Viajantes do século XIX : uma escrita da história
da escravidão no Rio Grande do Sul
Vera Lúcia de Alencastro Vignol1
Resumo: Este artigo discorre sobre o negro no Rio Grande do Sul, no século XIX, a partir da análise dos textos
de Arsène Isabelle e Nicolau Dreys, dois estrangeiros que estiveram na região neste período. Este estudo também
estabelece conexões com a historiografia sobre o negro no Rio Grande do Sul.
Palavras-chave: Escravidão, viajantes, Rio Grande do Sul
O presente artigo foi elaborado a partir da monografia por mim apresentada como um
dos requisitos para a obtenção do título de Especialista em História do Mundo Afro-asiático
das Faculdades Porto-Alegrenses (FAPA), no ano de 2003, sob a orientação do Prof. Ms.
André Reis da Silva. Ela propôs uma perspectiva de estudo a partir da análise dos relatos de
dois viajantes estrangeiros que estiveram no Rio Grande do Sul, no século XIX, mais
especificamente dos trechos que falam sobre a escravidão no sul, correlacionando-os com a
presença do negro na historiografia relativa a este Estado.
As crônicas escritas por Arsène Isabelle e Nicolau Dreys mostram a visão de homens
oriundos de uma outra realidade, com ideais iluministas e referendados por outros parâmetros
de historicidade, que mostram no exterior uma certa imagem do Brasil e levam a discussões e
debates sobre as condições de trabalho e do “desenvolvimento” da nação brasileira. Essa
concepção de desenvolvimento relaciona-se a uma questão econômica e política com ideais de
modernização aos moldes europeus da época.
Este olhar mostra o atraso do sistema econômico e político brasileiro (baseado na mãode-obra escrava), pois estes relatos não se detêm nos aspectos humanos ou desumanos da
condição do negro. Desde meados do século XVIII, havia a penetração dos ideais iluministas
no Brasil e este ideário veio a ser o mote para muitas elaborações de cunho liberal e
abolicionista. Na história da historiografia sobre a escravidão no Rio Grande do Sul, a
presença do negro foi minimizada ou tratada como uma forma branda de escravidão. A
miscigenação foi negada por toda uma geração de historiadores brasileiros.
1
Especialista em História do Mundo Afro-asiático – FAPA. Professora da SMED/POA.
Monographia, Porto Alegre, n. 1, 2005
1
Disponível em:<http://www.fapa.com.br/monographia>
Os primeiros contatos com as fontes bibliográficas mostram que na historiografia
brasileira e mais especificamente, na sul-rio-grandense, a condição social do negro é bastante
restrita, pois as discussões, de modo geral, tratam-no como parte de um sistema produtivo,
tentando, inclusive, amenizar o problema da escravidão dita mais branda no Rio Grande do
Sul. Em uma segunda via, que não exclui a primeira, apenas as características raciais,
abordadas sob um aspecto determinista, são ressaltadas.
Quando se começa a interpretar a história do Brasil, deve-se destacar a historicidade das
múltiplas implicações que permearam a vida social brasileira, sua diversidade, especificidades
regionais, temporais e culturais. Nós não preexistimos à “colonização”, somos fruto dela. Os
negros e os índios, que estiveram implicados diretamente neste processo, buscaram, em
diferentes contextos, a superação dessa condição de subserviência. Foi um longo processo que
ainda mostra suas marcas. A literatura e a historiografia ajudam a construir e a perpetuar a
imagem de cada grupo étnico ou cultural dentro da história do país. Em função disso, estudar
a historiografia corresponde estudar o conhecimento histórico, que é a produção desse
conhecimento.
Na visão dos viajantes, o Brasil, como um todo, era motivo de estranhamento. As
diferentes regiões brasileiras eram vistas através do filtro de sua própria cultura, mas eles
escreveram crônicas sobre os aspectos vistos ou vividos bastante significativos para pensar o
contexto do período. Esses relatos foram muitas vezes desprezados pelos historiadores por
não serem construídos cientificamente, por não apresentarem provas documentais. Entretanto,
nos últimos anos, passou-se a valorizar estes depoimentos como testemunhos de época.
Os relatos dos viajantes, base desta discussão, foram escolhidos por apresentarem dois
pontos de vista semelhantes, porém com significados diferentes com relação à escravidão.
Isabelle passou apenas um ano no Brasil, visitando várias regiões, entre elas, o Rio Grande do
Sul, no ano de 1834. Dreys aqui se estabeleceu, por um período mais longo, entre 1817-1842.
Os relatos aqui considerados,como fontes primárias são valorizados pela riqueza de suas
narrativas que, apesar de não serem construídos cientificamente, são testemunhos de uma
época. Por este motivo, nos últimos anos, eles têm adquirido uma nova relevância dentro das
pesquisas históricas. Para iniciar esse debate, precisamos definir o conceito de historiografia
em que nos embasamos:
“Emprega-se comumente o termo historiografia no sentido da história escrita
e, percebendo as realizações humanas, independentes do campo em que se
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manifestam, integradas às conjunturas histórico-sociais concretas, também
se vê a historiografia como um produto da sociedade. A historiografia,
portanto, está integrada em um momento histórico, sendo o resultado do
trabalho individual ou de um grupo de intelectuais”2
A leitura que esses viajantes fizeram, em relação ao que viam no Rio Grande do Sul,
denota a construção de uma percepção própria daquela realidade, resultado de um contexto
histórico o qual viveram e viviam naquele momento. Trata-se, dessa forma, de um discurso
não oficial, mas ainda é um discurso, portanto deve ser analisado pela historiografia como um
depoimento legítimo de uma visão de mundo.
