UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES PRÓ-REITORIA DE PLANEJAMENTO E DESENVOLVIMENTO DIRETORIA DE PROJETOS ESPECIAIS PROJETO A VEZ DO MESTRE SAMBA, EDUCAÇÃO E CIDADANIA – UM DIÁLOGO POSSÍVEL AUTORA: Adair da Silva Machado ORIENTADOR: Jorge Tadeu Vieira Lourenço, M. Sc. Rio de Janeiro, RJ, fevereiro/2002 1 UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES PRÓ-REITORIA DE PLANEJAMENTO E DESENVOLVIMENTO DIRETORIA DE PROJETOS ESPECIAIS PROJETO A VEZ DO MESTRE SAMBA, EDUCAÇÃO E CIDADANIA – UM DIÁLOGO POSSÍVEL ADAIR DA SILVA MACHADO Trabalho Monográfico apresentado como requisito parcial para obtenção do Grau de Especialista em Psicopedagogia 2 AGRADECIMENTOS Agradeço a minha madrinha Glória pelo estímulo e incentivo para a conclusão deste curso de grande valia para a minha vida profissional , a minha irmã por ter me acompanhado nesta jornada árdua e a minha amiga Patrícia pelo auxílio na escolha do tema abordado. ii3 RESUMO Quando a criança chega à escola já vem com uma bagagem construída através das vivências do seu cotidiano. Mesmo não tendo a aquisição formal da lecto-escrita, com certeza já teve algum contato com as letras, através de outdoors, rótulos, propagandas, etc., por fazer parte de uma sociedade letrada. Porém, em geral, quando a criança entra para a Classe de Alfabetização ela é comumente considerada como analfabeta. Aprender a ler e a escrever, ou seja, tornar-se alfabetizado significa adquirir uma tecnologia, a de codificar a língua escrita (escrita) e a de decodificar a língua escrita; (ler). Não basta, porém, adquirir essa tecnologia de codificar e decodificar a língua escrita é indispensável apropriar-se da escrita, articulando-a ou dissociando-a das práticas de interação oral, conforme as situações vivenciadas. Segundo teorias do ensino da Língua Portuguesa, além da alfabetização, é preciso atingir o letramento, que pode ser definido como um estado ou codificação de quem não só sabe ler e escrever, mas exerce as práticas sociais de leitura e de escrita que circulam na sociedade em que vive, conjugando-as com as práticas sociais de interação oral. A questão é, justamente, compreender como se dá na prática pedagógica, o trabalho desenvolvido a partir daquelas duas concepções antagônicas sobre a aquisição da leitura e da escrita. 4 iii SUMÁRIO INTRODUÇÃO 05 OBJETIVO DE ESTUDO 07 METODOLOGIA 08 1. OS CONCEITOS DE LETRAMENTOS E ANALFABETISMO 09 2. LETRAMENTO E PRÁTICAS PEDAGÓGICAS 11 3. LEITURA E ESCRITA NA EDUCAÇÃO INFANTIL 16 4.OS ESTÁGIOS DA APRENDIZAGEM DA LEITURA E DA ESCRITA 20 CONCLUSÃO 22 BIBLIOGRAFIA 23 ANEXOS 24 5 INTRODUÇÃO Por um bom tempo tem-se visto nas escolas um uso para leitura e escrita que se esgota dentro de seus muros, pois os professores quase sempre trabalham com estas áreas do conhecimento de forma bem artificial, sem possibilitar o confronto de diversos usos que se pode fazer da língua no dia-a-dia. Isto demonstra uma concepção mecanicista de alfabetização que privilegia o aprendizado das convenções. O que se percebe com esta prática, em termos de resultados, é um saber também escolar, também válido para as avaliações convencionais, mas que não leva a um entendimento concreto do processo da leitura e escrita pelo qual o aluno está se alfabetizando. Desta forma percebe-se, também, que o saber veiculado nos textos e produções escritas das crianças têm pouco ou nada a ver com o que se passa no mundo que as cerca. O trabalho da professora alfabetizadora leva à percepção de que as formas de trabalho mais tradicionais não têm proporcionado avanço sobre o uso adequado da língua; e que, principalmente, no processo de alfabetização não se consegue descobrir a natureza dos textos usados em sala de aula pois, em sua maioria, a preocupação do educador é fixar e repetir sílabas estudadas, sem perceber o que se tem feito para a formação do leitor crítico. Isto demonstra uma prática pedagógica que deixa de considerar o conceito, ou seja, a vida e acontecimentos reais do mundo em que a criança vive e o processo de produção de conhecimento desta criança. Observar, registrar e intervir na aprendizagem do