UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA CENTRO DE HUMANIDADES A FILOSOFIA MORAL E POLÍTICA NA UTOPIA DE THOMAS MORUS Mark Ian Collins Fortaleza 2010 MARK IAN COLLINS A FILOSOFIA MORAL E POLÍTICA NA UTOPIA DE THOMAS MORUS Dissertação submetida à Coordenação do Curso de Pós-Graduação em Filosofia, da Universidade Estadual do Ceará como requisito parcial para obtenção do grau de mestre em Filosofia. Orientador: Prof. Dr. Regenaldo Rodrigues da Costa Fortaleza - Ceará 2010 AGRADECIMENTOS Pela oportunidade concedida a este humilde peregrino sou grato a Deus e à vida que investiram neste menino. Espero poder sempre retribuir dando apenas o que há de melhor em mim todo esse aprendizado que tenho vivido. Sobre o meu orientador tenho muito que falar foi muito mais que professor enquanto estava a me lapidar. Foram cincos anos de união onde de aluno, e amigo, virei irmão diante disso não há mais o que acrescentar. Agradecer não é tarefa fácil quando há tantos para lembrar quantas vivências que mudaram minha vida quanta coisa consegui alcançar. Isso foi graças a quem chamo de amigo que esteve sempre comigo e cuja estima não consigo disfarçar. À FUNCAP eu devo muito pelo seu apoio financeiro provendo-me de recursos neste período passageiro. Por isso sou tão agradecido por ter ajudado e favorecido mais este pesquisador brasileiro. Amigos são muitos que me mostraram que distância não é medida seja na falta ou na presença sinto que sou uma pessoa querida. Espero um dia alcançar o poder de conseguir a todos devolver este carinho que me deu tanta guarida. Para cada conquista teve mãos que ajudaram conduziram cada vez mais adiante quando um largava outro segurava e assim eu seguia para frente Para aqueles que não foram citados eu garanto que serão sempre lembrados pois não se esquece algo tão forte que se sente. Me conduzindo pela filosofia destaco aqui os meus professores instruindo enquanto eu crescia sobre os sábios e os seus amores. Se hoje conheço a sabedoria a ponto de ter uma autonomia isso foi graças a todos esses doutores. Há quinze anos atrás, Quando a minha mulher me conheceu eu era um singelo rapaz com nada que pudesse chamar de meu, mas meu sentimento era tão forte e o dela também para a minha sorte casei com a mulher que Deus me deu A família, entre os presentes, colaboravam para o meu progresso mesmo os que se encontravam ausentes ficavam torcendo para o meu sucesso. A todos posso garantir que se dependesse somente de mim o resultado teria sido totalmente avesso. Diante dos seus sábios conselhos que eu tive o juízo de seguir graduei-me e agora me torno mestre com muitas oportunidades ainda por vir. Se eu me tornei professor foi graças ao seu amor e tudo que ela investiu em mim. Aos meus colegas e companheiros, desta ciência que abraçamos, sem sua ajuda não teria conseguido alcançar tudo que conquistamos. Lembrarei sempre com carinho daqueles que não me deixaram sozinho mesmo que se passem muitos anos. Como eu disse o assunto é vasto com muita coisa para falar tanta gente para agradecer e muitos outros para agradar, mas fica aqui a minha gratidão por todos que me encaminharam na retidão, algo do qual sempre vou lembrar. A todos aqueles que acreditam que a Utopia é possível e necessária. A “Teoria da Reciprocidade” Utopiana [A razão] convida-nos e impulsiona-nos a levarmos uma vida com o mínimo de ansiedade e com o máximo de satisfação, e, por afinidade de natureza, a prestarmos assistência aos outros todos para alcançarem o mesmo. MORVS RESUMO Partindo-se do princípio de que o método utopiano de filosofar se desenvolve como uma narrativa, na qual seus interlocutores dialogam na busca do conhecimento, desenvolveu-se a presente dissertação. Com base em autores da monta de Goodwin (2001), Baker-Smith (1991), Logan (1983), Surtz (1957), dentre outros que versam sobre o tema, o presente trabalho dissertativo, de cunho qualitativo-descritivo, busca tão-somente mostrar que, para muito além de uma obra literária, há uma filosofia moral e política contida na Utopia de Thomas More. Mostra-se como os conceitos contidos na estória desenvolvida no livro em comento se encaixam em categorias que pertencem à filosofia moral, tanto no plano individual quanto no coletivo. A pesquisa é apresentada em três capítulos. No primeiro, apresenta-se a crítica como ponto de apoio para alavancar o processo filosófico. No segundo capítulo, são descritos a sua fundamentação e seus princípios. A seguir, é revelado o deverser, o qual é explorado no terceiro e último capítulo. Conclui-se, portanto, afirmando que a Utopia de Thomas More foi cunhada em um gênero literário que caracterizou grandes obras que a antecederam, e se perpetuou até os dias atuais, presente inclusive nas ficções científicas, quando estas projetam civilizações futuras. Ressalta-se que, seja no início da modernidade ou no final da contemporaneidade, a filosofia moral e política de Thomas Morus continua sendo uma opção lúcida diante das enormes diferenças e dos desafios vividos pela humanidade. Palavras-chave: Thomas More. Utopia. Filosofia moral e política utopiana. ABSTRACT This dissertation was developed based on the principle that the utopian method of philosophy develops as a narrative in which its interlocutors use dialogue in the search for knowledge. It is based on authors such as Goodwin (2001), Baker-Smith (1991), Logan (1983), Surtz (1957) among others who write on the theme of this dissertation in a qualitative-descriptive manner, seeking exclusively to show that in addition to being a literary work, there is a moral and political philosophy contained in Thomas More's UTOPIA. It shows how the concepts contained in the story developed in this book fall into categories that belong to moral philosophy on an individual as well as collective level. The research is presented in three chapters. In the first, the critique is presented as a support from which to lever up the philosophical process. In the second chapter the foundation and its principles are described. Next the idealization is revealed, which is explored in the third and last chapter. It can be concluded that UTOPIA by Thomas More was created in a literary style characterized in great works that preceded it and continues today, even in science fiction (writing) where future civilizations are projected. It should be noted that whether it be in the beginning of modernity or in the end of the contemporary period, the moral and political philosophies of Thomas more continue to be lucid options for confronting the enormous differences and challenges experienced by humanity. Keywords: Thomas More. Utopia. Moral and political utopian philosophy SUMÁRIO INTRODUÇÃO .......................................................................................................................... 8 1 A CRÍTICA: IMPEDIMENTOS DA VIGÊNCIA DA FILOSOFIA MORAL E POLÍTICA .......................................................................................................................... 18 1.1 Vícios decorrentes dos falsos prazeres ........................................................................... 22 1.2 Vícios dos governantes ................................................................................................... 24 1.3 Vícios da nobreza e da plebe .......................................................................................... 28 1.4 A questão social da moralidade ...................................................................................... 32 2 A FUNDAMENTAÇÃO DA FILOSOFIA MORAL E POLÍTICA UTOPIANA ............... 37 2.1 A Razão .......................................................................................................................... 39 2.2 A natureza, a base da moral utopiana ............................................................................. 40 2.3 O prazer, a felicidade e a virtude .................................................................................... 42 2.4 A igualdade e o comunismo utopiano ............................................................................ 51 2.5 A matéria do prazer ........................................................................................................ 55 3 O DEVER-SER: EFETIVAÇÃO DA FILOSOFIA MORAL E POLÍTICA ........................ 58 3.1 O governo ....................................................................................................................... 58 3.2 O dever-ser da nobreza meritocrática ............................................................................. 67 3.3 O dever-ser da plebe ....................................................................................................... 73 CONCLUSÃO .......................................................................................................................... 84 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..................................................................................... 86 INTRODUÇÃO A cada obra filosófica investigada, devemos empenhar-nos em considerar sua importância para a tradição, bem como a viabilidade para reflexões sempre recorrentes. Apresentamos neste trabalho1 a obra de Sir, Santo, Martir da fé, Chanceler do reino, Thomas More (T.M.): Sermonis quem Raphael Hythlodaeus vir eximius de optimo reipublicae statu habuit liber primus, per illustrem virum Thomam Morum inclutae britanniarum urbis Londini et civem et vicecomitema2, conhecido mundialmente pela singela palavra, de sentido tão controverso quanto profundo, cunhada pelo próprio autor, Utopia. A criação de uma sociedade perfeita é a resposta para o mundo de seu tempo, um Estado decadente, carente de reformas, soerguidão. Por isso, a controvérsia inicia-se logo no nome com o qual ficou conhecida, Utopia. Termo que parece significar “lugar nenhum” (ou + topia), mas também “bom lugar” (eu + topia); ou talvez tenha havido a intenção de nomear a ilha de Utopia de “um bom lugar em lugar nenhum” (u + topia), visto que é repetidas vezes elogiada durante o texto. No entanto, sabemos que este lugar ainda está por existir. Condenar a Utopia por se tratar de algo não verificável e irreal deriva da visão ortodoxia empirista e positivista das ciências sociais, incluindo a ciência política, dentro da academia inglesa, e que explica a pouca atenção que foi dedicada ao pensamento utópico na Inglaterra, berço do fundador do gênero.3 Em estudo sobre a obra em comento, Goodwin e Taylor 1982, com base no conceituado estudo de R.Ruyer: L’Utopie et lês Utopies, argumentam que utopias são, apesar da sua apresentação às vezes fantasiosa, estritamente racionais e que constituem teoria especulativa. Apesar da ideia, criada na segunda metade do século XX, de que o utopianismo é associado a pensamentos e práticas totalitaristas, a leitura da obra mostra que isto é 1 A correção ortográfica deste trabalho obedece às novas regras gramaticais, no entanto, as citações permanecem na grafia original. 2 Título original da obra: Relato que Rafael Hitlodeu, homem eminente, fez acerca da melhor forma de governo, por Thomas Morus homem ilustre, cidadão da ínclita cidade inglesa de Londres e seu magistrado. (NASCIMENTO, 2006). 3 Sobre esse assunto verificar em: Goodwin e Taylor 1982. 9 equivocado. A primeira prova pode ser vista na própria Utopia, em que existe impeachment para governantes tirânicos. Goodwin et al (2001) defendem que o modo de pensar utopiano4 transforma os parâmetros de pensamento moral, social e político. Outra razão de uma obra tão popular ter sido tão pouco estudada, ou talvez tão pouco levada a sério, estaria na sua natureza e conteúdo revolucionários, o que tem provocado nas autoridades políticas e religiosas desde então o desprezo por uma obra radical e transformadora. Talvez seja esse o motivo pelo qual a Igreja Católica, principal autoridade religiosa ocidental desde então, apesar de ter elevado o autor ao status de Santo da sua Igreja, insiste em afirmar que a Utopia consiste apenas em uma obra literária para mero entretenimento; um paradoxo, em se tratando da principal obra do autor, e por haver uma farta evidência de que os princípios colocados na Utopia se encontram presentes nas suas demais obras, destacando ou separando, assim, um homem da sua obra literária. A Utopia é a única obra em Latim escrita por um Inglês que, traduzida nos mais diversos idiomas, é ainda lida por pessoas fora da academia e seus estudiosos. Desde a sua publicação, há quase meio milênio, não se têm passado vinte e cinco anos sem uma reimpressão num idioma europeu. Entre 1868 e 1940, quando o bibliógrafo parou de contar, nestes setenta e dois anos, a obra foi reimpressa noventa e duas vezes. As reimpressões em muitos idiomas pelo mundo, desde então, não pararam.5 Principal obra de um autor executado pelos seus conterrâneos por traição6, não é de se admirar que tenha recebido pouca atenção no seu país de origem, mesmo que este ato o tenha transformado num mártir da fé e santo, pelos princípios que defendia, ainda mais diante do fato de que a situação que gerou a sua discórdia e o levou à Torre de Londres e, em seguida, à execução perdura até a presente data na figura do monarca britânico como chefe da Igreja Anglicana da Inglaterra. Somente a partir de 1960, mais de quatro séculos após a sua morte, foi que o estudo da Utopia surgiu na academia de uma forma mais evidente.7 A importância do utopianismo na atualidade se reflete no interesse gerado pelo evento em 2000, intitulado A Busca pela Sociedade Ideal no Mundo Ocidental, realizado na 4 No decorrer do texto, usaremos aleatoriamente o termo utopiano e utopiense. Vide Yale 1965 p.cv 6 Por determinação do Rei Henrique VIII, no dia seis de julho de mil quinhentos e trinta e cinco, em Londres, aos cinquenta e sete anos. 7 Vide Levitas 1990, p.09. 5 10 Biblioteca Nacional em Paris e, posteriormente, na Biblioteca Pública de Nova York. Sabe-se que períodos de transição atiçam o interesse em utopias. A pergunta que se coloca em todo o presente trabalho é se a obra Utopia demonstra que os utopianos, habitantes de uma ilha imaginária, conseguem desenvolver uma política social plena, e invejável a qualquer cristão da Europa. E o alcance dessa condição se dá por meios racionais, tendo a própria razão como sentido. Entretanto, ainda não se conhece claramente a intenção de T.M.: se esta é uma chamada de atenção aos católicos de sua época ou apenas uma proposta social e política da vigente até então. Ainda persiste a dúvida: seria o livro somente uma peça literária ou o caminho da racionalidade para o alcance de uma sociedade perfeita? O nosso trabalho revelará outra face deste autor e sua obra, não como um mártir da fé ou santo8, o qual promove a autoridade eclesiástica de Roma ao negar o reconhecimento do segundo matrimônio de Henrique VIII e a imposição do rei como chefe supremo da Igreja na Inglaterra, tampouco como uma obra literária, mas antes como um teórico político, cuja preocupação foi a de estabelecer uma sociedade cujos princípios eram pautados na justiça, na moral e nos valores humanos. Homem de grande influência e cultura em sua época, T.M. era, como Erasmo, um cristão e humanista, porém, adepto do verdadeiro cristianismo, aquele que existiu em tempos remotos e foi se deteriorando até se tornar não mais espiritual e humilde, mas mercenário, político e suntuoso. No início do século XVI, época em que viveu T.M., a Igreja tinha alcançado níveis absurdos de exigências e deturpação da mensagem cristã original, abusos esses que acabaram por gerar as reformas protestantes. No livro A Utopia, percebemos o quanto a ironia de T.M. ataca as falhas e os erros em que estava envolvida a Igreja. Assim sendo, o presente trabalho tem a finalidade de apresentar a perspectiva de um discurso sobre filosofia moral e política nas reflexões contidas na Utopia, de T.M. Essa proposta se dá pelo reconhecimento de que o autor se mantém presente nas discussões 8 No ato de canonização, o Papa Pio XI, em 1935, o declara como modelo aos ingleses, como diplomata a ser seguido e estadista perfeito. Venerado pelos católicos, é declarado, por João Paulo II, como padroeiro dos políticos e estadistas, em atenção aos fiéis ingleses que viam um interesse especial em referenciá-lo. Esse interesse se deu por conta do interesse que os comunistas dispensavam por sua obra, enquanto tratado de uma sociedade política em que os valores são igualitários e a comunidade humana, um retrato do bem comum. 