ANDRÉ DE ALBUQUERQUE CAVALCANTI ABBUD
Advogado. Doutor em Direito pela USP. Mestre em
Direito por Harvard e pela USP. Autor da Obra: Soft
Law e Produção de Provas na Arbitragem
Internacional, pela Atlas.
ENTREVISTA
Soft Law
O senhor poderia nos definir o que é Soft Law?
Soft law é expressão usada para designar uma realidade bastante ampla e variada. Em
um sentido mais genérico, refere-se a qualquer instrumento regulatório dotado de
força normativa limitada, isto é, que em princípio não é vinculante, não cria obrigações
jurídicas, mas ainda assim pode produzir certos efeitos concretos aos destinatários. Às
vezes a expressão identifica documentos cuja própria forma é “soft”, como
memorandos de entendimentos e recomendações, às vezes conteúdos pouco
constritivos, como normas e princípios formulados com cláusulas gerais e conceitos
jurídicos indeterminados, outras vezes ainda regras que não podem ser impostas por
mecanismos compulsórios de resolução de disputas (“soft enforcement”).
Na minha tese, trabalhei a soft law em um sentido mais específico, para identificar o
corpo de atos não obrigatórios como diretrizes, protocolos, guias, regras, standards,
práticas, códigos de conduta e recomendações, elaborados por órgãos não-estatais
como associações profissionais, câmaras de comércio e organismos supranacionais,
para regular questões do processo arbitral internacional, desde que e na medida em
que as partes e os árbitros assim queiram. É um instrumento de auto-regulação da
arbitragem.
Em que área e qual sua aplicabilidade prática?
Na arbitragem internacional, a soft law tem sido usada especialmente como
ferramenta para regular questões éticas dos árbitros, de seus secretários, das partes e
de seus representantes, o modo de organizar e conduzir o procedimento e, em
particular, a produção de provas – tema que exploro mais a fundo no meu livro.
Este instituto é exclusivo da arbitragem internacional?
Não. A própria arbitragem nacional já convive com ferramentas do tipo, como os
códigos de ética das câmaras arbitrais. Para além da arbitragem, a soft law é bastante
comum nas esferas do direito internacional público, ambiental, concorrencial e do
comércio internacional, por exemplo. A declaração emitida ao fim da ECO-92 (Agenda
21), as resoluções e recomendações de órgãos como a OCDE, a FAO e o PNUMA, os
Princípios para Contratos Comerciais Internacionais do Instituto Internacional para a
Unificação do Direito Privado (UNIDROIT) e os Termos Internacionais de Comércio
(INCOTERMS), da Câmara de Comércio Internacional, são apenas alguns exemplos.
Quais são as fontes da Soft Law?
Como mostram os exemplos que dei, esses documentos são produzidos pelos próprios
Estados, de modo isolado ou multilateral, por organizações internacionais, ou ainda
por entidades privadas (não estatais), como associações civis e instituições
acadêmicas.
Por que usar Soft Law e não normas jurídicas propriamente ditas (“Hard Law”)?
A pergunta faz sentido. A norma jurídica cria verdadeiros direitos e produz vantagens
tradicionais às pessoas, especialmente um maior grau de certeza sobre o modo como
as questões serão resolvidas e segurança de que o eventual descumprimento será
remediado pela aplicação de sanções. A “lei calculável” tão importante para o próprio
desenvolvimento do capitalismo, como dizia Weber. É claro que a norma jurídica não
perde sua importância. Mas em algumas esferas e circunstâncias, se a criação e o uso
da soft law têm se expandido, isso significa que seus usuários têm percebido
vantagens nisso. Na arbitragem internacional, campo que investiguei no meu livro, a
“hard law” é considerada menos adequada para tratar das questões que vêm sendo
objeto da soft law. Primeiro, porque o processo de criação e modificação de leis e
tratados é lento se comparado ao da soft law. Segundo, porque a hard law é pouco
flexível e tem aplicação uniforme a todos os casos, enquanto a soft law é maleável e
aplicável apenas quando e como for útil no caso concreto. Terceiro, porque o
mecanismo sancionatório da hard law pode ser indesejável na arbitragem: os
profissionais querem evitar a criação de regras cujo cumprimento possa ser controlado
por órgãos judiciais. Quarto, porque a soft law é normalmente técnica, resultado do
trabalho de profissionais experientes e especializados em arbitragem, enquanto leis e
tratados costumam receber o influxo de profissionais menos versados na matéria
(legisladores e diplomatas), atentos a interesses estatais ou partidários e movidos por
objetivos políticos.