educando requer do professor domínio sobre seu objeto de conhecimento, sobre o processo de ensino-aprendizagem e uma percepção clara das necessidades e potencialidades do aluno. Assim o educador enfrenta o desafio de estar motivado a fazer pesquisas para criar alternativas que facilitem a aprendizagem. O outro desafio é o educador estar motivado para aprender. Quem não é capaz de aprender, não está apto a ensinar. Deve-se deixar que as crianças construam a sua autonomia através da 6 busca de solucionar situações problema. A criança coloca problemas, constrói sistemas interpretativos, pensa, raciocina e inventa, buscando compreender o processo social particularmente complexo que é a escrita e a leitura. Então, porque isto nem sempre é levado em conta no momento em que a criança entra para a Classe de Alfabetização? 7 OBJETIVO DE ESTUDO Este Trabalho pretende, com o apoio em modernas propostas teóricas, distinguir os conceitos de letramento e analfabetismo, diferenciar as concepções de leitura e escrita em Classe de Alfabetização, identificar os autores das concepções pedagógicas analisadas, apresentar particularidades do letramento e práticas pedagógicas e explicar os estágios de aprendizagem da leitura e escrita. 8 METODOLOGIA Este Trabalho aborda duas concepções antagônicas, referentes à aprendizagem da lecto-escrita. Partindo dos conceitos de letramento e analfabetismo, procurou-se esclarecer como se desenvolve o processo de aprendizagem da leitura e da escrita na Educação Infantil e explicitar a importância do preparo do educador para oferecer atividades significativas à criança da Classe de Alfabetização. A revisão de literatura envolveu aspectos teórico-práticos do ensino e da aprendizagem das técnicas de leitura e de escrita como etapas do processo de comunicação. 9 CAPÍTULO 1 OS CONCEITOS DE LETRAMENTO E ANALFABETISMO Enquanto a alfabetização se ocupa da aquisição da escrita por um indivíduo, ou grupo de indivíduos, o letramento focaliza os aspectos sócio-históricos da aquisição de um sistema escrito por uma sociedade. Os estudos sobre o letramento, desse modo, não se restringem somente àquelas pessoas que adquiriram a escrita, isto, é, aos alfabetizados. Buscam investigar também as conseqüências da ausência da escrita a nível individual, mas sempre remetendo ao social mais amplo, isto é, procurando, entre outras coisas, ver quais características da estrutura social têm relação com os fatos postos. A ausência da escrita, tanto quanto a sua presença, em uma sociedade são fatores importantes que atuam ao mesmo tempo como causa e conseqüência de transformações sociais, culturais e psicológicas, às vezes radicais. “O letramento representa o coroamento de um processo histórico de transformação e diferenciação no uso de instrumentos mediadores. Representa também a causa da elaboração de formas mais sofisticadas do comportamento humano que são chamados” processos mentais superiores ", tais como: raciocínio abstrato, memória ativa, resolução de problemas etc ". (VYGOTSKY, 1984, P.21) Em termos sociais mais amplos, o letramento é apontado como sendo produto do desenvolvimento do comércio, da diversificação dos meios de produção e da complexidade crescente da agricultura. Ao mesmo tempo, dentro de uma visão dialética, torna-se uma causa de transformações históricas profundadas, com o aparecimento da máquina a vapor, da imprensa, do telescópio, e da sociedade industrial como um todo. Nas sociedades industriais modernas, lado a lado com o 10 desenvolvimento científico e tecnológico, decorrentes do letramento, existe um desenvolvimento correspondente, a nível individual, ou de pequenos grupos sociais, desenvolvimento este que independe da alfabetização e escolarização. Existe, no entanto, o lado negativo, o lado da perda: esse desenvolvimento não ocorre à custa de nada. Ele, na verdade, aliena os indivíduos de seu próprio desejo, de sua individualidade, e muitas vezes, de sua cultura e historicidade. A alienação, portanto, também é um produto do letramento. A ciência, produto da escrita, e a tecnologia, produto da ciência, são elementos retificadores, principalmente, para