11 filosóficas pela inovação de uma sociedade racional e pelo olhar visionário de uma humanidade da razão. A perspectiva de uma humanidade racional se compreende na instauração de um Estado em que o comportamento de seus cidadãos seja um reflexo de como se mantêm diante de si, dos demais e das prescrições de uma sociedade ideal. A sensibilidade à sociedade de seu tempo faz com que T.M. crie antagonismos. A uma sociedade em que se evidencia o vício, ele apresenta o modelo de uma sociedade virtuosa. A um privilégio direcionado a poucos, ele constrói uma sociedade em que todos têm acesso aos mesmos direitos e cumprimento dos deveres recíprocos. Para entender a filosofia por detrás desta história, iremos separar todos os conceitos contidos dentro do texto. Desmontaremos a história, ou se quiser, podemos dizer que estamos decodificando uma obra de filosofia moral e política utopiana. A raridade analítica em T.M. conduziu a um desejo de investigar mais profunda e reflexivamente seu pensamento, contexto e perspectivas filosóficas medievais. Assim, o contato com versões do livro Utopia, nas suas diversas traduções, possibilitou uma aproximação ao pensamento deste filósofo, do seu sentimento utopista e das questões inovadoras levantadas por ele, dentre outras, a de uma filosofia moral e política, já mencionada anteriormente. O desafio de T.M. é o de apresentar em A Utopia uma sociedade pautada nos critérios exigíveis para o gênero humano, os da moral e da política. Moral, porque os debates encontrados nesta obra se concentram em questões semelhantes que ainda vigoram: o bem da alma e do corpo e os bens exteriores que o homem enfrenta e reconhece como prazer. Discute igualmente sobre a felicidade humana, onde se situa, e como atingi-la. Política, porque trata de uma reflexão sobre como organizar melhor a vida coletiva, tanto em nível individual quanto institucional, perpassando pelas esferas social e econômica. Portanto, o livro apresenta a alegação da melhor forma de organização política, já que a obra revela uma abstração e reflexão sobre um determinado momento histórico e, por outro lado, uma idealização, ou dever-ser social. No entanto, o livro também parece referir-se a uma situação da Europa do século XVI, à Inglaterra, de forma específica, numa crítica à sociedade. O fechamento da crítica se dá na idealização de um novo Estado e sua dinâmica de vida. 12 Dessa maneira, na Utopia, pode-se encontrar uma síntese sobre moral e política, dentre outros assuntos, não menos relevantes, mas que são destacados aqui pela sua igual abrangência. Como toda filosofia moral e política, seja utópica ou não, há a necessidade de um ponto de apoio, como se fosse uma alavanca para gerar o movimento filosófico. Este ponto se encontra na crítica. A partir de uma visão crítica se pode projetar o dever-ser que constitui o trabalho filosófico. Stillman 9afirma que: “Utopias podem ser vistas como uma filosofia política prática que considera e acessa ideais, meios e circunstâncias, a fim de facilitar sábias ações humanas.” Para o pesquisador, trata-se de uma filosofia política inusitada, não só em conteúdo como em forma, bem diferente das demais filosofias políticas a que estamos acostumados até a presente data. O gênero filosófico utópico promove uma reflexão crítica a respeito dos ideais e práticas da sociedade e permite conduzir a ações racionais. A despeito dos estereótipos criados a respeito de Utopias como sendo fantasiosas e irrealizáveis, o cerne do pensamento utopiano se concentra em levantar e oferecer alternativas e, à luz destas, iluminar o atual quadro e agir onde se deve.10 Hertzler11, na sua história sobre o pensamento utopiano, afirma que “Utopia não é um estado social, é um estado da mente”. Nesse mesmo sentido é o entendimento de Reis12, que defende a relação entre o idealismo filosófico e o utopianismo e também enfatiza o papel do utopianismo como um estado da mente13. Perceba-se, pois, que os autores supracitados chamam a atenção para o predomínio da razão na Utopia, como também para a necessidade de se alcançar um estado de ser, a fim de poder desfrutar do que a Utopia possa oferecer. Infelizmente, a Utopia não seria possível a todos. O predomínio da razão implica uma condição moral predominante em detrimento dos contextos sociais tradicionais e ultrapassados que permeavam a sociedade europeia do Sec. XVI. 9 STILLMAN 2001,p.10 Idem 11 HERTZLER, 1922, p.314. 12 REIS, José Eduardo P. Barreiros Professor do Dep. Letras - Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro. 13 GOODWIN et al (2001). 10 13 Já afirmamos que o discurso de A Utopia é uma nova forma de expressão da filosofia política. A fala do texto não se constrói nos moldes de preceitos lógicos articulados numa argumentação que visa à demonstração. É um discurso que se articula através da imaginação, utilizando, conforme a expressão de Baczko, “ideias-imagens”.14 O discurso de A Utopia elabora-se, um pouco, como as artes cênicas e plásticas, isto é, pela visualização e imagística. A inovação desse discurso consiste em que, com ele, o discurso filosófico torna-se mise-en-scène15. Uma das grandes características do discurso de A Utopia é que ele procura demonstrar mostrando. Conforme Stieltjes (2005, p. 18), Moreau observa que: “é próprio de A Utopia visualizar seus conceitos, não de explicá-los”. Por este motivo, a maioria das utopias está situada em outros lugares para fazer um paralelo com o aqui. Nas utopias, a visão, a imagem, impõe-se à fala, à articulação da palavra. Prévost observa que em A Utopia a realidade apresenta-se inicialmente como coisa; é apanhada na imagem, antes de ser transmitida pelo vetor das palavras. A imagem tem uma força expressiva superior às palavras e é esse poder que T.M. coloca em sua obra. Prévost afirma que A Utopia torna-se uma maiêutica pela imagem. A realidade é apresentada através de um jogo de imagens contrastantes.16 Para Mumford17, o método essencial da Utopia consiste neste retrato de vida cotidiana dentro das instituições utópicas, seguindo seus princípios próprios. Eticamente, uma proposta, para se tornar utópica, deve antes ser universal e oferecer benefícios a todos dentro do seu escopo. Mesmo quando estamos diante de um conto juvenil aparentemente inocente, como as Viagens de Gulliver, temos questões utópicas sendo tratadas. É claro que existem contos que se tornam brincadeiras pela sua falta de seriedade, mas onde houver uma praticidade, uma possibilidade sendo exposta, estamos diante de uma Utopia séria e quem sabe até possível. O que quer dizer filosofia utopiana? Nesta área filosófica, os conceitos não estão abstraídos do contexto social, como nas demais áreas de filosofia, mas apresentados como 14 STIELTJES, 2005, p.18. “Colocar num palco” descreve os aspectos presentes numa cena de teatro ou filme. 16 PREVOST, 1978. 17 MUMFORD, 1922. 15 14 seriam se fossem aplicados na sociedade. Um texto utópico representa uma experiência filosófica mostrando o resultado da aplicação de um princípio filosófico utópico. Com isto em mente, toda a história passa a ser um código moral aplicado na prática, e o papel de Rafael, na Utopia de T.M., é o de contar o resultado desta aplicação. Esta foi a primeira vez que isto se apresentou como tal, inaugurando, assim, uma linha de estudo filosófico chamada de utopiana ou utópica.18 Não são ideais diferentes que distinguem utopias de outras formas de filosofia moral e política, mas a sua exposição. Ao invés de apresentar conceitos abstraídos da sociedade, a Utopia mostra como conceitos filosóficos são aplicados na sociedade e, através do relato da mesma, como uma sociedade regida por aqueles princípios funciona. Trata-se de uma experiência filosófica colocada em prática através de uma história mostrando como seria se aquela teoria fosse colocada em prática. As reflexões derivadas da história vão mostrando a sua viabilidade ou não.19 Ao invés de elaborar uma teoria filosófica correta para depois oferecê-la para a sociedade, o pensamento utopiano simula a sociedade de posse daquela teoria e analisa como seria se fosse verdade a sua aplicação. Trata-se de uma experiência do pensamento, uma espécie de “jogo” filosófico.20 Uma Utopia torna-se verdade e possibilidade a partir do momento em que uma quantidade suficiente de pessoas que a lê é capaz de absorver seus princípios e promover esta transformação através das suas práticas. A diferença entre sonhar e filosofar é que, se o sonhador consegue detalhar seu sonho, adequá-lo à vivência humana e expô-lo de forma que outros possam seguir os princípios, ele terá se transformado num utopiano. O que transforma sonhos em Utopia é a educação, que o transforma em pensamento social, convertendo o abstrato em concreto e permitindo o compartilhar dos demais através da sua convicção e ações de acordo com os princípios utópicos.21 18 Vide The Philosophy of Utopia e The Politic of Utopia de Barbara Goodwin. STILLMAN in GOODWIN 2001. 20 STILLMAN in GOODWIN 2001, p.14. 21 STILLMAN in GOODWIN 2001. 19 15 Muitos comentadores citam Oscar Wilde: “Um mapa mundi que não inclua Utopia nem vale a pena olhar, pois omite o único país no qual o homem está sempre chegando, olhando e vendo um mundo melhor, partindo. Progresso é a realização de Utopias”.22 Uma das interpretações que brotam na leitura da Utopia é a sua comparação com a imagem de um espelho. Seria, portanto, um reflexo de um mundo novo, outra possibilidade, mesmo que seja distante, servindo como espelho para a crueldade da realidade. De acordo com Stieltjes (2005, p. 18), é importante observar a imagem da Utopia como sendo um espelho da realidade: A imagem do espelho é mágica, pois é ao mesmo tempo fiel e invertida. É um símbolo conveniente para A Utopia, pois esta espelha a loucura e devolve por inversão uma imagem de sabedoria. As imagens do mundo invertido não são raras durante a Renascença.23 Aquele que desejar um empenho maior nos estudos das obras medievais encontrará alguns empecilhos; a estrada se fará árdua e o esforço hermenêutico será uma constante. Da mesma forma, o estudioso de T.M. não se deparará com um percurso ameno, mas com a aridez de estudos, com poucas interpretações sobre sua obra “Utopia”. Com fito em ampliar a literatura sobre o tema, fornecendo material para futuras pesquisas, sem embargo das demais obras de T.M, delimitou o objeto da pesquisa a obra da Utopia. Entre todas as traduções, foi escolhida para o trabalho de pesquisa a tradução do latim para o inglês, da Cambridge University Press, a mais recente e que possui uma ortografia mais moderna, visto que trabalha com parágrafos e pontuações mais fáceis para aqueles não versados no latim.24 No entanto, ao citarmos os trechos da obra neste trabalho, optamos pela tradução do latim para o português, do Prof. Dr, Aires do Nascimento, publicado pela Fundação Calouste Gulbenkian, garantindo assim uma fidelidade na citação no nosso vernáculo. As demais traduções foram usadas para elucidar os trechos mais obscuros. A versão publicada pela Yale University Press, considerada até a publicação da versão de 22 LEVITAS 1990, p.05. Claude-Gilbert Dubois e Sabine Melchior-Bonnet explicam como o espelho de vidro, revestido de mercúrio, invenção da Renascença, excita a imaginação da época. (STIELTJES 2005, p.18). 24 Embora estudiosos e pesquisadores mais tradicionais criticassem esta versão justamente pela sua modernização ortográfica. 23 16 Cambridge como a melhor tradução, continua sendo até a presente data a que possui o mais rico comentário a respeito do texto. Outra tradução utilizada na interpretação do trabalho foi a francesa de André Prévost, publicado pela Nouvelles Éditions Mame. Por este motivo, no decorrer do trabalho, todas as citações feitas em português terão as referências da localização no idioma original (latina), como também nas traduções inglesa e francesa, situadas no rodapé.25 Apesar de certa profusão de textos sobre a Utopia, são muito raros os que possuem um enfoque filosófico. A predominância consiste na sua interpretação literária. Mas, dentro de uma perspectiva filosófica, só foram encontrados dois textos, envolvendo uma mesma autora: Barbara Goodwin.26 Esta autora reconhece o débito que a academia inglesa tem com um dos primeiros e mais destacados autores da renascença. Barbara Goodwin chamou a atenção para a falta de estudos filosóficos pertinentes a um assunto tão profundo e cujas consequências se fizeram tão presentes na história, pois esta obra é considerada como o berço do socialismo e do comunismo contemporâneos e tem servido de inspiração para anarquistas e diversas correntes de pensamento, manifestando-se inclusive em ficções científicas, com as suas projeções de futuro. O pesquisador contatou com o maior especialista vivo em literatura utópica, Prof. Eméritus Lyman Tower Sargent, do Departamento de Ciência Política da Universidade de Missouri – St Louis, indagando-o a respeito da existência de livros que tratassem da Utopia de T.M., e que tivessem um foco filosófico. Os poucos livros encontrados e recomendados estão presentes nesta pesquisa. Os livros de Barbara Goodwin tratam da Utopia como gênero, e não especificamente a Utopia de T.M. Os principais autores recomendados pelo Prof. Sargent se situam em dois opostos quanto à finalidade da obra Utópica: Surtz, como membro da Companhia de Jesus, mesma instituição que publicou os seus dois livros27 utilizados nesta pesquisa, insiste em afirmar que 25 a numeração após o código "LAT" e "ING" correspondem a paginação do livro da Cambridge University Press contendo a versão original latina e a inglesa e a numeração após o "FRA" da paginação do livro de Prévost. 26 The Philosophy of Utopia e The Politics of Utopia, ambos editados pela Barbara Goodwin, e a segunda em parceria com Keith Taylor. 27 The Praise of Wisdom e The Praise of Pleasure. 17 a obra se trata de uma peça literária e nada mais; do outro lado, defendendo uma profundidade muito maior da obra, no âmbito da filosofia, encontramos Logan28 e Baker-Smith. Sendo assim, na busca de aprofundar o conhecimento da obra, enquanto filosofia moral e política, desenvolveu-se a presente dissertação. Trata-se de um trabalho descritivo, de cunho qualitativo, com base em textos e livros que versam sobre o tema. Para tanto, dividiu-se o estudo em três capítulos, a saber: No primeiro capítulo, aborda-se a crítica da filosofia moral e política utopiana. Esta crítica está focalizada na contemporaneidade moreana do Séc. XVI, com os seus vícios e a perseguição dos falsos prazeres pelos europeus e especialmente pelos ingleses. Destacam-se os principais pontos presentes na sua crítica no que se refere aos falsos prazeres como um todo, mas detalhando certos aspectos, como: vícios decorrentes dos falsos prazeres, vícios dos governantes, da nobreza, da plebe e a questão social da moralidade. No segundo capítulo, apresentam-se os fundamentos desta filosofia moral e política, alicerçados no conceito de natureza e razão herdado dos estoicos; na busca do prazer e felicidade no hedonismo epicuriano; e num conceito fundamental religioso próprio de T.M., herdado obviamente da sua fé inabalável de uma crença em Deus e nas consequências pósvida das ações humanas. No terceiro capítulo, é descrito o dever-ser, como se efetiva a filosofia utopiana moreana. Inicia-se pelo governo, mostrando-se como T.M. recomenda que deve agir um governante que busca o bem-estar do seu povo. A seguir, passa-se a dissertar sobre a nobreza, que representa o serviço público; a educação, fator de suma importância na utopia; o sistema jurídico, o qual, para T.M., necessita de poucas leis quando se tem um povo bem instruído. Continuando nessa mesma linha, fala-se da população, mostrando-se como esta deve ser e agir na Ilha de Utopia. 28 The Meaning of More’s Utopia. 