A princípio, parte-se da metodologia desenvolvida por Núncia Santoro Constantino,
em sua análise e estudo de Carlo Guinzburg, definindo a análise de conteúdo “como um
instrumento importante para a pesquisa histórica. A análise de conteúdo vai além do discurso
ao buscar relacionar o conteúdo lido com alguma corrente teórica, com os elementos básicos
do texto, saber quem é o autor, quais suas filiações teórico-ideológicas, quais suas concepções
de mundo, seus interesses de classe ou de categoria social, quais os traços psicológicos que
evidenciam, quais as suas expectativas, motivações, interesses, quais as principais
características do próprio texto, do contexto onde foi produzido e a quem se destina (p.
188).”3
A estrutura deste estudo parte, portanto, das primeiras informações sobre os viajantes.
Isabelle, que esteve no estado, de passagem, no ano de 1834, editou um ano depois, na França,
seu livro Voyage a Buenos-Ayres et a Porto-Alègre. Ele era francês, biólogo, burguês, liberal,
republicano e abominava os jesuítas devido ao seu absolutismo na França (BENTO, 1976, p.
176). Dreys, também francês, era um fabricante de açúcar, viajante comercial e geógrafo
amador. Viveu dezesseis anos no Brasil e publicou sua Notícia Descritiva da Província do
Rio Grande de São Pedro do Sul, em 1835, no Rio de Janeiro (Ibid. , p. 16).
A análise desses dados revela, de antemão, duas questões importantes: primeiro, ambos
eram franceses e burgueses, portanto possuíam a mesma origem nacional, social e econômica;
segundo, o relato de Isabelle resultou de uma estadia de um ano no Rio Grande do Sul,
diferente de Dreys, pois este residiu no Brasil de 1817 a 1842, a maior parte desse tempo, no
Rio Grande do Sul.
2
GUTFREIND, I. A historiografia rio-grandense. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 1992, p. 9.
CONSTANTINO, N. S. de. Pesquisa histórica e análise de conteúdo: pertinências e possibilidades. In: Estudos
ibero-americanos. Porto Alegre, PUCRS, v. XXVIII, n. 1, jun. 2002, p. 183-194.
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Ao seguir com o propósito de apresentar e discutir a origem e o contexto dos dois
viajantes, salientando suas atividades e concepções, tentaremos relacionar suas vivências
através do discurso presente em seus textos com a realidade brasileira e rio-grandense do
período.
Isabelle exerceu diversas atividades, dentre elas, a de caixeiro viajante, de naturalista
amador, de colaborador do jornal Patriotte Français, mantido por exilados franceses, e de
agente consular da França, atuando como estimulador do comércio entre a França (MEYER
apud ISABELLE, 1949, p. 13-16) e o Novo Mundo. Podemos perceber aí uma tendência às
atividades comerciais e diplomáticas, aspectos muito inter-relacionados, segundo a maior
parte da historiografia brasileira, em geral, pois os tratados comerciais estabelecidos com os
países latino-americanos recém emancipados foram decisivos para o desenvolvimento da
primeira fase do capitalismo europeu.
O contato com a realidade latifundiária latino-americana também rendeu-lhe uma
profunda indignação quanto ao seu aproveitamento. Originário de um país cuja
disponibilidade de terras era pouca e a de trabalhadores assalariados era muita, defendia a
utilização mais racional das terras brasileiras através da promoção da imigração (Ibid., p.16).
A proposta do aproveitamento da mão-de-obra européia (francesa) nas terras brasileiras estava
profundamente relacionada com o pensamento liberal da época, baseado na liberdade
individual e comercial. Podemos notar que, com isso, Isabelle estabeleceu um discurso
antiescravista que, além de representar uma visão utilitarista (sobre o ponto de vista das
vantagens comerciais advindas dessa outra forma de produção) - um marco do liberalismo
europeu, propõe a transformação do modo de produção vigente através da utilização racional
do solo brasileiro, ou seja, o racionalismo da produção.
Dreys, um francês natural de Nancy, nasceu em 21de julho de 1781. Ex-militar e
funcionário público francês, veio para o Brasil em 1817. De 1818 a 1827, percorreu o interior
do Rio Grande do Sul, transferindo-se depois para a Vila de Iguape, em São Paulo. A partir de
1838, passou a residir no Rio de Janeiro. Trabalhou cerca de quatro anos na fabricação de
açúcar, provavelmente, quando residia em Iguape (SILVA apud DREYS, 1961, p. 177).
Assim como Isabelle, Dreys era um representante da burguesia européia e a sua saída da
França, logo após a Restauração, em 1817 (MEYER apud ISABELLE, 1949, p. 8),
provavelmente, estava relacionada à impossibilidade de exercer suas atividades anteriores
naquele país. Diferente de Isabelle, ele viveu no Brasil por mais de quinze anos, exercendo,
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atividades relacionadas ao comércio. Nesse sentido, manteve uma relação de integração sóciocultural com o país que extrapolava o aspecto econômico. A própria atuação no fabrico do
açúcar é um fator significativo para analisar a visão que ele tinha da escravidão. Ao contrário
de Isabelle, para ele, a escravidão não era um problema, mas um meio de acumulação de
riqueza.
Podemos perceber a construção de duas visões diferenciadas sobre a escravidão.
Seguimos o conceito de Moacyr Flores de que escravidão é o “(...) ato de reduzir uma pessoa
à condição de coisa ou de animal, como um bem absoluto de um proprietário.”4 Embora os
dois viajantes representem a concretização do pensamento liberal europeu, através de suas
atuações comerciais, a forma como compreendem a viabilização da aquisição de riqueza é
divergente. Em Isabelle (1949, p. 283), isto está muito bem evidenciado como no seguinte
trecho:
E a quem se admire de que os negros se revoltem contra os brancos? É curioso notar
que os legisladores das colônias modernas empreguem para defender o tráfico de
negros os mesmos sofismas que combatem quando os turcos querem justificar o
cativeiro dos brancos. Mas toda essa argumentação há de cair por absurdo (...). E a
aristocracia da pele passará como todas as aristocracias! Tempo ao tempo!
Essa “fala” de Isabelle denota uma visão mais humanista do escravo, embora, nas
poucas referências que fez a este, em seu livro, trate-o mais como uma espécie curiosa da
natureza do que como um igual.
