R. Periodontia - Junho 2010 - Volume 20 - Número 02
PÊNFIGO VULGAR: REVISÃO DE LITERATURA E RELATO
DE CASO CLÍNICO
Penphigus vulgaris: literature review and a case report
Simone Angélica de Faria Amormino1, Antônio Augusto de Moura Barbosa 2
RESUMO
O Pênfigo vulgar é uma doença auto-imune, vesículobolhosa, crônica e grave, caracterizada pela formação de
auto-anticorpos IgG contra as glicoproteínas desmogleína
1 e 3, ocasionando a acantólise do epitélio. Acomete pele
e mucosas, dentre elas a mucosa bucal, faríngea, laríngea,
esofágica, nasal, conjuntiva e genital. Clinicamente, apresentam-se como erosões e ulcerações superficiais, distribuídas ao acaso na mucosa bucal. Tais lesões podem afetar qualquer local da mucosa bucal, entretanto, palato,
mucosa labial, ventre lingual e a gengiva são acometidos
com maior frequência. A incidência é rara, mas apesar disto, o pênfigo vulgar é uma doença importante que se não
tratada pode levar a morte. Este trabalho realiza uma revisão da literatura sobre o Pênfigo vulgar e descreve um caso
clínico, que evidencia a importância do diagnóstico precoce realizado pelo cirurgião dentista, uma vez que as primeiras manifestações desta doença são lesões bucais.
UNITERMOS: pênfigo vulgar, doença auto-imune,
doença mucocutânea. R Periodontia 2010; 20:47-52.
1
Mestranda em Periodontia pela Universidade Federal de Minas Gerais
2
Especialista em Periodontia pela Universidade Federal de Minas Gerais
Recebimento: 22/03/10 - Correção: 30/04/10 - Aceite: 27/05/10
INTRODUÇÃO
Pênfigo é a designação de um conjunto de entidades patológicas de etiologia auto-imune, de
incidência rara, caracterizada pela formação de
bolhas intra-epiteliais na pele e em mucosas. Há
quatro tipos principais de pênfigo: foliáceo,
eritematoso, vulgar e vegetante (Neville et al., 2002;
Camacho-Alonso, 2005; Black et al. 2005; Jolly
et al., 2010).
O pênfigo vulgar é o mais comum dos tipos de
pênfigos. Entretanto, sua ocorrência é rara, com incidência estimada na população geral de um a cinco
casos por milhão de pessoas diagnosticadas a cada
ano (Robinson, et al., 1997).
O pênfigo vulgar ocorre raramente antes da terceira década de vida, sendo a média de idade no
momento do diagnóstico de 50 anos, embora casos
raros possam ser vistos na infância. Não há predileção por sexo. O pênfigo afeta, de preferência, os judeus, principalmente do grupo Asquenazim (Neville
et al., 2004; Scully & Challacombe, 2002; Santos et
al., 2009).
A etiopatogenia do pênfigo vulgar ainda não está
totalmente esclarecida, entretanto, os autores são
unânimes em afirmar sua natureza auto-imune, evidenciada pela presença de auto-anticorpos específi47
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cos para o epitélio estratificado escamoso (Willians, 1989;
Eversole, 1994; Heaphy et al., 2005; Milner et al., 2005).
Segundo Azulay & Azulay (1999), a sede primária da
doença seria o cimento intercelular da camada espinhosa
de Malpighi, embora não se saiba o motivo pelo qual esse
cimento se torne antigênico e induza à produção de autoanticorpos, principalmente do tipo IgG.
Os auto-anticorpos do tipo IgG, mais especificamente
IgG1 e IgG4, agem contra as glicoproteínas desmogleína 1 e
desmogleína 3, pertencente à família das cadeínas, as quais
estão localizadas nos desmossomos do epitélio da pele,
mucosas ou no soro dos pacientes afetados. Tais anticorpos
promovem a r uptura das pontes intercelulares.
Consequentemente as células perdem sua adesão, o que
caracteriza o fenômeno da acantólise, havendo a formação
de fendas intra-epiteliais. A ligação antígeno-anticorpo induz a ativação de proteinases, dentre elas destaca-se o
plasminogênio ativado, que após liberado pelos
queratinócitos, transforma-se em plasmina, que promove a
lise da substância intercelular (Williams, 1989; Hashimoto,
2003; Parlowski et al., 2003; Santos et al., 2009; Jolly et al.,
2010).
