EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS NO BRASIL: (DES)CONTINUIDADES NAS POLÍTICAS E EM UMA TRAJETÓRIA NEM TÃO SINGULAR Greicimara Vogt FERRARI I [email protected] UNISINOS- UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS Beatriz Terezinha Daudt FISCHER I [email protected] UNISINOS- UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS RESUMO Dirigindo o olhar para a História da Educação de Jovens e Adultos (EJA) no Brasil, através de autores como Gadotti (2005) e Soares (2001), um aspecto destaca-se sobremaneira: a diversidade de propostas marcadas pela descontinuidade. As políticas de EJA são pauta em inúmeros debates acadêmicos, porém segundo o portal de teses e dissertações da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior/CAPES/Brasil, percebe-se um número reduzido de dissertações e teses discutindo a temática sob a perspectiva da trajetória de estudantes de EJA. Este trabalho tem como foco analisar questões da EJA a partir do ângulo dos sujeitos estudantes, e tem na história oral seu principal aporte metodológico. Trata-se de um recorte de pesquisa mais ampla, cuja pergunta central é: Como as implicações de contexto influenciam nas (des)continuidades de trajetórias escolares de estudantes de PROEJA. Aqui, uma entrevista foi selecionada por provocar elementos de rica problematização como o rompimento dos estudos devido à reprovação em exame, previsto na Lei nº 4024/61 e a dificuldade de conciliar trabalho e estudo. As causas apontadas como motivos para rupturas na trajetória escolar sinalizam, em princípio, para a falta de políticas consistentes como um fator que contribuiu nas descontinuidades de estudo neste caso específico. Através de Frigotto (2009), reafirma-se a necessidade de políticas públicas efetivas como direito, não devendo as mesmas serem construídas em castelos de areia. Entre os procedimentos analíticos, e a partir do olhar dirigido para um caso, busca-se problematizar as propostas de EJA em curso no Brasil. PALAVRAS-CHAVE: políticas, trajetórias, educação de jovens e adultos. 632 INTRODUÇÃO A história de proposições governamentais na área de Educação de Jovens e Adultos (EJA)i no Brasil, segundo Gadotti (2005), pode ser organizada em três períodos. O primeiro, entre 1946 e 1958, foi caracterizado por grandes campanhas nacionais que visavam erradicar o analfabetismo. O Segundo, entre 1958 e 1964 marcado pelas iniciativas de Paulo Freire que propunha um programa permanente de alfabetização, considerando reformas de base e as causas do analfabetismo e que foi interrompido com o golpe civil militar de 1964. A partir de 1964 ocorreu a Cruzada do ABC, ação de alfabetização centrada na região Nordeste do Brasil e o Movimento Brasileiro de Alfabetização (MOBRAL) que previa alfabetização em massa, desvinculada da crítica. Após a extinção do MOBRAL em 1985, proposições em torno da EJA seguem sendo feitas por cada governante. A partir das descontinuidades de ações Soares (2001: 206), problematiza: Há, na verdade, a ausência de uma política nacional articulada para a EJA? Como essa política se expressa? Esta é a crítica mais recorrente que se vem fazendo ao governo federal. O que existem são ações fragmentadas e desarticuladas, que surgem, desenvolvem-se, e muitas vezes extinguem-se, sem que resultem efetivamente em políticas de EJA [...]. Além das descontinuidades nas políticas, outro fator que ocasiona preocupação entre educadores e pesquisadores no Brasil refere-se às rupturas na escolarização de educandos da EJA. Em levantamento de dados entre os anos de 2008 e 2012 (numa escola estadual de ensino fundamental do município de Bento Gonçalves - Rio Grande do Sul) observou-se que, de 1242 matrículas iniciais nas séries finais do ensino fundamental, 975 estudantes prosseguiram seus estudos, contabilizando cerca de 21,5% de abandono e cancelamento de curso. Diante destas interrupções indaga-se: O que tem levado os educandos a abandonarem os cursos de EJA? 1. TRAJETÓRIAS ESCOLARES E IMPLICAÇÕES DO CONTEXTO Acreditando que as respostas vinculadas à pergunta acima poderiam ser encontradas ouvindo sujeitos que vivenciaram rupturas em sua trajetória escolar (e atualmente são educandos do Programa Nacional de