VII Jornadas Santiago Wallace de Investigación en Antropología Social. Sección de
Antropología Social. Instituto de Ciencias Antropológicas. Facultad de Filosofía y
Letras, UBA, Buenos Aires, 2013.
Memória, verdade e justiça à
brasileira: uma etnografia da
Comissão de Anistia.
ALVARES ROSITO João Baptista.
Cita: ALVARES ROSITO João Baptista (2013). Memória, verdade e justiça à
brasileira: uma etnografia da Comissão de Anistia. VII Jornadas
Santiago Wallace de Investigación en Antropología Social. Sección de
Antropología Social. Instituto de Ciencias Antropológicas. Facultad de
Filosofía y Letras, UBA, Buenos Aires.
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Memória, Verdade e Justiça à brasileira: uma etnografia da Comissão de Anistia
João Baptista Alvares Rosito
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) – Brasil
[email protected]
I – Introdução
Este artigo busca analisar as demandas por verdade, memória e justiça acerca
dos crimes cometidos durante a ditadura militar no Brasil (1964-1985), a partir da
implementação e da operação da lei 10559 de 2002, legislação que estabelece
parâmetros para a concessão de anistia política e reparação econômica por perseguição
política. Ainda que essa não seja a única lei brasileira que enfrenta o legado da ditadura
militar – de um lado, atendendo um pleito das vítimas e, de outro, circunscrevendo os
próprios limites da política reparatória brasileira – tomo-a como ponto de partida do
estudo, pois sua operação coloca na cena pública recente uma série de atividades e
eventos que passam a concentrar narrativas e demandas por verdade, memória e justiça
em relação à ditadura militar brasileira, atualizando pleitos antigos e agregando novas
pautas e recursos discursivos. Assim, analiso os diferentes sujeitos e discursos
envolvidos em tal política reparatória e atento para os sentidos acionados, disputados e
reformulados acerca da ditadura militar brasileira pelos que demandam tal reparação e
por aqueles que são responsáveis por deliberar acerca dela. Dedico especial atenção
para as reconfigurações operadas nos pleitos por verdade, memória e justiça neste
contexto, ao longo da operação da política reparatória da lei 10559, identificando novos
atores que se engajam em tais demandas, bem como estratégias de atualização de tais
reivindicações.
Os dados que apresento são fruto de uma pesquisa etnográfica realizada entre
2008 e 2010 junto à Comissão de Anistia, órgão do Ministério da Justiça responsável
por analisar e deliberar os pedidos de reparação econômica por perseguição política
embasados na Lei 10559. Tal pesquisa foi empreendia no âmbito de meu mestrado em
Antropologia Social na Universidade Federal do Rio Grande, resultando na dissertação
intitulada “O Estado pede perdão: a reparação por perseguição política e os sentidos da
anistia no Brasil”, defendida em agosto de 2010. O trabalho de campo foi realizado em
atividades públicas da Comissão, especialmente as Caravanas da Anistia, sessões
públicas e itinerantes de julgamento de requerimento de reparação por perseguição
1
política, conforme detalharei mais adiante, e por meio de entrevista com integrantes do
órgão estatal.
Assim, sem desconhecer a importância dos movimentos de vítimas e familiares
na mobilização pelos esclarecimentos dos crimes cometidos pelos agentes do aparato
repressivo da ditadura, pela localização dos corpos dos desaparecidos e inclusive pela
responsabilização dos torturadores, que historicamente alentaram tais demandas,
privilegio nesta análise a formulação e reformulação dos pleitos de “verdade, memória e
justiça” no seio da política reparatória empreendida pelo estado brasileiro. Com isso,
busco refletir sobre os sujeitos e as práticas acionadas na execução de tal política, bem
como sobre as interações entre diferentes atores dela decorrentes. Dito de outra forma,
aponto para a possibilidade de a execução de uma política estatal, que, a princípio,
mostra-se aquém das demandas históricas das vítimas, viabilizar a retomada de um
debate público sobe o tema da ditadura militar e propiciar a atualização das demandas
de antigas reivindicações das vítimas.
Neste sentido, sustento que os pleitos por verdade, memória e justiça no Brasil
ganham novas estratégias de reivindicações e novos engajamentos a partir da política
reparatória embasada na Lei 10559. Assim, destaco que a atuação dos integrantes da
Comissão de Anistia, em articulação com vítimas da ditadura (presos políticos,
exilados, vítimas de tortura) e familiares de mortos e desaparecidos, resultam na
configuração de novos pleitos reparatórios e de estratégias de mobilização e
significação de tal política que extrapolam os sentidos iniciais das previsões da
legislação que operam.
II – A legislação reparatória brasileira pelos crimes da ditadura militar
Assim como outros países da América do Sul, o Brasil vivenciou uma ditadura
militar entre as décadas de 1960 e 1980. Em 21 anos de duração (1964-1985),
alternaram-se cinco presidentes militares, uma série de atos institucionais que
modificaram o ordenamento jurídico para viabilizar o projeto ditatorial, o que também
ancorado em um crescente e organizado aparato repressivo, que recorreu à tortura e à
execução como políticas de Estado. Ainda que a experiência ditatorial tenha sido
comum em países da região -- como Argentina, Chile e Uruguai, por exemplo --, as
características de cada regime diferem-se, da mesma forma que são bastante diferentes
2
os processos de redemocratização pelos quais cada um destes países passou. Nessa
conjuntura, merece destaque a especificidade, em cada contexto nacional, da
mobilização das vítimas e familiares pelo esclarecimento das perseguições políticas
empreendidas pelo Estado, bem como por reparação pelos danos e perdas sofridos, que
resultaram nas consignas “verdade, memória e justiça”.