18 1 A CRÍTICA: IMPEDIMENTOS DA VIGÊNCIA DA FILOSOFIA MORAL E POLÍTICA Uma leitura aprofundada de T.M. conduz à compreensão de que suas ideias e perspectivas civilizatórias caracterizam uma pré-defesa do comunismo e a instauração de um mundo novo, sob a ótica humanista. Também se pressupõe a presença de suas profecias nos movimentos socialistas europeus do século XIX. Pode-se dizer que T.M. escreve uma obra de reforma política, na condução de uma sociedade cujos valores humanos são evidenciados, tanto em nível individual quanto coletivo. Valores que reclamam respostas, visto serem ainda cobrados presentemente. T.M. vive um período de transição e de crise, o que explica a intenção de uma reformulação política e social. Representa, sua visão, a passagem do homem medieval ao homem moderno, o que pode implicar ser sua escrita a superação de seus conflitos pessoais: subsidiar uma nova civilização, superando as fracassadas política e governança de sua época com uma sociedade da razão. É importante salientar que não há uma crítica específica a nenhum personagem histórico, não estamos nos referindo especificamente a Henrique VIII ou a qualquer outro soberano de sua época. Ironicamente, se tivéssemos que usar um exemplo histórico, nenhum outro se encaixaria tão bem quanto Henrique VIII, que até o fim do seu reinado provou ter se tornado o monarca mais absolutista da Inglaterra. O motivo é que, se tratarmos de personificar os protagonistas da Utopia, a obra se torna de fato literária ou até histórica, permanecendo assim dentro de sua camuflagem proposital. Assim, o autor percebeu a necessidade de uma reforma na Inglaterra, e a desejou de uma forma global, ou, como esclarece De Silva (1992, p. 206): “no terreno privado e na administração pública, na vida secular e na eclesiástica, na educação e na economia”. Como se vê, reconhecia que a reforma social englobava todas as esferas que a humanidade vivia. Esse pode ser um sinal de que o humanismo de T.M. se via extensivo não somente ao seu 19 tempo, mas seria amplamente direcionado aos homens. As ideias-chaves de seu escrito podem conduzir à compreensão de ser seu pensamento uma revolução, e de que a tarefa de constituir um novo mundo para ele era clarividente. Sem reformas profundas, não seria viável estabelecer um estado da razão. Observam-se, pois, na construção da Utopia, os elementos que T.M. utiliza para a fundação de uma nova civilização cristã-europeia, em vista do desgaste e da decadência espiritual, política e intelectual ao longo do final da Idade Média. Da mesma maneira, podemos ver a influência do Novo Mundo, que inspirava os europeus, ajudados pelas descobertas científicas e geográficas. Ficar alheio aos acontecimentos que balançavam a Europa não era próprio de T.M.; tampouco deixar de contribuir com algum argumento teórico sobre a edificação de uma nova realidade. Desse modo, pode-se, erroneamente, supor que Utopia é um tratado particular para a sociedade inglesa. Uma leitura mais aprofundada permite reconhecer que se dirige a todo o contexto humano. O texto de T.M é de uma perspectiva medieval e moderna, porque é uma crítica às instituições medievais que não apresentavam mudanças, e, por outro lado, é uma literatura inovadora de um mundo em seu alvorecer. Daí afirmar-se não haver ruptura alguma entre o renascimento humanista e a condição medieval que se efetivara historicamente. Além de oferecer uma ponte entre o antigo medieval e o novo moderno que se descortinava diante dele, T.M. procurava uma harmonia entre a ciência filosófica humana e a teologia, enquanto ciência divina. Como seria, então, entender essa postura moriana à luz dos conhecimentos veiculados em seu tempo? De Silva (1992, p. 210) esclarece: A fé cristã recebe respeitosa homenagem, mas, ao mesmo tempo, a inteligência humana avança audaz até as fronteiras mais distantes de uma verdade cuja essência é mistério insondável e que permanecerá sempre misteriosa por muito que se estude (de fato, quanto mais se estuda, mais misteriosa). A fé não pode caminhar sem a companhia do intelecto, e a inteligência somente encontra descanso, de alguma forma, na fé. Há uma concepção, no tempo de T.M. de uma afinidade29 e, ao mesmo tempo, separação entre fé e inteligência. O empenho de T.M. reside na proposta da instauração de uma civilização em que esses distanciamentos sejam unificados. Desse modo, haveria um lugar onde seria possível a vivência plena da idealidade enquanto pura e total realidade. Vê- 29 Enquanto em Agostinho prevalecia a fé nos assuntos confrontados com a razão, Tomás de Aquino acreditava que se a razão não “concordava” com a fé era por insuficiência racional ou uma falta de entendimento. 20 se, pois, a perspectiva de uma filosofia moral e política, com ênfase na efetivação de valores e conselhos viáveis ao homem moderno. Este, não mais convencido de uma moral eclesiástica deísta, mas de novos impasses, que se levantam com a ciência experimental e com os avanços no campo da observação e da dedução empírica. Uma postura significativa da filosofia política de T.M. é que, em seu tratado utópico, ele busca reunir a primazia da razão e da revelação, o seu equilíbrio, possível a uma nova humanidade, na observância das ordens criadas, evidenciando a perspectiva do pensamento cristão, num recorte humanista de seu tempo.30 Ao pensar numa comunidade perfeita, T.M. sabia que seu ponto de partida seria a antropologia, a compreensão da criação humana. O estudo da criação humana seria fundamental para a formação da pessoa e da sociedade utopianas. A criação humana seria a predisposição do próprio homem de se ver criatura de Deus, reconhecendo sua existência, sua razão natural, a ordenança da natureza e a construção de uma conduta moral pactuada pela convivência e pela efetivação da razão natural. Partindo do pressuposto antropológico, o tratado político redigido por T.M. demonstra que o melhor funcionamento de uma civilização se daria no fato de que a razão não é um poder que por si só leva à perfeição. É a convicção de que esta se obtém juntamente com critérios religiosos, ou seja, a razão seria incompleta sem os princípios obtidos pela religião. A perpetuação da sociedade, por exemplo, se daria na busca da verdadeira felicidade, pela imortalidade da alma, cujo fim é a visibilidade de Deus. A mensuração dessa condição de cada habitante se revelaria segundo suas obras e virtudes. Nas palavras de Prevost (1969, p. 106): “um humanismo são era a condição de uma sã teologia”. T.M já reconhecia o projeto da Modernidade, e isso era presente no humanismo da baixa Idade Média do século XVI. Participando assim dos avanços de seu tempo, o que constituiria mais tarde o chamado “espírito moderno”, o autor, ao mesmo tempo, não abre mão da herança medieval presente no seu objetivo transcendental. Expressa, assim, a unidade 30 Os utopianos, se existissem de fato e não fossem apenas personagens literários, não se caracterizariam como racionalistas, nem tampouco, pode-se dizer deles, precursores do Iluminismo. Apenas se servem da razão, mas sem pô-la no lugar mais alto de suas vidas. A razão, para eles, era a faculdade de os tornarem sempre abertos à realidade. Seria aquela condição de fazer com que se alcançasse algo que não era obtido pelos sentidos. 21 natural do homem e Deus. Assim, o tratado utopista é um tratado humanista político porque, conforme De Silva (1992, p. 217) ressalta: Deus e homem não se excluem, porque tampouco se excluem as obras de um e de outro. Não são adversários, e é dada ao homem a cooperação com o seu criador (a pessoa é participens creatoris). Ambos, criatura e criador, encontram nessa cooperação seu respectivo orgulho. A reforma política de T.M. se revela na sua descrição de uma sociedade que carece, não apenas de reforma, mas de uma nova forma. Baseia-se no humanismo que está a cargo das ações de cada habitante, pelos usos e costumes que se coordenam na vivência dos valores sociais e na revelação cristã. Assim, a Utopia é uma reflexão sobre os fundamentos e condições em que se pode levar a cabo uma sociedade moderna. Aquela, que via nos valores medievais os pressupostos de uma comunidade que se conceitua racional, que conhece nos acontecimentos o presságio de um novo alvorecer. Portanto, a razão seria a faculdade-guia dos utopienses, o que seria exemplo não somente para os ingleses cristãos, mas também para os demais cristãos de sua época. Seria, igualmente, a razão, a condutora de uma comunidade humana, a condição de uma reforma social. Uma questão que se colocava à mente de T.M era a viabilidade de uma reforma da Inglaterra, e acreditava que isso não seria possível sem uma reforma da Igreja. A Utopia é uma reflexão sobre a Cristandade e sobre os pilares evangélicos. De Silva (1992, p. 224) afirma que T.M. constrói, na Utopia, “um programa ideológicopolítico, sociológico, artístico, etc.”. Isso, porque toda civilização proposta apresenta uma beleza sobre-humana. O utopiense é aquele homem prudente, que conhece os limites, os ideais ou ilusões sobre as possibilidades de vida temperadas de experiência. Assim, segundo Surtz (1957b, p. 13), o termo que representa a crítica dentro da filosofia moreana é o vício, que abrange todos os segmentos da sociedade. A obra de T.M. busca expor e descrever os vícios que prejudicam o Estado e as virtudes que o exalta e o faz florescer. No que tange aos vícios, Guilherme Budê, no prefácio de Utopia, deixa claro que a raça humana possui desde o seu nascimento um apetite que parece um parasita presente na carne e 22 que a preda durante a sua vida toda (MORVS, 2006). Serão estes apetites que iremos descrever no decorrer desse primeiro capítulo. 1.1 Vícios decorrentes dos falsos prazeres Segundo Baker-Smith (1991, p. 75), há uma série de experiências prazerosas, a que se designam virtuosas ou verdadeiras, que são fundamentadas na natureza em si; mas existe também uma série artificial, a que se designa vício ou falsa, fundamentada em convenções sociais, o que representa uma decepção autoimposta ou, como mostra o autor: “a sociedade é a conspiração para virar a natureza de ponta cabeça”. Surtz (1957a, p. 40), por sua vez, relaciona as quatro causas mencionadas na obra no tratamento de falsos prazeres: doenças corporais, satisfação desmedida de desejos básicos, também compreendidos como desejos desonestos, opiniões falsas e, sobretudo, hábitos pervertidos. As doenças corporais são compreendidas no seu sentido físico e não moral. Têm como causa um julgamento corrompido em relação ao prazer derivado da sua moléstia.31 Os desejos desonestos derivam dos encantos perversos e maliciosos que causam muitas coisas que são desagradáveis por si, mas são confundidas como desejos superiores, pois possuem como objeto não só prazeres sensuais, como comida e bebida em quantidades imoderadas, ou delícia excessiva, mas, também, ligações perversas com riquezas e honras. As opiniões falsas decorrem de desejos de uma natureza imoral e perversa, e quando sucumbidas sem reservas, enganam a mente com a falsa opinião de prazer. Na perspectiva moreana, o resultado é que homens que são enganados dessa forma escolhem prazeres falsos, como se eles ultrapassassem outros prazeres pela sua natureza, e não pelo seu engano. Para Surtz (1957a, p. 40): “Erros intelectuais, ou pensamentos errôneos, causam aos mortais a escolha de falsos prazeres”. Assim, ao ser seduzido a erros de julgamento pelos desejos que surgem, o homem se torna vítima de hábitos ou costumes corruptos. Ao olhar para prazeres falsos, como se eles fossem verdadeiros, faz-se com que a gratificação seja 31 Um exemplo seria a obesidade que pode criar falsos prazeres quando na verdade a vítima estaria apenas se subjulgando aos desejos errôneos de comer desmesuradamente. O alcoolismo é outro exemplo de doença que promove uma necessidade confundida com prazer autêntico, quando apenas se satisfaz um vício. 23 derivada destes. Porém, não é a natureza da coisa, mas a sua perversidade que é a causa de aceitar coisas amargas, ou azedas, ao invés das coisas doces. Segundo More (1995)32, o vício possui não só uma responsabilidade individual daquele que se ilude, mas também uma questão social, que é cabível dentro de uma sociedade que não tem medida social, que não se constrói a partir de critérios morais. De acordo com Surtz (1957), isso é perceptível na crítica social moreana quando Raphael fala do costume como fonte de erro em relação ao prazer. Para o autor, T.M. está se referindo não somente aos hábitos corruptos dos homens enquanto indivíduos, mas, também, às falsas considerações e vícios das classes sociais, pois a sociedade fornece o ambiente no qual uma opinião errônea pode surgir e crescer. Surtz (1957) percebe essa crítica quando T.M. se refere aos costumes cegos dos homens. Esses costumes são preservados nos prazeres torpes de todos os deleites desmedidos da carne, e os mantêm ignorantes e sem cuidado ou preocupação com a doçura do prazer espiritual. T.M. é bastante explícito quando se refere aos mortais que, em exercício de fantasia, como se estivesse ao alcance deles poder transformar a realidade como mudam de palavra, imaginam prazeres que ultrapassam a natureza, cheios de amargor, perversidade e prazeres ilícitos. A esse respeito, declaram os utopienses que tudo isso nada tem a ver com a felicidade, antes, na maior parte das vezes, lhe serve de empecilho, porque, uma vez assentes, essas ilusões do prazer não deixam lugar para os deleites autênticos e verdadeiros, uma vez que daí por diante ocupam todo o espírito. T.M. prossegue afirmando que estes desvarios, embora o comum dos mortais os tome como prazeres, não são instituídos pela natureza como agradáveis. Para Surtz (1957, p. 42), entre os prazeres falsos destacados pelos utopianos, existem: a noção errônea de que quanto melhor a roupa, melhor aquele que a veste; o orgulho tolo por honras inúteis, especialmente por uma nobreza desprovida de bens; um deleite pueril por pedras e gemas preciosas; ouro armazenado ou riquezas guardadas para simples contemplação; e, por fim, um entusiasmo enlouquecido por jogos de dados, falcoaria e caça. 32 LAT246/ING247/FRA629. 24 O falso prazer derivado de falsa honra é particularmente repudiado pelos utopianos, pois consideram tolos e ignorantes aqueles que exigem reverência e respeito como um direito decorrente de seus trajes e que possuem orgulho por honras vãs e desnecessárias. Para T.M apud Surtz (1957, p. 47): “o prazer que surge da satisfação de um desejo incomum por sinais de respeito, quando independe da honra. Trata-se de um engodo e não é natural nem verdadeiro”. Já que os utopianos julgam o valor de todas as coisas de acordo com sua natureza e já que roupas, por sua natureza, visam apenas à proteção e à modéstia do corpo, o que estiver acima disto não é natural. Dessa forma, o deleite nos exageros apenas demonstra o falso prazer. Os utopianos defendem que uma sociedade deve pautar-se no valor que seja compensável a cada cidadão, e o que acontece contra esse princípio é prejudicial para a sociedade. Esse entendimento fica claro quando T.M faz uma crítica à classe dos governantes. Esta crítica possui duas funções, visto que, ao exteriorizar as suas dúvidas a respeito da viabilidade da sua função como conselheiro, cargo que viria a ocupar em breve, torna-se incisivo na explanação dos vícios próprios dos governantes. 1.2 Vícios dos governantes T.M., na preocupação em localizar e citar os vícios, os exageros desmedidos e a manutenção do estado de falso prazer pelos governantes, apresenta, nos últimos parágrafos do segundo livro, um antagonismo entre seus personagens. Em seu discurso sobre os vícios dos governantes, T.M mostra que, enquanto Rafael acredita no sucesso de um governo destituído dos falsos prazeres, o personagem More afirma que assim se procedendo: “cai por terra toda a fidalguia, a magnificência, o esplendor, a majestade, que, como sustenta a opinião pública, é o verdadeiro ornamento e glória do Estado” (MORVS, 2006, p. 673).33 Desta forma, pode-se ver como as aparências do Estado, na figura e esplendor dos seus governantes, são edificadas sobre os falsos prazeres e os vícios dos monarcas. 33 LAT246/ING247/FRA630. Vale recordar o trecho em que quando se fala de falso prazer. A população dá condições para o cultivo de falsos prazeres [...] É esta multidão que apóia o conceito falso de nobreza, baseada em um culto de ostentação que, na verdade, vira as coisas ao avesso, chamando coisas más de boas e confundindo coisas amargas com doces. [BAKER-SMITH p.178] 25 Para Surtz (1957a), o primeiro ponto que T.M. destaca na crítica aos governantes é a falta de interesse no estudo e no conhecimento. T.M questionava como governar sem dispor de um conhecimento sobre a sua função de governante. Essa questão é de fato pertinente, pois o que prevalecia era o desdém para com o estudo, uma característica dos nobres e dos cavalheiros tanto na Inglaterra como na Europa. Ser chamado de erudito ou estudioso era uma ofensa para um nobre. Nesse sentido, T.M não conseguia entender porque os governantes não liam os livros que já haviam sido escritos pelos filósofos. Para T.M., era relevante o rei ou governante dispor de acesso à cultura e ao saber, como referência para um bom governo.34 É uma condição de lucidez para aquele que pretende governar com o crivo da razão. Assim sendo, T.M. propõe uma reforma radical da sociedade de seu tempo, e a Utopia é uma prova cabal desse intento (MORVS, 2006).35 No entanto, T.M. tem consciência do grande desafio que isso significa ao ponderar: “Porventura não estás tu ciente de que, se eu propuser a algum rei decisões sensatas e tomar a peito arrancar-lhe as sementes perniciosas do mal, serei imediatamente escorraçado e posto a ridículo?” (MORVS, 2006, p. 453).36 Depois de tecer uma crítica severa aos governantes quanto a seus vícios, T.M. sugere conselhos que viabilizam a instauração de uma sociedade racional, mantida pela nova ordem de racionalidade e pelos ensinamentos cristãos. No entanto, segundo Logan (1983, p. 56), T.M. reconhece que se trata do mais relevante e sério de todos os problemas sistêmicos, em vista do que “os conselhos bons ou maus possam acarretar, através dos governantes, em toda uma sociedade”.37 Por isso que, em a Utopia, a objeção de Rafael para ocupar um posto no corpo de conselho de um governante se resume a uma rejeição fundamental deste modo de expressão política, pois ele acredita que isso na prática não funciona.38 “O ambiente da corte corrompe o cortesão. O problema é institucional.” (BAKER-SMITH 1991, p. 101). 