Dreys, que também foi senhor de escravos, inserido na lógica escravista, apresenta um
discurso e uma visão da realidade do escravo idêntica ao dos escravistas da época:
(...) seguiu-se a introdução, na opinião pública, de duas conseqüências errôneas a
saber: que a população negra no Rio Grande era moralmente péssima, e que também
era péssima a condição dos escravos naquela província (...) nunca vimos no Rio
Grande os escravos nem mais viçosos, nem mais maltratados que nas outras partes
da América. (DREYS, 1961, p. 167).
Este texto, que exemplifica o aspecto utilitarista do racionalismo moderno, também
conduz a uma visão do escravo como um ser não-igual. Isso nos remete ao seguinte propósito:
fazermos uma correlação entre essas duas visões sobre escravo/escravidão neste Estado, com
a visão de outros historiadores ou intelectuais que escreveram sobre este fato.
No intuito de entender a trajetória do negro na historiografia do Rio Grande do Sul,
procuraremos analisar a relação entre a razão moderna, sob o ponto-de-vista do en4
FLORES, M. Dicionário de história do Brasil. Porto Alegre, EDIPUCRS, 1996, p. 192.
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cobrimento, e a escravidão no Rio Grande do Sul. Segundo Dussel (1993, p. 07-26) a
modernidade inicia, em 1492, no momento em que a América tornou-se um domínio europeu.
Este fato, além de representar a “conquista” propriamente dita, significa o primeiro passo para
a construção da subjetividade moderna. O “encontro” com esses povos possibilitou aos
europeus a descoberta da sua existência a partir da existência do Outro.
Trata-se, efetivamente, da construção do seu “ego” e da justificação racional – realizada
pelos intelectuais iluministas, principalmente Kant e Hegel – do que Dussel denomina “encobrimento do Outro”. Ao invés de descobrirem, encobrem a existência do Outro,
caracterizando-o como periférico.
A razão moderna, compreendida por Hegel, concebe a justificativa da “conquista e
subjugação” violentas do Outro, a partir de toda uma construção existencial que elege o povo
europeu – principalmente o germânico – como o detentor de uma cultura superior,
“desenvolvida”. O desenvolvimento, para Hegel, possui um caminho determinado: sai do
Oriente e culmina no Ocidente. No Ocidente, atingiu seu estágio superior porque alcançou a
“ilustração”.
Essa construção “filosófica” representa o ponto principal da percepção eurocêntrica, isto
é, no momento em que Hegel define que o povo da “Europa do Norte” (alemães e ingleses),
desenvolve totalmente a “ilustração”, torna-se portador do “espírito livre“ e do “direito
absoluto” sobre os outros povos, justificando, dessa forma, a construção das colônias e dos
elementos econômicos e políticos que as envolve.
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Tanto o ponto de vista moderno quanto pós-moderno consideram que essa concepção - a
razão moderna - foi a responsável pela construção do “mito” da “modernidade” tese que
Dussel objetiva superar. Segundo ele, a razão moderna procurou encobrir um mito irracional.
Todas as práticas realizadas pelo “descobridor” calcaram-se numa concepção racional
eurocêntrica que possuía um sentido bem diverso, ou seja, não foi a razão moderna o elemento
principal para a construção do mito “modernidade”, mas a irracionalidade que permitiu as
práticas “violentadoras” do Outro. Esse outro, longe de ser um objeto desse processo,
apresenta-se como um sujeito integrante da dialética da modernidade. Em outras palavras, foi
a subjugação “violenta” do Outro que proporcionou a criação desse mito através do seu
encobrimento. Aplicamos o conceito do “Outro” ao escravo africano em razão dessa lógica de
encobrimento. A imagem, ou seja, a representação5 que o europeu constrói do escravo
africano é que delimita a sua relação com ele. Mas que imagem é essa?
Dussel realizou uma análise sobre o “encontro” do velho com o novo mundo, apesar de
o escravo não ser oriundo desse novo mundo, o que nos interessa, contudo, é a sua tese do encobrimento do mito racional. A justificativa da conquista e submissão violentas, construída
pela razão moderna, possibilita a desvinculação da visão do escravo de um ser racional, capaz,
igual e, portanto, sujeito aos desejos e propósitos dos europeus, pois é um ser “coisificado”.
Em Isabelle e Dreys, percebemos isso claramente. Isabelle, embora condene a
escravidão - a “aristocracia da pele“ - relata o escravo como um “Outro”, mas não baseado
numa leitura concernente com relativismo cultural, seu “Outro” é o mesmo apresentado por
Dussel, mas com uma variação muito significativa. Para ilustrar essa afirmação, vejamos o
que ele diz nesse fragmento de texto:
Infelizmente, porém, não passam de escravos e, sobretudo, de negros!
São, totalmente uns brutos, uns vis usurpadores do nome de homens.
(ISABELLE, 1949, p. 282 ).
Embora em várias passagens da sua Voyage, Isabelle demonstre a sua indignação diante
das relações de escravidão, destacando o modo violento e desumano como os escravos são
tratados, a “descrição” do escravo revela um entendimento “racional” de inferioridade dos
povos não-europeus. Quando se refere a eles como brutos, demonstra a concepção
eurocêntrica da razão moderna baseada na identificação de um povo portador do “espírito” do
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Aqui o conceito de representação é compreendido como “uma leitura do real”. CHARTIER, Roger. A história
Cultural. Lisboa: Bertrand/Difel.1990.
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“desenvolvimento”, o povo da ilustração. Do pouco tempo que passou no Rio Grande do Sul,
não se preocupou em realizar um relato exaustivo sobre a totalidade da sociedade sul-riograndense, centrou-se mais em questões cotidianas e de relações que, para ele, eram
desprezíveis em relação à população do Prata.
Sua visão sobre a escravidão, principalmente sobre o escravo em Porto Alegre, não se
diferencia muito daquela de um turista europeu que vá à Bahia ou ao Rio de Janeiro, com
olhos de curiosidade, “experimentando” os acontecimentos mais visíveis, sem relacioná-los.
