Comarca de Porto Alegre 2ª Vara da Fazenda Pública do Foro Central _________________________________________________________________________ Processo nº: 001/1.05.0276762-0 (CNJ:.2767621-04.2005.8.21.0001) Natureza: Usucapião Autor: Guerino S A Construções e Incorporações Réus: Estado do Rio Grande do Sul Sucessão de Marcílio Santana Bastos Adão Batista de Oliveira Ernesto Correa de Oliveira Terezinha Carneiro de Oliveira Alberto Hodara Jorge Abrahao Odette Abrahao Moraes Leonidas Menin de Moraes Maria Leonice Abrahao Moraes Pedro Motta Romeu Iracema Abrahao Romeu Marilia Abrahao Romeu Pedro Jorge Abrahao Molloona Maria Rosaria Abrahao Mollona Celi Ivone Silva Abrahao Vera Abrahao Lorena Abrahao Juarez Abrahao Joelmar Abrahao Joel Abrahao Joelcir Abrahao Renato Paulo Nunes Abrahao Marisa Abrahao Maria Helena Abrahao Schorr Arthur Chagas Gerdau Johannpeter (assistente dos réus). Juíza Prolatora: Carmen Carolina Cabral Caminha. Vistos etc. Trata-se de ação de usucapião ajuizada, originariamente, por GERALDO DA SILVA FIGUEIRÓ contra ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL e ERNESTO CORREIA DE OLIVEIRA, objetivando, em apertada síntese, o reconhecimento do domínio de área de terras localizadas na Ilha das Flores, com aproximadamente 47 hectares. Sustentou que ocupava o terreno de forma mansa e pacífica, há mais de vinte (20) anos. Alegou que sua posse, somada a de seu antecessor, datava de mais de oitenta (80) anos. Pediu a procedência da ação. Juntou documentos. Realizada audiência de justificação, citado, o Estado do Rio Grande do Sul contestou (fls. 140/153) arguindo, em preliminar, a impossibilidade jurídica do pedido, na medida em que o imóvel pretendido usucapir tratava-se de ilha fluvial, constituindo bem de domínio do Estado, pertencente ao Parque Estadual Delta do Jacuí, insuscetível de usucapião. Arguiu, ainda, a nulidade do processo por falta de citação do(s) cônjuge(s) do(s) confinante(s). No mérito, alegou, em suma, não ter sido provado o domínio sobre a área objeto do usucapião, tampouco que fora desmembrada do patrimônio público. Pediu o acolhimento das preliminares ou, no mérito, a improcedência da ação. Juntou documentos. O autor manifestou-se. Processado o feito, sobreveio sentença (fls. 224/229), a qual foi anulada pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, desde a contestação, diante da ausência de citação das esposas dos confinantes (fls. 279/283), o que foi levado a efeito. Ernesto Correia de Oliveira contestou arguindo, em preliminar, a ausência de citação pessoal daquele em cujo nome estava transcrito o imóvel. No mérito, asseverou, em síntese, ser possuidor da área usucapienda (fls. 294/296). Pediu o acolhimento da preliminar ou, no mérito, a improcedência da ação. Juntou documentos. A Massa Falida de Guerino S/A Construções e Incorporações requereu sua habilitação no feito (fl. 632), na condição de sucessora de Geraldo da Silva Figueiró, em face de cessão dos direitos possessórios, tendo sido deferida sua intervenção na qualidade de assistente. Posteriormente, foi autorizado pelo juízo, a sua habilitação no polo ativo de Guerino S.A Construções e Incorporações. Instadas quanto às provas que pretendiam produzir, o autor requereu o julgamento do feito no estado em que se encontrava, ao passo que Alberto Hodara requereu a realização de perícia e produção de prova oral. Durante a instrução, foram colhidos os depoimentos de testemunhas, bem assim como realizadas duas perícias no processo (fls. 656/669 e 1436/1471). Foi determinada a citação dos sucessores de Simão Abraão, os quais seriam lindeiros do imóvel, inicialmente pela via editalícia e, após, pessoalmente, os quais se manifestaram objetivando a preservação dos limites da área de sua propriedade (fls. 727/729). Alberto Cesar Hodara requereu sua intervenção, na condição de assistente, em virtude da aquisição dos direitos possessórios de Ernesto Correia de Oliveira (fls. 1172/1177), o que foi deferido pelo juízo (fl. 1233). Juntado laudo técnico pericial pela parte autora e, após, pelo assistente Alberto Cesar Hodara. Arthur Chagas Gerdau