Integração da Educação Profissional com a Educação Básica na modalidade de Educação de Jovens e Adultos - PROEJA), a pesquisa parte da seguinte questão: Como as implicações de contexto influenciam nas (des)continuidades de trajetórias escolares de estudantes de PROEJA? O objetivo geral que guia a pesquisa consiste em: analisar possíveis relações entre (des)continuidades nas trajetórias escolares de estudantes de PROEJA e implicações de contexto sócio-político. Como aporte metodológico encontrou-se sustentação na história oral, metodologia que prima por ouvir os sujeitos, possibilitando a cumplicidade entre pesquisador e entrevistado. Fischer (2004: 534) ao trabalhar com histórias de vida destaca: A história de vida, como a concebo, vai além do enfoque pessoal da história. Ao focalizar o indivíduo, é possível dimensioná-lo no contexto mais amplo. Para isso, é necessário evitar o sentido romântico – às vezes presente nas concepções humanistas, a partir das quais transforma 633 o entrevistado em herói – e insistir nas conexões entre os fatos relacionados e a situação social, cultural e econômica que os perpassa. Neste estudo, optou-se pelo trabalho com a história oral factual, ouvindo trajetória de estudantes. De acordo com Alberti (2004), a história oral factual concentra as atenções em etapas específicas, mas como a história de vida e a história factual estão ligadas pela história oral, cito Fischer (2004) compartilhando com a ideia de aproximar as falas dos sujeitos ao contexto histórico, político, social e cultural, evitando análises românticas e inquestionáveis. Como este trabalho apresenta dados de uma pesquisa em curso, e são percebidos inúmeros elementos para análise, optou-se por trazer pontos de uma entrevista. Mesmo considerando seu caráter singular, buscou-se levantar aspectos contextuais mais amplos, que podem além de permear a trajetória escolar de Mariaii ser percebidos em outras trajetórias. Nosso objeto de análise será levantado pela memória de Maria: A memória é uma espécie de caleidoscópio composto por vivências, espaços e lugares, tempos, pessoas, sentimentos, percepções/sensações, objetos, sons e silêncios, aromas e sabores, texturas, formas. Movemos tudo isso incessantemente e a cada movimento do caleidoscópio a imagem é diversa, não se repete, há infinitas combinações, assim como, a cada presente, ressignificamos nossa vida. Esse ressignificar consiste em nossos atos de lembrar e esquecer, pois é isso a Memória, os atos de lembrar e esquecer a partir das evocações do presente (Stephanou & Bastos, 2005: 420). Entre lembranças e esquecimentos buscar-se-á a reconstrução de episódios de uma trajetória escolar (des)contínua, visando compreender os principais fatores que levaram as rupturas neste processo de escolarização. Assim, a entrevista com Maria aconteceu em janeiro de 2013. A entrevistada, de 58 anos de idade demonstrou interesse em contribuir com a pesquisa desde o primeiro contato por telefone. Naquele momento solicitou-se que, caso a entrevistada possuísse algum material guardado de sua escolarização, poderia trazê-lo para mostrar e conversar sobre. Maria chegou com dez minutos de antecedência, demonstrando estar ansiosa para a entrevista. Iniciou-se o diálogo explicando em linhas gerais que o estudo visava ouvir estudantes que já haviam interrompido os estudos, buscando conhecer a história da vida escolar. Visando não direcionar respostas, optou-se por não destacar que se buscava compreender os motivos das rupturas escolares. No decorrer da entrevista, Maria demonstrou facilidade em expressar-se, sendo possível estabelecer um clima de confiança entre a entrevistada e a pesquisadora. Em alguns momentos, com o ecoar das lembranças, a entrevistada parecia tomada de tristeza, como se estivesse voltando a viver uma situação experienciada com dificuldade: falava em voz baixa, encolhia-se e em outros momentos, através de expressões e sorrisos dizia: “[..] vou te pintar como foi[...]”, para então narrar um fato marcante positivamente. 2. RETOMANDO A TRAJETÓRIA ESCOLAR Retomar o início da vida escolar não foi uma tarefa fácil, as datas estavam imprevistas, as lembranças nebulosas: “[...] só que eu comecei com 8 anos e era uma escola, eu imagino que 634 era municipal, eu não tenho idéia, não tenho registro, eu lembro que era perto de casa e eu não tenho registro da escola assim [...]”