A participação de fatores genéticos na predisposição para
pênfigo vulgar foi observada a partir de estudos onde foi
demonstrado que a expressão do antígeno de
histocompatibilidade HLA-A26 parece predispor ao desenvolvimento da doença. Contudo, para que o pênfigo vulgar
possa se desenvolver é necessário a presença de fatores
endógenos, como defeitos imunológicos e exógenos, como
vírus, drogas e agentes físicos (Camacho-Alonso et al. 2005;
Scully & Challacombe, 2002; Jolly et al., 2010).
O estudo de Milner et al. (2005) mostrou que mecanismos apoptóticos podem estar presentes no processo de
acantólise. Estes autores demonstraram que nas lesões de
pênfigo vulgar que acometem a pele, havia ceratinócitos
apoptóticos e fatores ativadores antes que ocorresse a
separação celular. A metodologia da pesquisa utilizou
culturas de ceratinócitos e de pele orgânica e observaram
que os auto-anticorpos que induziam a acantólise estavam
associados com acúmulo celular de fatores pro-apoptóticos
como: Receptor Fas, Fas Ligante, Bax, proteína P53 e
caspases ativadas 1,3 e 8. Os autores concluíram que a
apoptose pode ser a causa da acantólise e não um fenômeno secundário.
O pênfigo vulgar caracteriza-se pela formação de bolhas ou vesículas de diâmetros variáveis, de ocorrência superficial ou profunda de conteúdo seroso claro, purulento
ou sanguinolento, que uma vez rompidas, originam erosões
superficiais irregulares, com coloração avermelhada e com
sintomatologia dolorosa que logo são recobertas por um tipo
de pseudomembrana, e são circundadas por eritema difuso
(Barrientos et al., 2004). Estas lesões acometem pele e
mucosas oral, faríngea, laríngea, esofágica, nasal, conjuntiva
e genital (Mignogna et al., 2001).
As primeiras manifestações clínicas do pênfigo vulgar
desenvolvem-se, na maioria dos pacientes, na mucosa bucal, cujas lesões precedem as cutâneas em um período de
até um ano ou mais (Endo et al., 2005). O exame clínico
mostra erosões e ulcerações distribuídas ao acaso na mucosa.
As lesões podem acometer qualquer região da mucosa bucal, entretanto, palato, mucosa labial, mucosa jugal, ventre
de língua e gengiva (gengivite descamativa), estão entre os
mais frequentemente envolvidos. É raro o paciente relatar a
presença de bolhas ou vesículas intra-orais, e tais lesões dificilmente podem ser identificadas pelo exame clínico, por
causa da rápida ruptura do teto fino e friável das bolhas
(Neville et al., 2002; Femiano et al., 2005; Scully &
Challacombe, 2002). Em relação à sintomatologia, o indivíduo portador da doença, apresenta ardor intenso, odor fétido e sialorréia, resultando em dificuldade de deglutição e
fonação (Sciubba, 1996; Scully & Challacombe, 2002).
O elemento semiotécnico para um diagnóstico mais simples do pênfigo vulgar é a verificação do sinal de Nikolsky.
Este é positivo quando ocorre a formação de uma bolha ao
se friccionar o epitélio nas proximidades das lesões já existentes, devido à facilidade de separação das células epiteliais.
Embora este sinal seja de grande valia, não é patognomônico
do pênfigo vulgar, podendo ser observado na grande maioria das lesões vesículo-bolhosas (Castro, 1992; Neville et al.,
2004; Heaphy et al., 2005; Milner et al., 2005; Jolly et al.,
2010).
