INDICADORES DE USO DA ÁGUA Luis Santos Pereira Professor Catedrático do Instituto Superior de Agronomia Universidade Técnica de Lisboa Centro de Estudos de Engenharia Rural Institutoa Superior de Agronomia Universidade Técnica de Lisboa Tapada da Ajuada, 1349-017, Lisboa. e-mail: [email protected] Resumo A convivência com a escassez de água, seja ela devida à aridez, às secas ou à desertificação induzida pelo homem, exige medidas de gestão e práticas de uso apropriadas às condições prevalecentes, bem diferentes das que são praticáveis quando a água é abundante. Assim, após introduzir brevemente a problemática da escassez, faz-se uma abordagem conceptual ao uso da água, propondo que a análise dos usos da água assuma uma distinção clara entre usos consumptivos e usos não consumptivos e, nestes, entre as fracções reutilizáveis e não reutilizáveis, as quais podem ser tomadas como indicadores e como base para distinguir entre perdas e desperdícios. Incluem-se igualmente os conceitos de uso benéfico e não benéfico da água e propõem-se como indicadores adicionais a eficiência dde um sistema hídrico e a produtividade da água. Estes conceitos são abordados tanto para usos agrícolas como para usos não agrícolas. Palavras chave: aridez, seca, desertificação, uso e consumo de água, fracções reutilizáveis e não reutilizáveis, usos benéficos e não benéficos, perdas e desperdícios de água. Summary Coping with water scarcity due to aridity, droughts or man-induced desertification requires that water management measures and practices be appropriate to the prevailing causes for scarcity and be different from those used when water is abundant. Thus, after briefly introducing the problem of scarcity, a conceptual approach to water use is presented where it is proposed to perform water use assessments by assuming a clear distinction between consumptive and non-consumptive uses and, for the later, between reusable and nonreusable fractions. Such fractions may be adopted as water use indicators, together with the beneficial and non-beneficial water use fractions. In addition, these concepts allow a clear distinction between water losses and wastes. In addition, indicators for the water systems efficiency and water productivity are defined. All concepts are referred for both agricultural and non-agricultural water uses. Keywords: aridity, drought, desertification, water use and consumption, reusable and non-reusable fractions, beneficial and non-beneficial fractions, water losses and wastes Introdução A escassez de água é característica de muitos ambientes e prende-se com várias causas, naturais e antrópicas (Pereira, 2002, Pereira et al., 2002). A grande questão que se põe é a de (re)aprender a convivência com a escassez de água e com as secas. Houve várias civilizações que floresceram em tais condições mas, por motivos que a História nos faz conhecer, ocorreram rupturas nessas heranças dos povos da América Latina. Mas sempre 207 houve vozes que se levantaram a reclamar essa convivência como José Guimarães Duque (1980), cuja primeira edição do seu livro "Solo e Água no Polígono das Secas" data de 1949, quando ainda não se falava de desertificção, e que nos propôs um manual actual mas esquecido de convivência com a escassez de água. A atitude das sociedades urbanas perante a água nada tem a ver com o ambiente, o conceito de escassez prende-se mais com a ineficiência dos gestores das redes de que com as causas naturais. O mundo urbano pensa resolver os problemas da carência hídrica pelo “preço da água” resumindo os valores sociais, económicos, ambientais e culturais ao conceito de bem económico. O conceito de conservação não existe e o de poupar tampouco, especialmente quando referidos aos usos domésticos, industriais ou turísticos, já que conservar e poupar são palavras de ordem, quando se referem aos usos agrícolas. Nessa perspectiva a distinção entre usos e consumos de água não se faz e os indicadores de uso visam sobretudo a eficácia ou a eficiência, mesmo que a estas palavras não se associem conceitos claros. Nesta perspectiva, propusemos a adopção de outros indicadores de uso da água quando se trata da convivência com a escassez: primeiro distinguir entre o que se usa ou consome, depois, para a fracção usada mas não consumida, entre o que é reutilizável ou não, bem como a distinção entre usos benéficos e não benéficos, ou ainda, entre o que são perdas e o que são desperdícios (Pereira et al., 2002; Pereira, 2003). Trata-se de trazer para a linguagem técnica conceitos simples, que qualquer um pode perceber, e aos quais se podem dar significados precísos e úteis em termos de economia de água