34 Assim, também propunha Aristóteles, a Alexandre, a cultura. LAT082/ING083/FRA417. 36 LAT082/ING083/FRA417. 37 Podemos ver claramente como esta influência atua nos dias de hoje no exemplo do papel que lobistas, como “conselheiros”, exercem no nosso executivo e legislativo. 38 Para Baker-Smith (1991, p.101): “A função do conselho, de acordo com Castiglionoe, é usar a persuasão para guiar o príncipe em direção a políticas virtuosas.” 35 26 Para Logan (1983, p. 68), em T.M., a função do conselho corrompido tem uma finalidade de atender aos interesses individuais em detrimento dos interesses comuns. Isso se faz presente em todos os exemplos citados por Raphael no primeiro livro da Utopia, que reforçam a inutilidade de conselhos a governantes. Rafael menciona a preocupação dos reis mais com as guerras do que para com a paz; a condição de bajulação que norteia o rei, que, por sua vez, aprecia esse clima; e a conduta da corte que é regida por precedentes, o que não permite inovação. No primeiro livro, faz-se um exemplo do tipo de conselhos que um rei receberia dos seus conselheiros. Uma análise de cada opção mostra conselhos nada virtuosos, embora representassem um quadro bastante realista do cenário europeu. Rafael pede para imaginar que está junto a um governante e que possui assento no seu conselho, em que, no mais secreto dos aposentos, sob a presidência do próprio governante, se discutem superiores opiniões de homens altamente sabedores dos meios e das estratégias de fazer alianças para recuperar o que lhes escapara, tentar arruinar inimigos, conquistar e anexar territórios, contratar mercenários, distribuir subornos de dinheiro, entregar para outros o que não lhes pertence e atrair cortesãos. Isso, sem contar com atos de falsidade com que se trata o inimigo como amigo e o instigam por detrás. T.M. faz uma descrição da condição que prevalece entre os conselheiros de um governante europeu do séc. XVI: [...] de todos aqueles que pertencem ao conselho dos reis, não há ninguém que procure aconselhar-se, seja porque alguém é de verdade altamente competente, seja porque lhe parece que é tão competente que não lhe apetece confrontar-se com o conselho de outrem, a não ser dos que aplaudem as opiniões mais que absurdas e vivem do parasitismo daqueles que procuram apenas ganhar para si as boas graças do príncipe com o seu aplauso. A analogia está na natureza, por certo: cada um elogia o que inventa, da mesma maneira que o filhote do corvo sorri para o progenitor e que ao macaco 39 agrada a sua cria. (MORVS, 2006, p. 411). Mais adiante, T.M. observa que mesmo aqueles providos de boa fé estão arriscados a cair nas tramas nefastas do poder: [...] quem quer que seja ou ficará pervertido pelo seu comportamento depravado ou ele próprio, na sua integridade e inocência, servirá de cobertura à malícia e a estultices alheias, de tal modo que muito dificilmente alguém poderá, por via indireta, levar alguma coisa a tornar-se melhor. (MORVS, 2006, p. 473).40 39 40 LAT052/ING053/FRA374. LAT098/ING099/FRA434. 27 Quanto à guerra e à conquista, T.M. observa que a sociedade vê impedimento à prática dos valores cristãos e à vivência da justiça no desejo da prática bélica por parte dos príncipes e governantes. Nosso autor, sobre o assunto, assim observa: [...] os próprios príncipes, na sua maior parte, estão todos mais que comprazidamente ocupados em estratégias militares [...] e preferem-nas a ações de paz ou passam muito mais tempo a congeminar de que modo, lícito ou ilícito, conseguiriam conquistar novos reinos do que a administrar bem os que lhes couberam. (MORVS, 2006, p. 411).41 De acordo com Baker-Smith (1991, p. 59), na invasão da França, em 1513, por Henrique VIII, constata-se como jogos de guerra ainda dominavam a vida aristocrática. “Dos quarenta e dois nobres diretamente ligados a operações militares do reino, trinta e três estavam envolvidos diretamente nesta invasão e a metade de todas as tropas, quinze mil, eram compostas de seus subordinados”. Para TM e Erasmus, a lição mais óbvia desta campanha são os perigos de uma aristocracia criada para a guerra e por um príncipe determinado a superar seus antecessores. Sobre a guerra, T.M. é enfático, ao dizer: “A acção bélica (bellum) é algo de verdadeiramente bestial (belluinum), mesmo que não haja qualquer tipo de bestas para quem ela seja tão frequente, como para o homem, o recurso a ela”. (MORVS, 2006, p. 605).42 E quando decide criar a Utopia, um dos delitos e condições que deseja banir dessa civilização é exatamente a guerra, e a proposta bélica de governo. Assim, T.M. diz que: “é rotundamente proscrita pelos utopianos e, ao invés do que se passa em todas as nações, a custo se encontrará coisa tão desqualificada como a glória que se busca na guerra.” (MORVS, 2006, p. 605).43 T.M. critica o governante que, na busca de um reino cada vez maior, maiores também serão os seus problemas. O fascínio bélico próprio dos governantes corruptos e interessados apenas em expansão e conquista acaba por proporcionar uma série de males e desavenças no seu próprio país, como cita T.M. quando relata a respeito de um governante que havia se apoderado de outro país. 41 LAT052/ING053/FRA374. LAT200/ING201/FRA566. 43 LAT200/ING201/FRA566. 42 28 [...] havia que fazer gastos, ver sair o dinheiro para fora, dedicar o sangue próprio (da população) a uma vaidade alheia; paz e segurança eram sem perspectivas, os bons costumes no país tinham decaído em razão da guerra, havia uma cupidez desenfreada de pilhagem, vivia-se um desaforo de assassínios a toda a prova, as leis eram deitadas ao desprezo porque o rei se dispersava a cuidar de dois reinos e menos era capaz de voltar a atenção para qualquer um deles. (MORVS, 2006, p. 457).44 Desse modo, como aplicar um governo justo, a prática dos valores, a implantação de uma civilização moral e politicamente viável, se a atenção do governante estava voltada para a guerra e sua manutenção? 1.3 Vícios da nobreza e da plebe T.M. deixa clara em seus escritos a condição política e moral de sua época. Relata a pauperização das instituições, a nomeação de cargos públicos como algo vergonhoso e propõe uma crítica severa a esse contexto. Segundo Surtz (1957a, p. 49) [...] os cargos políticos, tanto na Igreja quanto no Estado, eram sempre ocupados por membros escolhidos por sua linhagem e nobreza, e não pela sua virtude, aprendizado e prudência. O resultado era a nomeação de homens estúpidos, tolos e corruptos.45 Na Utopia, T.M. se refere especificamente a este problema de designar incompetentes a funções públicas, causando uma inversão de valores, na qual aqueles que sustentam a sociedade com seu trabalho e dedicação são renegados a uma classe sofrida, enquanto os parasitas que se aproveitam dos esforços alheios são beneficiados: Não será que é iníqua e ingrata uma nação que proporciona tantos regalos a fidalgos, como lhes chamam, a traficantes de dinheiro e a outros do mesmo gênero, que vivem na ociosidade ou que passam a vida a adular e assegurar vãos prazeres, quando, em contraste, para agricultores, carvoeiros, serviçais, condutores de carros e artesãos, sem os quais a organização pública não se aguenta, nada prevê que lhes seja favorável? (MORVS, 2006, p. 665).46 T.M. enxerga a corrupção institucional quando explica a conduta dos ricos e fidalgos que estabelecem a “fraude privada”, e ainda adotam leis que os apóiam e que garantem que condutas corruptas serão aprovadas por lei. E acrescenta: 44 LAT084/ING085/FRA418. Erasmus, escrevendo para Faber, em 1532, declara que TM e seu pai, que não pertenciam à nobreza, mereciam os favores do rei pela sua virtude, a verdadeira origem de toda a nobreza. George Lily também diz que TM foi chamado aos cargos mais honrados do Estado apenas por recomendação da sua virtude. 46 LAT242/ING243/FRA625. 45 29 É por isso que, quando olho para todos os Estados que hoje se apresentam em prosperidade, dou comigo a pensar (Deus me é testemunha) se não está a ocorrer uma conspiração de ricos que usurpam o nome e a autoridade do Estado para tratarem dos seus próprios interesses, congeminando e maquinando todos os modos e todas as estratégias para, primeiro, ficarem com os bens que desonestamente açambarcaram, sem medo de os perderem, depois, para pagarem o mínimo possível de mão-de-obra aos pobres e para deles abusarem. (MORVS, 2006, p. 665).47 A seguir, temos a sua crítica ao parasitismo e à exploração: Há um número grande de fidalgos que não só passam a vida na ociosidade, como zangões atidos ao trabalho de outros, mas ainda por cima, para aumentarem os seus rendimentos, sugam os seus trabalhadores até ao sangue vivo. É de fato o único tipo de frugalidade que conhecem, pois, quanto ao resto, são tão esbanjadores que caem na mendicidade; de verdade, trazem à sua volta uma grande multidão de parasitas48, sem terem nada para fazer já que nunca aprenderam qualquer ofício para ganharem a vida. Dê-se o caso de o seu patrão morrer ou de eles caírem doentes: imediatamente são postos fora, pois se prefere alimentar ociosos a dar de comer a doentes; bastas vezes o herdeiro de alguém que acaba de morrer não tem logo o suficiente para sustentar a clientela paterna, pelo que eles terão de passar fome deveras, a não ser que se ponham a roubar. (MORVS, 2006 p. 419).49 O maior ataque que TM faz à Igreja está contido no primeiro livro, no episódio do Cardeal Morton, e, de uma forma mais velada, no segundo, que relata a vida na ilha de Utopia. A semelhança da vontade de Cristo exposta na sua revelação, contida na Bíblia, com a racionalidade e propostas da religião Utópica é muito grande. E somente através da razão, os ilhéus alcançaram o estado político desejado e idealizado pelo próprio Filho de Deus nas escrituras sagradas. Ao mostrar que a fé cristã é lógica, ele mostrou que para ser divino tudo tinha que fazer sentido. Deus, de acordo com T.M. não realizaria alguma coisa que não fizesse sentido. Na incoerência religiosa que predominava na Europa, onde os ditames do fundador da religião cristã eram incompatíveis com os atos que vigoravam ate então, foi preciso: “[...] a tempestade da Reforma Protestante para trazer os católicos ao juízo, reforma e reparação. Acreditava-se que, entre os maiores males na Igreja, estavam a avareza e a ganância por dinheiro.” (SURTZ, 1957b, p. 144). E essa era a crítica que Lutero expunha em seus argumentos. Mesmo sem ter a ideia da dimensão de sua postura, acabou por conduzir a 47 LAT242/ING243/FRA625. Nota do pesquisador: lembra-se de que um dos sinais de poder na época feudal era ter “muitos amigos”, que acompanhavam os poderosos. 49 LAT056/ING057/FRA381. 48 30 Cristandade a uma revisão de suas bases evangélicas. Da mesma forma, T.M. chama a atenção para os mesmos males e, diferentemente de Lutero, a quem T.M. passaria a deplorar posteriormente, ofereceria a sua reforma nos moldes dos habitantes da Utopia. A condição interna da Igreja, no contexto de T.M., não era diferente da condição civil da Inglaterra e Europa. Havia uma paridade de governo. De acordo com Surtz (1957b), o próprio Papa Urbano I (222-230) foi o primeiro a decretar que padres poderiam receber propriedades oferecidas por devotos. No entanto, ele estipulou que nada podia se tornar propriedade privada, mas tudo visava ao bem comum. Assim, moradias eram comuns a padres e a hospitalidade, aberta aos laicos. No entanto, o bem comum foi substituído pelo “meu” e “teu”, e o clero era agora visto como renda, legado e propriedade. Como não conduzir esse contexto a uma condição de crítica, de análise política e moral? O pior pecador não resistira à graça se todos entre o clero vivessem como deveria. O Bispo Fisher dizia que no tempo de São Paulo não havia cálices de ouro, mas havia padres dourados. Agora, existem muitos cálices de ouro e quase nenhum padre dourado. (SURTZ, 1957b, p. 146). Um dos temas de relevância na análise de filosofia moral e política em T.M. diz respeito à justiça que lhe é inerente. Nosso autor chega a desejar apreciar essa condição e diz que daria a vida por descobri-la, até mesmo em lugares longínquos. Esse desejo para ele tornou-se um anseio, porque a realidade experimentada por ele não lhe dava a devida condição para tal.50 T.M. critica veementemente a valorização dos bens materiais. Isso fica explícito em seu discurso sobre o valor do ouro, mais aquilatado do que o próprio homem, tornando a criação superior à criatura.51 Sua crítica torna-se tenaz, quando diz: [...] que justiça é essa que faz com que alguém, por ser fidalgo ou por transaccionar dinheiro ou por se entregar à usura (enfim, seja ele quem for daqueles que ou nada fazem ou aquilo que fazem é como se nada fizessem em favor da comunidade), consiga uma vida lauta e esplêndida sem fazer nada ou em actividade supérflua [...]. (MORVS, 2006, p. 665).52 Como já fora dito anteriormente, a conduta do governante recai para a população. Daí a ênfase para uma postura coerente e justa para quem governa. T.M. toma esse direcionamento, 50 Para Logan (1983, p.51) “A política jurídica inglesa não pode ser justificada por princípios morais ou religiosos e também não pode ser justificada nas vantagens que deveria gerar (não se justifica nem pela religião, nem pela moral, tampouco pelos resultados).” O próprio Estado Inglês permitiu que a doutrina cristã se rebaixasse a seus caprichos e a tirania ganhasse o seu indevido espaço. 51 LAT154/ING155/FRA509. 52 LAT242/ING243/FRA622. 31 visto que a população, igualmente, apresenta vícios, fraquezas e se mostra sujeita a delitos. Como o nosso autor mesmo expressa, quando no prefácio questiona se vale a pena se empenhar em publicar a Utopia diante da postura dos seus concidadãos. A instabilidade da conduta dos homens é preocupante para o nosso autor. Observa que essa condição se dá pela ignorância das letras; pela rejeição do que é novo; pelo apego ao que lhes agrada; e pela não aceitação a algo diferente. A instabilidade é tanta que T.M. diz: Entretanto, para dizer a verdade, nem eu próprio ainda decidi bem comigo mesmo se irei por fim empreender a publicação. Na realidade, tantos são os gostos humanos, tão remissos os intelectos de alguns, tão ingratos os sentimentos, tão irracionais os juízos, que me parece bastante mais cordato pôr-me do lado dos que vivem despreocupados e satisfeitos, dão largas à sua natureza, sem se matarem com cuidados de publicar algo que pudesse ser de utilidade ou de recreio para outros, que ou desdenham ou são mal agradecidos. Há muitos que ignoram as letras, muitos que as menosprezam. Um bárbaro rejeita como difícil tudo aquilo que não é completamente bárbaro. Os presumidos de sábios menosprezam como trivial tudo o que não cintila com palavras fora de uso. Alguns apenas gostam de velharias, à maior parte só lhes agrada o que é deles. Este é tão carrancudo que não admite um gracejo, aquele é tão insípido que não suporta uma ironia; tão entupido têm alguns o nariz que qualquer odor lhes causa receio, como teme a água aquele que foi mordido por um cão raivoso; tão instáveis são outros que aprovam uma coisa, se estão sentados, e outra, se estão de pé. (MORVS, 2006, p. 383).53 A crítica moreana decorre, igualmente, da ociosidade, que se percebe claramente contra aqueles que optam por esse modelo de vida. De acordo com o nosso autor, é um prejuízo social, um desgaste político e um ônus para o país em que poucos produzem o que muitos necessitam. T.M. denomina esses homens de “parasitas”, porque sobrevivem do esforço alheio, da má conduta de se fazerem vítimas do seu próprio delito. Faz uma crítica àqueles que se apoderam da boa vontade dos que trabalham e determinam a vida deles a partir de sua própria preguiça. Além de uma contundente crítica civil, tece igualmente um comentário aos que, na Igreja, se servem dessa condição: “E quem poderá contar a multidão de sacerdotes e de religiosos (tal nome lhes dão) que a isso acresce?” (MORVS, 2006, p. 507).54 Direciona sua crítica aos abastados, os grandes proprietários de terras que garantem sua vida sobre as costas dos trabalhadores, daqueles que derramam o suor para manter o fausto de 53 54 LAT036/ING037/FRA353. LAT128/ING129/FRA473. 