Hohannpeter requereu sua admissão para intervir no processo na condição de assistente dos réus (fls. 1375/1378), o que foi deferido (fl. 1405). Sobreveio o segundo laudo pericial, do qual as partes manifestaram-se, inclusive elaborando quesitos suplementares. Declarada encerrada a instrução, as partes foram instadas a apresentar memoriais (fl. 1583). O Estado requereu a realização de perícia (levantamento planialtimétrico), a fim de identificar e delimitar área de reserva, o que foi indeferido pelo juízo (fls. 1677/1678). Irresignado, o Estado agravou de instrumento, o qual foi convertido em retido, segundo consulta no sistema Themis. O Ministério Público exarou parecer final opinando pela procedência da ação. Vieram-me os autos conclusos. É O RELATO. PASSO A DECIDIR. A nulidade de citação editalícia dos sucessores da família Abraão merece rejeição, vez que compareceram nos autos espontaneamente, tendo ciência do processo o que, na ausência de causação de prejuízo, não se vislumbra motivo para anular referido ato. A preliminar de impossibilidade jurídica do pedido confunde-se com o mérito da lide propriamente dito, motivo pelo qual com esse será enfrentada. Inicialmente, mantenho a decisão que indeferiu a perícia requerida pelo Estado a fim de identificar e delimitar área de reserva, pelos seus jurídicos e próprios fundamentos, já que o Tribunal de Justiça converteu o Agravo de Instrumento em Agravo Retido, conforme consulta feita no Sistema Themis. Outrossim, diante do fato de que a presente ação tramita há longos 38 anos, faz-se necessário prestar a almejada jurisdição, pondo um fim à lide, de modo a não eternizá-la no tempo, malgrado as determinações dadas no feito em apenso, estreitamente ligado a este, as quais ora caem por terra, porquanto prejudicadas com a prestação jurisdicional neste e no feito em apenso. Gizo que as partes foram regularmente intimadas acerca do encerramento da instrução, apresentando memoriais sem qualquer irresignação, motivo pelo qual preclusa a questão atinente à prova. Tecidas essas considerações, as quais reputo necessárias ao enfrentamento da quaestio, como muito bem apanhado pela nobre Promotora de Justiça, em seu judicioso parecer de fls. 1703/1719, a qual peço vênia para me reportar durante essa sentença, tenho que para o desate da matéria posta à apreciação do Poder Judiciário, faz-se necessário averiguar se a área usucapienda é ou não integrante do domínio público, na medida em que os bens públicos são insuscetíveis de aquisição prescritiva. O art. 183, parágrafo 3º, da Constituição Federal reza que “os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião”. Na mesma linha, o art. 102, do Código Civil Brasileiro dispõe que “os bens públicos não estão sujeitos a usucapião”. A Súmula nº 340 do STF enuncia que “Desde a vigência do Código Civil, os bens dominiais, como os demais bens públicos, não podem ser adquiridos por usucapião”. Ora, nessa perspectiva, não paira dúvida de que o terreno objeto da ação de usucapião situase na Ilha das Flores, uma das ilhas fluviais que formam o Delta do Jacuí, cumprindo verificar, como bem apontou o parquet a partir de que data as ilhas fluviais localizadas em áreas não fronteiriças passaram a ser consideradas bens públicos de domínio dos Estados-membros. A fim de evitar fastidiosa tautologia, transcrevo o parecer ministerial neste ponto, porque bem analisa a matéria, fazendo uma digressão desde a Constituição de 1934. “A Constituição de 1934, em seu artigo 20, fez referência somente às ilhas fluviais nas zonas fronteiriças, atribuindo o domínio destas à União. Aos Estados-membros, por sua vez, conferiu o domínio sobre as margens dos rios e lagos navegáveis, destinadas ao uso público, se por algum título não forem de domínio federal, municipal ou particular, bem como sobre os bens de propriedade estatal por força da legislação em vigor (artigo 21, inc. II). O Decreto nº 21.235/32, de outro giro, assegurava aos Estados o domínio dos terrenos marginais e acrescidos dos rios navegáveis, que correm em seus territórios, das ilhas formadas nesses rios, e das lagoas navegáveis, em