. O diálogo prosseguiu, Maria trouxe para a entrevista um histórico escolar das séries finais, no qual o ano de 68 aparece como data de conclusão da 4ª série, a partir disso, chegou-se ao ano de 65 como referencial para o início da escolarização, mas não surgiam elementos para contar sobre o início da escolarização. A pesquisadora procurou então fazer uma pergunta relativa ao início da ditadura militar, buscando aproximar o relato da entrevistada ao contexto e, consequentemente, tentando resgatar fragmentos relativos ao início da escolarização. Foi assim que Maria lembrou-se do rádio, de algumas conversas e de vizinhos: “[...] mas acho que aqui vem uns pedacinhos de memória da primeira escola que eu lembro agora dos vizinhos e de uma família que tinha 3 meninas, que era um caso meio atípico né, que era uma família bem diferente da minha, mas nós íamos sim num coleginho perto de casa, mas eu não sei, quem sabe fosse uma ONG, alguma coisa assim, não era uma ESCOLA como depois eu fui, deve ter sido ali que eu fui iniciada nas letras. Foi, deve ter sido ali, mas eu não lembro de nome, de nada, eu acho que o primeiro ano, os primeiros 6 meses de escola foi no Rio Branco, mas eu não tenho o nome da escola e aí depois [morando] em vila popular eu não tive essa iii escola, ESCOLA assim [...]”. Pela ênfase que a entrevistada destaca a “ESCOLA” pode-se deduzir que ela queria expressar que iniciou sua escolarização em uma escola que não enquadrava-se ao moldes formais. O contexto acabou levando Maria a aproximar-se da época e ela conseguiu chegar a alguns fragmentos de memória lembrando-se da família próxima, citada como atípica por ser formada por três meninas. Halbwachs (2006) destaca a aproximação entre lembranças e pessoas: “Nossas lembranças permanecem coletivas e nos lembramos por outros, ainda que se trate de eventos em que somente nós estivemos envolvidos e objetos que somente nós vimos. Isso acontece porque jamais estamos sós. Não é preciso que outros estejam presentes, materialmente distintos de nós, porque sempre levamos conosco e em nós certa quantidade de pessoas que não confundem [...]” (Halbwachs, 2006: 30). Através de Halbwachs (2006), percebe-se a forte ligação entre o indivíduo e o contexto social, representado por outros seres sociais que acabam vinculando-se a história e lembrança do sujeito. Neste caso, Maria estava com dificuldade de lembrar-se de seu ingresso na escola e, mesmo que não tenham surgido detalhes relativos ao nome do espaço de escolarização, acabou lembrando que seu “início nas letras” aconteceu em um formato de escola diferente, a qual acabou comparando a uma ONG (organização não governamental). Ressalta-se neste fragmento que a lembrança acabou fluindo a partir do contexto em que vivia, ao lembrar-se da família que tinha três filhas, diferente da sua que era mais numerosa, lembrou-se que as meninas iam junto ao que chamou de “coleginho”. Em relação ao início da escolarização Maria traz algumas marcas: [...] porque eu sempre fui muito marcada, no sentido assim de não acompanhar a turma, sabe, porque eu era a mais pobre da turma, digamos assim. Eu tenho lembranças da turma, e eu tenho lembranças não boas, digamos assim [...]. 635 A entrevistada conta que usavam uniforme branco e o seu não era limpo como o das outras crianças, explica que em sua casa não havia água encanada e que sua mãe não tinha como deixar as roupas muito limpas. Fatos como este acabavam tornando-a bastante envergonhada, levando-a a retrair-se, não participar de atividades, especialmente de educação física, disciplina que não realizava segundo ela com a “cobertura” da mãe, ela se dizia doente, mas destaca que tinha consciência que o verdadeiro motivo era a vergonha das roupas: [...] Ah! outra coisa eram as roupas íntimas, era uma coisa muito complicada na época, por isso que eu digo: a minha mãe era uma pessoa bastante desligada, ela até conta que às vezes a gente tava mal cuidada. Então, eu me encolhia mais ainda, com medo de fazer exercício e a calcinha não era lá essas coisas, e era péssima. Então, essas coisas sempre me puxaram para trás. Eu me sentava e não me levantava, e não tinha nenhum professor que me fizesse fazer outra coisa. A mãe me protegia no momento que eu chegava em casa e chorava e dizia que eu não queria fazer educação física, e eu não queria fazer educação física. Daí ela ia lá e eu não fazia e eu tinha um probleminha de saúde também, que talvez ela imaginava que era por conta do problema, e não era, era por causa da roupa, mas a mãe me dava cobertura [...]