nas terras secas. Porque o Projecto CYTED XVII-1 trata destes assuntos, (re)discutir estes indicadores pode ser útil. Uso e consumo da água, usos benéficos e não benéficos Para muitos os termos “uso da água” e “consumo de água” são sinónimos. Porém, de facto, não é assim. uso da água corresponde à mobilização de uma determinada quantidade de água para um certo fim. Todavia, uma parte dessa água é retornada ao ambiente, no mesmo ou, geralmente, noutro local, imediatamente ou passado algum tempo, mas raramente com a mesma qualidade, eventualmente degradada após ter sido usada. A parte não retornada corresponde ao consumo. Da água de boa qualidade que se recebe em nossas casas a partir de um sistema de abastecimento – uso doméstico - a maior parte é retornada à rede de esgotos com qualidade degradada após ter sido usada em lavagens, banhos, retretes, e só pequena parte é consumida nos alimentos ou por evaporação. Se aquela água residual for recolhida e tratada, poderá ser usada outra vez mas em condições menos exigentes em termos qualitativos do que no primeiro uso, Se não for recolhida e tratada para outros usos é desperdiçada e eventualmente irá degradar outros corpos de água, rios ou aquíferos situados a jusante. Será perdida se adicionada a corpos de água cuja qualidade é tal que não permita reuso. Da mesma forma, em agricultura, a água usada é a que é mobilizada no rio, no reservatório superficial ou no aquífero e a água consumida é a que se evapora a partir do reservatório, dos canais, do solo, a que é transpirada pelas plantas cultivadas e pelas outras plantas não úteis que lhe acedem, bem como a que é incorporada no produto. Várias outras fracções da água usada não são consumidas nomeadamente as que se infiltrem e percolem até aquíferos subjacentes a partir de reservatórios, canais e o campo cultivado, ou que escoem para cursos de água superficial por descargas dos canis ou por escoamento a partir dos campos regados. Estas águas poderão ser usadas de novo ou ser adicionadas a corpos de água cuja qualidade não permita o reuso. Estes conceitos podem compreender-se facilmente através do esquema da Figura 1. 208 Devemos ainda distinguir entre usos benéficos e usos não benéficos (Figura 2). Serão benéficos aqueles que levam à obtenção do produto desejado – nomeadamente a evapotranspiração da cultura - e, no caso da rega, ao controlo da salinidade do solo que exige a aplicação de uma fracção em excesso – a fracção de lavagem – que percole através da zona radicular e arraste os sais para profundidades que não afectem a cultura. Figura 1. Uso versus consumo de água e fracções não consumidas reutilizável e não reutilizável. USO = água mobilizada para dado fim FRACÇÃO CONSUMIDA Retirada à fase terrestre do ciclo hidrológico FRACÇÃO NÃO CONSUMIDA Qualidade degradada Qualidade aceitável FRACÇÃO REUTILIZÁVEL FRACÇÃO NÃO REUTILIZÁVEL Figura 2. Usos benéficos e não benéficos ba água; perdas e desperdícios USO = água mobilizada para dado fim CONSUMO USO NÃO CONSUMPTIVO Qualidade aceitável Usos benéficos FRACÇAO REUTILIZÁVEL Qualidade degradada FRACÇAO NÃO REUTILIZÁVEL Usos não benéficos Consumos não benéficos DESPERDÍCIOS 209 PERDAS Podemos igualmente distinguir perdas de água de desperdícios de água. No exemplo acima, perdas serão as águas evaporadas que não correspondem à evapotranspiração da cultura regada e as águas adicionadas a corpos de água que não permitem reuso (sem tratamento oneroso). De resto, as restantes fracções ou foram consumidas para o objectivo escolhido ou regressaram à natureza de forma a poderem ser usadas de novo, mais tarde e por outros utilizadores. Serão desperdícios as quantidades de água que foram usadas em excesso, caso de descargas a partir dos canais ou de excesso de água aplicada na rega. Os desperdícios conduzem quer a perdas, quer a fracções reutilizáveis posteriormente mas sem que se retire benefício da sua utilização (Figura 2). Indicadores de desempenho; fracções não consumidas reutilizáveis e não reutilizáveis Recorrendo aos conceitos acima, podem definir-se três indicadores relativos ao uso da água para qualquer finalidade: • A fracção consumida (FC), que consiste na fracção de água usada ou mobilizada que se evapora (evapotranspiração ou evaporação directa a partir de uma superfície de água ou a partir do solo), é incorporada no produto ou é consumida como bebida ou alimento e, portanto, deixa de ser disponível após uso por ser retirada à fase terrestre do ciclo hidrológico. Corresponde à relação FC = VC/VT entre o volume de água consumida (VC) e o volume total de água usada (VU), isto é, extraída de um rio, de um lago, de uma albufeira