Comparando o Rio Grande do Sul com os argentinos e uruguaios, ISABELLE (1949, p. 275),
conta a seguinte passagem:
(...) eu, que vi, na Argentina e na Banda Oriental, os negros livres,
industriosos, fazendo os brancos viverem e colocados, enfim, na posição
de homens, tenho o direito de deplorar a sorte deles no Brasil e de
denunciar a infância dos europeus, que não tem vergonha de levar a sua
imoralidade até o comércio clandestino da carne humana !!!
Nesse trecho, encontramos o ponto de singularidade do “olhar” de Isabelle. Ele denuncia
o comportamento do europeu diante da escravidão, condenando-o. Paradoxalmente, nunca
“defende” a idéia de que o negro/indivíduo possa ocupar algum lugar na sociedade, a não ser,
como trabalhador, ou seja, como um agente produtivo. Quando se refere aos negros livres da
Argentina e da Banda Oriental como industriosos, descarta qualquer forma de associação do
negro à sua existência como indivíduo.
Em outras palavras, a visão de Isabelle sobre o escravo é o exemplo clássico da
alteridade6 européia que depois será justificada por Hegel e Kant. Isabelle não é um
humanista, muito pelo contrário, mas seu discurso posiciona-se, o tempo todo, contra a
“violência” do “senhor de escravos”. Ele não defende o escravo, ele condena o senhor de
escravos. E por quê? Porque além de considerar o modo de produção escravista uma forma
inadequada de aproveitamento das terras brasileiras, consegue visualizar a violência sofrida
pelo “Outro, através de um igual. O processo de construção da sua subjetividade é europeu. É
inverso ao demonstrado por Dussel, mas possui o mesmo sentido, o mesmo significado – o
eurocentrismo”.
6
(do latim alter, “outro”): Qualidade do que é outro; o outro é aquele que não sou eu. In: ARANHA, M.
Filosofando: introdução à filosofia. São Paulo: Moderna, 1986, p. 425.
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Dreys, quando se refere ao escravo, atenta nas charqueadas. Ao visitar diversas estâncias
no Rio Grande do Sul, realiza uma descrição detalhada de todo o seu funcionamento. Uma
descrição estrutural e funcional, quase mecanicista, provavelmente, resultado de sua formação
como militar e funcionário público na França. Essa é uma visão, essencialmente, iluminista.
Quando se refere aos “indivíduos da raça africana” (DREYS, 1961, p. 166), preocupa-se mais
em justificar o seu uso. A figura do escravo não é explorada por ele, mas sim, o espaço que ele
ocupa nas charqueadas e a necessidade de comprovar a importância da sua manutenção.
Como Dreys possuía escravos e morou no Brasil, a manutenção e a legitimação da
escravidão eram fundamentais para ele. Isso está muito bem evidenciado no seguinte trecho:
Os negros trabalhadores dos estabelecimentos industriais do Rio
Grande recebem abundância de mantimentos, estão bem vestidos
conforme a exigência de estação, bem tratados nas suas doenças e é isso
justamente o que quer o negro, em compensação, o senhor não lhe pede
senão um serviço usual e bom comportamento e quando se desviam
dessas obrigações, vem o castigo, que é também uma das precisões do
negro” (ibid., p. 167).
Dreys vai mais além que Isabelle, nega a violência, substitui essa palavra por castigo, no
sentido “pedagógico”. Sua integração com o cotidiano da escravidão é muito mais profunda
que a do outro viajante, pois Dreys faz parte dessa realidade e quer a sua permanência. O
“escravo invisível” de Dreys não é nada mais, nada menos, do que o escravo “coisificado”.
Representa aquele que precisa ser cuidado, o imaturo, aquele que precisa da escravidão para
viver:
O vago desejo de liberdade, de liberdade nominal, pois que, saindo do
cativeiro dos brancos, caem no cativeiro mais duro das misérias e dos
vícios “ (ibid., p. 168) .
Esse discurso revela exatamente a concepção sobre os povos não-europeus que Kant irá
construir para justificar o eurocentrismo. Segundo Kant, os povos “imaturos são incapazes de
promover o desenvolvimento, e a ilustração é a saída por si mesmo da humanidade, de um
estado de imaturidade” culpada. A “imaturidade” ou “minoridade” é culpada e a “preguiça” e
a “covardia” constituem o ethos dessa posição existencialista (DUSSEL, 1993, p. 17). Dreys
revela exatamente isso: o negro é um ser imaturo.
Apesar de realizarem construções mentais diferenciadas acerca da imagem do escravo,
tanto Dreys quanto Isabelle possuem um ponto comum que reflete o pensamento de uma
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época: o eurocentrismo. Mas afinal, que imagem é essa? Nada mais, nada menos, do que a
imagem de não ser um igual. O africano nunca é alguém para eles, é sempre o não-branco, o
não-livre, o não-europeu, etc. Dreys e Isabelle, em seus relatos, são o exemplo perfeito da tese
de Dussel. O escravo africano não é visualizado como homem, ele é “en-coberto” como “simesmo” para que pessoas como Isabelle e Dreys possam se ver.
Quando afirmamos que a imagem do escravo africano, construída pelos autores, está
relacionada com o conceito de alteridade - o auto-conhecimento através do “Outro” – significa
dizer, simplesmente, que estamos discutindo um pensamento datado. Em outras palavras,
Isabelle e Dreys são apenas “homens de seu tempo”, cujas abstrações mentais e representações
que fazem do mundo que os cerca estão relacionadas com o seu contexto histórico-social. Daí
termos procurado identificar e apresentar suas origens, atividades e concepções.
Dreys e Isabelle eram homens de negócios e compreendiam a forma de acumulação de
riqueza diferenciada. Isabelle era um liberal e antiescravista, e Dreys um escravocrata
moderno. No entanto, ambos centravam o seu “olhar” sobre a escravidão quase que,
exclusivamente, sob o ponto de vista econômico.