. Neste fragmento percebe-se que a situação econômica, refletida na precariedade de suas roupas, acabou levando Maria a perceber-se como inferior ao comparar-se com os demais colegas da turma, tal sentimento acabava estagnando suas ações e distanciando-a da educação física. Tal sentimento também pode explicar a dificuldade que sentia em relação a outras matérias? Tal contexto faz lembrar de Paulo Freire (2013: 69), quando refere a condição do oprimido: “De tanto ouvirem de si mesmos que são incapazes, que não sabem nada, que não podem saber, que são enfermos, indolentes, que não produzem em virtude de tudo isto, terminam por se convencer de sua ‘incapacidade’ [...]”. Percebe-se pelo relato que Maria, parecia uma criança pouco participativa e essa falta de interação pode ter levado a não fazer perguntas, não compreender conteúdos e consequentemente vivenciar uma situação de baixo desempenho escolar. Afirma-se, no entanto, que se compreende a questão de baixo rendimento escolar como complexa e nesse trabalho apontam-se apenas indícios, sem a pretensão de afirmações que explicitem verdades inquestionáveis. Ao continuar ouvindo a entrevistada, identifica-se que em sua trajetória houve momentos de superação da condição de estagnação, levando-a a experienciar o sucesso escolar, especialmente na 4ª série: “[...] porque por incrível que pareça, por isso que eu queria estar com o boletim. Neste ano eu fui à terceira colocada na turma [...]”. Maria lembra com orgulho da 4ª série, momento em que foi considerada a terceira colocada da turma. Entre aspectos marcantes positivamente da vida escolar, a entrevistada destaca uma palestra referente à higiene que a ajudou a aprender cuidar de si, o que provavelmente contribuiu para melhorar sua autoestima. Outro aspecto que destaca refere-se à determinada professora, a qual segundo a entrevistada “[...] essa sim fez toda a diferença na minha vida, para me dar esperança de fazer o ginásio [...]”. Ao contar sobre a professora Maria não lembra precisamente se foi ela quem proferiu a palestra sobre higiene, mas acredita que tenha sido. Destaca que achava um dos melhores 636 momentos às aulas de música. Buscando comparar a metodologia da aula com formatos do mundo do trabalho atual, a entrevistada disse que eram parecidas com motivações feitas em empresas, por possibilitar a interação entre todos. Salienta que, nessas aulas, sentia-se incluída. Outro fator que contribuía no gosto pela aula de música referia-se a aproximação com as vivências em família “[...] Talvez a música fosse porque minha família é muito musical, então eu acho que eu não tinha dificuldade como eu tinha em matemática [...]”. Ao referir-se a esta professora, ressalta que ela: “lhe enxergava”. Percebe-se pela fala da entrevistada que aproximação entre a professora e ela possibilitou um laço de afetividade o que possivelmente pode ter sido um fator que contribuiu para a melhora do desempenho de Maria: “[...] Significa, de fato, que a afetividade não me assusta que não tenho medo de expressá-la. Significa esta abertura ao querer bem a maneira que tenho de autenticamente selar o meu compromisso com os educandos, numa prática específica do ser humano. Na verdade, preciso descartar como falsa a separação radical entre seriedade docente e afetividade. Não é certo, sobretudo do ponto de vista democrático, que serei tão melhor professor quanto mais severo, mais frio, mais distante e ‘cinzento’ me ponha nas minhas relações com os alunos no trato dos objetos cognoscíveis que devo ensinar. A afetividade não se acha excluída da cognosciblidade [...]” (Freire, 2011: 138). Freire (2011) sublinha que a seriedade do trabalho docente não anula o professor como ser humano e afetivo. A postura de