No Brasil, o marco jurídico da redemocratização foi a 6.683 de 1979, chamada
de Lei de Anistia, que extinguiu a punibilidade dos “crimes políticos e conexos”. A
aprovação desta lei, em agosto de 1979, foi antecedida por uma ampla mobilização
social, que envolveu diversos setores da sociedade, em uma conjuntura de desgaste do
regime militar. Ainda que envolta em intensos debates tanto no parlamento da época –
em uma composição definida pelo próprio regime militar --, como nos movimentos
sociais, a lei consagrou o projeto dos militares, fixando anistia para “crimes políticos e
conexos” e, com isso, inscrevendo-lhe uma terminologia que abriria as portas para a a
interpretação de que a anistia se estenderia aos próprios agentes do regime militar
envolvidos em sequestros, torturas, assassinatos e outros crimes.
Vista por este ângulo, a Lei de Anistia de 1979 pode ser entendida como
portadora de um projeto de esquecimento (Grecco, 2003; Rodeghero, 2011, Mezarobba,
2006 e 2007), na medida em que empreende o instituto jurídico da anistia para extinguir
a punibilidade dos crimes dos “dois lados”, numa versão à brasileira da teoria dos “dois
demônios”. Entretanto, há de se ressaltar que, para o contexto brasileiro, o movimento
pela anistia política e a consequente aprovação da Lei de Anistia de 1979 abriu espaços
para amplas movimentações populares posteriores, que foram relevantes para o
processo de abertura política. Se, de fato, a legislação aprovada era fruto de um projeto
do próprio regime por um tipo de transição supostamente pactuada – “lenta, gradual e
controlada”, nas palavras de ideólogos da ditadura --, há de se ter em mente que
propiciou o retorno ao país de milhares de exilados políticos. O retorno massivo de
lideranças dos partidos cassados pela ditadura, bem como de militantes e intelectuais
que se opuseram ao regime militar viabilizou o processo de reorganização dos partidos
políticos e de recomposição de forças no plano político interno.
De toda forma, feitas tais ressalvas, de fato, a legislação de 1979 em nada
enfrentou as demandas por esclarecimento dos desaparecimentos e mortes ocorridas
durante a ditadura militar, nem as de reparação pelas perdas ocasionadas pelas
3
perseguições políticas. Os processos políticos desencadeados após a Lei de Anistia de
1979 – mobilização por eleições diretas para presidência da República (as chamadas
“Diretas Já”), convocação de assembleia constituinte para elaboração de uma nova
constituição, os próprios debates em torno do novo texto constitucional e a primeira
eleição direta para presidência da República após duas décadas de ditadura, em 1989 -deixaram os pleitos por esclarecimento dos crimes, localização dos corpos dos
desaparecidos, responsabilização dos agentes estatais e reparação circunscritos às
mobilizações das próprias vítimas diretas e aos familiares de mortos e desaparecidos
políticos.
Neste trabalho, como já exposto, focalizado a recepção do estado brasileiro das
demandas por verdade, memória e justiça e as reconfigurações de atores e estragégias
para a consecução de tais pleitos durante a execução de uma política reparatória no
contexto brasileiro contemporâneo. Segundo Mezarobba (2006 e 2007), a anistia
brasileira deve ser entendida como um processo de longa duração, no qual três leis
devem ser entendidas como marcos jurídicos de recepção das demandas em torno do
legado ditatorial: a já citada Lei 6.683 de 1979; a Lei 9.140 e 1995, chamada de Lei dos
Mortos e Desaparecidos Políticos; e a Lei 10559 de 2002, que institui os parâmetros de
concessão de reparação econômica por perseguição política.
Assim, embora na pauta dos movimentos de vítimas e familiares, é somente na
década de 1990 que as demandas por verdade, memória e justiça ganham novamente
destaque na agenda oficial e resultam na aprovação da Lei 9.140, que reconhece a
responsabilidade do Estado brasileiro na morte de 136 pessoas durante a ditadura
militar, concede reparação econômica aos familiares dos mortos e cria a Comissão
Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) para analisar outros casos
de mortes e desaparecimentos não abarcados pelo texto original da lei. A CEMDP
funcionou até 2006, período em que analisou 475 casos de mortes e desaparecimentos
com possível motivação política. Em 221 deles, foi reconhecida a motivação política e a
responsabilidade do Estado. Como marco dos trabalhos realizados, foi editado e
lançado, em 2007, o livro “Direito à Memória e à Verdade”, no qual estão registrados os
casos analisados pela Comissão.
Em 2001, por meio de uma Medida Provisória, posteriormente convertida na Lei
10.559 pela aprovação do Congresso em 2002, são estabelecidos os parâmetros para a
4
concessão de reparação econômica a vítimas de perseguição política. Também é
instituída a Comissão de Anistia, órgão do Ministério da Justiça responsável por
analisar e deliberar pelos requerimentos de reparação econômica.