aquelas pessoas que, mesmo não sendo alfabetizadas, são, no entanto, "letradas", mas não têm acesso ao conhecimento sistematizado nos livros, compêndios e manuais. Muitas vezes, com a conseqüência do letramento, vemos grupos sociais não-alfabetizados abrirem mão do próprio conhecimento, da própria cultura, o que caracteriza, mais uma vez essa relação como de tensão constante entre poder, denominação, participação e resistência, fatores que não podem ser ignorados quando se procura entender o produto humano por excelência que é a escrita e seus decorrentes necessários: a alfabetização e o letramento. "Uma forma de acabar com o etnocentrismo parece ser começar a considerar alfabetização e letramento como processos interligados, porém separados enquanto abrangência e natureza. Outro modo é passar a considerar o letramento com "continuam". Pois desse modo estaremos evitando a classificação preconceituosa decorrentes da aplicação das categorias "letrado” e "iletrado”; bem como a confusão que usualmente se faz com essas categorias e, respectivamente, "alfabetizado" e "não - alfabetizado". Estaremos separando processos de escolarização, que, comumente acompanha o processo de alfabetização." (TFOUNI, 1995, p.24) O analfabetismo é caracterizado como um problema muito complexo na medida em que reúne qualidades negativas em número assustador. Ele também é considerado antidemocrático devido a sua significativa incidência sobre a população pobre; é elitista, pois mantém afastados da escola os que mais precisam dela e, finalmente é cruel e humilhante, estigmatiza o analfabeto como incapaz de atingir os padrões mínimos de desempenho propostos pelo mundo moderno, tecnológico e urbano no qual vivemos. 11 Existe um consenso entre os educadores de que o analfabetismo não é um problema isolado e que um indivíduo não escolhe voluntariamente ser analfabeto. O analfabetismo é determinado por um conjunto de fatores sociais indiretos, não-personalizados. Algumas pesquisas mostram que existe sistematicamente uma forte relação entre analfabetismo e pobreza. Assim, à medida que diminui o produto nacional bruto por habitante de um dado país, diminuem as chances de seus cidadãos aprenderem a ler e escrever. O analfabetismo e as carências educativas são problemas estruturais e estão profundamente relacionados com os fatores sociais, políticos, culturais e econômicos. Os analfabetos e aqueles que abandonam muito cedo o sistema escolar encontram-se nos níveis mais baixos da sociedade, naqueles onde as pessoas, para satisfazer suas necessidades básicas, contam somente com sua própria força de trabalho e nada, além disso, nem sequer educação. Pois elas se encontram desempregadas ou subempregadas, vivendo em situações de saúde, nutrição e habitação bastante precárias e com rendas familiares muito baixas. Em geral, a razão pela qual as pessoas não dominam a arte de ler e escrever é a falta de oportunidade. Como grupo, os analfabetos não são estúpidos, ignorantes ou incompetentes. Alguns teóricos usam como critério central de análise do analfabetismo a idéia de correspondência entre a existência de analfabetos e a organização econômica. Esses teóricos afirmam que o analfabetismo coaduna-se com as características estruturais e a forma de organização de determinadas sociedades, para as quais ele é, em certa medida, funcional, necessário. 12 CAPÍTULO 2 LETRAMENTO E PRÁTICAS PEDAGÓGICAS A escola brasileira vem vivendo há algumas décadas um intenso movimento de discussão sobre as bases teórico-metodológicas que organizam seu funcionamento e seu cotidiano político-pedagógico. Novas questões se impõem pelas mudanças sociais que vão sendo geradas principalmente pelo forte avanço do conhecimento em muitas áreas de saber (e pela criação de outras), por novas tecnologias , bem como por questões de natureza ética que são determinadas e condicionadas pelo delineamento de novas tensões e contradições vividas em nosso espaço de vida. Esse novo,entretanto, se constrói no interior do processo histórico marcado por outras tantas tensões e contradições. Dentro desse quadro rapidamente esboçado