A questão da permanência dos dois no Estado e o fato de Dreys ter sido um morador e
não um “turista” como Isabelle influenciaram na construção do seu discurso acerca da
escravidão. Entretanto, ambos enxergavam apenas a escravidão, não o escravo, construindo
uma outra leitura da realidade - a leitura da negação, do encobrimento.
Estudar a historiografia corresponde a estudar o conhecimento histórico, a produção
desse conhecimento. Logo, não é o passado em si que interessa, mas as causas, o objeto, a
metodologia, a teoria, a forma, as técnicas de pesquisa e de elaboração da história, da
memória de um povo, de como a elaboração desse passado interfere no presente.
O negro é parte fundamental não só da construção material, econômica do país, mas
também da sua formação sócio-cultural. A escravidão no Brasil surgiu através de dois
elementos: como a continuação do desenvolvimento interno da sociedade colonial e como
conseqüência dos interesses das nações colonizadoras, na fase da expansão mercantil.
(MOURA, 1988, p. 38). Portugal desempenhou, nesse sentido, um papel de dominação,
ocupando a terra e subjugando seus primitivos habitantes.
A historiografia tradicional justificava a utilização da escravidão africana na América,
pela incapacidade de o europeu ser aproveitado como mão-de-obra na agricultura. As razões
apontadas eram da inadequação aos trabalhos físicos nas regiões tropicais e, principalmente, a
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inadaptação ao clima. O aproveitamento do negro africano era justificado como o mais
adequado para tais atividades (MAESTRI, 1984, p.18 – 19).
A Inglaterra beneficiou-se por muito tempo e a África tornou-se um campo de pilhagem.
Inicialmente, a Inglaterra necessitava do tráfico negreiro para que o capitalismo se
solidificasse. Uma vez instituída, a continuação prolongada da escravidão constituiu-se num
entrave para desenvolvimento de sua economia. A África tornava-se, agora, um mercado em
potencial para as suas manufaturas. Com o intuito de atingir esse objetivo, a Inglaterra
desencadeou uma campanha para extinguir o tráfico negreiro e a escravidão no Brasil
(MOURA, 1988, p. 50).
A sociedade escravista sofria pressões externas, cujo real interesse era de ordem
econômica, embora viesse disfarçado de princípios humanitários. O governo imperial não
tinha saída. A Inglaterra, além de empréstimos e investimentos realizados no Brasil,
continuava sendo a principal parceira comercial.
essa pressão motivou uma ampla campanha abolicionista. Segundo Bakos, o movimento
abolicionista ganhou grande repercussão. As cartas de alforria passaram a ser constantes e
intensificaram-se as Caixas de Fundos Emancipatórios, as Irmandades, Confrarias de Negros,
inclusive de brancos, e outras associações com o objetivo de libertarem os escravos. As
confrarias dos negros eram organizações compostas por negros livres, escravos e mulatos que
se dedicavam à educação religiosa e à benemerência social:
[...] as confrarias a exemplo das Irmandades dos brancos, deviam prestar
assistência aos membros da comunidade nos períodos de doença,
propiciar-lhes enterros cristãos, comprometendo-se, com a libertação dos
escravos. [...] como a sociedade escravocrata era muito rígida, a confraria
era uma forma de conquistar um melhor espaço social, pois eram as
únicas instituições abertas a homens e mulheres negros. (BAKOS, 1991,
P. 23).
No Brasil, a extinção total do tráfico negreiro verificou-se com a Lei Eusébio de
Queirós, em 1850. Essa lei trouxe várias conseqüências econômicas, pois as províncias
decadentes do norte foram parcialmente despovoadas do braço escravo e sentiram a
necessidade de substituí-lo pelo braço livre (MOURA, 1991, p. 55).
O latifúndio escravista do norte e do nordeste entrava em decadência, o café surgia
como salvação para a economia. As fazendas de café tinham outras características que não
combinavam com a manutenção do trabalho escravo. A extinção do tráfico negreiro criou
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condições para que os coronéis decadentes pudessem vender seus escravos para outras áreas e
permitiu que os capitais, anteriormente utilizados pelos traficantes, fossem deslocados para
outras áreas da economia. Isso constituiu-se em um grande alívio para os coronéis, já que o
escravo tornava-se um ônus.
Os abolicionistas travaram uma luta ferrenha que acabou tornando situação
insustentável. Algumas províncias demonstravam interesse em abolir a escravidão em seu
território e o Império perdia força. Sem alternativa, a Lei Áurea foi assinada, em maio de
1888, extinguindo a escravidão no Brasil,. Enquanto se discutia a abolição, teve início a
imigração européia para o Brasil. Os primeiros imigrantes chegaram no início do século XIX.
Eles fixaram-se em Nova Friburgo, Rio de Janeiro, em 1819 e no Rio Grande do Sul, em
1824. No Rio Grande do Sul, ocuparam algumas regiões desabitadas, próximas às fronteiras
com o Prata. Os imigrantes, inicialmente alemães e depois italianos, receberam lotes de terra
para trabalhar como pequenos proprietários. Durante muito tempo, a historiografia do Rio
Grande do Sul incumbiu-se de resgatar para a classe dominante o seu passado. Nesse sentido,
deveria exaltar suas virtudes e justificar a posição que ocupava no topo da sociedade.
Gutfriend salienta que, no final do século XIX e início do século XX, surgiu um grupo
de historiadores que valorizavam as relações que o Rio Grande do Sul mantinha com o Prata.
O objetivo era enfatizar a singularidade do estado sulino, sua localização geográfica,
afirmando que o Rio Grande do Sul seria capaz de sobreviver por si só.7 A história foi
utilizada, nesse momento, para fins político-ideológicos de propaganda republicana.
