A Regulamentação dos Planos de Saúde: uma questão de Estado Carlos Octávio Ocké Reis* “No Brasil, as medidas regulatórias sobre as operadoras de planos e segurossaúde e os ventos que sopram do managed care ainda não surtiram efeito sobre a atual configuração empresarial do mercado de planos e seguros. Isso não significa de modo algum que não se avizinhem grandes mudanças” [Ligia Bahia, 1999]. Nas décadas de 1980 e 1990, a estruturação integradas ao pólo dinâmico da economia, a e o crescimento dos planos de saúde estive- trajetória de custos crescentes [Braga e Góes ram associados, do lado da oferta, ao assala- de Paula, 1986] presente no mercado de pla- riamento e conveniamento dos profissio- nos de saúde colocou o Estado, por razões nais de saúde, à tecnificação do ato médico, políticas e sociais, frente à necessidade de e à consolidação das operadoras [Vianna, estabelecer uma política regulatória. 1987]. Do lado da demanda, esse processo foi estimulado quando firmas e o próprio Ao ser sensível à contestação “dos que têm Estado passaram a oferecê-los na condição voz e voto”, o Estado se viu então forçado a de salário indireto (fringe benefit). defender os consumidores do aumento sis- Esse fenômeno ocorreu simultaneamente taxa média de inflação da economia nos úl- à instauração do Sistema Único de Saúde timos anos. Assim, a despeito de uma corre- (SUS), cujo padrão de oferta das ações e ser- lação de forças favorável à desregulação dos viços de saúde – por intermédio da garan- mercados, ocorreu um processo inédito no tia formal do acesso universal − não foi ca- campo das políticas sociais no Brasil: a re- paz de impedir o crescimento dos planos gulação dos planos de saúde em 1998. temático de preços − que se deu acima da de saúde. Vale lembrar que tal crescimento só foi também possível a partir da aplica- No entanto, a edição da Medida Provisória ção de um conjunto de incentivos gover- no 2 177-43,1 de 27 de julho de 2001, dei- namentais, que, por sua vez, poderiam ter xou claro que o Poder Executivo ainda não sido destinados ao setor público de saúde conseguira reunir forças o suficiente para [Ocké Reis, 2000]. acordar uma proposta consensual para regular os planos. Passados os meses de junho e Desse modo, o gasto com planos de saúde julho − data-base do reajuste de preços da tornou-se um importante item no orça- maioria dos planos − o governo federal as- mento das famílias e das empresas e, dessa sistiu à derrubada dessa MP pela sociedade maneira, boa parte das pessoas passou a civil organizada, cujos pontos polêmicos se- pagar por formas privadas de atenção mé- rão transformados em projeto de lei. dica por meio de tais planos. O Congresso Nacional, portanto, deve rePor se tratar de um direito social da popula- discutir com a sociedade a resolução dos ção e do financiamento de serviços médico- impasses acerca da lei da regulamentação hospitalares dirigidos sobretudo às famílias em futuro próximo. O modelo de assistên- * Economista e pesquisador do IPEA. Doutorando do Instituto de Medicina Social/UERJ. Visiting Fellow da Universidade de Yale entre janeiro e setembro de 2001. 1. Disponível em: <http://www.ans.gov.br/mp2177-3.html> Consultado em 23 de outubro de 2001. 104 POLÍTICAS SOCIAIS acompanhamento e análise cia médica de uma nação é, sem dúvida, um sob pena de depois terem que negociar di- componente estratégico para se reduzirem retamente com sua operadora. Sem nenhu- as desigualdades sociais, manter o meio am- ma capacidade de barganha a posteriori, se- biente saudável e favorecer o crescimento ria então cauteloso aderir a ele de imediato. econômico do país. Além do mais, a rigor, a direção da ANS não Desde 1999, a falta de capacidade do Poder teria como garantir uma aterrissagem segu- Executivo de construir consenso em torno ra em direção ao Plano Especial, com um do desenho da política regulatória tem leva- percentual único de aumento das mensali- do a uma sistemática reedição de medidas dades, com regra específica por