todas as zonas não alcançadas pela confluência das marés, conforme afirmado no art. 1º do diploma legislativo em questão, in verbis: Art. 1º Fica assegurado aos Estados o domínio dos terrenos marginais e acrescidos naturalmente dos rios navegáveis que correm em seus territórios, bem como das ilhas formadas nesses rios, e o das lagoas navegáveis, em todas as zonas não alcançadas pela influência das marés. Parágrafo único. Igual domínio será exercido sobre os terrenos marginais e acrescidos dos rios que, embora não navegáveis, mas caudais e sempre corredios, contribuam com suas águas para tornar outros navegáveis, estendendo-se esse domínio às respectivas ilhas. Nessa trilha, a lição de Hely Lopes Meirelles: “As ilhas dos rios e lagos públicos interiores pertencem aos Estados-membros e as dos rios e lagos limítrofes com Estados estrangeiros são do domínio da União. É o que se infere do disposto no art; 20, IV, da DF, que, embora não se refira às águas públicas internas, declara expressamente que se incluem entre os bens da União 'as ilhas fluviais e lacustres nas zonas limítrofes com outros países.' Essas reservas das ilhas das zonas limítrofes para a União importa reconhecimento de que as demais, das águas públicas interiores, permanecem no domínio dos Estados-membros, à semelhança das terras devolutas que lhes foram transferidas pelo art. 64 da CF de 1891. Este entendimento não é pacífico entre os autores e julgados, que ora consideram tais ilhas pertencentes à União, ora ao Estado-membro. O Código de Águas nada esclareceu a respeito, limitando-se a dispor, sobre as ilhas ou ilhotas que se formarem no álveo de uma corrente, que pretendem ao domínio público, no aso das águas públicas, e ao domínio particular, no caso das águas comuns ou particulares (art. 23). Mas, precedentemente, o Dec. 21.235, de 2.4.32, já havia assegurado aos Estados-membros o domínio dos terrenos maginais acrescidos naturalmente dos rios navegáveis que corem em seus terrtórios, bem como o das ilhas formadas nesses rios e o das lagoas navegáveis, em todas as zonas não alcançadas pela influência das navegáveis, em todas as zonas não alcançadas pela influência das marés (art. 1). Tal decreto, embora esparso e originário do Governo Provisório, não colide com o Código de Águas, nem afronta a Constituição, pelo que continua em vigência. A confusão sobre o domínio das ilhas fluviais resulta da indevida sujeição ao regime das águas que as cercam. Mas ilha é terra e, como tal, há de subordinar-se ao regime jurídico das terras.” Posteriormente, a Constituição Federal de 1967, em seu artigo 5º, dispôs, expressamente, que as ilhas fluviais se incluem dentre os bens de domínio dos Estados, desde que não se enquadrem como ilhas cujo domínio é reconhecido à União, segundo o artigo 4º da mesma Carta Política.” Diante das considerações feitas pela nobre Promotora, a ilha fluvial na qual se situa o imóvel objeto da ação de usucapião possui status de bem público desde o longínquo ano de 1932. A prova carreada aos autos demonstra que a posse da área pretendida originariamente por Geraldo da Silva Figueiró, sucedida por Guerino, remonta ao ano de 1935, no mínimo, o que somado à posse dos antecessores daquele, que remonta ao século XIX, considerada a possibilidade conferida pelo art. 552, do Código Civil de 1916 (acessio possessionis), conferelhe o direito de usucapir o imóvel objeto da lide. Parte da gleba foi adquirida por transmissão hereditária, parte, mediante posse antiga. Constam, ainda, dos autos, títulos de propriedade de porção da gleba datados de 1891 (fls. 78 e seguintes). No mesmo sentido, a prova testemunhal colhida tanto em sede de justificação (fls. 132/133), como por ocasião da instrução (fls. 383 e seguintes). De tudo que se colhe no presente processado é que, com efeito, a fração de terras objeto da lide se encontrava no domínio particular pelo tempo hábil à caracterização da prescrição aquisitiva extraordinária por ocasião do advento da regra que declarou as ilhas fluviais de domínio público, sendo evidente que referida norma protegeu os direitos de propriedade em face