O texto legal define o regime do “anistiado político”, aqui considerado o termo
como retorno à condição anterior à perseguição política empreenda, estabelecendo o
direito à “declaração de anistiado político” – o que independe da concessão de
reparação econômica; à “reparação econômica, de caráter indenizatório, em prestação
única, ou em prestação mensal permanente e continuada (...)”; à “contagem, para todos
os efeitos, do tempo em que o anistiado político esteve compelido ao afastamento de
suas atividades profissionais, em virtude de punição ou de fundada ameaça de punição
por motivos exclusivamente políticos (...)”; à “conclusão do curso (...) para o punido na
condição de estudante (...), ou o registro do respectivo diploma para os que concluíram
curso em instituições de ensino no exterior (...)”; e à “reintegração dos servidores
públicos civis e dos empregados públicos punidos (...)”. São elencadas 17 situações que,
confirmadas a “motivação exclusivamente política”, configuram o direito à anistia
política, entre elas as punições por atos institucionais, o afastamento de atividades
remuneradas “em virtude de pressões ostensivas ou expedientes oficiais sigilosos”, as
punições a estudantes, as demissões por participação em greve, entre outras. Em todas
elas, destacam-se a perseguição política e os reflexos dela na atividade profissional do
perseguido. A reparação econômica de caráter indenizatório é prevista em duas
modalidades, conforme a legislação. A “prestação única” é garantida “aos anistiados
políticos que não puderem comprovar vínculo com a atividade laboral” e consiste no
pagamento de trinta salários mínimos por ano de punição com o valor máximo de R$
100 mil. A “prestação mensal permanente continuada” é destinada aos anistiados que
“comprovarem vínculo com a atividade laboral”, e o valor “será igual ao da
remuneração que o anistiado político receberia se na ativa estivesse”. No segundo caso,
os beneficiários recebem o valor retroativo a cinco anos, a partir da data em que
protocolaram o requerimento.
Assim, como sustenta Mezarobba (2006) as três legislações podem ser
entendidas como marcos importantes nas respostas do estado brasileiro às demandas das
vítimas da ditadura militar. A primeira, ainda no contexto da transição, não enfrentou as
demandas por esclarecimento e reparação, limitando-se a viabilizar o retorno dos
5
exilados políticos. A segunda marca o reconhecimento da responsabilidade do regime
militar na morte e desaparecimento de opositores do regime, avançando no campo do
esclarecimento das circunstâncias das mortes, mas sem ensejar responsabilização
alguma. A terceira contempla as demandas por reparação, ainda que exclusivamente
econômica e o faz partir de critérios que vinculam a própria reparação ao posto de
trabalho perdido pelo perseguido político.
Objeto do presente estudo, a Lei 10559 de 2002 baseia a reparação econômica
em critérios trabalhistas. Por estes critérios e por se ater a uma esfera administrativa
(reparação pecuniária, contagem de tempo de serviço, reconhecimento de diploma, etc),
é criticada, como registra Mezarobba, por não avançar nos temas da responsabilização,
ou simplesmente por reproduzir uma desigualdade de classes, ao fixar o quantum
remuneratório de acordo com a profissão exercida pelo perseguido político. A definição
dos valores concedidos como reparação será um constante foco de tensão na operação
de tal política reparatória.
Os requerimentos 1 embasados na lei 10559 são analisados pela Comissão de
Anistia, órgão do Ministério da Justiça. Formalmente, trava-se de órgão que assessora o
ministro da Justiça, autoridade responsável pela concessão da condição de anistiado
política e de reparação econômica. Na prática, cabe à Comissão de Anistia analisar e
deliberar sobre os requerimentos. Os julgamentos – aqui chamo de julgamentos,
enfatizando uma denominação dos próprios interlocutores da pesquisa, embora não se
trate de um julgamento do Poder Judiciário – ocorrem de forma colegiada, isto é, cada
requerimento é submetido à apreciação de pelo menos três conselheiros 2 da Comissão,
sendo um responsável por relatar a demanda aos demais e a propor um
encaminhamento.
III – Caravanas da Anistia: arenas de enunciação e escuta de narrativas sobre a
ditadura militar e de disputa dos sentidos da reparação
1
Do início do seu funcionamento, em 2001, até dezembro de 2009, a Comissão recebeu 66.003
requerimentos, dos quais 54.809 foram apreciados até o final de 2009. Destes, 35.959 requerimentos
foram deferidos, e 13.598, indeferidos. Dos processos que resultaram em reparação econômica, 3.336 dos
requerentes receberam indenização por prestação única e 9.160 foram contemplados com indenizações
por meio de prestação mensal permanente continuada.
2
Em agosto de 2010, época da finalização desta pesquisa de campo, Comissão de Anistia era composta
atualmente por 24 conselheiros, incluindo o presidente, e por cerca de 90 pessoas que trabalhavam nos
demais setores do órgão, como setores de atendimento, protocolo e diligência, análise, julgamento,
contadoria e finalização, informações processuais e jurídicas e arquivo e memória.
6
A partir de 2008, a Comissão da Anistia inicia um projeto de “educação em
direitos humanos”. Neste âmbito, começam a ser realizadas sessões itinerantes de
julgamento de requerimentos de reparação em diferentes cidades do país – as chamadas
Caravanas da Anistia --, com o objetivo de divulgar os trabalhos da Comissão e
homenagear os ex-perseguidos políticos nas localidades em que viveram ou militaram.
A iniciativa, segundo os integrantes da Comissão, teria o objetivo de agregar uma
“dimensão simbólica” à reparação, bem como divulgar para “as novas gerações” a
história da ditadura militar, mas também estava vinculada às repercussões do trabalho
da Comissão na imprensa, nas quais apenas os valores das indenizações apareciam,
quase sempre em notícias e artigos críticos à política reparatória3.