faixa etária provisórias, sob a guarda da Agência Nacio- e isenção de carências. Dado o caráter ine- nal de Saúde Suplementar (ANS). Mas qual lástico da demanda, ou seja, como na maio- foi a novidade trazida pela referida MP? ria dos casos não existe escolha e sim necessidade por atenção médica, a transição Dada a inviabilidade administrativa de con- forçada para os novos contratos poderia tinuar operando com duas bandas − uma re- significar dispêndios financeiros adicio- gulada, outra não − e sob o risco de se tor- nais, perda de qualidade da atenção médi- nar uma ouvidoria geral de reclamação dos ca, ou, em casos extremos, sérios danos à usuários, o Poder Executivo agiu correta- saúde dos consumidores (principalmente mente ao tentar estender a regulamentação no caso de planos individuais). para o conjunto do mercado. Cabia a ele promover a emigração dos planos antigos Em que consistia a adaptação sugerida pelo para o âmbito do raio de ação regulatório. Plano Especial na perspectiva de convencer o mercado a emigrar? Em que pesem a manutenção do plano-referência (que cobre consultas, exames, in- À primeira vista, para tornar clara a cober- ternação e obstetrícia) e de alguns avanços tura sobretudo dos pacientes crônicos e, da legislação em curso, na tentativa de ga- portanto, reduzir as contestações relativas nhar o mercado para fazer valer a emigra- às “pegadinhas” contratuais, a MP acaba- ção por meio do “Plano Especial de Adesão ria, paradoxalmente, legalizando exclu- a Contrato Adaptado”, o governo optou por sões e restrições ainda mais problemáticas. alterar o espírito da lei. Vale dizer, na origem, a própria lei da regulamentação permitiu considerável seg- Houve contestação surpreendente da socie- mentação do mercado. Além do “plano-re- dade civil organizada e o governo suspen- ferência”, foram definidos outros tipos de deu a MP. As conseqüências das medidas so- plano, tais como: ambulatorial, hospitalar, bre o acesso, a integralidade, a qualidade do hospitalar com obstetrícia, odontológico, atendimento médico e, até mesmo, sobre a ou ainda a própria combinação deles. Ago- fiscalização dos planos − já que a MP desobrigava o seu registro nos conselhos profissionais da área − seriam desastrosas. A MP fez sinalização ameaçadora para per- ra, a MP autorizaria a ANS a sancionar planos ainda mais segmentados − com perversas conseqüências sobre a qualidade da atenção médica. suadir os consumidores à adesão coletiva ao A criação da figura do médico generalista Plano Especial, a qual contaria com o como porta de entrada obrigatória dos pla- apoio logístico dos planos. Ela definia que nos de saúde cercearia também a já precária consumidores com contratos anteriores à liberdade de escolha de prestadores no âm- lei da regulamentação deveriam emigrar bito da rede credenciada. Isso permitiria a até dezembro de 2003 para o novo plano, criação de protocolos administrativos para POLÍTICAS SOCIAIS acompanhamento e análise criticar ou mesmo negar a demanda dos pa- É ponto pacífico entre os analistas de políti- cientes e de profissionais de saúde por cas de saúde: é típico do “modelo assisten- exames ou procedimentos de alto custo. cial” predominante no sistema de saúde dos Na mesma linha, a MP condicionava o aten- EUA, dimento e a cobertura do plano à disponibi- nos de saúde com as características consenti- lidade de serviços em uma determinada das pela MP. Vale dizer, na perspectiva de re- área geográfica, o que restringiria ainda duzir seus custos e gastos, esse modelo apre- mais o grau de utilização dos serviços pelos senta resultados clínicos, epidemiológicos e usuários. Ambas as medidas visavam atenuar sociais no mínimo controversos, se não o custo dos planos pelo lado da emanda alarmantes [Anderson et alii, 2001]. o managed care, a organização de pla- (coibindo a indução da oferta) e tenderiam a favorecer o lucro dos planos de saúde. Dada sua hegemonia, que é capitaneada por pesados interesses econômicos das se- Mas por que então certas fatias