32 seus dominadores. T.M. faz uma crítica a esse modelo social, oneroso para os desfavorecidos e privilegiados para os que detêm o poder. E conclui: “Com isso descobrir-se-á que são menos do que se pensara aqueles cujo trabalho produz todos os bens de que os mortais se servem.” (MORVS, 2006, p. 507).55 O tecido social vivido por T.M. é de esperteza de quem toma o poder às mãos, em detrimento dos que mantinham a nobreza e a realeza como fardo socioeconômico. A sua perspectiva utopiana de uma nova civilização não integra em seu interior essa condição nefasta e nem admite uma postura de parasitismo de nenhum de seus habitantes. Assim, ele acrescenta: “observe-se agora entre todos estes, quão tão poucos desempenham profissões indispensáveis.” (MORVS, 2006, p. 507).56 1.4 A questão social da moralidade Uma vez que a Utopia é uma obra de restauração social, T.M. tenta construí-la à imagem dos valores cristãos. Soma, aos valores e critérios racionais, aqueles inerentes a Cristo. Por isso, ele propõe uma interpretação mais fiel possível aos preceitos cristãos, haja vista que foram muitos os que, distorcendo a mensagem cristã, acabaram por “permitir os homens a se sentirem mais seguros nas suas maldades” (SURTZ, 1957a, p. 177). Isso se conceitua, na perspectiva moreana, como sinal de hipocrisia social. Há de se obter o ajustamento das perversões, tudo no molde das palavras de Cristo, pois somente assim se obtém a garantia de uma sociedade purificada da maldade, pelo esforço e pela ascese espiritual. Morvs (2006, p. 473)57 assim prescreve: [...] quando os homens só a grande custo conseguem adequar os seus procedimentos à norma de Cristo, ajustam eles a sua doutrina aos comportamentos, como se ajusta uma régua de chumbo, para assim, ao menos de algum modo, ficarem nas proximidades. T.M. faz essa reflexão em vista do que reconhece de seu contexto histórico-político. Para ele, segundo Surtz (1957a), os poderosos não medem sua devoção religiosa pela regra de Cristo, mas pela sua própria predileção emocional. Aqui ele indica um ensinamento que vai de encontro ao governo corrupto, ilícito, e diz que, para esses governantes, “viver 55 LAT128/ING129/FRA473. LAT128/ING129/FRA473. 57 LAT098/ING099/FRA434. 56 33 sobriamente, castamente ou com complacência, é demasiadamente árduo e difícil.” (SURTZ 1957a, p. 178).58 Na perspectiva de Baker-Smith (1991, p. 44), T.M.59 não possuía simpatia para com os mitos predominantes de então, envolvendo honra e cavalheirismo. O ideal de cavalheirismo estava se tornando um ideal cada vez mais literário, preocupado mais com brincadeiras de guerra do que com as verdadeiras condições de um campo de batalha. Ou seja, T.M. tece uma crítica aos ritos, sinais e simbolismos quando estes assumem a pretensão de essenciais à fé estabelecida no sacrifício e na memória daquele que foi ao extremo da dor e doação. Segundo Baker-Smith (1991, p. 44), a sociedade estava “no caminho rumo à esclerose institucional, ou seja, o parecer estava se tornando mais importante do que o ser”.60 Para Baker-Smith (1991), T.M. foi o primeiro a destacar o “elemento social da moralidade”. Isso é perceptível quando Rafael Hitlodeu conversa com o Cardeal e propõe uma análise sobre a criminalidade da época. Para Rafael, as injustiças sociais são a fonte das posturas imorais da população, graças à falta de direcionamento moral dos governantes e da nobreza. Assim, é dada uma conotação coletiva do crime, ao invés de uma perspectiva individual. Na pessoa de Raphael, T.M. reconhece o elemento social na moralidade, e a sua proposta na disputa com o Cardeal Morton tem como preocupação principal o espírito de igualdade que estaria muito presente na sua prática como juiz e chanceler. Segundo Baker-Smith (1991, p. 105), o princípio da moralidade se mantém intrínseco ao da igualdade, que “representava para TM a liberdade de moderar a letra da lei à luz da consciência”. A grande questão da reforma proposta por T.M. consiste numa mudança que teria que ser tanto moral, modificando o ser, a individualidade; como política, mudando o coletivo, o social.61 Um traço da filosofia moral em T.M. é o trecho seguinte, onde se lê: 58 A crítica que se faz é que as paixões e os vícios dos que governavam estavam acima dos valores cristãos e as verdades da fé sucumbiam diante dos interesses pessoais e obscenos. Erasmo de Roterdã também tece uma crítica a respeito, e desde suas primeiras publicações era radicalmente contra o absurdo das pessoas que tentavam dobrar a moralidade de Cristo para a vida dos homens e não o inverso. (SURTZ 1957a p.178) 59 Como também Erasmus. 60 Ou talvez o “parecer” só fosse possível através do “ter”, pois “tendo” se parece “ser”, assim se antecipa a dualidade que vivemos hoje em que questionamos o “ter” do consumismo predominando sobre o “ser”. 61 Na análise de Baker-Smith (1991, p.216): “A natureza humana não pode ser mudada sem uma reforma das instituições, mas instituições não podem ser reformadas até que a natureza humana mude”. Isso serve de base para uma reflexão feita posteriormente pela revolução social feita por Durkheim e Weber, que admitiam a 34 Em verdade, quando consentis que se dê uma educação má e que o comportamento moral se degrade desde tenra idade, para o punirdes apenas em momento terminal, quando os adultos revelam os vícios que eram de prever desde a infância, que estais a fazer, dizei-me, por favor, senão a criar ladrões e vós mesmos a aplicar castigos? (MORVS, 2006, p. 431).62 Uma condição inalienável de todo homem é o amparo legítimo de sua formação integral. Somente a ação do Estado eficaz pode garantir ao homem acesso aos bens de direito, como frisa T.M. quanto à educação. Destarte, T.M. enfatiza: Na realidade, condenam o ladrão a castigos pesados e até horrendos quando seria preferível providenciar a que houvesse algum modo de subsistência, de forma que ninguém tivesse de enfrentar, primeiro, a cruel necessidade de ter de roubar e, seguidamente, a inevitabilidade de perder a vida. (MORVS, 2006, p. 417). 63 Nesse trecho, T.M. dá ênfase à sua perspectiva política e moral de sua sociedade nascente. A garantia de sobrevivência e de manutenção da vida é de direito no Estado, instituição legítima de amparo ao homem. Na perspectiva de Surtz (1957a, p. 176), essa observação de T.M. é rica porque permite uma compreensão sobre as causas dos problemas sociais que estão no campo da moralidade: A avareza e a ganância impõem a falta sobre a abundância da natureza, pois, o que a natureza liberal tem dado para ser comum a todos, os homens maliciosamente transformam em privado; o que ela tem feito visível e acessível é carregado, trancado, guardado e mantido longe dos demais por portas, paredes, ferrolhos, ferro, armas e leis. Dessa forma, a ganância e maldade de uma minoria impõem a falta e a fome diante da abundância da natureza e causa pobreza no meio das riquezas de Deus. Essa crítica sobre o elemento social da moralidade está presente em toda a tradição filosófica, nos discursos posteriores a T.M. A hipocrisia social também se manifesta pela desigualdade. Baker-Smith (1991) destaca que o cerne do argumento de T.M., na pessoa de Raphael, é que não pode haver uma sociedade justa onde exista a propriedade privada. Isto se justifica porque alguns ganharão vantagens que assegurarão posteriormente seus próprios interesses, e toda a concepção de comunidade será subvertida. Desse modo, uma vez que a propriedade privada é admitida, validade da instituição sobre o sujeito e do sujeito sobre as instituições. Desse modo, uma análise moderna das questões sociais que preocupavam esses cientistas sociais expressava uma herança sobre o destino dos homens. 62 LAT066/ING067/FRA394. 63 LAT054/ING055/FRA378/POR417. 35 todas as coisas serão medidas em termos de valor monetário, e a justiça será distorcida para gratificar o pequeno número de cidadãos ricos.64 A desigualdade é tratada como consequência do paradoxo do dinheiro, que foi desenvolvido para assegurar acesso às necessidades da vida, mas que na verdade funcionou para impedir que a maioria as obtivesse. (BAKER-SMITH, 1991). T.M. é muito claro quando expõe na Utopia o seguinte pensamento: “Seria tão fácil arranjar alimento, se o afortunado dinheiro, engenhosamente inventado para abrir as portas ao alimento, não fosse ele a barrarnos o caminho para ele!” (MORVS, 2006, p. 669).65 No estado de natureza, todo mundo assegura o uso das dádivas da natureza de acordo com suas necessidades e ninguém reclamava propriedade. Foi somente com o desenvolvimento de organizações sociais que o sistema de direitos de propriedade foi formulado na lei. (BAKER-SMITH, 1991). A postura de T.M. quanto à desigualdade é a seguinte: É minha convicção firme que uma distribuição segundo critérios de equidade ou uma planificação justa das coisas humanas não é possível sem eliminar totalmente a propriedade privada. Enquanto ela subsistir, estou convencido de que há de continuar sempre a haver, entre grandíssima parte da humanidade e entre a melhor parte dela, o fardo angustiante e inelutável da pobreza e da miséria. (MORVS, 2006, p. 479).66 Morvs (2006, p. 477)67 continua defendendo o seu argumento, consciente de que o grande empecilho para a igualdade entre os homens é que se “[...] em toda parte em que há propriedade privada, em que todos medem tudo por dinheiro, dificilmente alguma vez aí se poderá chegar a promover a justiça de Estado ou a prosperidade”. E ainda acrescenta, afirmando que: “[...] não há prosperidade quando tudo é repartido entre um pequeno número de indivíduos, que com nada se sentem saciados, enquanto os outros são condenados à miséria”. 64 Na Política de Aristóteles, o homem, quando perfeito, é a melhor das criaturas, mas, se ele estiver isolado da lei e da justiça, ele é a pior de todas. (LOGAN 1983, p.153). Para Platão, governantes egoístas predariam sobre o resto da comunidade, o que os obriga a terem tudo em comum. T.M. compartilha a mesma visão pessimista da natureza humana que Aristóteles e Platão, e sugere também a remoção da oportunidade de acúmulo egoísta que é um dos motivos do comunismo utopiano ser universal. Para Logan (1983, p. 209), o argumento platônico para a inibição do egoísmo de uma classe governante é relançado na Utopia como um argumento para a necessidade de comunidade da propriedade, a fim de assegurar justiça distributiva. T.M. afirma que com a igualdade de distribuição todos os homens têm a abundância de todas as coisas, trazendo ordem para a sociedade, enquanto, onde houver propriedade privada, haverá o desmando. 65 LAT244/ING245/FRA626. 66 LAT102/ING103/FRA (texto não encontrado no Francês). 67 LAT100/ING101/FRA437. 36 O interesse próprio se sobrepõe aos interesses coletivos. T.M. o afirma claramente: “quando o homem se prevalece de certos títulos para avocar a si tudo o que pode, seja qual for a quantidade de bens, e não reparte o que cabe aos outros, deixando-os na miséria” (MORVS, 2006, p. 477).68 Logan (1991, p. 133) acrescenta que, na perspectiva de T.M., “uma das grandes patologias sociais é o luxo e o desperdício, pois o excesso pode ser tão danoso quanto a deficiência”. 68 LAT100/ING101/FRA438. 37 2 A FUNDAMENTAÇÃO DA FILOSOFIA MORAL E POLÍTICA UTOPIANA Para uma fundamentação da filosofia moral e política, na perspectiva moreana, torna-se imperativo perceber os contrastes existentes na sociedade europeia de seu tempo. T.M. reconhece a fragilidade institucional e entende a necessidade de uma reforma, que deve ocorrer nos moldes da condição divina de emancipação humana, nos critérios da cristandade. Por isso, para Surtz (1957a, p. 169), de acordo com Guilherme Budé, a Utopia pagã, ao contrário do ocidente cristão, tem se apegado tenazmente a três instituições divinas: primeiro, a absoluta igualdade entre todos os cidadãos; segundo, um amor inabalável à paz e à quietude; e terceiro, um desprezo por ouro e prata. Estas três instituições foram direcionadas contra os males gritantes da Europa que lhe era coetânea. A primeira, contra a enorme desigualdade entre ricos e pobres, nobres e comuns e entre pessoas cristãs; a segunda, contra as guerras ininterruptas dos príncipes cristãos; e a terceira, contra a ganância por riqueza que estava corrompendo os países cristãos. Para Logan (1983, p. 134), a intenção de T.M. é demonstrar que existem meios para “facilitar o alcançar da felicidade pelos seus cidadãos, [e que este] deve ser uma organização política que possibilita a todo tipo de homem estar o seu melhor e viver felizmente.” Ou seja, a nobreza da vida no desfrute da reputação, do prazer, erradicando toda existência de dor e do mal. Baker-Smith (1991, p. 203) acrescenta que é uma tentativa de concentrar os homens no estabelecimento do bem comum, constituindo uma das características próprias dos utopianos. Para Logan (1983), T.M. assegura, em todos os aspectos da constituição utopiana, conclusões da sua filosofia moral, pois T.M. inaugura uma nova forma de pensar, dando uma explicação científica para as causas de pobreza, crime e injustiça. Para ele, as causas desses males não são inerentes ao ser, mas podem ser encontradas nas condições materiais, na apropriação da propriedade, como valor privativo, quando deve ter um caráter público. Inauguram-se então uma jurisdição moral de sociabilidade e os critérios práticos de ordem moral. 38 Desse modo, Logan (1983, p. 51) diz que: “a política jurídica inglesa não pode ser justificada por princípios morais ou religiosos e nem pelos resultados.” Pode-se dizer que princípios, morais e religiosos é que dão resultados, é que justificam uma política jurídica. Assim, a proposta jurídica moral é da vivência prática dos critérios que T.M. determina como válidos para a comunidade utopiana. Ele comenta que: “a forma mais prática, ou como se diria na atualidade, científica de se curar sintomas sociais como crime ou guerra é assumir as ações realísticas necessárias para aliviar ou eliminar as suas causas”. (LOGAN, 1983, p. 57). Na análise do tema em evidência, para Logan (1983, p. 55), Raphael encontra as causas básicas do roubo (criminalidade), não no mau caráter dos ladrões (criminosos) individualmente, mas nos defeitos do sistema social. A Utopia mostra claramente que não se pode trabalhar com a parte sintomática dos problemas sociais sem enfrentar as causas; as verdadeiras soluções assumem a forma de mudanças legais e institucionais designadas a eliminar as causas. Compreende-se, portanto, que questões delituosas não podem ser enfatizadas na ordem individual. Problemas sociais são decorrentes de injustiças sociais e podem ser percebidos através de uma análise racional. Todo o Livro I da Utopia mostra claramente as origens dos graves problemas sociais que acometem a Europa. Para Logan (1983, p. 54), a proposta de todo Livro I revela a origem dos graves problemas que acometem a Europa do Séc. XVI e que, por sua vez, não devem ser vistos de forma isolada, mas dentro de um contexto maior, mais social. Baker-Smith (1991, p. 105) esclarece que a característica dessa proposta se encontra na resposta de Raphael ao advogado no caso do Cardeal Morton. Segundo ele, é inovadora porque reconhece o elemento social na moralidade. Nesse contexto, o crime passa a ser visto também no âmbito social e não se resume apenas ao pecado individual. A proposta de Raphael na disputa com o Cardeal Morton tem como preocupação primordial o espírito de igualdade, tema marcadamente presente na prática de TM como juiz e chanceler. Para T.M., a igualdade representava a liberdade de moderar a letra da lei à luz da consciência e circunstância. Há até uma cláusula na Lei canônica, que permite acesso comum a bens essenciais em condições de grande necessidade. Por esse motivo, fome ou desespero podem até justificar o roubo. 