acima, a alfabetização tem-se destacado como área de profunda revisão conceitual. Três fatores, principalmente, têm determinado novas reflexões sobre a prática pedagógica, especialmente a prática alfabetizadora (1) Os históricos e elevados índices de analfabetismo da população brasileira, intimamente associados a uma organização social marcada fortemente pela má distribuição de bens econômicos e culturais; (2) A qualidade precária da alfabetização que vem sendo possibilitada aos nossos alunos; e (3) O alto índice de defasagem idade/série encontrado nas escolas. A pergunta que se estabelece é : estamos apagando incêndio ? Parece que sim. Mas será que adiantaria só apagar incêndio? Agora,parece que não . Duas questões antigas que continuam se mostrando relevantes sã: por quê e para quê alfabetizamos. Várias respostas são possíveis a estas questões. Depende de como entendemos a realidade e dos sonhos que temos em relação à sociedade em que queremos viver. Estas são, 13 portanto, questões políticas. Um modo de olhar para esse problema (que é como eu penso) é o que considera a construção de uma sociedade mais justa relacionada a uma melhor distribuição dos bens econômicos e culturais para que cada vez mais pessoas tenham acesso a esses bens. Desse modo, o sentido maior da alfabetização é de ensinar/aprender a língua escrita como um bem cultural, isto é, na perspectiva tanto do espaço político-cultural que essa linguagem ocupa na sociedade, quanto dos usos e funções que a escrita tem nos diferentes grupos sociais. Assim, possibilitamos não só a compreensão de outras formas de olhar a realidade, como ampliamos a compreensão e a participação de todos na sociedade. Trabalhamos durante muito tempo ensinando a língua escrita como uma tecnologia, ou seja, tentando ensinar à criança o funcionamento do código alfabético (juntando consoantes e vogais; misturando sílaba para formar palavras; expressando fonemas e relacionando com letras etc), considerando que assim a criança aprenderia a ler e a escrever. Não mostramos á criança uma linguagem viva, usada em muitos lugares e por variadas pessoas por vários fins: colocada ou escrita nas paredes, distribuída em panfletos, transformada em histórias, lendas e poesias nos livros, em notícias nos jornais, em receitas de bolos e de médicos, em anotação do jogo do bicho, em listas de compras, em mensagens no computador. Isso...ensinamos a escrita e deixamos de lado ...a linguagem escrita. Nem todos os alunos se saem mal. Quem já tem um bom contato com a linguagem escrita, percebe o método de alfabetização como um método, porque já sabe que aquilo não é linguagem. Quem tem pouco trânsito com a linguagem escrita, pode acabar pensando que frases como:O boi baba.Bebê baba. Biba baba no bebê., constituem a linguagem escrita – o que é verdade. Frases como essas falseiam a realidade da linguagem escrita. O fato é que temos hoje uma legião de crianças, jovens e adultos que, tendo passado alguns anos na escola e sendo considerados alfabetizados, mal conseguem escrever o nome e mal lêem um pequeno texto. Quer 14 dizer, a aprendizagem da língua escrita não se constitui na apropriação da linguagem escrita como um saber, como um bem cultural, que alargasse o horizonte de conhecimentos e de participação social daquelas pessoas. Muitas vezes o sentimento que fica é de desvalorização pessoal, social. A escola funciona como um instrumento de segregação: “não sei nada mesmo”; “não consigo aprender “; “não tenho jeito para isso, não”. O que acontece muitas vezes, é que determinados modos de falar estão mais distantes da escrita do que outros. Para as crianças falantes de variedades lingüísticas menos prestigiadas, o caminho é diferente daquelas cujo ambiente social está impregnado de linguagem escrita e de atividades escritas. Crianças com modos de falar diferentes percorrem caminhos diferentes para aprender a ler e a escrever. A noção de letramento vem ganhando terreno no sentido de dar uma dimensão à alfabetização e ao ensino da língua portuguesa de um modo geral, que os relacione ao papel que a linguagem escrita tem na sociedade, como