do princípio da garantia ao direito adquirido, não sendo possível expropriar pura e simplesmente terras pertencentes a particulares. Como a posse já se encontrava consolidada em mãos do requerente pelo transcurso do tempo e constituindo o usucapião modo originário de aquisição da propriedade, a qual se perfectibiliza, com efeitos ex tunc no último dia do prazo previsto para sua consecução, aperfeiçoado o suporte fático, como bem referiu a Promotora de Justiça, o possuidor adquire a propriedade independentemente de declaração judicial. A sentença que reconhece o usucapião possui natureza meramente declaratória, o que significa dizer que apenas reconhece/chancela uma situação fática preexistente. Assim, adquire-se pelo usucapião no momento em que se implementam os requisitos legais, de forma que admissível o reconhecimento judicial da possibilidade de usucapir áreas situadas em ilhas fluviais, porque positivado o transcurso do prazo prescricional aquisitivo anteriormente ao advento da norma antes referida. No mesmo sentido da fundamentação constante dessa sentença encontra-se o posicionamento do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul: “APELAÇÃO CÍVEL. USUCAPIÃO (BENS IMÓVEIS). ILHA DA PINTADA. BEM PÚBLICO. IMPRESCRITIBILIDADE APÓS A VIGÊNCIA DO DECRETO Nº 21.235/32. AUSÊNCIA DE PROVA DA POSSE QUANTO AO PERÍODO ANTERIOR. IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO. I. Consoante o disposto no artigo 26, inciso III, da Constituição da República, as ilhas fluviais e lacustres não pertencentes à União se incluem entre os bens dos Estados. Dessa forma, como bens públicos que são, dotados da característica da imprescritibilidade, não há falar em aquisição da propriedade com base em prescrição aquisitiva. Aplicação da Súmula nº 340 do Supremo Tribunal Federal. II. Contudo, considerando o domínio pelo Estado apenas após a vigência do Decreto nº 21.235 de 1932, que regulou a matéria no âmbito federal, para fins de procedência do pedido formulado em ação de usucapião, no mínimo deve ser comprovada a existência de posse com animus domini no período anterior àquele ano. Caso concreto em que a parte autora não se desincumbiu de tal demonstração, quando o ônus lhe competia, a teor do artigo 333, inciso I, do Código de Processo Civil. RECURSO DESPROVIDO À UNANIMIDADE.” (Apelação Cível Nº 70032347718, Décima Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Liege Puricelli Pires, Julgado em 21/01/2010). “APELAÇÃO CÍVEL. USUCAPIÃO. ILHAS FLUVIAIS. PROPRIEDADE DE PARTICULAR ANTERIOR ÀS NORMAS CONSTITUCIONAIS E INFRACONSTITUCIONAIS QUE TRANSFERIRAM O DOMÍNIO DAS ILHAS FLUVIAIS E LACUSTRES NÃO PERTENCENTES À UNIÃO AO ESTADO. POSSIBILIDADE JURÍDICA DE RECONHECIMENTO DA PRESCRIÇÃO AQUISITIVA. 1. POSSIBILIDADE JURÍDICA DE RECONHECIMENTO DA PRESCRIÇÃO AQUISITIVA. No caso, assentando-se a pretensão resistida do Estado unicamente na tese de impossibilidade jurídica do pedido do autor, vez que a ilha fluvial onde esta localizada a área usucapienda constitui bem público, resta superada diante da prova documental colacionada nos autos que demonstra que há muitos anos a área integra o patrimônio privado, sendo possível o reconhecimento da prescrição aquisitiva. 2. REDUÇÃO DOS HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. Fixação que atende as especificidades do caso concreto. Sentença mantida. APELAÇÃO DESPROVIDA.” (Apelação Cível Nº 70025843343, Vigésima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Glênio José Wasserstein Hekman, Julgado em 18/02/2009). “AÇÃO DE USUCAPIÃO ORDINÁRIO. IMÓVEL LOCALIZADO EM ILHA FLUVIAL. PROPRIEDADE EXERCIDA POR PARTICULARES DESDE OS IDOS DE 1895. POSSIBILIDADE DE DECLARAÇÃO DA PRESCRIÇÃO AQUISITIVA. 