39 2.1 A Razão A compreensão de uma fundamentação moral e política propõe, igualmente, o entendimento de seu embasamento, ou seja, de seu suporte reflexivo. Logan (1983, p. 04) explica que a Utopia pode ser compreendida como “princípios que podem ser aplicados na prática política”. Na análise de Surtz (1957a, p. 06), “a Utopia é uma cidade filosófica. Uma criação da razão humana sem a ajuda da revelação divina”. E os utopianos acreditam na possibilidade da revelação divina, apesar de terem conquistado a cidade perfeita somente através da razão. A distinção entre a razão e a fé não é tão gratuita quanto se pressupõe, pois T.M. deixa clara a distinção explícita entre a razão natural e a religião revelada. Os utopianos acreditam que, a não ser que uma religião seja mandada do céu e possa inspirar no homem uma opinião mais sacrossanta, não há nenhuma que seja superior às buscadas pela razão humana. (SURTZ, 1957a). Baker-Smith (2006) afirma que a temática sobre a formação de uma civilização racional é institucional. A Utopia incorpora a consciência de que na política princípios gerais normalmente operam através de estruturas institucionais específicas, e as recomendações reformadoras de TM são dirigidas a uma mudança institucional. Encontra-se, nesse sentido, a compreensão de que uma sociedade construída pela razão deve incorporar em suas instituições critérios morais e políticos no mesmo nível da dimensão racional. Desse modo, a prescrição de uma sociedade moral e política, segundo T.M., perpassa pela harmonia não só do que é prudente e moral, mas, também, do que é prudente e cristão, cujas instituições devem ser tanto prudentes quanto santas. Somente pela razão, é que os utopianos são levados a princípios éticos, e a Utopia é construída extrapolando estes mesmos princípios para o âmbito da política. Em alguns aspectos importantes, a comunidade puramente racional de T.M. age como se fosse uma comunidade perfeitamente cristã. A constituição de uma comunidade racional, segundo T.M., somente é aceitável quando segue os critérios dos preceitos cristãos, que encontram sentido na práxis social, preceitos esses vivenciados pelos utopianos em sua magnitude e excelência. 40 2.2 A natureza, a base da moral utopiana A análise da moral utopiana tem início, igualmente, na herança grega de natureza (physis). O termo é utilizado na Utopia para dar ao termo crucial “natureza” uma base firme na vida dos sentidos, para que possa ser estendida para uma esfera abrangente de atividades humanas, do biológico ao teológico.69 Permite à filosofia do prazer incluir não só serviço aos outros, mas até sacrifício, já que estes trazem os prazeres elevados de benevolência moral e esperança de uma recompensa após a morte. (BAKER-SMITH, 1991). De acordo com Baker-Smith (1991), o ideal de viver de acordo com a natureza é a essência da moralidade utopiana, um amálgama deste esquema ético. T.M. apresenta ao leitor uma filosofia do prazer70, com todas as ambiguidades que isso possa criar, e destaca a verdadeira austeridade que governa a vida dos utopianos. Estes possuem também uma ideia central de agir ou escolher de acordo com a natureza71, junto com outra obrigação importante, a de assistir outros por camaradagem natural. T.M. designa essa condição de vida de prazer de “apetência natural”, aquela que permite tornar viável tudo o que é agradável, no usufruto dos sentidos e na reta razão. Nas palavras de T.M., apetência natural “designa por prazer todo o movimento ou todo o estado de corpo, ou de alma nos quais o homem, guiado pela natureza, se delicia em viver”. (MORVS 2006, p. 551).72 A “apetência natural”, como tudo o que é agradável por natureza, não se busca apenas pelos sentidos, mas também pela reta razão. Para os utopianos, segundo Surtz (1957a, p. 20), a natureza é atraída ao prazer e à virtude. E as argumentações são as seguintes: A virtude é a vida vivida de acordo com a natureza. Mas, a vida vivida de acordo com a natureza é a seleção e rejeição de coisas de acordo com a razão. Portanto, a virtude é a seleção e rejeição de coisas de acordo com a razão. Mas, a razão nos aconselha e nos incita a levar uma vida o mais livre de cuidados e o mais cheio de alegria quanto possível, e nos mostrar solícitos em vista da solidariedade que surge da natureza em obter o mesmo para 69 T.M. proporciona aos utopianos uma crença estoica na solidariedade humana e uma crença platonista numa divindade beneficente. 70 De cunho epicurista. 71 Herdado dos estoicos. 72 LAT166/ING167/FRA521. 41 todos os outros seres humanos. Portanto, a virtude aconselha e nos incita a levar uma vida o mais livre de cuidados e o mais feliz possível. Segundo T.M., os habitantes da Utopia definem a virtude como sendo viver segundo a natureza, que é o mesmo que dizer que o homem foi ordenado por Deus a viver de acordo com a forma do qual foi criado. Deixa-se conduzir pela natureza todo aquele que no desejar ou no repudiar as coisas obedece à razão. A razão, por seu lado, antes de mais e em primeiro lugar, inflama os homens ao amor e à veneração da divina majestade, e proporciona ao homem a aptidão para a felicidade. Para T.M., a natureza convida e impulsiona o homem a levar uma vida com o mínimo de ansiedade e com o máximo de satisfação, e, por afinidade de natureza, a prestar assistência aos outros para alcançarem o mesmo. (MORVS, 2006). Para Surtz (1957a, p. 37), T.M. afirma que todo prazer é, portanto, bom ou mal por natureza e permanecerá assim para sempre. E observa que os utopianos chegam a essa concepção mediante a aplicação de três normas negativas. Um objeto só pode ser prazeroso por natureza se não: envolver a perda de um prazer maior; ter como consequência dor ou arrependimento a terceiro: causar dor e sofrimento ao próximo. Dos três, os primeiros dois são de importância especial e valor para o indivíduo, e o terceiro, para a sociedade. Dessa forma, os utopianos determinam que, ou em parte ou no todo, a felicidade do homem reside no prazer. A felicidade, para a sociedade utopiana, reside naquele prazer que é bom e honesto por natureza, tornando-se praticamente uma norma a ser vivida, a de buscar prazeres bons e honestos para se alcançar a felicidade. Prazer é considerado por eles como toda noção ou estado do corpo ou mente em que o homem tenha naturalmente deleite. (SURTZ, 1957a). Nas palavras de T.M., os utopianos consideram que a felicidade não se situa num prazer qualquer, mas apenas no prazer bom e honesto. Todo prazer efetivamente se direciona para esta felicidade como sumo bem. É através desta natureza, que na Utopia se considera virtuoso seguir seus ditames, que se chega à meta final, que é a felicidade. (MORVS, 2006). Para Surtz (1957a), os homens devem respeitar a natureza como a sua mãe, e jamais recusar ou desprezar uma dádiva que ela colocou no mundo para o seu uso e deleite. Os utopianos são insistentes a respeito do natural, e desprezar a beleza não é natural, como também usar meios artificiais para aumentá-la. Os utopianos não se servem de meios artificiais para expressar a beleza contida em cada homem. Como orienta T.M.: 42 [...] já que a natureza predispõe todos os mortais a prestarem-se apoio mútuo a fim de obtermos uma vida de maior satisfação (coisa que certamente ela faz com boas razões, pois, por mais elevado que alguém se encontre na condição humana, para sozinho atrair a si o cuidado da natureza, que a todos sem excepção presta os seus favores, e a todos os que são da mesma espécie ela abraça solidariamente) é de admirar que ela nos mande uma e muitas vezes tomar cuidado em não procurarmos tanto as nossas vantagens que causemos prejuízos aos outros. (MORVS, 2006, p. 547).73 Para a vida em Utopia é preciso compreender, segundo Surtz (1957a, p. 152), que a natureza convida e impulsiona o homem a levar uma vida com o mínimo de ansiedade e com o máximo de satisfação, ou seja, afinidade de natureza. Ela convida a prestar assistência aos outros para alcançarem o mesmo; nunca, efetivamente, terá havido seguidor tão severo e tão estrito da virtude e inimigo do prazer que aponte aos outros trabalhos, vigílias e austeridades, sem ao mesmo tempo ordenar que se dediquem a aliviar a pobreza e os sofrimentos dos outros. A natureza permite ao homem o exercício das virtudes que conduzem a sociedade à vivência do modelo da civilização da cristandade. A vivência de uma sociedade moralmente efetivada se instaura, segundo Surtz (1957a), na visão dos utopianos sobre ouro, prata e pedras preciosas. Está sempre ligada à natureza. Cada utopiano valoriza coisas preciosas não mais do que a natureza que elas merecem. Por isso, existe o desprezo ao ouro que possui pouca utilidade, em comparação ao ferro, que é tão fundamental quanto o fogo e a água. A validade do objeto encontra sentido pragmático, viabilidade utilitarista, cabendo apenas emprego social. 2.3 O prazer, a felicidade e a virtude A própria vida na Utopia já caracteriza a vigência do prazer. O utopiano pratica vivamente o hedonismo, sendo essa uma das características sociais. Daí, Surtz (1957a) diz que a sociedade utopiana, enquanto sistema comunista, está intimamente ligada a uma filosofia, e intrinsecamente relacionada ao hedonismo utopiano. De acordo com T.M., todas as ações conduzem ao prazer, e considera que todas as nossas ações, e nelas as próprias virtudes, têm no ponto de mira o prazer como seu objetivo e felicidade. (MORVS, 2006) 73 LAT162/ING163/FRA517. 43 Para Surtz (1957a), os utopianos consideram o prazer como toda noção ou estado do corpo ou mente, em que o homem tenha naturalmente deleite. Mas deve-se atentar para o fato de que muitas coisas que, embora sejam consideradas prazerosas, pela sua própria natureza, não contêm prazer algum. Na perspectiva de uma sociedade hedonista, pautada na vivência do prazer, Surtz (1957a) afirma que um dos grandes obstáculos para a aceitação da interpretação humanista da Utopia tem sido a filosofia do prazer endossada pelos utopianos. Eles parecem excessivamente inclinados à opinião que defende o prazer como a principal parte responsável pela felicidade do homem. Entretanto, embora a parte que trata dos verdadeiros prazeres seja a menos organizada e não siga uma sequência lógica, aqueles são divididos em prazeres do corpo e da alma. De acordo com Surtz (1957a), T.M. demonstra habilidade retórica acima de tudo no seu uso do termo prazer (Uoluptas). Uoluptas no senso literal da palavra sempre tem transmitido a ideia de gratificação do corpo ou dos sentidos. Na Utopia, uoluptas é atribuído a um tipo de prazer muito elevado, e é definido como todo movimento e estado do corpo ou da mente em que o homem tenha naturalmente deleite. Surtz (1957a) afirma que T.M. usa, na obra, vários sinônimos para uoluptas, como: iucunditas (pleasantness) delectatio (delight), laetitia (joyfulness), suauitas (sweetness) e até commoda (interesses). Tanto fazendo o seu prazer (uoluptas) abraçar os prazeres do corpo e da alma, e identificando-o com seus sinônimos indiscriminadamente, T.M. astutamente torna mais fácil corroborar que prazer é a essência da felicidade humana. Por isso, na atribuição do termo prazer, para os utopianos, só pode haver ou prazer ou dor. Não há nenhum estado neutro de sensação intermediária entre prazer e dor, ou uma coisa ou outra. A natureza do prazer como bom ou mal é imutável. É possível pensar numa deontologia do prazer, adotando, como agir racionalmente, o agir prazerosamente? De acordo com Surtz (1957a), é próprio dos homens agirem movidos pelo prazer, já que este deve satisfazer suas necessidades. E cultivar o prazer significa cumprir as regras da natureza. Para Logan (1983), o governo verdadeiro seria aquele que buscava os verdadeiros prazeres, no estabelecimento de que as leis educacionais, por exemplo, deveriam contemplar 44 nas crianças o repúdio aos falsos prazeres e o acesso ao verdadeiro saber, adquirido por bons livros. O projeto educacional dos utopianos inclui o exercício dos prazeres, em que um menor não seja obstáculo para alcançar uma maior, e que não haja arrependimento ou dor como consequência. Da mesma forma, nenhum utopiano deve comprometer o outro ao perseguir um prazer que é almejado. Na percepção de Logan (1983, p. 153): “deve se dar ao homem uma educação correta para que esses instintos o conduzam a virtude, mas se educá-lo mau ele acaba no outro extremo”. A satisfação dos desejos é algo inerente ao ser e pode ocupá-lo pela vida inteira. Percebe-se que a aplicabilidade do prazer encontra-se nos âmbitos individual e social, porque é própria da civilização utopiana a vivência deste na dimensão da alteridade. A alteridade social é respeitada nos três conceitos anteriormente citados, e este princípio caracteriza um preceito social de que o prazer deve ser obtido “sem erro ou dano a outro ser humano.” (SURTZ, 1957a, p. 30). T.M. exemplifica a alteridade dos utopienses que agradecem à mãe natureza pelo prazer de dar aos filhos o comer, o beber, o coçar e o esfregar. Tais ações derivam dos favores da sua própria natureza. A isso pode ser acrescido o conselho moreano que diz: “aquilo que não pode ser transformado em benefícios, que tenha os seus malefícios reduzidos o máximo possível.” (LOGAN, 1983, p. 116). Para Morvs (2006, p. 549)74, não pode haver na comunidade utopiana nenhum benefício particular que entre em choque com o estado e a condição da maioria: Cuidar do interesse de cada um, sem violar essa lei, é sensatez; cuidar, além disso, do interesse público é próprio da solidariedade. Mas apressar-se a impedir o prazer alheio para garantir o seu é, em contrapartida, uma iniquidade; pelo contrário, privar-se a si mesmo de alguma coisa, para juntála à de outros é, em fim de contas, prática de humanidade e de benignidade, que, nunca como nesse gesto, tanto compensa quanto dispensa. De fato, há a compensação da reciprocidade; além disso, a própria consciência de ter agido bem e a recordação do afeto e do bem-querer daqueles a quem se prestou um benefício trazem ao espírito maior prazer do que teria o corpo com aquilo que lhe foi retirado. Enfim (e aqui a religião facilmente encontrará adesão em espíritos de bom assentimento), Deus compensa com gozo imenso, que nunca terá fim, a troca de um prazer exíguo e sem duração. 74 LAT164/ING165/FRA518. 45 É desta maneira que, depois de terem analisado cuidadosamente e sopesado a matéria, consideram que todas as nossas ações, e nelas as próprias virtudes, têm no ponto de mira o prazer como seu objetivo e felicidade. A condição de uma civilização pautada na racionalidade admite-se quando os interesses entre os homens devem ocorrer para o bem comum. Na perspectiva de T.M., o homem que despreza os prazeres corporais em favor de interesses alheios, e com vistas a receber maior prazer de Deus em recompensa as suas dores, age racionalmente e tudo está bem. Mas aquele que se maltrata sem beneficiar a ninguém é considerado um louco. (SURTZ, 1957a). A deontologia do prazer para os utopianos passa a ser mais rigorosa do que qualquer outro modelo. De acordo com as observações de Surtz (1957a), os resultados práticos desses padrões de moralidade estabelecidos para os devotos do prazer acabam se tornando mais rigorosos e elevados do que os estabelecidos pelos cristãos. Assim, a sociedade utopiana apresenta-se por um lado austera, mas por outro hedonista. Veremos adiante como essa concepção parece ser uma tradição reconhecida como forma de sociabilidade. Como devotos da razão e do senso comum, os utopianos seguem um raciocínio lógico e valorizam os prazeres da alma como os mais importantes. Tais podem ser divididos em três classes: A primeira classe origina-se do exercício autogratificante das virtudes; a segunda constitui as recompensas da virtude, a serena consciência da nossa própria excelência moral no presente, a doce memória da nossa conduta virtuosa no passado e a inabalável esperança de alegria no futuro, nestas estando inclusas as recompensas prazerosas de atos de sacrifício, a consciência de um ato bom, a lembrança da satisfação dos beneficiados e a compensação na forma de felicidade abundante na eternidade; e a terceira classe de prazeres da alma nasce da contemplação da verdade.75 (SURTZ, 1957a, p. 62). Para Surtz (1957a, p. 32), a relação entre prazer e virtude é decorrente da faculdade racional pela qual um homem escolhe e evita prazeres e dores, que é a maior das suas virtudes. É também a fonte de todas as demais virtudes, pois ensina que não podemos levar 75 Da mesma forma que Platão, os utopianos desprezam os falsos prazeres de riqueza e honra em comparação com o deleite de conhecer a verdade e a realidade. (SURTZ, 1957). Reconhecendo que o hedonismo apresenta-se como uma peculiaridade para a sociedade utopiana, é imperativo perceber como o prazer pode direcionar toda uma comunidade. Dessa forma, é preciso reconhecer a herança que T.M. admite ter recebido da tradição filosófica. 