essa linguagem é utilizada pelos campos de saber. Pensando desse modo,estamos integrando esses campos ao relacionar todos à linguagem. Quando formulamos um problema ou um desafio matemático, para as crianças, estamos trabalhando com uma determinada forma de organizar o real, que se traduz de uma determinada maneira do ponto de vista do discurso, ou seja, do modo como esse discurso é organizado sintático-semanticamente em função de tais conteúdos. Um texto histórico e um texto científico, por sua vez, apresentam outras organizações discursivas. E assim por diante. Quando trabalhamos determinados conteúdos/conhecimentos estamos também trabalhando novas formas de ler o mundo e novas textualidades. Banalizar os textos, simplificando-os, faz com que se percam essas diferenças que são fundamentais. Com certeza a noção de letramento não é uma noção salvadora ;é apenas uma outra forma de refletir sobre as práticas pedagógicas, para procurar cada vez mais aprofunda-la, fazendo com que nossos alunos possam ampliar a participação cidadã na sociedade. A língua escrita, sem dúvida, forma um cinturão de poder nessa sociedade. É preciso que todos consigam penetrar nele – professores e alunos, vivendo e assumindo de modo pleno seus discursos no embate com outros discursos muitas vezes divergentes. 15 Aprendemos/ ensinamos a ler e a escrever para ler o que já existe escrito, mas também para criar formas novas de ler e escrever a realidade, para construir referências novas para viver nesse mundo. Caso contrário, como pensar em mudança, em transformação? Somente um professor crítico, reflexivo e autônomo é capaz de desenvolver um trabalho com seus alunos no sentido da crítica, da reflexão e da autonomia e até mesmo entender que seus alunos pensam e refletem sobre a realidade e que podem criticá-la. Muitas vezes nos sentimos despreparados para realizar um trabalho diferente do que conhecemos. O medo, entretanto, não deve nos imobilizar. Podemos inaugurar modos novos de praticar a docência no processo, junto com nossos alunos, exercitando e ensaiando novas possibilidades de viver a prática pedagógica, aos poucos. O novo não nasce do nada. O novo nasce do que já conhecemos; o novo nasce, também, de novos olhares que lançamos para antigas questões; o novo nasce da insatisfação e da necessidade que geram o desejo de construir uma alfabetização mais voltada para a vida, para a complexa dinâmica social. 16 CAPÍTULO 3 LEITURA E ESCRITA NA EDUCAÇÃO INFANTIL A criança lê o mundo que a rodeia muito antes de um aprendizado sistemático da leitura e escrita. Esse aspecto é percebido facilmente quando da leitura de histórias, apreciação de livros sobre assuntos específicos: animais, meios de transportes, poesia, contos de fadas, da leitura de uma notícia de jornal, de uma receita de cozinha, um bilhete, etc. Todo esse trabalho é fundamental para que a criança de qualquer classe social construa ou perceba por si própria as diferentes funções da escrita e os seus diferentes contextos. Vale lembrar que muitas crianças percebem intuitivamente as funções da escrita. A escrita é considerada como um sistema de representação da língua, cuja aprendizagem significa a apropriação de um novo objeto do conhecimento. É uma linguagem feita apenas de pensamento e imagem, faltando-lhe qualidade musical, expressiva e de entonação. Ao aprender a escrever, a criança tem de se libertar do aspecto sensorial da linguagem e substituir as palavras pelas imagens das palavras. A escrita é também um discurso sem interlocutor, dirigido a uma pessoa ausente ou imaginária, ou a ninguém em particular, situação essa que, para a criança, é nova e estranha. A ação de escrever exige também da parte da criança uma ação de análise deliberada. Quando fala, a criança tem uma consciência muito imperfeita dos sons que pronuncia e não tem consciência das operações mentais que executa. Quando escreve, ela tem de tomar consciência da estrutura sonora de cada palavra, tem de dissecá-la e reproduzi-la em símbolos alfabéticos, que têm de ser minorizados e estudados de antemão. A escrita é o produto cultural por excelência. É, de