SERVIÇO Do tamanho de um fio de cabelo cortado 100 mil vezes, as nanopartículas são uma revolução na tecnologia já presente na vida do consumidor, mas seus riscos à saúde e ao meio ambiente ainda são pouco conhecidos REPRODUÇÃO TECNOLOGIA Imagens de peças de “nanoarte”, vencedoras de um concurso da Universidade Tecnológica de Nanyang (Singapura) O mundo nanométrico invade (discretamente)) o mercado S ubstâncias que circulam pelo corpo e mudam de coloração ao detectar uma célula cancerígena, luvas resistentes que não podem ser cortadas com uma faca, vidros e cerâmicas autolimpantes, remédios que atuam apenas sobre o órgão doente para não afetar outras partes do corpo, derramamentos de óleo que podem ser confinados com 30 Revista do Idec | Julho 2006 o uso de nanopartículas, uma língua eletrônica mais sensível que a humana para efetuar a distinção de sabores. Apesar de a nanotecnologia ainda parecer para grande parte da população uma cena de ficção científica, já é realidade em diversos países, inclusive aqui no Brasil. Não temos ainda estudos suficientes que atestem a segurança dessa nova tecnologia para a saúde e o meio ambiente, mas é incontestável a revolução que as nanopartículas já iniciaram. Inclusive na área de consumo. A nanotecnologia é a ciência que trabalha com nanopartículas, algo em torno de um bilionésimo do metro. Se nós dividirmos um fio de cabelo por 100 mil vezes, chegamos à escala nanométrica. Apesar do tamanho tão difícil de imaginar, a nanotecnologia trabalha com moléculas grandes, de acordo com o professor Henrique Eisi Toma, do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (IQ-USP). “O nanômetro já é uma escala na qual vamos encontrar moléculas grandes, estruturas mais complicadas. Justamente na escala nanométrica é que as moléculas adquirem capacidade de realizar alguma tarefa. Dizemos que elas se tornam inteligentes. Nesse estágio, as moléculas formam conjuntos grandes que encerram informações.” E essas informações são a chave do encantamento dessa ciência. E também de seu possível uso ameaçador. A partir do momento em que os cientistas podem decifrar o que carrega cada nanopartícula e conseguem modificá-la, um mundo de inovações se abre. Depois disso, qualquer material pode ser transformado e melhorado. A questão que surge a partir daqui é: a humanidade tem garantias de que essa inovação tecnológica será usada apenas para o progresso? MOLÉCULAS DO FUTURO Apesar de seus resultados começarem a se multiplicar nos últimos anos, a nanotecnologia tem quase 50 anos. Em 1959, quando o físico Richard Feynman divulgou que era possível condensar todo o conteúdo da Enciclopédia Britânica na cabeça de um alfinete, deu-se o primeiro passo para que essa ciência entrasse na vida de todas as pessoas. Hoje em dia, já se sabe que é possível incluir, na cabeça de um alfinete, não apenas todo o conteúdo da Enciclopédia Britânica, mas todo o conteúdo já produzido no mundo. A novidade dessa ciência é a descoberta sobre a função das nanopartículas: com a descoberta dessa função, os cientistas também abrem caminho para a criação de novas partículas. Em breve, qualquer material poderá ser produzido a partir de nanopartículas. Apesar de se relacionar a coisas minúsculas, a nanotecnologia já movimenta somas de dinheiro gigantescas. A estimativa é de que em dez anos o mercado mundial de produtos e processos baseados em nanotecnologia movimente até US$ 1 trilhão. No Brasil, no entanto, algumas poucas ações do governo não chegam a ser um incentivo aos cientistas e ao desenvolvimento da nanotecnologia no país. Em 19 de agosto de 2005, por exemplo, foi lançado o Programa Nacional de Nanotecnologia (PNN) pelo Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT). Nada de concreto, entretanto, tem sido feito pelo Programa, que, de acordo com Toma, passa por fases de agitação e de esquecimento, sem que, no entanto, se viabilize uma real política de desenvolvimento da nanociência. Em 2001, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) lançou um edital para a formação das Redes Cooperativas de Pesquisa Básica e Aplicada em Nanociência e Nanotecnologia. Surgiram 27 propostas, das quais 12 foram aprovadas. Essa quantidade de centros de pesquisa, entretanto, é irrisória para que o Brasil não perca o bonde da nanotecnologia. Na Alemanha, por exemplo, são mais de 400 os centros de pesquisa em atuação. Para Luiz Nunes de Oliveira, pesquisador de nanotecnologia do