As Caravanas da Anistia tornaram-se, ao longo de 2008 e nos anos seguintes,
eventos de visibilidade e divulgação dos trabalhos da Comissão de Anistia. Agregaram
aos ritos administrativos de julgamento de requerimentos performaces de homenagem
às vítimas da ditadura. Realizadas em diferentes cidades e em sedes de universidades,
parlamentos estaduais e municipais, associações de classe, sindicatos, entidades
religiosas, empreendem à política reparatória a característica da itinerância e, com isso,
vão envolvendo diferentes atores em seus eventos.
Paulatinamente, as Caravanas constituem-se em espaços de enunciação e de
escuta de narrativas sobre a ditadura militar e de discursos que disputam o sentido da
política reparatória brasileira baseada na Lei 10559 de 2002. Isto porque propiciam uma
discursividade polifônica, visto que nessas sessões manifestam-se os integrantes da
Comissão, representantes das entidades que sediam o evento e os autores dos
requerimentos de reparação, pessoas que alegam ter sido perseguidas à época da
ditadura militar e que, por isso, pleiteiam reparação.
Durante a realização desta pesquisa, realizei observação participante em sete
Caravanas da Anistia – nas cidades de Caxias do Sul, Porto Alegre, Charqueadas, São
Leopoldo e Pelotas, no estado do Rio Grande do Sul; Brasília, no Distrito Federal; e
Florianópolis, no estado de Santa Catarina. Assim, pude identifcar que as Caravanas
seguem um determinado roteiro que se repete em todas as edições, mas também são
dotadas de uma plasticidade estética e discursiva que faz de cada uma delas eventos
3
SEQUEIRA, Cláudio e VALENTE, Rubens. Comissão aprovou R$2,9 bi de indenização a anistiados.
Folha de São Paulo, São Paulo, p. A4, 12 de abril de 2008.
7
singulares. De forma geral, o roteiro da Caravana conjuga protocolos burocráticosestatais – como execução do hino nacional e pronunciamento de autoridades – e
perfomaces específicas que podem ser consideradas disparadores de uma “política de
memória” da ditadura.
Assim, em cada Caravana é exibido um vídeo de homenagem aos requerentes de
reparação e recolhido um retalho de pano com o símbolo de entidades e movimentos
locais, os quais são agregados a outros retalhos de panos doados anteriormente, para a
confecção da chamada “Bandeira das Liberdades Democráticas”, uma grande bandeira
composta de pequenos pedaços de tecidos recolhidos ao longo das Caravanas. Este
vídeo, chamado pelos integrantes da Caravana de “sessão de memória”, é
confeccionado especialmente para cada Caravana. Assim, ele garante, de uma certa
forma, a singularidade da Caravana em questão e funciona como um recurso de
sensibilização dos presentes, ao mesclar imagens e músicas alusivas à militância e à
repressão militar nas décadas de 60 a 80. Mais do que isso, o recurso à exibição do
vídeo com imagens de outras épocas opera uma compressão do tempo, remetendo aos
presentes ao período a que as imagens retratam. A composição das imagens com
músicas reconhecidas como canções de resistências instalam uma atmosfera de
recordação e emoção que dificilmente não emociona os presentes.
A especificidade de cada Caravana também é verificada nos discursos dos
integrantes da Comissão, em uma linguagem que se alterna em cada edição, em um
discurso específico para o grupo que se acredita ser o público majoritário. A semântica
empregada nos discursos, o vídeo de homenagem e a cenográfica das Caravanas –
interação dos símbolos oficiais da Comissão com logotipos e símbolos das entidades em
que a sessão se realiza – conferem plasticidade às Caravanas.
Esquematicamente, as Caravanas realizam-se da seguinte forma: exibição de um
vídeo institucional da Comissão de Anistia, no qual se explicam os trabalhos do órgão,
com depoimentos de autoridades e de pessoas que receberam reparação; execução do
hino nacional; entrega de pedaços de panos para a composição da “Bandeira das
Liberdades Democráticas” pelas entidades que apoiam o evento; manifestação das
autoridades presentes e representantes das entidades que sediam e apoiam a realização
da Caravana naquela localidade ; exibição de um vídeo de homenagem aos perseguidos
pela ditadura militar que terão seus requerimentos de reparação apreciados, a chamada
8
“sessão de memória”; e, finalmente, início da análise e julgamento dos requerimentos
de reparação. Os julgamentos, por sua vez, ocorrem com a leitura, por um conselheiro,
da demanda apresentada e de seu voto. Em seguida, ao requerente é disponibilizado até
dez minutos para manifestação e, em seguida, os demais conselheiros debatem o caso e,
finalmente, votam a deliberação. Após a deliberação, ao requerente é formulado um
“pedido de desculpas do Estado brasileiro” pela perseguição empreendida contra ela
durante a ditadura militar.
Em geral, as Caravanas realizavam-se em dois turnos, podendo alcançar ao todo
mais de cinco horas. São compostas de duas partes com intensidade discursiva, público
e força dramática diferentes: a instalação da Caravana com os discurso das autoridades,
os vídeos institucional e de homenagem, a entrega dos retalhos de panos e, na
sequencia, os julgamentos propriamente dos requerimentos de reparação.