fato, o resultado tão exemplar da atividade humana sobre o mundo, que o livro, subproduto mais acabado da escrita, é tomado como uma metáfora do corpo humano. A escrita pode ser tomada como uma das causas principais do aparecimento das civilizações modernas e do desenvolvimento científico, tecnológico e psico-social da sociedade nas quais foi adotada da maneira ampla. Por outro lado, não podem ser esquecidos 17 fatores como as relações de poder e dominação que estão por trás da utilização restrita ou generalizada de um código escrito. Gostaria de ressaltar que aqueles que acreditam numa teoria de aprendizagem cujo núcleo central é que as crianças estejam ativamente envolvidas em sua própria aprendizagem, crianças cujo jogo pré-escolar, na Educação Infantil, seja significativo para seu desenvolvimento conceptual e lingüístico, crianças que se preocupem e tratem de resolver os enigmas de sua vida diária, seguramente têm visto essas crianças participarem de muitas experiências de escrita. O desenvolvimento da escrita em crianças pequenas ocorre dentro um contexto sócio-cultural e isso deve ser levado em conta quando investigamos como a criança contribui pessoalmente para a aprendizagem. "A escrita pode ser concebida de duas formas muito diferentes e conforme o modo de considerá-la as conseqüências pedagógicas mudam drasticamente. A escrita pode ser considerada como uma "representação" da linguagem ou como um código de transcrição gráfica das unidades sonoras". (FERREIRO, 1995, p.10) Os indicadores mais claros das explorações que as crianças realizam para compreender a natureza da escrita são produções espontâneas, entendidas como tal as que não são resultado de uma cópia. Quando uma criança escreve tal como acredita que poderia ou deveria escrever certo "conjunto de palavras" está nos oferecendo um valiosíssimo documento que necessita ser interpretado para poder ser avaliado. As escritas infantis têm sido consideradas, displicentemente, como garatujas, "puro jogo", o resultado de fazer "como se" soubesse escrever. Aprender a lê-las, isto é, a interpretá-las é um longo aprendizado que requer uma atitude teórica definida. O modo tradicional de se considerar a escrita infantil consiste em se prestar atenção apenas nos aspectos gráficos dessas produções, ignorando os aspectos construtivos. E do ponto de vista construtivista, a escrita infantil segue uma linha de evolução surpreendentemente regular, através de 18 diversos meios culturais, de diversas situações educativas e de diversas línguas. A escrita não é somente um produto escolar, mas sim um objeto cultural, resultado do esforço coletivo da humanidade. Como objeto cultural, a escrita cumpre diversas funções sociais e tem meios concretos de existência, especialmente nas concentrações urbanas. A língua escrita é muito mais que um conjunto de formas gráficas. É um modo de a língua existir, é um objeto social, é parte de nosso patrimônio-cultural. "A leitura e a escrita têm sido tradicionalmente consideradas como algo que deve ser ensinado" e cuja "aprendizagem" suporia o exercício de uma série de habilidades específicas". (FERREIRO, 1995, p.42) Entretanto, Piaget afirma que todas as atividades da criança são "leituras da experiência", ou seja, quando ela leva um objeto à boca, quando agarra, puxa e encaixa objetos, quando ouve e imita sons, etc... Ela está LENDO o mundo que a cerca. A alfabetização deve ser entendida, como um processo que se inicia com a criança pegando, ouvindo, combinando e experimentando objetos. Ler, portanto, é a substituição de um código AUDITIVO/ORAL por um código VISUAL/ESCRITO. O que vem ocorrendo nas práticas pedagógicas, é que, os educadores, muitas vezes, não concebem a leitura como um processo construtivo e seqüenciado, que depende da globalidade das ações do sujeito na construção do seu próprio conhecimento. Em geral, a leitura, ou alfabetização, é vista como um momento especial de aquisição de um conhecimento específico, para o qual se volta toda ação pedagógica. O processo de leitura emprega uma série de estratégias. Uma estratégia é um amplo esquema operacional para