Os espécimes de biópsia do tecido perilesional caracterizam-se microscopicamente por uma separação intra-epitelial
(vesícula ou bolha intra-epitelial) acima da camada basal das
células do epitélio, sendo que esta permanece aderida à lâmina própria subjacente. Algumas vezes, toda a camada
superficial do epitélio está descamada, deixando somente
as células da camada basal, que são descritas com uma aparência que lembra “carreira de pedras tumulares”. No espaço vesicular são encontrados, com frequência, grupos de
células que apresentam alterações degenerativas tais como
tumefação dos núcleos, perda dos desmossomos, formato
arredondado ou ovóide e hipercromatismo, sendo denominadas de células de Tzanck. Estas são resultantes da
acantólise celular em decorrência do edema pré-vesicular. No
tecido conjuntivo, podem ser encontrados leucócitos
polimorfonucleares e linfócitos em número variados. Ao contrário da maioria das doenças bolhosas, o pênfigo vulgar é
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Figura 11: Área de crosta no lábio inferior
Figura 33: Lesão vesículo – bolhosa e ulceração no lábio superior, além de extensas crostas no
lábio inferior
Figura 22: Áreas de ulceração e erosão no 1/3 final do palato duro, palato mole e orofaringe
Figura 44: Áreas de erosão e ulceração na mucosa jugal direita.
caracterizado por escassez de infiltrado inflamatório no líquido da vesícula, exceto nos casos em que existe infecção
secundária (Williams, 1989; Weinberg, et al., 1997; Neville et
al., 2002).
O diagnóstico do pênfigo vulgar deve se basear na análise de um conjunto de fatores, dentre eles, os aspectos clínicos, a manobra semiotécnica do sinal de Nikolsky, biópsia
no tecido adjacente às lesões para realização de exame
histopatológico e de imunofluorescência direta de tecido
perilesional, fresco ou submetido à solução de Michel
(Camacho-Alonso et al, 2005; Neville et al, 2002; Scully &
Challacombe, 2002; Santos et al., 2010).
O pênfigo vulgar, sendo uma doença auto-imune
sistêmica, deve ser tratado primeiramente com
corticosteróides sistêmicos, idealmente por um médico experiente em terapia imunossupressora (Enginner et al., 2001;
Neville et al., 2002; Endo et al., 2005). Este tratamento pode
estar associado ou em combinação ou não com outras dro-
gas imunossupressoras, como azatioprina. Alternativas
incluem: ciclosporina, ciclosfosfamida, prostaglandina
E2, clorambucil, levamizol e imunoglobulinas (Engineer
et al., 2001; Neville et al., 2002). De acordo com Engineer et
al. (2001), o efeito esperado do uso isolado ou combinado
desses fármacos é a redução da produção de autoanticorpos.
Segundo Black et al. (2005), quanto maior a precocidade do diagnóstico, mais cedo o tratamento poderá ser iniciado, permitindo a administração de doses menores de
corticosteróides, reduzindo assim, as reações adversas e
melhorando o prognóstico.
A relevância maior para a realização desse trabalho é
mostrar a importância do diagnóstico precoce dessa doença pelos cirurgiões-dentistas, uma vez que as primeiras manifestações são, em geral, lesões bucais. É uma doença que
não tem cura, apenas controle, cabendo ao profissional a
orientação para o tratamento adequado.
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Figura 5: Áreas de erosão e ulceração na mucosa jugal esquerda
Figura 6: Áreas de erosão e ulceração no dorso da língua
CASO CLÍNICO
Paciente W.G.F, gênero masculino, leucoderma, 26 anos
de idade, compareceu à clínica de Estomatologia da Faculdade de Odontologia da Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais, encaminhado por seu médico para avaliação
de lesões vesículo-bolhosas, sintomáticas na cavidade oral.
Estas apresentavam um tempo de evolução de quatro meses, sendo que o primeiro sinal foi uma dor de garganta.
Posteriormente, apareceu uma “ferida” no palato e múltiplas lesões bolhosas dolorosas, sem história de manifestação anterior na boca. O médico havia solicitado um exame
anti – HIV para o diagnóstico dessas lesões, cujo resultado
foi negativo.
Na história médica pregressa, o paciente relatou ter
herpes de garganta há sete anos. Após ter consultado
vários profissionais da área da saúde, o mesmo afirmou
que para o tratamento destas lesões foram prescritos:
Figura 7: Áreas de erosão e ulceração no ventre da língua
Figura 88: Fragmento de mucosa revestido por epitélio estratificado pavimentoso
paraceratinizado exibindo degeneração hidrópica, acantólise da camada espinhosa e fenda intra
– epitelial (HE 40x).
violeta de genciana, nistatina, fluconazol, zovirax e
amoxicilina. O paciente não relatou possuir nenhum tipo de
hábito ou vício.