ou de um poço ou nascente. • A fracção reutilizável (FR), que consiste na fracção de água usada que não sendo consumida quando usada em dada actividade – produção, processo ou serviço - é retornada com qualidade aceitável a águas doces superficiais ou subterrâneas não degradadas e pode ser usada de novo, para finalidades de igual ou menor exigência em termos de qualidade. Corresponde à relação FR = VR/VT entre o volume de água usada mas não degradada, disponível para uso a jusante (VR), e o volume total utilizado (VT). A fracção FR exprime a capacidade de conservação do sistema hídrico em análise já que um valor elevado de FR significa que o uso foi conservativo e a água mobilizada se mantém disponível na fase terrestre do ciclo hidrológico. Vários sistemas em cascata podem portanto utilizar a mesma água embora tanto a qualidade como a qualidade vão necessariamente diminuindo de montante para jusante. • A fracção não reutilizável (FNR), que consiste na fracção de água usada que não sendo consumida quando usada em dado processo produtivo ou de serviço é retornada com qualidade inaceitável ou é adicionada a águas superficiais ou subterrâneas degradadas e não pode ser usada de novo sem que os utiizadores de jusante a submetam a tratamento oneroso. Corresponde à relação FNR = VNR/VT entre o volume de água cujo uso a tornou indisponível para uso a jusante (VNR), e o volume total utilizado. A fracção FNR exprime a falta de capacidade de conservação do sistema hídrico em análise já que um valor elevado de FNR significa que o uso não foi conservativo, levando a fortes perdas de qualidade da água e sem recurso a tratamento dos efluentes, o que pode ainda gerar a degradação da qualidade dos corpos de água 210 que os recebem, isto é, causando a diminuição do otencial de utilização da água que se mantém na fase terrestre do ciclo hidrológico. • Como indicador complementar, pode definir-se a fracção tornada indisponível, definida por FInd = (VC + VNR + VExp)/VT em que no numerador se adicionam os volumes consumido, não reutilizável e exportado para fora da bacia hidrográfica em questão, como no caso da ocorrência de transferências entre bacias, em que a água exportada deixa de estar disponível na área em que teve origem e onde foi mobilizado o volume VT. Para qualquer das fracções definidas acima é vantajoso distinguir as partes respectivas que correspondem a usos benéficos e não benéficos, como aliás se referiu na secção anterior. Os conceitos e indicadores acima definidos são descritos no Quadro 1 para os usos agrícolas em regadio e no Quadro 2 para os usos domésticos, industriais, recreacionais, paisagísticos e outros. Quadro 1. Indicadores de uso da água em regadio. Águas consumidas Usos benéficos Usos não benéficos • ET das culturas regadas • evaporação para controlo climático • água no produto • ET de excesso de água do solo e de freatófitas • evaporação a partir dos aspersores • evaporação a partir de canais e reservatórios Fracção consumida Águas não consumidas Águas não consumidas mas não reutilizáveis mas reutilizáveis • fracção de lavagem • fracção de lavagem adicionada a águas adicionada a águas reutilizáveis salinas • • percolação para lençóis freáticos salinos águas de retorno e de descargas drenando para águas degradadas Fracção não reutilizável 211 • • percolação para lençóis freáticos de boa qualidade águas de retorno e de descargas reutilizáveis Fracção reutilizável Quadro 2. Indicadores de uso da água em utilizações municipais, domésticas, industriais, recreativas, paisagísticas e outras. Águas consumidas Usos benéficos • • • • Usos não benéficos • • • Águas não consumidas Águas não consumidas mas não reutilizáveis mas reutilizáveis • Efluentes • Efluentes Água para beber e domésticos, urbanos, domésticos, urbanos, nos alimentos e e industriais tratados e industriais não bebidas • Caudais retornados tratados Água incorporada em não degradados da • Efluentes de boa produtos geração de energia e qualidade lançados Evaporação para de controlo da para águas salinas controlo da temperatura temperatura ET da vegetação e evaporação de lagos em áreas de recreio • Águas de qualidade Percolação a partir ET de vegetação não • de percolação e de de áreas urbanas e benéfica fugas para lençóis de lazer para lençóis Evaporação de águas freáticos de boa salinos desperdiçadas qualidade • Fugas a partir de Evaporação a partir • Fugas e descargas de sistemas urbanos e de canais e sistemas urbanos industriais para reservatórios reutilizáveis lençóis salinos e águas degradadas Fracção Consumida Fracção não Fracção reutilizável reutilizável No sentido de melhor caracterizar os desempenhos