década de 20, a esperança de vida dos brasileiros era de apenas 42 anos. Ela já viveu o dobro disso e segue bem à frente da média nacional (que por sinal se equivale a do Recife), estabilizada em torno de 68 anos de vida — para as mulheres, na verdade, essa média sobe para 72 anos. Mas uma outra evolução demográfica acabou acontecendo tarde demais na vida de Santiago: a redução nos índices de mortalidade infantil. Santiago foi mãe de duas meninas e um menino. Nenhum deles chegou a completar um ano de vida. Carlos Antônio foi o que chegou mais longe, morrendo aos oito meses, de coqueluche. Terezinha de Jesus morreu com três meses, com problemas no coração. E Sônia, também com três meses, “morreu porque já nasceu muito franzina”, explica a mãe. Sem os filhos, Santiago (que nunca se casou) acabou levando a sua vida sozinha — quase sempre pelo bairro de Casa Amarela, onde trabalhou como cozinheira, lavadeira, copeira, bordadeira e governanta. “Sempre morei só e sempre estive bem assim”, garante ela, ainda bem lúcida. Hoje, Santiago vive em um abrigo espírita para a terceira idade, em Casa Forte — no Recife, existem 36 casas como essa, com preços mensais que variam de R$ 200 a R$ 2.000. “De vez em quando, eu choro mesmo. Quando sinto muita solidão e quando meus amigos não vêm me visitar”, confessa. A espera pela visita é o relógio da vida nesses lugares. O reencontro com a família — numa relação nem sempre aceita para muitos, que acabam se sentindo abandonados —, com os amigos, ou mesmo o encontro com os desconhecidos. “Às vezes chega gente aqui e fica conversando horas comigo. Eu sou conversadora mesmo”, diverte-se Santiago, que parece estar sempre oscilando entre a melancolia e a alegria. “Um dia desses veio um coral cantar aqui. Foi a coisa mais linda do mundo. Eu nem piscava os olhos”, diz ela que, ainda nos tempos de colégio, era solista de cantos católicos. “Outro dia, recebi uma boneca de presente da filha de uma amiga minha, que nem me conhecia. Quando ela soube que eu gostava de bonecas, disse para a mãe dela trazer uma pra mim. Dias depois, ela veio aqui me conhecer, então eu vi que já nem era uma menina. Era uma moça linda e ela me chamou de vó”, conta, descrevendo as suas maiores alegrias de hoje em dia. Pequenas alegrias, como ver a casa cheia nos dias de festa, como ganhar um presente, ou simplesmente ter alguém para conversar um pouco. Depois de uma dessas conversas, a sensação é que, de alguma forma, ela lhe ensinou a viver. A vida é um assunto que ela entende muito bem. (Fred Figueroa) RECIFE FACE A FACE Palavras talvez não sejam necessárias para falar sobre as diferenças entre Tereza e Rosa. Essas duas senhoras nas fotos acima. O rosto de cada uma delas já é mais do que suficiente para perceber e entender a realidade e a influência da desigualdade social na vida e mais do que isso: a interferência do espaço em que vivem no efeito do tempo sobre cada um delas. As duas têm praticamente a mesma idade. Tereza tem 52 e Rosa 55 anos. Tereza mora na Favela do Pilar, no Bairro do Recife. Rosa mora nas Graças. Cinco quilômetros de distância. Uma eternidade. Os dois bairros estão em condições opostas em praticamente todos os índices levantados pelo Atlas do Desenvolvimento Humano do Recife, como renda, habitação, educação e saneamento básico. Durante toda essa semana, o Diario de Pernambuco apresentou essa desigualdade com textos, números e imagens capturadas do dia-a-dia de uma cidade que, para muitos, talvez já tivesse se tornando invisível. Mas nada talvez seja tão nítido quanto os traços de um rosto. O verdadeiro envelhecimento em que os fatores sociais se sobrepõem aos efeitos naturais do tempo, gerando a existência trágica de praticamente duas formas de evolução da espécie humana. (F.F.)