Ao exame clínico extra – oral, observou-se face atípica,
ausência de edemas ou cadeia linfática palpável. Notou-se a
presença de uma ligeira assimetria facial, que não comprometia a harmonia facial. Neste exame verificou-se também
a presença de crosta no lábio inferior (Figura 1) e não havia
vesículas ou bolhas na pele.
Ao exame clínico observou–se a presença de poucas lesões vesículo-bolhosas, com tendência a romperem facilmente, de diâmetros variáveis, de conteúdo seroso claro e sanguinolento, deixando uma área hemorrágica. Havia várias
áreas de erosões e ulcerações superficiais irregulares. Estas
lesões localizavam-se no 1/3 posterior do palato duro, palato mole, orofaringe, lábio superior e inferior, mucosa jugal
bilateralmente, dorso e ventre lingual, assoalho bucal e rebordos alveolares (Figuras 2 a 7). Durante o exame clínico
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Figura 99: Maior detalhe a presença da fenda intra-epitelial e células da camada basal aderidas
ao tecido conjuntivo (HE 100x)
Figura 10
10: Presença de células de Tzanck no interior das fendas intra-epiteliais (HE 400x)
intra–oral o paciente relatou sintomatologia dolorosa, não
sendo possível a realização da manobra semiotécnica do sinal de Nikolsky.
Diante do quadro clínico, as hipóteses diagnósticas levantadas foram: Pênfigo Vulgar, Penfigóide Benigno de
Mucosa e Líquen Plano Erosivo. Para confirmação do diagnóstico, realizou–se uma biópsia perilesional na região do
lábio superior.
Ao exame histopatológico (Figuras 8 a 10), os cortes
mostraram fragmento de mucosa revestido por epitélio
estratificado pavimentoso paraceratinizado exibindo degeneração hidrópica, acantólise da camada espinhosa e fenda
intra – epitelial com presença de células basais aderidas ao
tecido conjuntivo. Na lâmina própria, observou-se tecido
conjuntivo fibroso com moderado infiltrado inflamatório
mononuclear.
Com base nos achados clínicos e histopatológicos, o diagnóstico foi de Pênfigo Vulgar. O paciente foi submetido a
tratamento com corticosteróide. Inicialmente foi prescrito o
uso de uma ampola de Disprospam intramuscular, com o
objetivo de promover a rápida regressão das lesões e controlar a dor do paciente, para que o mesmo pudesse se alimentar melhor. Posteriormente prescreveu-se o uso de
prednisona 60mg/dia por trinta dias, e em seguida 40mg/
dia por dois meses e 20mg/dia por mais dois meses. Atualmente, o paciente encontra-se em acompanhamento na
clínica de Estomatologia da Pontifícia Universidade Católica
de Minas Gerais.
a odontologia, uma vez que as manifestações orais precedem à sistêmica. Assim, o cirurgião-dentista tem um importante papel no diagnóstico precoce desta doença melhorando o prognóstico, o qual nem sempre é favorável ao paciente. Esta doença não tem cura apenas controle. Quanto
mais cedo o paciente se submeter ao tratamento, menor é a
quantidade de esteróide prescrito para controlar esta doença, menores são os efeitos colaterais e maior será a adesão
do paciente ao tratamento proposto. Este tratamento deve
ser rígido e controlado, e o paciente deve ser acompanhado
por uma equipe multidisciplinar.
ABSTRACT
Pemphigus Vulgaris is an autoimmune, vesicle-bullous,
chronic and severe disease, characterized by the formation
of IgG auto antibodies against desmoglein 1 and 3, leading
to acantholysis of the epithelium. This disease affects skin
and mucous membranes, as oral mucosa, pharynx, larynx,
esophagus, nasal, conjunctiva and genital. Clinically, it is
presented as erosions and ulcers distributed in the oral
mucosa. These injuries can affect any site of the oral mucosa;
however, other areas as palate, labial mucosa, ventral tongue
and gingiva are affected more frequently. Although the
incidence is rare, pemphigus vulgaris can lead to death unless
properly treated. This study provides a review of the literature
and describes a clinical case of pemphigus vulgaris showing
the importance of early diagnosis made by the dentist, once
the first manifestations of this disease are oral lesions.
CONCLUSÃO
O Pênfigo Vulgar é uma doença de grande interesse para
UNITERMS: pemphigus vulgaris, auto-immune disease,
mucocutaneous disease.
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