do mercado guradoras e planos de saúde em Wall Street, de planos não ficaram satisfeitas frente a a nação mais rica e poderosa do mundo, ao tais medidas, como seria de se esperar? mesmo tempo em que esbanja cortar impostos dos cidadãos, não consegue resol- Na verdade, a regulação não é aceita na prática por todo o mercado − pois afeta de- ver um notório problema social: são 43 milhões de pessoas que, sem recursos fi- sigualmente a rentabilidade e o padrão de nanceiros para ingressar no mercado dos competição dos planos em um contexto de planos de saúde e sem pobreza suficiente acelerada fusão de carteiras. Além do mais, para serem atendidos pelo Medicaid (pro- pressionado pelos custos crescentes, altas grama público dirigido aos pobres), não taxas de juros e salários reais médios estag- têm garantia de acesso aos bens e serviços nados, o número de beneficiários não tem de saúde (os uninsured). crescido no mercado de planos de saúde. Desse modo, como não se levou em conta Além do mais, existe profunda insatisfa- a diversidade das modalidades de atenção ção dos consumidores. Após seis anos de médica supletiva, o pragmatismo emigra- debate, o Congresso dos EUA vem tentan- tório poderia acabar favorecendo apenas do definir padrões mais rígidos de con- os grandes grupos econômicos. trole sobre os planos de saúde. Está em vias de aprovação o projeto de lei que Resumindo: para garantir a extensão da regulação − o que está correto − em um qua- trata do direito dos pacientes (Patients’ Bill of Rights) − cuja polêmica entre os dro de baixa capacidade de fiscalização da Partidos Democrata e Republicano reside e do próprio Poder Judiciário, o gover- em quão mais fácil será para o consumi- no federal pretendeu alterar o espírito da dor processar diretamente seu plano de lei, propondo medidas que institucionali- saúde e o seu empregador nas cortes esta- zam de forma radical a segmentação dos duais, em função de decisões de trata- planos e a restrição da demanda: seja por mento prejudiciais à saúde do paciente. meio de uma suposta racionalização da re- No entanto, não existe nenhuma diver- lação médico-paciente, seja condicionando gência quanto à necessidade de a legisla- o atendimento e a cobertura do plano à dis- ção ampliar o direito de acesso dos con- ponibilidade de serviços em uma determi- sumidores, nada área geográfica. Como tais medidas contrafeitos pelos planos de saúde. ANS que são sistematicamente implicariam graves conseqüências no que diz respeito à ampliação das desigualdades Enquanto nos Estados Unidos tenta-se de acesso, a sociedade civil organizada agiu conter o caráter economicista do managed rapidamente contra a adoção da MP. care, assistimos, de forma combinada, à 105 106 POLÍTICAS SOCIAIS acompanhamento e análise tentativa de institucionalização desse mo- Sem se intimidar com os desafios postos delo no Brasil − que, caso concretizado, pela restrição orçamentária, a premissa tenderia a ampliar as iniqüidades sociais e desse contrato é o estabelecimento de um a contaminar o SUS. círculo virtuoso em relação ao SUS, principalmente à sua pata estatal, que deve con- A regulamentação, tal como vem sendo tar ainda com a ampliação de seus recursos conduzida, a partir das propostas do mana- organizacionais e financeiros − via recur- ged care, acabaria assim criando, parado- sos fiscais, parafiscais e da seguridade social. xalmente, bases institucionais que favore- Além do mais, para refundar o mercado cem uma crescente e acelerada internacio- nessa direção, não é desprezível o papel nalização e oligopolização do mercado de que poderia ser exercido pelos planos de planos de saúde. À luz das experiências la- autogestão (principalmente das institui- tino-americanas, poder-se-ia prognosticar ções federais da administração direta, indi- que, em um primeiro momento, o merca- reta e do que restou do próprio setor pro- do seria saneado, entre outros, por meio de dutivo estatal), pelas cooperativas, pelo as- recursos e incentivos