Para as questões que apresento e analiso neste texto, deter-me-ei na descrição da
14ª Caravana da Anistia, realizada em outubro de 2008 na Assembleia Legislativa do
Rio Grande do Sul, na cidade de Porto Alegre. Destaco as manifestações no julgamento
de três requerimentos, atentando para as narrativas e os sentidos envolvidos nas
manifestações tanto dos julgadores quanto dos requerentes ou de seus representantes –
nos casos, em dois deles os beneficiários já eram falecidos --, a fim de destacar os
sentidos acionados e disputados.
A 14ª Caravana da Anistia ocorreu na Assembleia Legislativa do Rio Grande do
Sul, sede do legislativo estadual, em Porto Alegre, a capital do Estado. Integrava o
conjunto de três Caravanas realizadas em dias consecutivos no estado – no dia anterior,
a 13ª Caravana ocorreu em São Leopoldo, cidade da Região Metropolitana, em uma
universidade; no dia seguinte, a 15ª seria realizada em um assentamento do Movimento
dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em Charqueadas, cidade próxima de Porto
Alegre. Aquelas três edições apontam para a diversidade de locais em que as sessões se
desenvolvem: uma instituição de ensino superior, um parlamento estadual e em um
assentamento de um movimento social pela reforma agrária.
Naquela Caravana, seriam analisados os pedidos de reparação de perseguidos
políticos que nasceram ou militaram durante a ditadura no estado do Rio Grande do Sul.
Estavam entre os requerimentos de reparação a serem apreciados o do ex-governador do
9
estado Leonel Brizola (falecido em 2002), que foi deposto pelos militares no golpe de
1964, exilou-se no Uruguai e nos Estados Unidos e, ao retornar ao Brasil, continuou a
carreira política, fundou o Partido Democrático Trabalhista (PDT), tendo se elegido
governador do Rio de Janeiro e se candidatado a presidente da República por duas
vezes.
Além do requerimento de Leonel Brizola, pelo menos outras duas figuras
públicas teriam seus requerimentos de reparação analisados: o de um deputado estadual
pelo Partido dos Trabalhos (PT), Raul Pont, que fora preso e torturado durante a
ditadura, conforme seu relato; e o de um militante morto e desaparecido durante a
ditadura, Luiz Eurico Lisboa, cujo corpo foi um dos primeiros a ser localizado em uma
vala clandestina na cidade de São Paulo. A viúva de Luiz Eurico, Suzana Lisboa,
também perseguida durante a ditadura, tornara-se uma liderança na luta dos familiares
pelo esclarecimento das mortes e desaparecimentos e pela localização dos corpos, tendo
composto a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Ao todo, nove
requerimentos foram analisados naquela Caravana.
Por conta do julgamento do requerimento de reparação de Leonel Brizola,
personalidade política de relevância nacional, a sessão de julgamento contaria com a
presença do ministro da Justiça. Para o caso de Brizola, o requerimento já havia sido
analisado e deferido, e a presença do ministro da Justiça seria para assinar a decisão, em
um ato simbólico, não deliberativo. A realização da Caravana na Assembleia
Legislativa e o fato de o requerimento de Leonel Brizola ser deferido com a presença do
ministro da Justiça aumentava a relevância daquela Caravana, com a presença de
jornalistas, políticos, ex-perseguidos políticos e familiares.
Destaco esses três requerimentos 4 – Leonel Brizola, Raul Pont e Luiz Eurico
Lisboa --, pois os discursos proferidos quando de suas análises informam
significativamente sobre os sentidos acionados e disputados acerca da reparação por
perseguição política, bem como sobre as narrativas acerca da ditadura militar tecidas
nas Caravanas. Mais do que isso, apontam tensões que envolvem tal política reparatória,
como a questão de quem teria legitimidade para requerer a reparação, o significado do
dinheiro e os diferentes usos dos discursos naquela arena.
4
Por tratarem-se de figuras públicas, no caso do ex-governador e do deputado, optei por manter os
nomes reais. Em relação ao outro requerente, dada a notoriedade do caso, igualmente mantive o nome
verdadeiro.
10
Os atos da Caravana realizaram-se no plenário da Assembleia Legislativa,
parlamento estadual, localizada no centro da cidade, em frente a uma praça ao redor da
qual também estavam erguidos a sede do governo do estado, um prédio que já fora sede
do Tribunal de Justiça e o principal teatro da cidade. O plenário, um amplo salão em
formato retangular, era divido em três áreas, cada qual em um nível: a mesa diretora, de
onde os trabalhos eram coordenados; o plenário em si, área em que ficavam dispostas as
mesas destinadas aos deputados, as quais ficavam de frente para a mesa diretora; e,
finalmente, as galerias, que circundavam o plenário pelas laterais e ao fundo, com
assentos destinados ao público. A mesa principal, ocupada pela presidência da
Assembleia nas sessões do parlamento, ficava em um plano mais alto em relação ao
nível das mesas dos deputados. As galerias, em um terceiro nível, superior tanto à
mesma principal, quanto às mesas dos deputados.
Para aquela Caravana da Anistia, as mesas normalmente destinadas aos
deputados nas sessões plenárias foram destinadas aos postulantes de reparação que
teriam seus requerimentos analisados. A mesa diretora foi ocupada por representantes
da Comissão de Anistia e autoridades, num primeiro momento, e, posteriormente, pelos
conselheiros responsáveis pela apreciação dos requerimentos. As galerias, como de
costume, foram ocupadas pelo público em geral.