Instituto de Física de São Carlos (USP), os investimentos são muito pequenos. “Para este ano, o governo federal tinha a promessa de investir cerca de R$ 70 milhões em um programa, mas até agora nada deslanchou. Mundo afora, os maiores investimentos vêm de empresas, mas no Brasil estas têm pouca tradição de investimento em pesquisa avançada.” “A partir de nanopartículas de ouro, por exemplo, com modificações químicas ao redor da molécula, pode-se colocar qualquer coisa. Se pusermos um antígeno [substância que pode desencadear uma resposta imunológica específica], a molécula vai se grudar ao anticorpo, e quando isso acontecer, a partícula muda de cor, fica azul. Qual a aplicação disso? Você pega as nanopartículas, trata com antígeno especial para um tumor, por exemplo, e injeta no corpo. Quando ele enconRevista do Idec | Julho 2006 31 TECNOLOGIA trar a célula tumoral, vai ficar azul, avisando que ali há um tumor. A partir desse uso das nanopartículas pode-se fazer um diagnóstico clínico. E vinte gotas desse material custam cerca de US$ 800 no Brasil, porque é um produto importado. O interessante financeiramente é conseguirmos fazer essas coisas aqui”, raciocina Toma. RISCOS E BENEFÍCIOS DO MESMO TAMANHO cancerosas ou reparar danos feitos pela radiação; outros poderiam transportar drogas de forma bastante específica diretamente para a região do corpo com problemas. Atualmente já é bastante plausível o uso de nanossistemas para a veiculação de drogas e o tratamento de inúmeras doenças. Uma simples injeção pode liberar milhares e até milhões de partículas magnéticas, ou nanoímãs, na corrente sanguínea de uma pessoa. Essas partículas podem, a seguir, ser conduzidas para uma região específica do corpo por meio de um campo magnético externo. Uma aplicação possível para esse sistema é o transporte de drogas quimioterápicas especificamente para a área do tumor, sem que essas drogas afetem os tecidos normais. Considerando que a quimioterapia tem, normalmente, efeitos adversos muito sérios, essa aplicação tem uma importância considerável. Mas não podemos deixar de lado o conhecimento dos riscos que essa nova tecnologia pode acarretar: “as IDEC Quando entramos no campo da saúde e da nanobiotecnologia, as inovações devem ser vistas com cautela. Os efeitos positivos da utilização de nanopartículas para a detecção de um câncer, por exemplo, podem ser gigantescos. Mas também são necessários anos de estudo para termos certeza de que a saúde do ser humano não será prejudicada. Na área da nanobiotecnologia é possível a invenção de dispositivos minúsculos que seriam capazes de percorrer todo o organismo para encontrar e destruir vírus ou células TECNOLOGIA “O homem pode usar [a nanotecnologia] tanto para o bem quanto para o mal”, alerta Toma 32 Revista do Idec | Julho 2006 nanoestruturas caem na região das biomoléculas, e o organismo é programado para reagir contra coisas grandes, mas não para reagir contra coisas pequenas do tamanho de moléculas. O lado bom é que se a sua nanopartícula for tratada com coisas que fazem bem ao organismo, como vitaminas, nutrientes, medicamentos, ótimo, vai ter uma ação espetacular. Mas você também pode colocar uma coisa ruim, e aí pode ocorrer um efeito reverso. O homem tem que saber usar isso. Ele pode usar tanto para o bem quanto para o mal”, alerta Toma. Já na área de produtos de uso doméstico, Oliveira não vê riscos, por exemplo, de as partículas se desprenderem do material e prejudicarem a saúde, “porque elas estão inseridas na estrutura íntima dos materiais. Assim como ninguém precisa se preocupar com a possibilidade de liberação do flúor (um elemento terrivelmente corrosivo, quando isolado), que entra na composição de muitas pastas de dentes, não é razoável imaginar que as nanopartículas vão se desprender de uma tinta ou de um material fabricado com processos nanotecnológicos. Como a fabricação de certos materiais poderá envolver a produção de nanopartículas, é importante a preocupação com a possibilidade de acidentes industriais, e isso já está levando alguns países a estudarem normas para evitá-los”. Independentemente da visão defendida, é inegável que, nos últimos anos, o acelerado avanço do conhecimento científico e de suas aplicações traz grandes oportunidades à humanidade e ameaças proporcional e potencialmente avassaladoras. Frente a isso, qualquer posição extrema – tanto atitudes passivas quanto atitudes antitecnológicas e anticientificistas – pode tornar as perspectivas de uma revolução com potencial benéfico em um grande malefício para toda a sociedade. Nanopartículas na prateleira J á há muitos produtos no mercado com propriedades modificadas e melhoradas pela nanotecnologia. Tintas automotivas resistentes à abrasão; a língua eletrônica desenvolvida por uma parceria entre a Embrapa e a USP, que é capaz de identificar vinhos por fabricante e ano de produção; cosméticos da marca Boticário; refrigeradores, condicionadores de ar, aspiradores de pó, lavadoras de roupa e televisores da Samsung são alguns dos exemplos. Nenhum dos manuais dos produtos da empresa coreana disponíveis na internet traz sequer uma informação sobre a tecnologia de ponta utilizada, e menos ainda qualquer advertência ao consumidor. Aqui, “Nano” é um belo nome, tão incompreensível quanto atraente, mas sobre o qual o consumidor nada sabe. “Fabricantes de tintas estão aproveitando a nanotecnologia para baratear e tornar mais atraentes seus produtos; empresas cujos produtos dependem vitalmente da lubrificação, tais como fabricantes de compressores ou de motores, investem em nanotecnologia para melhorar os lubrificantes; há também inúmeras aplicações em materiais mais resistentes, mais duráveis ou mais leves”, afirma Oliveira. A Suzano Petroquímica também pretende colocar no mercado, no segundo semestre, um plástico mais resistente, com propriedades de barreira. De acordo com o gerente de desenvolvimento de novos produtos da empresa, Cláudio Marcondes, uma maionese, por exemplo, embalada com esse plástico em que foi utilizada a nanotecnologia, terá menos moléculas de ar no recipiente (que terá uma “barreira”) e menor possibilidade de suas propriedades originais serem modificadas, além de menos probabilidade de que o cheiro chegue Projeções futuras No mundo nanométrico tudo é colorido. A asa de uma borboleta colorida, por exemplo, nos dá a impressão de que ali há diversos pigmentos. Mas não há nada: se picarmos essa asa, teremos um pozinho branco. Ampliando muitas vezes a asa da borboleta colorida, veremos que há diversas ranhuras muito pequenas, nanométricas, dentro dessa estrutura. Ranhuras tão pequenas que, quando a luz passa por elas, não tem como sair, e aí ocorre o efeito da cor. Naturalmente, uma borboleta pode ser colorida por causa dessas estruturas nanométricas ao ambiente, mesmo quando o produto passar do prazo de validade. Apesar das vantagens que uma tecnologia como essa pode trazer à conservação dos alimentos, é evidente que o consumidor estará deparando com técnicas desconhecidas que podem até mesmo burlar aspectos previstos na legislação de defesa de seus direitos. NANOTECNOLOGIA E O CDC É bom que fique claro que o Código de Defesa do Consumidor, obviamente, não previu o uso da nanotecnologia em produtos e serviços, mas seu artigo 8o, que trata do direito à informação, pode ser aplicado com tranqüilidade a essa nova questão. Melhorias à parte, pouco se sabe sobre os riscos que esses produtos podem vir a causar ao ser humano. Além de o direito à informação ser desrespeitado por muitos fabri- que formam as suas asas. No mundo nanométrico, como as dimensões dos objetos são do tamanho ou até menores que o comprimento de onda da luz, há a produção de efeitos cromáticos: surgem cores. No mundo prático, do consumo, por exemplo, a pintura de um carro pode ser feita com estruturas nanométricas. Não há necessidade de se colocar corante, simplesmente se estrutura a textura das ranhuras para cada cor diferente. “Nesse exemplo, temos uma pequena demonstração das possibilidades do mundo nanométrico”, conclui Toma. cantes. Produtos que utilizam a tecnologia nano nem sempre trazem essa informação ao consumidor, que, dessa forma, não pode optar pela utilização ou não de produtos com essa tecnologia. Para Oliveira, “como toda nova ciência, a nanotecnologia trará benefícios e prejuízos em qualquer uma das áreas. A preocupação exposta por alguns, de que processos nanotecnológicos possam fugir ao controle da humanidade e se transformar em catástrofes, parece fora de propósito. No entanto, o uso que será feito das novas tecnologias dependerá da índole das pessoas que as controlam, e é daí que se podem esperar efeitos negativos. Como essa tecnologia tende a se tornar corriqueira, muitas aplicações estarão ao alcance de indivíduos comuns, que tanto poderão fazer bom uso como mau uso desse conhecimento”. Revista do Idec | Julho 2006 33