governamentais. Cri- sociativismo de consumidores, dos médi- adas as pré-condições, facilitar-se-ia possi- cos e dos próprios planos. velmente a entrada dos grupos econômicos internacionais [Iriart et alii, 2001] para “su- Inicialmente, na expectativa de que eles perar” essa previsível e preocupante que- funcionem como um “farol” para o mer- bradeira dos planos. cado no tocante à regulação dos preços, à qualidade dos serviços e ao cumprimento Dada a rigidez do tamanho do mercado e de metas epidemiológicas. Em longo pra- a trajetória de custos crescentes do setor, zo, como parceiros privilegiados na cons- a conseqüência inevitável seria uma ace- trução de um subsistema privado permeá- lerada concentração do poder econômico. vel às políticas regulatórias na área da as- Isso tornaria ainda mais frágil a capacida- sistência médica. de regulatória do Estado de atenuar o primado do lucro e da radicalização da sele- Parece desnecessário dizer que a regula- ção de riscos tão presentes na dinâmica ção precisa ser pactuada em bases demo- de acumulação capitalista dos planos − cráticas. O Congresso Nacional, junto que prejudica tanto consumidores quan- com a sociedade civil organizada, deve se to a própria sinergia do sistema de saúde. pronunciar sobre a criação definitiva de uma lei que regule os planos de saúde. Para negar a institucionalização de uma Sob a retórica da eficiência paretiana e do regulação dos planos de saúde pragmáti- aparente bem-estar social dos consumido- ca, ou seja, em favor do mercado, o Estado res, a adoção das idéias contidas na MP do deve efetuar uma intervenção ativa e managed care representaria dar um passo consciente − evitando ser capturado pelos atrás na regulamentação dos planos. lobbies econômicos. Como sujeito privilegiado no terreno da disputa em torno Na verdade, essa MP tentou refazer pelo do projeto de regulamentação, ele tem a alto o pacto que vem sendo dificilmente tarefa de induzir a formação de um bloco mantido em torno da regulamentação dos histórico que construa um contrato social planos, que, rigorosamente, é uma questão regulatório a partir das diretrizes do SUS. de Estado, no sentido do modelo de prote- Desse modo, poder-se-ia acumular forças ção social que o país quer afirmar. para forjar o tipo de mercado que se quer promover, ou melhor, se quer refundar. Em prol do fortalecimento da esfera pública − em que o planejamento democrático POLÍTICAS SOCIAIS acompanhamento e análise predomine sobre as relações sociais típicas Referências Bibliográficas de mercado − Estado e sociedade civil or- ANDERSON, G. et alii. Trends in Expendi- ganizada precisam (re)inventar medidas tures, Access, and Outcomes Among Indus- de reprodução social no campo da assis- trialized Countries. In: WIENERS, W. tência médica, protegendo-se do “moinho (Org.) Global Health Care Markets. Califor- satânico” (o mercado), de que nos fala Po- nia: Jossey-Bass, 2001. p. 24-40. lanyi. Afinal de contas, as políticas de saúde, inclusive aquelas circunscritas à regu- BAHIA, Ligia. Mudanças e Padrões das Rela- lação, exprimem um conteúdo que extra- ções Público-Privado: seguros e planos de polam o setor: o direito à vida. saúde no Brasil. 1999. 331 p. Tese (Doutorado em Saúde Pública) - Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz. BRAGA, José Carlos, GÓES DE PAULA, Sérgio. Saúde e Previdência. Estudos de Política Social. São Paulo: Hucitec, 1986. BRASIL. Agência Nacional de Saúde (ANS). Medida Provisória n. 2 177-43. Disponível em: <http://www.ans.gov.br/MP2177-3.html> Consultado em 23 de outubro de 2001. IRIART, C. et alii. Managed Care in Latin America: the new common sense in health policy reform. Social Science & Medicine, Oxford, v.52, p.1243-1253, 2001. OCKÉ REIS, C.O. O Estado e os Planos de Saúde no Brasil. Revista do Serviço Público, ano 51, n. 1, p. 125-150, 2000. VIANNA, C.M.M. Modelo de Funcionamento do Setor Privado dos Serviços Médicos do País. Cadernos do Instituto de Medicina Social, Rio de Janeiro, v. 3, p.31-46, 1987. 107