A Caravana iniciou por volta das 10h (estender-se-ia até às 17h) com a exibição
do vídeo institucional da Comissão da Anistia. O ministro da Justiça ainda não havia
chegado, o que justificava o atraso em iniciar a sessão, marcada para mais cedo.
Encerrada a exibição do vídeo, o mestre de cerimônias informou que se “estavam
esperando as autoridades”. O vídeo exibido parecia conter algumas diferenças em
relação ao exibido em Caravanas anteriores. De fato, ao longo do trabalho de campo,
percebi que o vídeo institucional era constantemente modificado. Na versão exibida
naquela Caravana, destacavam-se projetos da Comissão na “área cultural”, nos quais
filmes eram exibidos, livros lançados, peças representadas, em atividades paralelas a
uma Caravana. Como em todas s ocasiões, o vídeo também explicava os objetivos da
Caravana, o que aparecia por meio de uma fala do presidente da Comissão: “(...)
resgatar a dignidade do perseguido no local em que ela foi ferida, em sua comunidade”.
Em seguida ao esclarecimento do mestre de cerimônia sobre a espera pelas
autoridades, o ministro da Justiça adentrou ao plenário, por uma porta interna com
11
entrada contígua à mesa central. Na sequencia da entrada do ministro, houve um fluxo
de pessoas entrando pela mesma porta. A mesa de abertura da Caravana foi composta,
com os presidentes da Assembleia Legislativa, da Comissão da Anistia, da Comissão de
Cidadania e Direitos Humanos do parlamento do Rio Grande do Sul e o presidente
estadual do Partido Democrático Trabalhista (PDT), agremiação política fundada pelo
ex-governador que seria homenageado naquela Caravana, além do ministro do Justiça,
autoridade máxima presente. Após a composição da mesa, houve a entrega dos retalhos
de tecido para a composição da “Bandeira das Liberdades Democráticas”. Foram
entregues símbolos do Comitê Estadual contra Tortura, da Ordem dos Advogados do
Brasil, de uma associação de anistiados políticos e a reprodução de uma página de um
jornal partidário editado à época do regime militar.
O vídeo da sessão de memória era dedicado ao ex-governador Leonel Brizola.
Iniciava com um depoimento do político sobre a vida no exílio e em seguida mostrava
uma entrevista do políticos e imagens do retorno dele ao país, por ocasião da anistia
política. Seguiam-se registros em vídeos da fundação de seu partido, de campanhas
eleitorais em que foi eleito governador do Rio de Janeiro e de comícios em disputas
eleitorais em que foi candidato à presidência. Nessas últimas cenas, todas coloridas, a
música que acompanhava as imagens era o gingle da campanha eleitoral de 1989. As
cenas da multidão ovacionando o político nos comícios foram interrompidas por sons de
instrumentos típicos de música “gauchesca” – do Rio Grande do Sul – e uma canção
regionalista substituiu os acordes anteriores. As cenas dos comícios foram trocadas por
fotografias mais antigas do político, em preto e branco, que retratava a trajetória dele
antes da ditadura militar, destacando a época de sua atuação do Rio Grande do Sul, sua
juventude e cenas campeiras, que reforçavam a identidade regional do político e, com
isso, a ligação com o Rio Grande do Sul.
Aquela sessão de memória, em duas partes, de um lado com cenas coloridas das
últimas atuações do político e, de outro, com fotografias antigas em preto-e-branco de
um período mais remoto, musicadas com uma canção nativista, operava uma
justaposição de três tempos e, como em geral ocorrida nas sessões de memória,
emocionou os presentes, levando alguns às lágrimas.
Encerrada a exibição do vídeo, o ministro da Justiça fez a assinatura simbólica
do documento que concedia anistia política e reparação econômica post mortem ao ex12
governador. A assinatura pelo ministro foi fortemente aplaudida e motivou cerca de
uma dezena de cinegrafistas e fotógrafos a aglomerarem-se em frente ao ministro para
registrar a assinatura.
Em seguida, concedeu-se a palavra ao presidente regional do partido fundado
por Leonel Brizola:
“Para nós do PDT, reconhecer Leonel Brizola não tem valor patrimonial
(...). Para nós, seguidores do PDT, a importância é o reconhecimento do
Estado brasileiro, não deste ou daquele ministro, do cidadão Leonel
Brizola. (...) Uma vida política se faz de muitas maneiras, e Brizola
construiu a sua com sacrifício. E aqui temos de ressaltar o papel da
mulher e mãe Neuza Goulart Brizola. Dona Neuza foi a companheira fiel
(...). Creio que quem mais tenha sofrido no exílio foi a esposa e a mãe
dos filhos de Leonel Brizola.”
A manifestação do líder partidário ressalta alguns dos tensionamentos presentes
no processo de demanda e concessão de reparação econômica por perseguição política.
No caso em questão, o requerimento em nome do ex-governador fora feito pela
companheira com quem ele viveu dez anos após a morte da primeira esposa, mãe de
seus filhos. Ao diferenciar enfaticamente “valor patrimonial” e o “reconhecimento do
cidadão”, o orador explicita o conflito que a reparação econômica parece não superar,
um entendimento de ineficácia do dinheiro em reparar o dano sofrido. Essa dicotomia
entre “dinheiro e homenagem”, “reparação e reconhecimento” acaba sendo reiterada em
diversas manifestações durante as edições das Caravanas. Além disso, ao exaltar a
figura da esposa, quase que em oposição à da autora do requerimento, coloca-se a
questão de quem teria legitimidade e direito para requerer a reparação. Da mesma
forma, fica evidente que a concessão de reparação baseada na lei 10559 pode assumir
significados diversos, até mesmo conflitantes, para os diferentes atores envolvidos no
mesmo processo.