afetividade expressa pela professora da Maria, fez com que ela se sentisse efetivamente vista e isso possivelmente pode ter influenciando em seu momento de sucesso escolar. Também Lahire (1997), em seu livro “Sucesso escolar nos meios populares”, faz um estudo minucioso na França, especialmente voltado às famílias de estudantes de classes populares com baixo e elevado desempenho escolar, procurando compreender as causas de sucesso escolar nos meios populares. Entre várias questões apontadas identifica o papel da estrutura e organização familiar como indicador para o sucesso ou fracasso escolar, contudo, ressalta-se no trabalho deste autor, a singularidade de causas destacadas em cada família uma, das 26 pesquisadas. Aproximando a história de Maria, visualizam-se alguns indícios para a vivência de um período de sucesso escolar, dentre os quais se destaca a melhora na auto-estima e aproximação entre ela e a professora, contudo, ressalta-se a partir de Lahire (1997), que a situação de fracasso ou sucesso escolar não deve ser interpretada de forma unilateral. Certamente outros fatores não identificados na entrevista podem ter contribuído para o bom desempenho de Maria na 4ª série. Prosseguindo o depoimento, a entrevistada relata que a família de sua mãe era de Porto Alegre (Br) e a família do seu pai de Santa Rosa (Br). O fato das famílias serem de lugares diferentes fazia com que o pai insistisse para que se mudasse para a cidade dele. Segundo a entrevistada, como estava tendo sucesso escolar, o pai e irmãos acabaram mudando-se para a Santa Rosa (Br) e ela permaneceu com a mãe em Porto Alegre (Br) até a realização do exame. Antes do exame, por ter sido considerada a terceira melhor aluna da turma, a entrevistada lembra que estava confiante e, caso fosse aprovada, ficaria morando em Porto Alegre (Br) com 637 sua avó materna, e sua mãe iria para Santa Rosa (Br), unir-se aos demais membros da família. Mas a aprovação não aconteceu. No que diz respeito a este episódio, cabe destacar que falando em voz baixa, contou não ter passado, acusando a Matemática como o motivo. Indagada sobre o formato do processo avaliativo expressou: [...] mas o que aconteceu eu entendo muito pouco, porque eu entendia muito pouco na época. Eu entendo que a inscrição que eu fiz para “Admissão ao Ginásio”, foi numa escola de freiras, que tinha uma espécie de bolsa, então devia ser particular. Então, isso era uma concorrência para alguma bolsa, que eu ia ter uma vaga naquele colégio, que se chamava São Paulo, no bairro Niterói. Eu tinha que atravessar a ponte, sabe? Então, eu tinha que atravessar a ponte e nós fomos no colégio e eu não consegui [...]. Maria expressa que não entendia o formato e a necessidade do Exame de Admissão, acreditando que o tinha realizado para o ingresso em uma escola particular visando uma bolsa de estudos. Entretanto, ao consultar a Lei 4.024 de 20 de dezembro de 1961, que fixa as bases para educação nacional no período, verifica-se no artigo 36, que este exame era obrigatório para o ingresso de todos os estudantes no ginásio: O ingresso na primeira série do 1° ciclo dos cursos de ensino médio depende de aprovação em exame de admissão, em que fique demonstrada satisfatória educação primária, desde que o educando tenha onze anos completos ou venha a alcançar essa idade no correr do ano letivo. Até o início da década de 70 (século XX), para ingressar no denominado ensino médio, organizado em dois ciclos: ginasial e colegial, abrangendo cursos secundários, técnicos e de formação de professores para o ensino primário e pré-primário, era necessária aprovação no Exame de Admissão, ou seja, todos os estudantes brasileiros de escolas públicas e particulares precisavam ser aprovados para prosseguir seus estudos. Identifica-se que a primeira grande ruptura na vida escolar de Maria, aconteceu por um dispositivo previsto em legislação. Cabe ressaltar que por dez anos vigorou a Lei nº 4.024/61 que exigia aprovação no Exame de Admissão para prosseguimento de estudos, requisito este eliminado a partir da Lei nº 5.692/71. A reprovação no exame configurou-se neste caso como grande marca na primeira descontinuidade de estudos da entrevistada. Percebe-se através desta história