1.Demonstrado pela prova colhida que o imóvel, localizado em ilha fluvial, era de propriedade de particulares desde o ano de 1895, época em que não havia qualquer restrição legislativa a impedir o título de domínio em nome deles, possível se mostra a declaração da prescrição aquisitiva, pois ditas terras não passaram ao domínio do Estado. Na verdade, nos termos do art. 5º da Constituição Federal de 1967, somente passaram para o domínio do Estado as terras, localizadas em ilhas fluviais, não incluídas no patrimônio privado, o que não é o caso. 2. Comprovado que os autores exercem a posse há mais de trinta anos, com justo título, animus domini, e sem oposição, impõe-se a procedência da ação com a declaração de domínio postulada. APELAÇÃO PROVIDA.” (Apelação Cível Nº 70006352363, Décima Nona Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: José Francisco Pellegrini, Julgado em 26/08/2003). Consoante já asseverado alhures, a parte autora preenchia, por ocasião da formulação do pedido, os pressupostos para a pretensão aquisitiva extraordinária, quais sejam: a) posse; b) tempo; c) animus domini e d) objeto hábil. De outro turno, mais uma vez corroborando o parecer ministerial, tenho que mesmo que o imóvel integre o Parque Estadual do Delta do Jacuí tal circunstância não tem o condão de elidir a pretensão exposada na inicial, porque o autor já se constituíra em proprietário da área em data anterior ao advento da normativa já referida alhures, de modo que o reconhecimento posterior de que se trataria de área de preservação permanente, por força do Decreto Estadual nº 24.385/1976, que instituiu o Parque Estadual Delta do Jacuí, apenas se constitui em restrição administrativa, mero fator limitativo do uso e gozo dos direitos decorrentes da propriedade do imóvel. Aliás, diga-se de passagem, que o referido Decreto ressalva, em seu artigo 5º, os direitos de propriedade e posse da área de sua abrangência. Outro não é o entendimento do Tribunal de Justiça do Estado, consoante seguem exemplificativamente as ementas abaixo: “APELAÇÃO CÍVEL. USUCAPIÃO. OPOSIÇÃO DO MUNICÍPIO. REQUISITOS DA POSSE. ÁREA DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE. LIMITES DA PROPRIEDADE PÚBLICA. A parte usucapiente comprovou a posse mansa, pacífica e ininterrupta de um imóvel exercida desde 1992. A titularidade sobre imóvel, se pública ou privada, não guarda relação com a existência de área preservação permanente no local, nem afeta a pretensão de usucapir, cuja procedência encontra fundamento na prova e na lei, de acordo com as circunstâncias demonstradas O Município apelante não demonstrou ser a área de propriedade pública, de acordo com a prova documental produzida, corroborada pela sentença de improcedência em reintegração ajuizada em face dos usucapientes.” (Apelação Cível Nº 70054140322, Vigésima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Carlos Cini Marchionatti, Julgado em 08/05/2013). “APELAÇÕES CÍVEIS. AÇÃO DE USUCAPIÃO. ÁREAS DE PRESERVAÇÃO. POSSIBILIDADE. RESTRIÇÕES ADMINISTRATIVAS. DESISTÊNCIA. DISCORDÂNCIA. PROSSEGUIMENTO. SUCUMBÊNCIA. Ainda que determinadas áreas possuam restrições quanto ao uso, por se tratarem de áreas de preservação permanente, possível é a aquisição de domínio pelo usucapião. A desistência da autora não foi eficaz, pois a discordância do réu fez prosseguir a demanda. A discussão sobre a matéria encontra-se, todavia preclusa ante a inércia do réu apelante frente aos fatos. Art. 183 do CPC. O feito foi reativado sem que o requerido tenha manifestado qualquer oposição à época. Redimensionamento da sucumbência e sua redistribuição para o fim de refletir o real decaimento de cada parte. Preliminares rejeitadas, apelação da autora improvida e parcialmente provida a do autor.” (Apelação Cível Nº 70015741747, Décima Nona Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Guinther Spode, Julgado em 05/12/2006). Por outro lado, gize-se que eventual condição de posseiro de Ernesto Correia de Oliveira sobre parte da área postulada não altera os rumos do presente processado, porque o domínio derivado da prescrição aquisitiva extraordinária já se encontrava implementado à época em que o réu passou a ocupar parte da área usucapienda. Ademais, quaisquer pretensões possessórias esgrimidas posteriormente ao ano de 1975 não se mostram relevantes para o deslinde da causa, porque a oposição – requisito exigido pela lei para a prescrição aquisitiva extraordinária – à posse somente se deu quando já implementado o período da prescrição