dos sistemas hídricos podem utilizar-se outros indicadores, mas cuja interpretação deve ser complementar da que se refere aos indicadores acima definidos. São eles: • A produtividade da água WP = QPROD/VU WP = QSERV /VU que exprime a relação entre a quantidade de produto (QPROD) ou de serviço (QSERV ) produzido com o volume de água utizada VU. Tomando exemplos, pode ser a quantidade de cereal produzido por m3 de água utilizada (kg/m3), ou a quantidade de electricidade produzida com determinado caudal do curso de água (kW/m3 s-1 ), ou a quantidade de cerveja produzida por unidade de água utilizada em todo o processo fabril (L/m3 ), ou a quantidade de tecido produzida por unidade de água utilizada no seu fabrico (m/m3 ), ou a área de campo de golf regada por m3 de água (m2 /m3 ), ou o número de refeições servidas por unidade de volume de água utilizada para a sua confecção (ca/m3 ). Este indicador permite comparar processos produtivos e de serviço da mesma natureza em termos de procura de água e esclarecer sobre a capacidade respectiva quanto a poupança e conservação da água. • A eficiência do sistema hídrico, expressa pela relação Ef = VR/VU Entre o volume requerido por determinado sistema hídrico ou actividade (VR) e o volume efectivamante utilizado (VU). A noção de volume requerido é específica de cada tipo de uso da água pelo que VR não deve ser estimado sem o seu 212 reconhecimento cuidado, isto é, fazendo generalizações desligadas da realidade. Uma baixa eficiência não significa necessariamente que ocorrem perdas já que os volumes não consumidos podem ser utilizados por outros utilizadores a jusante. Uma valor elevado para Ef pode não ser de todo razoável se isto significar que a fracção não consumida é tal que inibe o uso por utilizadores a jusante. Conservação, poupança e uso eficiente da água A conservação da água consiste em quaisquer medidas, políticas e de gestão, ou práticas dos utilizadores que visem : • • conservar e preservar os recursos hídricos potencialmente disponíveis, tanto em termos de quantidade como de qualidade, nomeadamente evitando as perdas, combater a degradação dos recursos hídricos disponíveis. Por seu lado, a poupança de água consiste em quaisquer medidas, políticas e de gestão, ou práticas dos utilizadores que visem • limitar ou controlar a procura e o uso da água para qualquer utilização específica, • evitar desperdícios e usos não benéficos da água. Adoptando estes conceitos e indicadores reconhecem-se as perspectivas para melhor usar a água numa perspectiva de conservação do recuso e de poupança no seu uso com a vantagem de recorrer a conceitos e indicadores que podem ser comuns a sistemas agrícolas e não agrícolas. Por exemplo, o conceito de eficiência vem sendo usado de forma muito díspar entre profissionais de rega e por outros profissionais e, frequentemente, de forma muito desajustada das realidades como analisado em Pereira et al., 2002). Recorrendo aos indicadores e conceitos referidos o conceito de eficiência fica reservado para finalidades específicas para as quais a sua definição é precisa. Nestas condições, a convivência com a escassez exige que os sistemas hídricos proporcionem uso eficiente da água, isto é: • uma elevada fracção consumida, de acordo com a natureza da produção, processo ou serviço em que a água é usada, o que de certa forma corresponde à obtenção de elevada eficiência, • a minimização da fracção não reutilizável e não benéfica, • o controlo da fracção reutilizável e não benéfica • a maximização da produtividade da água • bons desempenhos “do serviço da água” por parte das redes e sistemas hídricos que proporcionem boas eficiências e produtividades por parte dos utilizadores. 213 REFERÊNCIAS DUQUE, J.G. (1980). Solo e Água no Polígono das Secas. Escola Superior de Agricultura de Mossoró (5ª ed.). PEREIRA, L.S. (2002) Conservação e poupança de água para conviver com a escassez e a seca. In: A. F. Cirelli e E. Abraham (Eds.) El Agua en Iberoamérica. De la Escasez a la Desertificación. CYTED XVII and CETA, Universidad de Buenos Aires, Buenos Aires, pp. 147160. PEREIRA, L.S. (2003) Performance issues and challenges for improving water use and productivity (Keynote). In: T. Hata and A H Abdelhadi (Eds.) Participatory Management of Irrigation Systems, Water Utilization Techniques and Hydrology (Proc. Int. Workshop, The 3rd World Water Forum, Kyoto), Water Environment Lab., Kobe University, pp. 1-17. PEREIRA, L.S., CORDERY, I. e I. IACOVIDES, (2002) Coping with Water Scarcity. UNESCO IHP VI, Technical Documents in Hydrology 58, (http://unesdoc.unesco.org/images/0012/001278/127846e.pdf). UNESCO, Paris, 267 p. 214