singular, que fato semelhante possivelmente tenha impossibilitado a continuidade de estudos na trajetória escolar de inúmeros brasileiros. Ousa-se afirmar que um dispositivo previsto em legislação acabou expulsando Maria da escolarização naquele momento. Depois da reprovação, acima rememorada, Maria e sua mãe foram ao encontro da família no interior do município de Santa Rosa (Br). Ao narrar sobre esse período, conta que como que não conseguia habituar-se à vida no contexto rural, acabou voltando para Porto Alegre (Br) com quinze anos para morar com a avó materna. Antes de voltar para Porto Alegre (Br), com apenas quatorze anos, começou a trabalhar: [...] Quando eu fui trabalhar em Santa Rosa com 14 anos, esse desejo sempre me acompanhou de voltar a estudar, mas a DIFICULDADE de onde tu mora e de como tu vai para uma escola dificultou. E eu sempre olhava primeiro como eu vou fazer se eu voltar a estudar? Então, eu via a 638 dificuldade e eu nem tentava, eu simplesmente não tentava, eu não ia atrás para ver, porque nesse momento, em Santa Rosa. Eu trabalhei num frigorífico e eu não morava com os meus pais, morava com uma prima do meu pai, de favor, e geralmente dava uns atritos, porque ela tinha uma menina da mesma minha idade, que só estudava e eu morava no mesmo ambiente e só trabalhava. Desde então, eram duas realidades. Ela só estudava, ela ia e vinha do colégio, mas durante o dia. Talvez se eu tivesse falado, teria como estudar à noite, mas eu chegava em casa, tão, tão esgotada, que eu não tinha vontade de estudar. Então eu não pensava em estudar nessas condições [...]. Percebe-se através do trecho que diante das dificuldades, Maria acabava responsabilizando-se por não prosseguir estudar. O fato de ter que ingressar no mercado de trabalho cedo, por necessidade, e de viver junto com uma prima que podia estudar parecia lhe causar um conflito, contudo culpava-se por chegar cansada e “sem vontade”. Arroyo (2009: 97) destaca: “[...] Se é dramático abandonar a escola, mais dramático, ainda, é ter de abandoná-la para sobreviver. Esta pode ser a razão principal para lembranças tão contraditórias dos tempos de escola”. Nesse emaranhado de emoções, entre o desejo do retorno e a culpabilização pessoal pelo abandono escolar, Maria nos conta que seu retorno aconteceu depois de ter os filhos adultos e ter sido demitida do trabalho, no ano de 2002: “[...] eu tava parada, e eu não conseguia emprego, daí eu já tava numa parte que eu tava tentando me colocar no mercado de trabalho, daí eu comecei a noite para me ocupar, prá me ocupar, porque eu já tava entrando em depressão. Ficava o dia inteiro em casa, e aí eu fui descobrir que tinha esse EJA, não era PROEJA era EJA, e era muito bom, na cidade de Feliz o ensino é muito bom, era bem puxado [...]”. Seu retorno à escola, portanto, aconteceu na EJA na cidade de Feliz (Br) e conforme conta, voltou para se ocupar, fugindo da depressão. Salientou que o ensino na EJA do município era muito bom. Arroyo (2009: 117-118) ressalta que muitos jovens e adultos que retornam aos bancos escolares acabam encontrando um ambiente que não responde a suas vivências, o que os leva à desmotivação. Tal ambiente escolar felizmente, não foi visualizado nesta experiência relatada. Continuando a sua narrativa, Maria relembra que, por motivo de mudança para a capital, tentou retomar os estudos, mas acabou desistindo novamente. Segundo ela, pelo cansaço. Depois de morar um tempo em Porto Alegre (Br), mudou-se para Bento Gonçalves (Br) e, por ter uma escola em frente a sua casa, optou por retomar os estudos novamente, mas teve problemas: “[...] Eu tenho um tipo de vida bem diferente de algumas pessoas, algumas áreas do ensino conflitam comigo, e eu diferente da criança lá do passado, eu não consigo ficar quieta, porque depende das circunstâncias, porque o que acontece, no momento em que eu falo eu me queimo e minha tendência ao me queimar é fugir [...]”