aquisitiva. Segundo Caio Mário da Silva Pereira1: “usucapião é a aquisição da propriedade ou outro direito real pelo decurso do tempo estabelecido e com a observância dos requisitos instituídos em lei. Mais simplificadamente, tendo em vista ser a posse que, no decurso do tempo e associada às outras exigências, se converte em domínio, podemos repetir, embora com a cautela de atentar para a circunstância de que não é qualquer posse senão a qualificada: Usucapião é a aquisição do domínio pela posse prolongada.” Da lição acima colacionada, conclui-se que a posse é elemento básico da usucapião, mas não é qualquer posse que gera aptidão à obtenção da usucapião. A posse ad usucapionen deve ser contínua, pacífica, incontestada, com intenção de dono, no prazo estipulado. Portanto, a posse não pode ter intervalos, vícios, defeitos, tampouco contestação. De outra banda, diversamente do sustentado pelos réus, a posse atual não é requisito para a caracterização do usucapião, bastando, como já dito alhures, o preenchimento dos requisitos legais ensejadores da prescrição aquisitiva. Ademais, é de se salientar que a prova pericial elaborada traz a pá de cal sobre esse ponto da matéria, na medida em que a expert concluiu que a área usucapienda encontrava-se perfeitamente delineada, referindo não haver descrição apta a situar a gleba adquirida, mediante cessão, por Ernesto Correia de Oliveira. Adiante, em seu laudo, a perita afirma que não existe confusão entre a área usucapienda e aquela que era de propriedade de Ernesto Correia de Oliveira e que presentemente é parcialmente ocupada por Hodara e Arthur Johannpeter, havendo identidade apenas em relação à porção de terras que posteriormente foi ocupada por Ernesto Correia de Oliveira. Por fim, é de se chamar à atenção para o fato de que o próprio interveniente, Alberto Cesar Hodara, admite, na ação correlata, mais precisamente na petição inicial, que o imóvel originariamente pertenceu a Geraldo Figueiró, referindo que o seu imóvel (de Alberto) encontrar-se-ia dentro de um todo maior que pertencia a Geraldo da Silva Figueiró. Diante dessas considerações, tenho que malgrado o longo e tortuoso iter percorrido pelo processo, as formalidades legais foram cumpridas, do que eventuais modificações no contexto de fato acerca de lindeiros, como bem asseverou a Promotora de Justiça atuante nesta vara, possuidores ou interessados, decorrente do longo tempo transcorrido desde a propositura da ação – junho de 1975 – desimportam ao desfecho da causa, pena de eternização da demanda, motivo pelo qual com a prolatação da presente decisão cai por terra a ordem dada no feito em apenso (fls. 787 e verso e seguintes). Relativamente à arguição de nulidade da citação editalícia dos sucessores da família Abraão, já rechaçada ao início dessa fundamentação, insta relembrar que a perícia levada a efeito é conclusiva no sentido de que não há identidade entre a área pretendida e a extensão titulada pelos sucessores de Simão Abraão, sendo que atenta análise da petição por eles protocolizada revela que apenas pretendiam resguardar os limites de sua propriedade no feito. ANTE O EXPOSTO, julgo procedente a ação de usucapião intentada por GERALDO DA SILVA FIGUEIRÓ em desfavor de ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL e ERNESTO CORREIA DE OLIVEIRA. Sucumbentes, arcarão os réus com o pagamento das custas de forma proporcional, sendo 50% para cada um deles. Os honorários advocatícios do procurador do autor, observada a mesma proporcionalidade, serão pagos pelos réus no montante de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) para cada um, corrigidos pelo IGP-M desde a data da prolatação desta sentença, até o efetivo pagamento, o que faço com base no art. 20, § 4º, do CPC, devido ao tempo de tramitação da demanda. Intimem-se, inclusive os assistentes. Publique-se. Registre-se. Intimem-se. Porto Alegre, 26 de setembro de 2013. Carmen Carolina Cabral Caminha, Juíza de Direito. (1) PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: direitos reais. 18 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. v. 4. p. 138.