46 uma vida de prazeres que não seja também uma vida de prudência, honra e justiça. E também não levar uma vida de prudência, honra e justiça que não seja também uma vida de prazer. A maior parte de um prazer mental surge do exercício da virtude e consciência de uma boa vida. O sacrifício de um prazer a fim de beneficiar o seu vizinho é mais que recompensado por uma recompensa maior e tripla: “a aprovação da nossa consciência, a lembrança da gratidão de quem recebe o favor e a firme esperança de uma recompensa futura”.76 Para Surtz (1957a), na perspectiva de T.M são três os prazeres do corpo: dois relacionados à saúde e o terceiro a um deleite que inunda os sentidos com uma doçura facilmente perceptível. Quanto aos prazeres relacionados à saúde, o primeiro ocorre na restauração do corpo, através do alimento e da bebida. O segundo surge da desincumbência destas coisas (fezes, urina ou sêmen). Tal prazer é o prazer sentido na excreção ou na relação sexual, ou no alívio de qualquer coceira ao esfregar ou coçar. Na primeira variedade de prazer sensorial, damos ao corpo o que ele anseia; e na segunda, aliviamos o corpo daquilo que o incomoda77. A terceira variedade nem satisfaz um desejo e nem remove uma dor, mas, no entanto, afeta nossos sentidos com um movimento oculto, porém, bem definido, atraindo a nossa atenção para o assunto. Um exemplo é a música. Inclusos nesta terceira categoria estão os prazeres recebidos pelos sentidos. A respeito da felicidade, os utopianos constroem seu sistema ético reunindo razão e religião. Eles não entendem a possibilidade de separação de Deus, ou a sua religiosidade com a vida em sua prática diária. Na perspectiva de Baker-Smith (1991), a teologia utopiana propõe certas crenças mínimas que se relacionam à alma individual e a seu destino post 76 Na perspectiva de Logan (1983, p.170), é relevante perceber que aí finalmente TM deriva de Platão e Aristóteles a ideia importante de que os vários prazeres podem ser classificados de acordo com a sua importância, pois, na comunidade utopiana, há também uma hierarquia dos valores. Sobre os verdadeiros prazeres e a melhor vida, Platão e Aristóteles compartilham com os utopianos a divisão de prazeres em diversas categorias. A Ética, de Aristóteles, distingue entre os prazeres da mente e a dos sentidos e, como Platão, ele acredita que ambas as formas de prazer são necessárias para a boa vida. A herança utopiana de Platão e Aristóteles é a contemplação filosófica, para eles é o maior dos prazeres. T.M. reconhece que, enquanto em Platão a contemplação filosófica da verdade é o prazer supremo, os utopianos asseguram que a principal parte do prazer mental surge da prática das virtudes e da consciência de uma boa vida. Aristóteles, na sua Ética, afirma que os vários prazeres podem ser hierarquizados de acordo com a dignidade da faculdade a que pertencem. O que se oportuniza em Aristóteles é que se antecipa aos utopianos fazer a distinção entre prazeres naturais e não naturais e também se explica que a doença e os hábitos podem fazer com que as pessoas achem que o não natural é prazeroso. 77 No entendimento dos utopianos aqueles que acreditam que uma vida feliz está focalizada na satisfação da fome, da sede e da coceira, com o alimento, a bebida e a coçação, vivem uma vida miserável. 47 mortem. Assim, a imortalidade da alma é mantida como uma fundação essencial para a dignidade humana. Para os utopianos, a crença de Deus tem destinado a alma para a felicidade, e depois da morte recompensas serão concedidas a feitos virtuosos e castigos serão impostos para atos vergonhosos. A postura prática da felicidade dos utopianos é de que não só projetam suas preocupações com a felicidade numa pós-morte, mas pressupõem o íntimo envolvimento do divino com o humano; isso, por conseguinte, leva à crença de que o mundo é regido por essa força divina, e não pelo acaso. A sociedade utopiana é a expressão da regência da fé e da razão, num sistema ético sistemático. A concepção social de Deus é uma condição de busca da felicidade dos utopianos. Para eles, o conceito de Deus como o fim último que o humano alcança foi tratado aqui porque é essencial para a compreensão da ideia utopiana de felicidade. De acordo com a reflexão de Surtz (1957a), os utopianos discutem virtude e prazer, mas o ponto principal da disputa é no que consiste a felicidade de um homem, se derivado de uma única coisa ou de diversas coisas mais. A predisposição utópica é a de que o fim do homem é a alegria ou beatitude. O ponto em questão aqui é: qual é o objeto dessa felicidade ou beatitude? Salienta-se que toda essa controvérsia está centralizada e confinada a apenas dois objetos: virtude e prazer. A escatologia dos utopianos é a perspectiva de que o homem já alcançou na Terra os elementos para a beatitude, resumo de sua condição terrena. Vemos isso quando nos deparamos com a própria perspectiva de T.M (2006, p. 585),78 que diz: “Os princípios [da religião] são do tipo seguinte: a alma é imortal e por benevolência de Deus foi feita para a felicidade; depois desta vida, à virtude e às boas ações estão destinados prêmios, aos crimes estão destinados castigos”. Todos os temas em ordem moral podem ser discutidos dentre os utopianos, [...] mas primária e suprema é a questão sobre a felicidade humana: em que é que se situa, se numa única coisa se em muitas. Ora, quanto a isto, parecem mais propensos do que seria razoável para a corrente que defende o prazer, enquanto procuram definir a felicidade humana no seu todo ou na parte principal. (MORVS, 2006, p. 543). 78 LAT160/ING161/FRA514. 48 A busca da felicidade, para os utopianos, está intrinsecamente relacionada com os preceitos religiosos, porque é neles que todo o conjunto de elementos para alcançá-la está contido. Como o próprio T.M. explana: Nunca eles discutem sobre o problema da felicidade sem tirarem alguns princípios da religião e sem os associarem com a filosofia que se serve do raciocínio, pois sem os primeiros consideram que a razão só por si é falha e sem forças para indagar a verdadeira felicidade. (MORVS, 2006, p. 543).79 A Filosofia Moral e Política está presente no pensamento de T.M. quando da busca e alcance da felicidade, pois isto se relaciona com a prática social do bem. Para ele, os utopianos acreditam que a felicidade não se refere a um prazer qualquer, “mas apenas ao prazer bom e honesto. Efetivamente, é para esta felicidade, como sumo bem, que a nossa natureza é conduzida pela virtude e é a ela que a corrente contrária atribui a felicidade.” (MORVS, 2006, p. 547).80 Desse modo, de acordo com Surtz (1957a, p. 36), os utopianos afirmam que, ou em parte ou no todo, a felicidade do homem se encontra no prazer. As características que eles exigem para o tipo correto de prazer são as seguintes: “A felicidade reside somente naquele prazer que é bom e honesto por natureza, esta é a norma positiva”.81 Os utopianos mantinham a ordem social mediante a prática da virtude e do prazer. Isso, eles assumiam por acreditarem que a própria natureza atrai o homem à virtude e ao prazer. Para eles, segundo Surtz (1957a, p. 20): “A virtude é a vida vivida de acordo com a natureza. Mas, a vida vivida de acordo com a natureza é a seleção e rejeição de coisas de acordo com a razão. Portanto, a virtude é a seleção e rejeição de coisas de acordo com a razão”. 79 LAT158/ING159/FRA513. LAT162/ING163/FRA517. 81 Para Logan (1983), T.M. tem uma referência clássica grega quando lê que na Política de Aristóteles, a felicidade, não importando se os homens a encontram no prazer, na bondade ou em ambas, pertence àqueles que têm cultivado o seu caráter e mente ao máximo e mantido a aquisição de bens externos dentro de limites moderados. Aristóteles expressa mais uma vida de ação virtuosa do que na sua Ética, e tal ação aparenta-se como um componente importante quanto à contemplação filosófica. Aristóteles, na Ética, reforça que uma verdadeira vida feliz é uma vida de bondade vivida na liberdade dos impedimentos e, enquanto na Ética a felicidade perfeita é uma atividade contemplativa, na Política a quantidade de felicidade que cabe a cada indivíduo é igual à quantidade da sua bondade e sabedoria e dos atos bons e sábios que ele efetua. Desse modo, a exemplo da tradição filosófica grega, “a vida de maior prazer que, de acordo com os utopianos é a melhor vida, é, portanto, a vida da virtude.” (LOGAN, 1983, p.174). 80 49 Desse modo, a própria natureza possibilita uma vida livre de cuidados, permeada de alegria, na prática da solidariedade, em que todos vivem a virtude de viver com todos e para todos. Nas palavras de T.M. se observa: Importa não ser menos benevolente para si do que para os outros [...]. Efetivamente, quando a natureza nos convida a que sejamos bons para os outros, ela mesma não iria mandar depois que fôssemos cruéis e falhos de clemência para nós próprios. É, pois, dizem eles, uma vida agradável, ou seja, o prazer, que a natureza nos prescreve como fim de todas as nossas atividades; viver segundo este preceito da natureza, tal é a sua definição de virtude. (MORVS, 2006, p. 547).82 Como a sociedade utopiana pautava-se na vivência e exercício da ascese dos valores, mediante o uso da hierarquia axiológica, Surtz (1957a) orienta que o melhor exercício é o da virtude e consciência da boa vida. Esta é a verdadeira liberdade e desenvolvimento da alma, e mesmo buscas intelectuais sempre devem tender a uma maior pureza da consciência e aquisição da virtude nobre83. A ênfase em boa conduta, ao invés de preocupação intelectual, como fonte de prazer da alma é característica do caráter e forma de pensar do utopiano. Há entre os utopianos uma relação entre virtude e prazer. Entretanto, em que consiste essa relação? A resposta é que a virtude é subordinada ao prazer. Todas as nossas ações, incluindo as virtudes em si, se referem enfim ao prazer como sua finalidade e alegria. Mas isso não é uma subordinação no sentido grosseiro. Ao contrário, a principal parte dos prazeres da mente surge do exercício da virtude e da consciência de uma boa vida. Os utopianos praticam a virtude porque eles presumem que o prazer está associado à realização de feitos virtuosos e que uma boa consciência é fonte de gratificação84. Por isso, no ensino e na instrução85, as palavras de T.M. são incisivas: 82 LAT162/ING163/FRA517 Erasmus, no seu Enchiridion, exclamava que o verdadeiro e único prazer (voluptas) é felicidade (gaudium) numa consciência limpa. 84 Na relação entre a vida mais justa e a vida mais prazerosa, os utopianos pensam semelhantemente a Platão em seu livro Leis, em que ele diz: [...] o ensino que recusa a separar o prazeroso do justo ajuda a induzir o homem a viver uma vida justa e sagrada, de forma que qualquer doutrina que negue esta verdade se torna vergonhosa e detestável, pois ninguém consentiria voluntariamente ser induzido a cometer um ato a não ser que envolvesse como consequência mais prazer do que dor. (SURTZ 1957a, p.19). 85 Essas palavras do autor reforçam a ideia de que a educação utopiana, tal como proposta pelos teóricos gregos, “tem uma preocupação tanto pela moral e virtude quanto pelos avanços no aprendizado.” (LOGAN 1983, p.200). Para Surtz (1957a, p.48), T.M., inspirado nos escritos de Pico della Mirandola, afirma que o aprendizado e a virtude são as coisas que se consideram e possuem mais valor do que a nobreza dos antepassados. E que “a honra é a recompensa da virtude, e segue a virtude como uma sombra segue um corpo”. 83 50 [...] a prioridade é conferida não às letras, mas à moral e à virtude, pois colocam o máximo de diligência em incutir desde cedo no ânimo das crianças, ainda tenras e moldáveis, bons princípios que sejam úteis para manter a comunidade humana; se esses princípios tomarem assento em profundidade nas crianças, hão-de acompanhá-los, quando homens, por toda a vida e hão-de ser de grande utilidade para o Estado (cuja ruína começa com os vícios que surgem de princípios deturpados). (MORVS, 2006, p. 651).86 A honra, de acordo com Surtz (1957a, p. 47), pode ser definida como “uma manifestação externa de estima pelo valor de outro, seja por sua virtude ou sua autoridade.” A honra só é derivada da virtude. Assim, uma pessoa pode ser honrada por conta da sua própria virtude, como no caso de homens virtuosos, ou por conta da virtude de outro, como governantes e sacerdotes, a que são dadas honras porque representam Deus e a comunidade. Da mesma forma, homens ricos são honrados não por conta de suas riquezas, mas pela sua posição destacada na comunidade. “O prazer que surge da satisfação de um desejo incomum por sinais de respeito, quando independe a honra, trata-se de um engodo e não é natural nem verdadeiro.” Os utopianos têm uma reverencia significativa para com aqueles que ocupam cargos públicos porque, para eles, “primeiro, honra é a recompensa da virtude; segundo, honra é um incentivo à virtude, por isso, levantam estátuas de homens notáveis para prestar-lhes honras pelas suas virtudes e que servem para incitar em todos a virtude.” (SURTZ, 1957a, p. 47). A honra para os utopianos serve como uma função social de incentivo aos demais. A imitação dos nossos antepassados virtuosos e nobres é o meio mais eficaz ao perseguir a virtude. (SURTZ, 1957a, p. 49). Por isso, de acordo com Surtz (1957a, p. 39), os utopianos encontram na honra e no cuidado coletivo a verdadeira dignidade. Os utopianos consideram correto cuidarem de seus próprios interesses e, mais ainda, cuidar dos interesses públicos também. Mas consideram totalmente injusto privar o prazer de outrem em prol do seu próprio. Privar a si mesmo de algo para entregar a outrem é um serviço amigável de humanidade e gentileza, e pode ser considerado um ganho maior do que uma perda, porque: “a compensação se faz na forma de 86 LAT230/ING231/FRA606. 51 retorno de favores, oferecendo maior prazer à alma do que ao corpo que foi privado, e a recompensa dada por Deus, em que um pequeno prazer é trocado pela alegria eterna”.87 2.4 A igualdade e o comunismo utopiano Reconhecer que a sociedade utopiana pauta-se na igualdade, na vivência dos prazeres e no exercício das virtudes, é uma tarefa não muito difícil, haja vista estar explícito na obra Utopia, de T.M. Desse modo, é imperativo perceber que não é apenas a vivência que constitui o cerne da civilização utopiana. A igualdade representa o salto, a novidade, o inusitado para constituir toda uma reflexão na Filosofia Moral e Política. Logan (1983, p. 182) explicita que a Utopia é uma referência à vivência do preceito da igualdade entre os homens, pois a equidade social é veementemente reiterada. No entanto, o sistema social, que na concepção de Surtz (1957a, p. 152) é um sistema comunista, parece estar intimamente ligado a uma filosofia que se traduz no hedonismo utopiano. De acordo com Baker-Smith (1991, p. 178), a prática de dispor tudo em comum caracteriza-se como o princípio transformador que conduz à vivência e à prática da igualdade entre os homens. Entretanto, T.M., da mesma forma que articula sua civilização com a perspectiva grega a respeito dos valores e da honra, também encontra nos registros clássicos dos gregos pressupostos para os princípios comunistas.88 Baker-Smith (1991, p. 166) reconhece que há uma grande divergência da proposta platônica na República, em que a comunhão dos bens inclui a comunidade de parceiros. Os utopianos, no entanto, praticam a monogamia e o seu código legal apóia essa prática de forma enfática. Isso não é surpresa, visto que a unidade familiar é a base da sociedade utópica. O 87 Epicuro mesmo disse “que não é só mais bonito conferir do que receber um benefício, mas também mais prazeroso, pois nada produz alegria tanto quanto a beneficência”. (SURTZ, 1957a, p.39) 88 Na leitura de Utopia, Surtz (1957a, p.151) afirma que, de todos os grandes autores gregos, o nome de Platão é o que encabeça a lista de Raphael. É a República que os utopianos acham mais estimulante e proveitoso para os seus princípios comunistas. Uma grande diferença entre a República e a Utopia é a forma de governo. No primeiro caso, o sistema instituído é a aristocracia e no segundo, temos uma democracia livre de castas. (SURTZ 1957a, p.152). Para Logan (1957a, p.208) “as conexões mais interessantes entre a Utopia e os trabalhos teóricos gregos estão na alteração ou rejeição do que seja a Polis ideal.” Uma dessas questões bastante marcante é a que trata do comunismo. O comunismo platônico, citado na Republica, dos guardiões é bastante abrangente, pois, além da propriedade, mulheres e crianças também são comuns. As demais classes citadas não são comunistas. No livro Leis Platão ainda admite que o melhor estado seria completamente comunista, embora essa visão se refira somente a uma classe pequena de cidadãos plenos. O comunismo é, na prática, demasiadamente exigente para pessoas criadas e educadas como seus conterrâneos. De acordo com o livro Leis, as únicas instituições comunistas são: as mesas em comum e as leis requerendo a distribuição gratuita de dois terços de toda a produção agrícola para cidadãos e escravos. 