. Maria relatou que se desentendeu com a professora de História ao trabalharem o tema religião, o que ocasionou mais uma interrupção em seus estudos. Percebe-se que ao expor sua 639 opinião entrou em conflito com a professora. Essa relação pode ser caracterizada como uma prática pedagógica dissertadora? “Quanto mais analisamos as relações educador-educandos, na escola, em qualquer de seus níveis (ou fora dela), parece que mais podemos convencer de que estas relações apresentam um caráter especial e marcante- o de serem relações fundamentalmente narradoras, dissertadoras” (Freire, 2013: 79). Ao não sentir-se ouvida, optou encerrar seu Ensino Fundamental através de um exameiv, no qual com foi aprovada, o que possibilitou prosseguir seus estudos no PROEJA. Maria conta que ficou sabendo do PROEJA lendo os jornais da cidade, a partir disso, buscou mais informações na internet, inscreveu-se para entrar no programa e ficou como suplente no sorteio. Havia 35 vagas e ela foi sorteada com o 36º lugar. Enviou e-mail para coordenação pedindo sobre suas chances e foi informada que dependia da desistência de algum dos candidatos, o que acabou acontecendo. Com relação ao PROEJA, que vem cursando atualmente, a entrevistada foi indagada sobre dificuldades na aprendizagem, contudo, a entrevistada enfatiza que um dos grandes problemas vivenciados pela turma referia-se à falta de frequência: “[...] Não, não é conteúdo, o conteúdo nós temos, nós não temos frequência. A turma não leva a sério, a turma, nós temos ótimos professores e conteúdo bom. A turma não vem e não leva adiante conteúdo nenhum, nós não conseguimos avançar porque a turma não tem frequência [...]”. As questões relativas ao momento atual evidenciam a problemática da infrequência, assunto este que devido à limitação de espaço, certamente possibilita margens para novos estudos. CONSIDERAÇÕES FINAIS Através da entrevista com a Maria foi possível propor a aproximação entre uma história pessoal, permeada por rupturas vinculadas a um contexto de luta pela sobrevivência. Contexto este que pode influenciar outras histórias de vida. Schütze (2010: 210) assinala que “estruturas processuais dos cursos de vida individuais [...] (mesmo apresentando somente alguns vestígios), podem ser encontrados em muitas biografias [...]”. No decorrer da narrativa de Maria, foram percebidos diversos motivos para as rupturas na sua escolarização. Primeiramente foi vítima de uma reprovação em exame, imprescindível para seguir adiante, posteriormente a sobrevivência falou mais alto, a busca por melhores condições de vida levou a várias mudanças de cidade e, não sentir-se sujeito do processo, também foi motivo de descontinuidades em seus estudos. Diante desta história singular que em alguns momentos pode se cruzar com outras, ressalta-se a importância de ouvir os educandos, proposta enfatizada por Arroyo (2010: 1410): “[...] Os coletivos feitos desiguais se afirmam presentes como sujeitos políticos e de políticas no espaço público, e na agenda pública se afirmam como sujeitos de soluções políticas”. Acredita-se que a partir da escuta dos sujeitos educandos de EJA, e considerando suas contribuições, o próximo passo seria construir políticas perenes e consistentes, superando 640 proposições em castelos de areia, marcadas pela precariedade e provisório, como tão bem alerta Rummert et. al (2009: 120). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Alberti, V. (2004). Manual de história oral. Rio de Janeiro: FGV. Arroyo, M. G. (2009). Imagens quebradas: Trajetórias e tempos de alunos e mestres. Petrópolis: Vozes. Arroyo, M. G. (2010). Políticas educacionais e desigualdades: A procura de novos significados. 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Através de Paiva (1987) verifica-se que especialmente a partir de 1930 aconteceram iniciativas relativas a educação de adultos e o termo utilizado para referir-se a este público era “ educação de adultos”, mesmo que na década de 40 visualizem-se campanhas de alfabetização destinadas a adolescentes e adultos. ii - A entrevistada optou por manter sua identidade em sigilo, dessa forma no decorrer do texto será utilizado o nome fictício Maria para referenciar a entrevistada. iii - Optou-se por manter nos fragmentos transcritos a linguagem da entrevistada, sem padronizar a norma culta. iv - De acordo com o artigo 38 da Lei nº 9394/96, os sistemas de ensino mantém exames supletivos, compreendendo a base comum do currículo, habilitando para o prosseguimento regular dos estudos. 642