Após a fala do representante do partido, manifestou-se o presidente da Comissão
de Anistia. Paulo Abrão, advogado e professor universitário, 32 anos à época,
representava o perfil que a Comissão de Anistia passou a ter depois que ele assumiu o
cargo, em 2007. Aos poucos, foi nomeando jovens bacharéis em Direito, com alta
formação acadêmica e com trânsito entre movimentos sociais contemporâneos, por
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meio da atuação como “assessores jurídicos populares”. Paulo levantou-se e dirigiu-se à
tribuna, local de onde os deputados discursam nas sessões plenárias do parlamento.
A Comissão de Anistia não é uma comissão de governo, é uma comissão
do estado brasileiro, ela pertence à sociedade brasileira. E tem a missão
de pedir desculpas e reconhecer os danos que o estado causou às
pessoas. (...) Para a Comissão de Anistia, que reconecta os temas do
passado e do presente, é significativo estar no Rio Grande do Sul. Nosso
trabalho está pautado pelos princípios da justiça de transição. (Paulo
Abrão, presidente da Comissão de Anistia).
Paulo prosseguiu, dizendo que “os verdadeiros arquivos da ditadura eram os
arquivos da Comissão de Anistia”, pois as sessões de julgamento contavam com a
manifestação dos próprios requerentes, que relatavam as violências sofridas. Ainda,
enfatizou que o trabalho do órgão pautava-se pelos princípios de “ justiça de transição”
e brevemente explanou sobre o conceito. Por fim, defendeu a responsabilização dos
torturadores.
Em seguida, o ministro da Justiça discursou. Disse que “com a anistia não se
esquece, celebra-se a democracia” e criticou as interpretações que sustentavam que a
Lei de Anistia de 1979 consagrara uma dupla anistia, tanto para os opositores do
regime, como para os agentes estatais. Criticou atuações violentas das polícias contra
movimentos sociais e finalizou saudando a memória do ex-governador homenageado:
“Viva Leonel Brizola! Viva o Estado Democrático de Direito”.
Após a fala do ministro, outro vídeo de homenagem foi exibido, desta vez com
imagens de charges que denunciavam as violências do regime militar e fotos de
desaparecidos. Decorrida uma hora desde o início, foi declarada aberta a sessão de
julgamento e novamente o presidente da Comissão de Anistia pronunciou-se. Desta vez,
Paulo convidou o público que ocupava as galerias a sentar no plenário, já que o número
de presentes diminuiu consideravelmente após a participação do ministro da Justiça. Em
sua fala, Paulo explica os critérios de reparação estabelecidos na Lei 10559, diz que “a
legislação é ruim” e que “o legislador não levou em conta o grau de sofrimento da
família, o grau de perseguição” sofrida pelas vítimas do regime militar. Compara a
legislação brasileira com experiências de reparação de outros países. Continua na
explicação dos critérios e legais e enfaticamente assevera que
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“Sabemos que valor algum repara o sofrimento, mas não queremos que
a anistia fique marcada por um viés economicista, laboral... Porque o
mais importante é o reconhecimento e o pedido de desculpas oficial”.
(Paulo Abrão, presidente da Comissão de Anistia).
Em seguida, foi apreciado e concedido o requerimento de reparação do deputado
em exercício de mandato Raul Pont, parlamentar do Partido dos Trabalhadores.
Acompanhado da esposa e da filha, ele havia participado no início da Caravana da
construção da bandeira das liberdades de democráticas e acompanhou o julgamento
dos processos. Após a leitura do relatório, o deputado pôde se manifestar. Da tribuna do
plenário, fez um discurso contundente, denunciando a violência policial no estado e
referindo-se a incidentes do dia anterior, em que a Polícia Militar reprimira
mobilizações de movimentos sociais. Acerca da perseguição que sofreu, relatou:
“Invadiram meu apartamento. Fui roubado. Roubaram meus livros e
objetos pessoais aqui e em São Paulo. Nunca mais reavi minha
biblioteca...” (...)
“Meu depoimento sobre [o coronel Carlos Brilhante] Ustra: sou
testemunha de que ele coordenou, e das quais eu fui vítima, sessões de
tortura. Estou aqui afirmando que ele comandou pessoalmente uma
sessão, quando eu estava sentado naquilo que se chama ‘cadeira do
dragão”. (Raul Pont)
A fala de Raul Pont conjugou diferentes dimensões temporais. Primeiro, fez
referência à experiência da perseguição política destacando dois aspectos: a perda de
objetos pessoais, incluindo a biblioteca e a tortura sofrida. Quanto à tortura, a referência
ao nome do militar que conduziu a sessão de tortura de que fora vítima recolocou em
questão o pleito pela responsabilização dos torturadores, assunto que já havia sido
evocado na fala do presidente da Comissão.