Se Soft Law não é norma, o que traz de vantagem em relação a nenhuma “Law”?
Comparado com a alternativa da absoluta ausência de qualquer regra ou diretriz, o uso
da soft law favorece o planejamento das partes e evita surpresas e injustiças
decorrentes de regras criadas ad hoc, depois de ocorrido o fato, pelos árbitros. A soft
law também contribui para a consolidação de uma disciplina transnacional para o
processo arbitral, colocando-o em ponto equidistante das partes pertencentes a
culturas diversas e evitando que regras e práticas domésticas entrem pela porta da
discricionariedade dos árbitros. Ainda, ela ajuda a difundir o conhecimento entre
profissionais mais e menos experientes da arbitragem, corrigindo assimetrias de
informação e promovendo a paridade de armas. Por fim, a soft law pode tornar o
processo arbitral mais eficiente, ao diminuir custos de transação que seriam incorridos
em quadro de absoluta discricionariedade e ao sugerir técnicas voltadas à economia
de tempo e dinheiro na arbitragem.
Tudo isso reforça os valores da supremacia do direito, da transparência, da igualdade
das partes e do devido processo legal na arbitragem. O resultado é o aumento da
própria legitimidade da arbitragem como sistema de distribuição de justiça no plano
internacional.
O uso do instituto depende da vontade de que agentes?
Como não são normas jurídicas, o uso desses instrumentos não é obrigatório, mas sim
depende apenas da vontade dos próprios sujeitos do processo arbitral, em especial
partes e árbitros. São eles que podem avaliar a utilidade e conveniência de sugerir,
recomendar ou mesmo determinar que certos atos sejam praticados ou questões
sejam resolvidas de acordo com determinada ferramenta de soft law.
Existe uma forma determinada para a aplicação da Soft Law?
Não, os usos desses instrumentos são variados e dinâmicos. Na minha pesquisa,
identifiquei três principais “portas de entrada” ou formas de aplicação da soft law na
arbitragem. A primeira toma a soft law como simples texto externo ao processo,
invocado como referência já em sua aplicação, ou apenas usado implicitamente como
guia para a prática de determinados atos. É o que faz um árbitro quando decide
divulgar determinado fato ou renunciar porque a situação está prevista nas Diretrizes
da IBA sobre Conflitos de Interesses. Na segunda, um pouco diferente da anterior, o
uso da soft law como diretriz ou guia de conduta é definido por escrito na arbitragem
em antecipação aos fatos, normalmente no termo de arbitragem ou em ordem
processual, para balizar a prática de atos futuros, orientar a conduta e o planejamento
das ações pelos profissionais, sem obrigá-los. Esse é o uso mais comum que se faz das
Regras da IBA sobre Produção de Provas. A terceira “porta de entrada” ocorre ao se
adotar expressamente certo instrumento como regra obrigatória do processo, seja na
convenção de arbitragem, no termo ou em ordem processual. Este último uso é o
menos comum, justamente porque descaracteriza a soft law como “soft”.
Qual a maior crítica em relação à Soft Law?
As principais críticas feitas à soft law na arbitragem internacional são de duas ordens.
A primeira questiona sua legitimidade como instrumento regulatório, já que não existe
controle sobre suas fontes produtoras; a rigor, qualquer instituição ou grupo de
pessoas pode “editar” um documento do tipo. Associado a isso, alguns acham que
esses documentos têm refletido certo predomínio cultural anglo-saxônico.
A meu ver, a dificuldade aqui diminui quando se pensa na legitimidade da soft law não
sob o paradigma de norma jurídica – que ela não é –, mas de instrumento não
obrigatório, de valor persuasivo. Justamente porque a soft law é usada apenas se e na
medida que seus destinatários quiserem, ela extrai sua legitimidade mais da ponta
“consumidora” que da ponta “produtora”. Sua legitimidade se dá por adesão. Se um
texto de soft law é útil e qualificado, produzido por instituição e profissionais
reconhecidos, a tendência é de que ele seja adotado. Já contra textos ruins ou inúteis,
excessivamente prescritivos ou detalhados, ou que não refletem as melhores práticas
ou consensos aceitos globalmente, o antídoto é simplesmente não usá-los e deixá-los
cair no esquecimento. Há vários exemplos disso. Ou seja, a soft law tem um
importante mecanismo de auto-regulação. Com relação à crítica derivada, de que
alguns textos refletem certa “dominação” anglo-saxã ou norte-americana, ela muitas
vezes decorre da constatação de que o texto tem algo do “outro”, de outro país ou
cultura jurídica. Mas se estamos falando de instrumentos internacionais, que devem
trazer um pouco de cada cultura jurídica, não podemos querer que reflitam
exatamente nossas práticas domésticas. Ninguém deve se sentir “em casa” nessa
ambiente internacional. E o bom sinal é que também há críticas dentre os anglo-saxões
de que a soft law tem refletido práticas próprias da civil law. Além disso, a
desigualdade de forças entre os profissionais da arbitragem (econômicas, culturais,
numéricas, técnicas etc.) é um dado da realidade. E a “dominação” pelo mais forte no
processo é mais provável em cenário de plena discricionariedade que naquele
regulado por boa soft law. Ou seja: ela pode servir como instrumento de defesa à
chamada “americanização” da arbitragem.