obter, avaliar e utilizar informações. A leitura, como qualquer atividade humana, é uma conduta humana. As 19 crianças não respondem simplesmente aos estímulos do meio; encontram ordem e estrutura no mundo de tal maneira que podem aprender a partir de suas próprias experiências, antecipá-las e compreendê-las. Geralmente as escolas têm operado com o princípio de que a leitura e a escrita devem ser ali ensinadas. A instrução tradicional de leitura se baseia no ensino de sinais ortográficos, nomes de letras, relações letra-som, e assim sucessivamente. Está focalizada em aprender a identificar letras, sílabas e palavras. Não inserem a aprendizagem da leitura no contexto de um controle crescente sobre o processo. Por isto, à leitura é vista como um momento especial de aquisição de um conhecimento especifico, para o qual se volta toda a ação pedagógica. Por outro lado, não percebendo a seqüência natural desta assimilação e desconhecendo as etapas de desenvolvimento da criança, estes educadores impõem "métodos" e exaustivas repetições que, além de se revelarem inúteis, terminam por ser extremamente violentos para a criança. A necessidade de aprendizagem da leitura, em um determinado momento, passa a ser uma imposição social, pois amplia o campo de ação da criança e aumenta suas possibilidades de assimilar o mundo, de organizá-lo. Neste momento a criança aprende a ler facilmente. Para que isso aconteça, os educadores devem promover atividades e experiências que estimulem naturalmente a necessidade da criança de aprender a ler. Assim a leitura será facilmente assimilada. O educador então deverá estar mais preocupado em ampliar o campo de ações gerais da criança, em vez de ficar tentando alfabetizá-la, com a repetição de lições exaustivas. Não é mais difícil aprender a ler ou a escrever do que aprender a linguagem oral. Porém, os programas de instrução devem afastar-se das tradições de tratar a língua escrita como um tema escolar a ser dominado. Melhor ainda, devem basear-se numa compreensão do processo e no crescimento natural da criança dentro da língua escrita, para que atividades significativas de aprendizagem possam ser oferecidas às crianças em processo de aprendizagem. 20 CAPÍTULO 4 OS ESTÁGIOS DE APRENDIZAGEM DA LEITURA E DA ESCRITA Na continuação deste Trabalho gostaríamos de explicitar os estágios de aprendizagem da leitura e da escrita. Nível pré-silábico: caracterizado por uma busca de diferenciação entre as escritas produzidas, sem uma preocupação com as propriedades sonoras da escrita. Nesse nível, a criança explora tanto critérios quantitativos (variar a quantidade de letras de uma escrita para outra, para obter escritas diferentes) ou critérios qualitativos (variar o repertório das letras ou a posição das mesmas sem alterar a quantidade. Não existe a relação entre fonema/grafema. A correspondência entre a escrita e o nome é global. As partes da escrita não correspondem ainda às partes do nome, cada letra pode valer pelo todo e não tem valor em si mesma. Nível silábico: caracterizado pela correspondência entre a representação escrita das palavras e as suas propriedades sonoras. É a descoberta de que a quantidade de letras com que se vai escrever uma palavra pode ter correspondência com a quantidade de partes que se reconhece na emissão oral. Essas partes são as sílabas e em geral a criança faz corresponder uma grafia a cada sílaba. Pode servir qualquer letra convencional. Esse nível representa um salto qualitativo da criança, que supera, a etapa da correspondência global entre a forma escrita e a expressão oral atribuída. A hipótese silábica é uma construção da criança, que não é transmitida pelos adultos e pode coexistir com formas estáveis, isto é, palavras que a criança aprendeu a escrever globalmente. Nível silábico-alfabético: a evolução do nível silábico leva a criança a estabelecer que as partes sonoras semelhantes entre as palavras se exprimem por letras semelhantes. Neste nível, existem duas formas de correspondência entre sons e grafias: silábica. (sílaba é o som produzido por uma só emissão de voz) e alfabética (análise fonética e/ou analise