Após a manifestação do deputado, a proposição de deliberação do conselheiro
foi à votação, e os demais integrantes do colegiado de julgamento passaram a debater os
termos da indenização. O deputado foi interpelado sobre um determinado documento
que estaria faltando, e a análise técnica estendeu-se por cerca de 10 minutos, ao que o
relator disse: “O que menos interessa é o que estão discutindo nesse momento. Mas a
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lei determina uma indenização...”. Os conselheiros discutiram os valores da
indenização, apontando três possibilidades de valores a serem fixados. Encerrados os
debates entre os conselheiros e feita a deliberação quanto ao valor, foi finalizado
julgamento com a formulação de um pedido de desculpas pelas perseguições
empreendidas pelo estado à época da ditadura.
“Em nome do povo, do estado brasileiro, as desculpas oficiais pelo erro
que o Brasil cometeu contra o senhor”.
Após o julgamento do requerimento de Raul, foi à apreciação o de Luiz Eurico,
representado pela viúva, Suzana. O requerimento ficou a cargo de uma conselheira, uma
advogada de cerca de 30 anos, que fez uma compenetrada leitura de seu voto, fazendo
pausas para beber água e conter as lágrimas. O voto da conselheira relatava a juventude
do militante Luiz Eurico, o amor dele com Suzana, o início da militância, a vida na
clandestinidade e versos de autoria dele. Por fim, explanava sobre os critérios adotados,
os cálculos e os valores da indenização.
Suzana, a viúva, acompanhou a leitura do relatório sentada na galeria ao lado de
um jovem de cerca de 20 anos. Após a leitura do voto, ela abraçou e beijou o rapaz ao
lado dela, visivelmente emocionada. Chamada a falar, ela dirige-se ao plenário e diz
Não pretendia dizer absolutamente nada, mas o relatório me obriga a
agradecer. Até hoje não conseguimos saber onde estão, como morreram,
quem matou [os desaparecidos políticos], nem [tivemos] a
responsabilização de quem os matou. Infelizmente, nosso país não teve
coragem de enfrentar de frente os crimes do Estado. Peço ao presidente
da Comissão de Anistia que peça ao ministro da Justiça que franqueie os
arquivos da Polícia Federal.
Após a fala de Suzana, que é aplaudida pelos presentes, o voto da conselheira é
colocado em discussão, sendo aprovado por todos os conselheiros presentes, sem
discussão quanto a valores e critérios utilizados. Encerrando o julgamento, formula-se o
pedido de desculpas:
“Em nome do Estado e do povo brasileiro, pedi[mos] desculpas e perdão
pelos erros e barbáries cometidos contra a senhora e seu companheiro”.
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A Caravana desenrolou-se do meio da manhã até o final da tarde, com
interrupção para o almoço. Outros cinco requerimentos foram analisados e julgados. À
medida em que as horas avançavam, o público tornava-se escasso, em forte contraste
com o número de presentes no início da Caravana, pela manhã.
V- Memória, Verdade e Justiça à brasileira
As Caravanas da Anistia, iniciadas em 2008, configuram-se arenas de
enunciação e escuta de narrativas diversas sobre a ditadura militar. O formato das
Caravanas possibilita a participação de diferentes sujeitos, e a multiplicidade de
discursos postos em cena possibilita o acionamento, a disputa e a reconfiguração de
sentidos e pleitos acerca da experiência ditatorial.
Ainda que a lei 10559 de 2002 preveja tão somente a reparação econômica, a
política reparatória posta em curso por meio de sua operação forjou a realização das
Caravanas da Anistia. Nestes eventos públicos, a enunciação de discursos diversos
configurou uma arena para a retomada de demandas históricas das vítimas e familiares
da ditadura militar. Assim, ainda que em uma sessão de julgamento de reparação
econômica, torna-se possível narrar uma sessão de tortura, nominar o torturador, relatar
a perda de objetos pessoais, como no caso de Raul. No caso de Luiz Eurico, Suzana, a
despeito do pleito em questão deferido, avança nas reivindicações, reiterando o discurso
que pede verdade, memória e justiça, por meio do esclarecimento das circunstâncias das
mortes, da localização dos corpos e da responsabilização dos agentes públicos
envolvidos.
Também são colocadas nesta arena as tensões que permeiam tal processo, como
aquelas que questionam a legitimidade do requerente, ou que colocam em dúvida a
validade de reparar a perseguição política por meio de indenização financeira. Os
próprios integrantes da Comissão defendem a política reparatória, mas criticam os
parâmetros da legislação.
Assim, compreendo que a execução da política reparatória baseada n Lei 10559
possibilitou a reconfiguração dos pleitos por verdade, memória e justiça no contexto
brasileiro, a despeito de a legislação que a originou não conter tais aspectos. Parte disso
deve-se a iniciativas da Comissão como as Caravanas, que deslocaram os julgamentos
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para diferentes cidades e instituições, fazendo da apreciação das demandas eventos
públicos com sessões de homenagem. Ao congregar diferentes atores, discursos
distintos são enunciados e escutados, possibilitando uma arena específica de elaboração
e reivindicação de novos pleitos.
Ao mesmo tempo em que vítimas e familiares reconfiguram e atualizam seus
pleitos, os próprios integrantes da Comissão de Anistia atualizam seus repertórios
jurídicos por meio dos quais embasam suas decisões, trazendo conceitos como justiça
de transição para o debate sobre a ditadura brasileira. Junto a isso, agregam ao conceito
de “anistia política” – instituto jurídico que, no caso brasileiro, enfeixa diferentes
sentidos e remete a um determinado contexto de mobilizações pela redemocratização do
país – o “pedido de desculpas do Estado” pelas perseguições políticas empreendidas.
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