A outra principal crítica à soft law é de que seus textos podem acabar virando “hard
law” com o tempo.
A Soft Law pode virar Hard Law na arbitragem internacional? Quais seriam as
consequências?
Fala-se no risco de que esses instrumentos, se usados de modo reiterado e uniforme
no longo prazo, acabem se convertendo em regras obrigatórias. Isso de fato retiraria
as qualidades de flexibilidade, adaptabilidade e dinamismo do processo arbitral. E
poderia também gerar o risco de que questões processuais da arbitragem fossem
“judicializadas”. Mas a soft law não é feita para isso e não deve ser usada assim. Os
próprios documentos costumam afirmar não “ter força de lei” ou “caráter vinculante”.
E vários deles não têm a estrutura de normas de conduta, mas sim de checklists ou
cardápios com sugestões de alternativas sobre os modos de se praticarem certos atos,
do tipo: “considere as alternativas A e B para a prática do ato X”. Na pesquisa que fiz
com precedentes judiciais, não encontrei casos em que a soft law tenha sido invocada
como fundamento jurídico para anular ou deixar de reconhecer laudos arbitrais.
Por outro lado, até por seu caráter flexível e não-obrigatório, a soft law pode ser usada
como “laboratório de regulação”, campo de testes da adequação e conveniência de se
disciplinarem novos temas no futuro – até por hard law. Se uma prática específica
generaliza-se a tal ponto que legisladores ou instituições arbitrais resolvem inseri-la
em lei ou regulamento, talvez seja porque essa regra seja mesmo bem-vinda afinal.
Dois exemplos são a conferência preliminar e parte das Técnicas da CCI para Controle
de Tempo e Custos na Arbitragem, incorporadas ao regulamento de arbitragem da
instituição.
Pode nos falar mais sobre o caráter técnico da Soft Law processual?
Os principais veículos de hard law aplicáveis na arbitragem internacional, os tratados e
as leis nacionais, são o resultado de processo que conta com a atuação de profissionais
como legisladores, políticos e diplomatas, muitas vezes não especializados ou pouco
afeitos à prática da arbitragem. Obviamente, não quero dizer que tais instrumentos
sejam atécnicos; é comum que a elaboração de leis e tratados em matéria de
arbitragem seja acompanhada do trabalho de especialistas na área. Mas esse processo
conta com a participação de atores externos ao universo da arbitragem, ao contrário
do que normalmente ocorre com a soft law, o que dá a esta última relativa vantagem
no oferecimento de um produto mais técnico. Isso não reflete necessariamente um
déficit de qualidade daqueles atores externos, mas sim o fato de que devem atender a
outros e variados interesses. Em especial, os interesses políticos dos Estados ou
constituintes que representam.
Já os instrumentos de soft law são normalmente o produto do trabalho exclusivo de
especialistas internacionais experientes e diretamente envolvidos com a realidade da
arbitragem. São os próprios árbitros, advogados e membros de câmaras arbitrais que
os criam e modificam, no atendimento de seus próprios interesses. Mais que isso, as
ferramentas de soft law são construídas no âmbito de organizações também
especializadas em conceber, discutir, negociar e monitorar soluções para tornar a
arbitragem um mecanismo cada vez mais eficiente de resolução de disputas (CCI, IBA,
UNCITRAL, CIArb, CPR, SCC, ICDR etc.). Esse modo de formação da soft law é
especialmente ajustado para a criação de regras e diretrizes destinadas a regular em
detalhes questões do procedimento e do processo arbitral. Ao se pretender oferecer
disciplina para temas complexos como, por exemplo, a produção de documentos
eletrônicos (e-disclosure), o sigilo de determinadas fontes de prova (evidentiary
privileges) ou conflitos de interesses dos árbitros, é preciso garantir ao máximo que as
ferramentas regulatórias produzidas sejam altamente técnicas.
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André Abbud fala ao Jornal Carta Forense sobre Soft Law