dos fonemas, que são os 21 elementos sonoros da linguagem e têm nas letras o seu correspondente. O conjunto de letras é o alfabeto). Ou seja, a criança escreve parte da palavra aplicando a hipótese silábica, de que para se escrever uma sílaba é necessário apenas uma letra; e parte da palavra analisando todos os fonemas da sílaba. Nível alfabético: caracteriza-se pela correspondência entre fonemas e grafias. Existe a compreensão da escrita alfabética, onde todos os fonemas devem estar representados. A analise se aprimora e é possível a compreensão de que uma sílaba pode ter uma, duas, ou três letras. "Trabalhar a escrita como um sistema de representação da língua significa deslocar o eixo de compreensão para os aspectos levantados acima e não para os figurativos, como orientação da escrita, linearidade, perfeição da cópia etc. Esses últimos são facilmente superáveis pelas crianças”. (FERREIRO, 1985, p.03). A passagem da criança de um nível de conceitualização a outro está diretamente relacionada a um conhecimento anterior. O tempo em que ela permanece num mesmo nível é muito variável; por outro lado, essa evolução não é linear, pois a criança passa por avanços e recuos durante todo o seu processo de construção da escrita, ainda que seu desenvolvimento esteja diretamente relacionado com seu nível inicial de conceitualização. Vygotsky, outro teórico em que apoiamos nosso estudo, afirma que: “(...) A ação de escrever exige também da parte da criança uma ação de análise deliberada. Quando fala, a criança tem uma consciência muito imperfeita dos sons que pronuncia e não tem consciência das operações mentais que executa. Quando escreve, ela tem de tomar consciência da estrutura sonora de cada palavra, tem de dissecá-la e reproduzi-Ia em símbolos alfabéticos, que têm de ser memorizados e estudados de antemão. " (L.S. VYGOTSKY, 1979, p.131-2) 22 CONCLUSÃO Entender o mundo das letras , sobretudo nos centros urbanos, é para a criança , a possibilidade de começar a utilizar alguns códigos do mundo adulto, bem como a de dar significados consistentes as inúmeras grafias com as quais ela se defronta todos os dias. Sem dúvida é um processo muito rico para a criança e muito envolvente e desafiador para o educador. A criança caminha em seu processo de aprendizagem da escrita e da leitura quando ela possui uma teoria, uma hipótese que pode ser aplicada, verificada ou contestada. Caso contrário, ela se mobilizará em função de resultados, em função de cumprir tarefas, não se esforçando para compreender o sistema de representação da escrita. Essa atitude traz como conseqüência um avanço mais lento, ou mesmo uma estagnação. Outro ponto fundamental na atuação do professor é que sua atenção, não pode se limitar ao resultado final. A ênfase no certo e errado traz como contrapartida à mobilização da criança apenas em função do cumprimento da tarefa. Ao professor cabe saber entender a evolução do processo da criança, abrindo-lhe espaço para que ela possa aplicar suas hipóteses e avançar em seu conhecimento. Para alfabetizar, portanto, é preciso acompanhar, passo a passo, o desenvolvimento da criança como uma totalidade, proporcionando-lhe experiências cada vez mais ricas, correspondentes aos estágios que se encontram, tendo sempre em vista o estágio seguinte. 23 BIBLIOGRAFIA FERREIRO, Emília. Os processos de leitura e escrita. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998. __________. Reflexões sobre a alfabetização/Emília Ferreiro. São Paulo: Cortez, 1995 – (Coleção Questões da Nossa Época, v. 14 ). LIMA, Adriana Flávia Santos de Oliveira. Pré-Escola e Alfabetização – Uma proposta baseada em P. Freire e J. Piaget. Petrópolis: Vozes, 1999. SEBER, Maria da Glória. Psicologia do Pré-escolar – Uma visão construtivista. São Paulo: Moderna, 1995. SILVA, Maria Alice S. Souza. Construindo a Leitura e a Escrita: Reflexões sobre uma Prática alternativa é uma alfabetização. ed. 6. São Paulo: Ática, 1995. TFOUNI, Leda Verdiani. Letramento e Alfabetização/ Leda Verdiani Tfouni. São Paulo: Cortez, 1995 – (Coleção Questões da Nossa Época, v.47 ). 24 ANEXO A Comprovantes Acadêmicos