Na década de 20, o discurso historiográfico vinculava a origem lusitana ao estado
sulino. É o momento de construção do discurso historiográfico das classes dominantes sobre o
capitalismo. O grande acontecimento da década foi a criação do Instituto Histórico e
Geográfico do Rio Grande do Sul. ( IHGRS ). Durante décadas, a historiografia sul-riograndense, em sua face oficial, filiada ao Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do
Sul, predominou nos trabalhos de pesquisa, livros didáticos, etc. Esses historiadores oficiais
tinham acesso à documentação e aos relatos da época (séc XIX) e realizaram leituras
interpretativas, comprometidas com as diretrizes político-culturais do governo. Uma das
características principais da historiografia sul-rio-grandense é, sem dúvida, a da glorificação
do gaúcho. Para Pesavento, estas qualidades são buscadas no passado, enaltecendo o espírito
fronteiriço, a figura viril.
7
GUTFRIEND, I. A Historiografia Rio-Grandense. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 1992, p. 18.
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Disponível em:<http://www.fapa.com.br/monographia>
A revolução de 30 e instauração do Estado Novo redefiniram o país. Adotou-se um
plano de modernização com modificações radicais. (GERMANO, 2002, p. 30). O “Novo
Brasil”, moderno e capitalista, foi decisivo para a reorientação da historiografia. A chegada de
Getúlio Vargas ao poder determinou uma nova atitude política, procurou-se, na ideologia da
harmonia social, encobrir as grandes diferenças sociais:
A passagem do conceito de raça para o de cultura elimina uma série
de dificuldades colocadas anteriormente a respeito da herança atávica do
mestiço. Ela permite um maior distanciamento entre o biológico e o social,
que possibilita uma análise mais rica da sociedade. Mas a operação que Casa
Grande & Senzala realiza vai mais além. Gilberto Freire transforma a
negatividade do mestiço em positividade, o que permite completar
definitivamente os contornos de uma identidade que a muito vinha sendo
desenhada. (GERMANO, 2002, p. 33 )
A obra de Gilberto Freyre, publicada em 1933, causou um grande impacto na
intelectualidade. Teve reflexos na historiografia e proporcionou grandes polêmicas por muitos
anos. O conceito de raça foi substituído pelo de cultura e, com isso, esvaziou-se o grande
debate social. Gilberto Freyre completa:
Desde logo salientamos a doçura nas relações de senhores com
escravos domésticos, talvez maiores no Brasil do que em qualquer outra
parte da América. (QUEIRÓZ, 2002, P. 103)
Essa constatação de que os escravos eram bem tratados pelos seus senhores
revolucionou em matéria de idealização. Gilberto Freire, ao tentar acomodar sua teoria, quase
conseguiu transformar o opressor em vítima e os açoites, as torturas e humilhações em
relações amigáveis. Queiróz completa essa teoria:
Numa época sensível ao pensamento racista europeu, que atraiu
estudiosos como Oliveira Viana e Nina Rodrigues, por exemplo,
convencidos da inferioridade do negro e de sua contribuição negativa para a
formação do povo Brasileiro. Preocupado como os de sua geração, atento à
intensa miscigenação ocorrida no país, Freire buscou explicar-lhes o
significado, concebendo uma sociedade do tipo paternalista, onde as
relações de caráter pessoal assumiam tal importância. [...] Na sociedade
assim estabelecida, predominavam a empatia entre as raças e amenidade
senhor – escravo, características que explicariam a miscigenação no quadro
geral do escravismo americano. (QUEIRÓZ, 2002, p. 104).
Realmente, numa época em que se desejava mostrar um país moderno com um povo
irmanado num mesmo ideal, sem injustiças sociais, a ideologia deveria ser capaz de promover
Monographia, Porto Alegre, n. 1, 2005 13
Disponível em:<http://www.fapa.com.br/monographia>
uma integração sem ressentimentos com a herança do passado. Nada melhor para explicar este
milagre do que tornar o passado mais humano e igualitário.
Rodrigues8
classifica
Gilberto
Freyre
como
“conservador–revolucionário”.
Revolucionário quanto ao método antropológico – cultural, pois foi original quanto à pesquisa
dos fatos, provocando mudanças nas idéias pseudocientíficas sobre a inferioridade da raça
negra, ao destacar de modo incisivo as raízes africanas e a sua importância para a cultura
brasileira. Mas foi conservador também, pois seus argumentos para ressaltar a benignidade
revelam ter sido ele influenciado pelo pensamento conservador do século XIX. As idéias de
Gilberto Freyre ganharam grande popularidade, não só no Brasil mas também no exterior. Ele
influenciou a historiografia e tornou-se um clássico.
Segundo Pesavento, a historiografia, no Rio Grande do Sul tende a elevar o gaúcho à
condição de herói que lutou pela causa de Portugal no período de formação de território e no
período Imperial. Essa tendência é retratada nos relatos sobre a guerra do Paraguai e a
Revolução Farroupilha. A visão de heroísmo, altivez e honradez dirigem-se, sem dúvida, aos
elementos ligados a oligarquia rural [...] “Esta “vocação” orgânica ligava-se a um liberalismo
“ visceral”, liberalismo de “berço”, virtude que ,segundo autores, ficaria indelevelmente
marcada na personalidade do gaúcho. Tal traço distintivo do homem rio-grandense teria raízes
na vivência em comum, gauchesca, bem como no meio ambiente [...] o gaúcho, descrito na
historiografia tradicional, teria motivo de orgulhar-se do seu passado, que dignificava com
isso o seu presente” (PESAVENTO, 1980, p. 68). Essa visão foi fundamental para distinguir o
homem gaúcho dos demais brasileiros por suas virtudes heróicas, seu passado de glórias, do
qual só teria razões para orgulhar-se.
Outra tendência da historiografia rio-grandense é a de “democracia sulina” . A
camaradagem, a fraternidade, a inexistência de desigualdade social são aspectos marcantes na
história do Rio Grande do Sul. Essa foi uma tendência marcante nos relatos positivistas, cuja
ideologia manteve no poder determinada classe política durante muito tempo. A partir dos
anos 30, no contexto do desenvolvimento industrial, a dependência econômica brasileira
tornava-se cada vez menor em relação ao Rio Grande do Sul, tradicionalmente agropecuarista. A crise por que passou o estado levou a historiografia oficial a resgatar um passado
do qual se afirma herdeiro.
8
RODRIGUES, J. H. Vida e História. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966, p. 112. In: FREITAS, M. C.
(org). Historiografia Brasileira em Perspectiva. São Paulo: Ed. Contexto, 2002.
Monographia, Porto Alegre, n. 1, 2005 14
Disponível em:<http://www.fapa.com.br/monographia>
Ao revisarmos a bibliografia sobre o escravo e a escravidão percebemos que, até meados
da década de 40 do século passado, a participação do negro é citada apenas como escrava e o
seu espaço como indivíduo, como ser social é totalmente desqualificado pelos historiadores.
Percebemos isso nas obras de Joaquim Francisco de Assis Brasil, Carlos Von Koseritz,
Alfredo Augusto Varela, João Maia, Jorge Sales Goulart e Moisés Vellinho.
Casa Grande & Senzala foi o propulsor das mudanças ocorridas, no final da década de
1940, no Rio Grande do Sul, com relação à historiografia relacionada ao negro e à escravidão.
A influência do negro é resgatada por Dante de Laytano, em 1947, ao estudar a linguagem, os
costumes, a religião, desmistificando a idéia, até então projetada, que o Rio Grande do Sul era
o estado mais branco da federação. A partir dos anos 50, surge uma nova concepção e uma
nova corrente historiográfica que se opõe às idéias de Gilberto Freyre. As idéias, lançadas na
década de 30, não sofreram contestação de imediato, pelo contrário, reforçaram os mitos da
brandura do senhor e da submissão do escravo.9
Entretanto algo começava a mudar no cenário mundial. A derrota do nazismo arruinou
as pretensões de uma raça pura. Os negros norte-americanos intensificaram sua luta pela
igualdade social e pela ampliação dos direitos civis circunstância que propiciou, nos Estados
Unidos, o interesse pela escravidão do negro. Essa nova visão repercutiu no Brasil, somandose à progressiva conscientização da condição de país periférico a que esteve submetido nas
relações internacionais. Tudo isso fez com que se gerasse uma nova consciência a respeito das
injustiças e das tensões sociais, ocasionando também o crescimento do nacionalismo. Nesse
momento, houve uma grande efervescência na política e na intelectualidade, que direcionou
seus interesses às classes menos favorecidas da nação. Passou-se a olhar com mais atenção as
classes oprimidas e espoliadas.
A historiografia mudou também em relação à escravidão. Autores como Florestan
Fernandes, Otávio Ianni, Emília Viotti da Costa e Fernando Henrique Cardoso posicionaramse contrários às idéias de Gilberto Freyre:
Para eles, a escravidão é pedra basilar no processo de acumulação do
capital instituído para sustentar dois grandes ícones do capitalismo
comercial: mercado e lucro. A organização e regularidade da produção, em
grande escala, de que dependia a lucratividade – impunham a compulsão ao
trabalho. Para obtê-la, coerção e repressão seriam as principais formas de
controle social do escravo. (QUEIRÓZ, 2002, p. 106).
9
QUEIRÓZ, S.R.R. de. Escravidão Negra em Debate. In: FREITAS, M. C. (org). Historiografia Brasileira em
Perspectiva. São Paulo: Contexto, 1998, p. 105.
Monographia, Porto Alegre, n. 1, 2005 15
Disponível em:<http://www.fapa.com.br/monographia>
A escravidão é vista por esta corrente como o único elemento capaz de propiciar a
acumulação de capital necessário para o desenvolvimento do capitalismo. A lucratividade só
seria alcançada através do trabalho compulsório realizado pelos escravos. A coerção e a
repressão seriam as principais formas de obtê-la. Ao mesmo tempo, funcionaria como um
modo de controlar a vida social do escravo. A posição ideológica desses autores gerou uma
série de debates em torno do tema escravo/escravidão no Brasil. No Rio Grande do Sul, essa
corrente teve vários seguidores, entres os quais destacamos Décio Freitas e Mário Maestri
Filho. Estes historiadores reinterpretam a história do escravismo no Rio Grande do Sul ao
trabalharem, principalmente, com a resistência dos escravos.
Os historiadores brasileiros, no final do século XIX e início do século XX, omitiram
informações sobre a resistência e a participação do negro na história rio-grandense. No Rio
Grande do Sul, o negro, inicialmente, nem era citado. No entanto, nem a imprensa brasileira,
nem a gaúcha, nunca deixaram de utilizá-lo como o principal personagem dos problemas
morais e criminosos, destacando-os como problemas políticos e jurídicos. Os jornais
abstinham-se de explorar o caráter social das atitudes dos escravos. O que geralmente era
noticiado nesses periódicos? Escravos que são vendidos, escravos suicidas, escravos que são
comprados, escravos fugitivos, escravos que assassinaram seus donos, escravos que foram
punidos, escravos que se aquilombaram, etc.
Entretanto, a razão desses acontecimentos nunca era discutida. Podemos ver isso em um
trecho do jornal “Echo do Sul” , de 1862 edição de 8 de janeiro, citado por Mário Maestri:
Suicídio. Apareceu na Manhã de Ontem enforcado em casa do Senhor
Domingos José da Silva Farias, comerciante dessa praça, um escravo que
exercia o mister de cozinheiro. Ignoramos o motivo que levou esse infeliz
a contar contra a própria existência (sic), porque nos consta que, além de
ter ótimo tratamento, saíra, nessa manhã, satisfeitíssimo da casa de seu
senhor, fez as compras de comestíveis de que fora incumbido e no seu
regresso cometerá o delito que as leis divinas e filosóficas o condenam .
10
As formas de resistência, tanto individuais quanto coletivas, encontram-se, por nossos
historiadores, na idéia de que sua divulgação tornaria o escravo um ser humanizado, corajoso,
consciente e inteligente, que o igualaria ao branco. Isso era muito perigoso, pois desmantelava
uma justificativa ética para defender e manter a escravidão. Para esses historiadores, era
10
MAESTRI, M. O Escravo Africano no Rio Grande do Sul. In: DACANAL, J. H. e GONZAGA, S. (org) RS:
Economia & Política. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1993, p. 48.
Monographia, Porto Alegre, n. 1, 2005 16
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necessário explicar que a escravidão era primordial para o desenvolvimento econômico
brasileiro. Paradoxalmente, desprezando a importância do negro, eles, ao mesmo tempo, o
exaltavam, demonstrando como ele era essencial para a construção da sociedade brasileira e
sul rio-grandense.
Mario Maestri deixa bem claro essa condição quando faz a seguinte afirmativa:
O homem escravizado foi vendido, contrabandeado, usado na
agricultura, na produção do charque, no cozinha, no galpão. Foi agastado de
sua terra, sua cultura, separado de sua gente. Transformou-se em escravo.
Foi ensinado a obedecer, acreditar na superioridade do senhor. No entanto,
incessantemente o escravo reagiu. É a resistência do homem à escravidão
que lhe devolve sua humanidade. Como escravo é coisa, objeto de uso, de
consumo. Pode ser vendido, herdado, hipotecado. É bem móvel. Quando
resiste e retoma das mãos do senhor sua vida, reassume sua essência, é
homem. E então, como homem é digno de castigo se é pego. ( p.46 ).
Nesse ponto, retomamos a concepção de Dussel. Segundo esse autor, a modernidade
inicia em 1492, no momento em que a América tornou-se um domínio europeu. Foi o
primeiro passo para a construção da subjetividade moderna. O encontro do europeu com esses
povos possibilitou a descoberta da sua existência a partir da existência do outro. Trata-se,
efetivamente, da construção do seu “ego” e da justificativa racional realizada pelos
intelectuais iluministas, principalmente, Kant e Hegel – do que Dussel denomina encobrimento do outro.
A razão moderna impossibilita considerar o escravo um ser racional, capaz e igual, por
isso, está sujeito aos desejos e propósitos dos europeus. Portanto, a imagem do escravo,
realizada pelos viajantes e pela historiografia, tanto brasileira quanto gaúcha, foi, por muito
tempo, foi a de encobri-lo como ser autônomo, foi a imagem coisificada construída pela
modernidade e justificada pelos ideais iluministas.
Para George Lefebvre11, a historiografia é a história. O conhecimento se modifica
inclusive com a contribuição de outras ciências. “Portanto, a história não está feita
definitivamente e nem é uma espécie de matéria morta “. Sendo a história a memória do
homem, proporciona-lhe a consciência de si mesmo, de sua identidade cultural, de sua
situação na época e de sua continuidade.
Julgou-se pertinente conjugar os dois tipos de fonte neste estudo, a fim de ampliar as
possibilidades de entendimento de como foram construídos os discursos sobre a participação
do negro no Rio Grande do Sul. A própria dificuldade em encontrar e selecionar relatos,
11
FLORES, M. Historiografia: Estudos. Porto Alegre, Nova Dimensão, 1989, p. 08.
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crônicas e mesmo análises historiográficas, que falem sobre a situação do negro no século
XIX, mostra como esta preocupação é recente na historiografia.
Ainda assim, a ênfase recai, preponderantemente, sobre o trabalho escravo, ou seja, sua
participação na economia. Ainda é pouco o volume de estudos sobre a importância sóciocultural do negro na sociedade sul-rio-grandense. Acreditamos que a inclusão social passa
também pela questão da memória, da valorização da história dos negros no processo de
construção do Brasil em um sentido mais amplo.
Conclusão
Mesmo com os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, a escravidão foi um tema à
parte da realidade do escravo, do homem negro, ele foi relegado por diferentes vertentes de
interpretação histórica. A visão do estrangeiro mostrou um olhar a partir de outra cultura, de
outra formação, um ideário iluminista e ilustrado, que tinha como referência outra realidade
histórica. Este ideário, já bastante divulgado no Brasil, foi apropriado pelos “letrados,
intelectuais locais que não se mostraram muito preocupados com a questão do negro dentro de
uma perspectiva iluminista e humanista no sentido real do termo”.
A presença do negro foi minimizada ou tratada como uma forma branda de escravidão e
a miscigenação foi negada por toda uma geração de historiadores brasileiros. A adoção de
ideais liberais e cientificistas apareceu como parte das propostas de modernização política e
econômica do país. A questão racial foi objeto de inúmeras discussões, porém sempre foi
ressaltado que as implicações da presença negra em nossa História foi mínima. A busca pela
criação de elementos que identificassem o povo gaúcho, diferenciando-o dos demais
brasileiros, na década de 20 do século passado, e para encontrar elementos aproximativos,
semelhantes, nas décadas de 30 e 40 da mesma época, levou à exclusão de determinados
seguimentos considerados poucos “significativos” para a exaltação do povo.
O negro foi negligenciado em nossa história, foi “apagado” durante muito tempo, pois
não possuía um “lugar” em uma historiografia europeizante, branca e conservadora. Ele não
era um “igual”, era um “Outro”. Um “Outro”, que por não pertencer à cultura dominante e por
ser considerado uma “mercadoria”, durante centenas de anos, não possuía uma identidade
reconhecida. Não tendo identidade, não pertencia a lugar nenhum e à História alguma.
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Destituídas de memória, não é difícil entender por que as crônicas e construções
historiográficas sobre o século XIX mascararam a imagem da escravidão, desconsiderando a
contribuição do negro por tanto tempo em nossa historiografia sul-rio-grandense. Só a partir
da década de 70/80 do século passado, começaram a surgir estudos a cerca deste tema,
representados pelos trabalhos de Décio Freitas e Mário Maestri Filho, entre outros. Apenas
então, o negro ingressou em nossa historiografia como um elemento social significativo e
histórico.
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