52 adultério é severamente castigado e faz parte de uma campanha legal para apoiar a monogamia. De acordo com os estudos de Logan (1983, p. 209), o comunismo econômico utopiano é tão abrangente quanto o que se propõe para os guardiões platônicos, em que não há nenhuma propriedade privada, além do que a estritamente essencial. T.M. ainda acrescenta que todos os utopianos trocam as suas casas a cada dez anos. A grande diferença entre ambos (platônicos e utopianos) é o fato de que o que é para os guardiões na República, o é para todos os habitantes da ilha de Utopia.89 Logan completa (1983) que, para alguns pesquisadores, T.M. não leva em consideração a natureza humana como ela é, mas, sim, uma imagem idealizada, pois o comunismo só funcionaria de fato se os homens fossem cristãos perfeitos. Baker-Smith (1991, p. 140) acrescenta que: No estado de natureza, todo mundo assegura o uso das dádivas da natureza de acordo com suas necessidades e ninguém reclamava propriedade; foi somente com o desenvolvimento de organizações sociais que o sistema de direitos de propriedade foi formulado na lei. Assim, a lei como um sistema convencional, o ius gentium em contrapartida ao ius naturale, é um acordo entre homens para o seu benefício mútuo, mas, junto vem uma série de arranjos – propriedade, escravidão, comércio, o estado, e a guerra – que modifica as liberdades da lei natural. A posição de TM a esse respeito, segundo Surtz (1957a), é que nem o direito natural e nem o direito positivo divino (o Evangelho de Cristo) são a base da propriedade privada. Mas a razão humana vê prontamente que a posse em comum é o sistema melhor adaptado à natureza do homem. Os homens, portanto, dividem os bens do mundo por meio de acordos, que são nada mais que a lei humana ou a lei pública. 89 Para Logan (1983, p.209) graças à natureza humana os homens são egoístas, e a propriedade privada é a maior propensão ao egoísmo. Para Platão, por sua vez, governantes egoístas predariam sobre o resto da comunidade, o que os obriga a terem tudo em comum. Nesse mesmo horizonte T.M. compartilha a mesma visão da natureza humana que Aristóteles e Platão e sugere também a remoção da oportunidade de acúmulo egoísta, que é um dos motivos de o comunismo utopiano ser universal. O argumento platônico para a inibição do egoísmo de uma classe governante é relançado na Utopia como um argumento para a necessidade de comunidade da propriedade, a fim de assegurar justiça distributiva. No final do Livro I, T.M. afirma que com a igualdade de distribuição todos os homens têm a abundância de todas as coisas, trazendo ordem para a sociedade, enquanto, onde houver propriedade privada, haverá o desmando. De acordo com Baker-Smith (1991, p.140): [...] a compreensão do comunismo utopiano pressupõe conhecimento sobre o estado primitivo da natureza e da humanidade. Existe uma distinção clássica romana entre o estado primitivo da natureza e a ascensão da vida humana civilizada. 53 Por outro lado T.M., segundo Surtz (1957a, p. 176), compreende que a avareza e a ganância impõem a falta sobre a abundância da natureza, pois [...] o que a natureza liberal tem dado para ser comum a todos, os homens maliciosamente transformam em privado; o que ela tem feito visível e acessível é carregado, trancado, guardado e mantido longe dos demais por portas, paredes, ferrolhos, ferro, armas e leis. Dessa forma, a ganância e maldade de uma minoria impõem a falta e a fome diante da abundância da natureza e causa pobreza no meio das riquezas de Deus. Isso era condenável e impraticável para a civilização utopiana. Para Surtz (1957a, p. 50), à primeira vista, a Utopia pode fazer concluir que TM está atacando aqueles que possuem títulos vazios de nobreza. No entanto, uma leitura cuidadosa revela que o seu alvo é a riqueza, o que leva a um problema central da Utopia, que é o binômio riqueza/pobreza. O sistema utopiano de comunismo envolve a abolição de dinheiro, que costuma ser, por opinião pública, os verdadeiros ornamentos e honras de uma comunidade.90 Na Utopia, todos satisfazem seus desejos contanto que trabalhem. Até viajantes contribuem, com suas habilidades, antes de comparecer às refeições. Assim, “o trabalho é a base do valor e a vida está de tal forma ordenada que o trabalho em tarefas essenciais, como a agricultura, possui alta estima.” (BAKER-SMITH, 1991, p. 202) A leitura da Utopia conduz à compreensão de que os utopianos vão preferir sempre a posse pública à privada, a fim de assegurar a divisão dos bens entre os seus cidadãos, para que todos possam atingir o máximo de prazer e o mínimo de dor na sua vida terrena. Todas as coisas estarem em comum proporciona a abundância a todos os homens. Por isso, já que existe uma abundância de todas as coisas, nenhum homem consegue ser pobre ou necessitado. Somente na Utopia pode-se designar o “commonwealth”, ou “bem-estar público”. (SURTZ, 1957a, p. 155) O surgimento da postura igualitária em relação ao trabalho e ociosidade, na ilha de Utopia, foi logo depois da vitória do Rei Utopus, quando a primeira ação tomada pelo conquistador foi convocar todos, vencidos e vencedores, a uma mesma tarefa, isolar a península do continente, criando assim uma ilha para facilitar a defesa do recém-conquistado território: 90 TM anuncia que na Inglaterra de sua época a nobreza era nada mais do que uma classe de ricos. 54 Para fazer tal obra requisitou não apenas indígenas, mas (para eles não considerarem que o trabalho era forma degradante) associou-lhes também todos os seus soldados e por isso, com a repartição do trabalho por tanta gente, a obra foi realizada com uma rapidez inacreditável; aos vizinhos (que no início se riam por considerarem que era desvario) cativou-os pela admiração e acabou com eles pelo terror. (MORVS, 2006, p. 489).91 A divisão do trabalho e o envolvimento de todos garantem que cada um trabalha o mínimo possível, obtendo-se o máximo de rendimento, visto que ninguém trabalha pelo outro. T.M. acrescenta: “[...] fácil é perceber-se quão poucas horas sejam necessárias para a quantidade e a qualidade do trabalho que leva a produzir as coisas que mencionei.” (MORVS, 2006, p. 509).92 A distribuição equitativa visa aliviar o máximo possível as obrigações para cada cidadão. Não há quem esteja isento de trabalhar, pois mesmos aqueles não envolvidos em tarefas manuais comuns a todos estão comprometidos com outras tarefas do qual prestam contas quanto a sua produtividade. Aos sifograntos cabe a fiscalização do trabalho, para garantir que as necessidades solicitadas ao setor produtivo estão sendo bem atendidas. Quando se tem uma superprodução, “se declare oficialmente a redução das horas de trabalho”. (MORVS, 2006, p. 513).93 Quando se busca produzir o que realmente possui valor de uso, evitando assim o desperdício ou futilidade, [...] se pode produzir muito e eliminar a necessidade. [...] Se eles fossem postos a trabalhar e se isso se fizesse em coisas úteis, facilmente nos daríamos conta do pouco tempo que seria necessário para produzir tudo o que racionalmente se poderia prever como indispensável ou que o conforto postula (ou até mesmo uma parte de prazer que seja admissível e natural); nessas condições haveria abundância e haveria sobras. [...]. Se todos trabalhassem, a carga horária diminui para todos. Havendo seis horas apenas para trabalhar, [...] esse tempo é suficiente para produzir bens abundantes que bastem para as necessidades e que cheguem não apenas para remediar, mas até sobrem. (MORVS, 2006, p. 507).94 Outro detalhe peculiar que Logan (1983, p. 214) destaca diz respeito à agricultura da Ilha. Tendo em vista a rudeza e as privações enfrentadas pela classe de agricultores, ela possui uma rotatividade a cada dois anos. Assim, ninguém é privado da vida na cidade, e a produção agrícola é garantida. 91 LAT110/ING111/FRA450/POR489. LAT130/ING131/FRA474. 93 LAT132/ING133/FRA478. 94 LAT128/ING129/FRA473. 92 55 O que garante que todos trabalhem o mínimo possível é que todos contribuem. Assim, não se sobrecarrega ninguém. A questão da ociosidade possui limites na Utopia e existe uma eterna fiscalização para evitar a preguiça. Outra questão á a inexistência de lugares dedicados aos vícios, como tabernas, prostíbulos, entre outros lugares de corrupção e de encontros secretos. Toda atividade misteriosa, oculta e fora do conhecimento de todos é mal vista, pois “cada um sente necessidade de ficar à mercê dos olhares de todos, de se entregar ao trabalho costumado, ou de admitir uma folga de trabalho que seja repouso honesto.” (MORVS, 2006, p. 527)95 T.M. afirma que, ao aplicar esta forma de distribuição de trabalho, em que havendo mais pessoas trabalhando se trabalha menos, a consequência é a abundância de todos os bens, distribuídos equitativamente, condição esta longe da sua realidade do século XVI. No que se refere à igualdade entre gêneros, o que diferencia o trabalho entre homens e mulheres se encontra limitado principalmente pelas suas condições físicas.96 A autonomia da mulher utopiana é considerável e não há distinção quanto à educação de meninos ou meninas. “Na Utopia os sexos não são apenas duplicatas, e suas funções são cuidadosamente distintas. Mas, nas áreas mais importantes da vida, naquelas conectadas com realização moral, existe absoluta igualdade.” (BAKER-SMITH, 1991, p. 167). 2.5 A matéria do prazer O estabelecimento da ordem social, bem como a equidade na justiça dos bens, caracteriza, para os utopianos, a matéria do prazer como designação de todos iguais diante dos bens, direitos e deveres. Desse modo, a vida do prazer inclui a política da partilha dos bens. O sistema utopiano para a distribuição de comodidades foi implantado por Útopos, que transformou o povo rude e selvagem em uma excelência maior que os demais povos do mundo, e, ratificado pelo próprio povo, criou uma lei para impedir que os políticos mudassem o estado do bem-estar público. (SURTZ, 1957a). 95 LAT144/ING145/FRA494. Mais uma vez, notamos características platônicas, referentes à igualdade sexual, estendidas aos guardiões no campo de batalha, cujo efeito é aumentar a resistência ao inimigo, pois se trata de uma grande desgraça retornar sozinho sem o companheiro ou companheira do campo de batalha. 96 56 De acordo com as considerações de Surtz (1957a, p. 39), T.M. reconhecia que as leis que devem ser observadas cuidadosa e escrupulosamente são aquelas que tratam com a partição e as comodidades da vida, ou seja, a substância do prazer. T.M. considera [...] que há que respeitar não só os contratos celebrados entre privados, mas também as leis públicas que por comum acordo foram aprovadas, tenham elas sido promulgadas segundo a justiça por um príncipe ou tenha sido o povo a fazê-lo, contanto que não seja sob a opressão de um tirano nem devido a processo fraudulento, desde que esteja em causa a repartição de facilidades de vida, que o mesmo é dizer, matéria de prazer. (MORVS, 2006, p. 549).97 Assim sendo, o prazer tem sua matéria no bem-estar dos habitantes. Para Surtz (1975a, p. 153), o fato de que os utopianos visualizarem as comodidades de vida como matéria do prazer é extremamente importante para a compreensão da sua adoção e manutenção da forma comunista de governo, já que aconselham e incentivam os homens a viver uma existência feliz e livre de preocupações e a ajudarem os demais a uma existência similar. Numa sociedade utopiana não há falta que caracteriza valor numa sociedade capitalista. Onde não há propriedade o bem público assume o controle. Aqui, pelo contrário, como nada existe que seja particular, é o bem público que se toma a peito. Ora, aqui, em que tudo é de todos, até porque há o cuidado de manter os celeiros públicos abastecidos, ninguém tem dúvidas de que não virá a faltar nada do que seja necessário na vida privada. De facto, não há distribuição malevolente das coisas nem alguém passa necessidade nem anda na mendicidade e, embora ninguém seja dono de coisa alguma, nem por isso deixam todos de ser abastados. (MORVS, 2006, p. 549).98 A falta da matéria do prazer pode criar egoísmo, porque toda preocupação torna-se egoísta. “Certamente [...] quantos são os que não sabem que, se não se puser alguma coisa de lado que lhes venha a ser útil, mesmo que o Estado viva em prosperidade, ficarão sujeitos a morrer de fome”. (MORVS, 2006, p. 665).99 Assim, a preocupação consigo se torna mais imperativa do que o bem-estar comum100. Essas questões são tratadas por T.M., que diz que, seja na cidade ou mesmo no campo, onde os habitantes vivem distantes uns dos outros, “nada falta para sua subsistência, tanto 97 LAT164/ING165/FRA518. LAT240/ING241/FRA621. 99 LAT240/ING241/FRA621. 100 Estabelece-se aqui, a lei da autossuficiência utopiana que, segundo Logan (1983, p.194), se deve mais à indústria dos seus habitantes do que às vantagens naturais do seu território. Estes defeitos sérios no território, que não encontram precedentes nos exercícios gregos de melhor governo e que também não se encontram nos análogos utópicos de Novo e Velho Mundo, foram incluídos, provavelmente, por considerações teóricas e podem refletir uma consciência aristotélica de T.M. sobre as limitações que o fato coloca na teoria. 98 57 mais que é dos campos que vêm os viveres com que se alimentam os da cidade.” (MORVS, 2006, p. 525).101 Há uma ordem social, com a contribuição de todos, dos citadinos aos campesinos. Para Surtz (1957a, p. 39), contanto que leis justas sobre a distribuição e propriedades sejam observadas e invioladas, os utopianos consideram correto cuidarem de seus próprios interesses e, mais ainda, cuidar dos interesses públicos também. Mas consideram totalmente injusto privar o prazer de outro em prol do seu próprio. Delegam a si, mutuamente, os utopianos, o cuidado do que é de todos, e o sentimento de participação da comunidade e dos bens e serviços que lhes são oferecidos. A comunidade utopiana não perfaz o seu percurso e apresenta historicidade por interesse de uma elite ou nobreza, mas pelo desejo de todos, pela vivência da partilha e da compreensão da condição social do outro. Desse modo, a matéria do prazer encontra sua vertente no campo social, na prática das leis justas e no entendimento de que uma sociedade racional acontece na equidade social, fazendo de todos responsáveis por todos. 101 LAT142/ING143/FRA493. 58 3 O DEVER-SER: EFETIVAÇÃO DA FILOSOFIA MORAL E POLÍTICA O “dever-ser” político utopiano inova as formas anteriores de sistema político. Curiosamente, incorpora uma série de modelos diferentes dentro de um único contexto. A pergunta que se compartilha com o leitor é: qual o sistema político que podemos atribuir aos utopianos? Seria democrático, pela eleição direta de funcionários públicos? Ou republicano, pela eleição indireta dos governantes? Ou aristocrático, pela meritocracia, em que somente os mais destacados pela sua erudição é que são escolhidos para ocupar posições de destaque? Ou ainda monárquico, pelo mandato vitalício dos seus governantes? Essas questões não são esclarecidas pelo autor, entretanto, ele parte do princípio de que é no governo que se estabelece a civilização da razão. Para T.M. “é do príncipe que promana, como de fonte inesgotável, o caudal de bens e de males para todo o seu povo”. (MORVS, 2006, p. 663).102 Sendo assim, cabe à autoridade moral e política, bem como à integridade dos seus funcionários, o bem-estar ou a ruína de uma comunidade. (MORVS, 2006). 3.1 O governo Uma questão extremamente perturbadora para T.M. se encontra logo no início do Livro Dois103, que trata da gênese da sua sociedade perfeita. O autor deplorava a violência, mas reconheceu que a sua Utopia só seria iniciada pela ação violenta de um conquistador, representado na obra pelo monarca Utopus. Dessa forma, é difícil de determinar como implantar uma utopia sem a imposição da vontade individual na coletividade. A desculpa de que seria para o bem dos habitantes conquistados não se justifica em T.M. e representaria um argumento ético muito consequencialista para a filosofia moral Utopiana. Se a implantação de uma sociedade utópica só se faz através da guerra, então a 102 103 LAT052/ING053/FRA373. MORVS p.489//LAT110/ING111/FRA450. 59 conquista e a implantação desta nova sociedade seguem o consequencialismo utopiano, que só se faz presente nos assuntos militares, ou seja, a única circunstância em que os utopianos praticam o consequencialismo, ou uma espécie de utilitarismo, que só viria a ser justificado por Stuart Mills104 séculos depois, o qual se daria quando se procurasse diminuir os agouros relacionados à atividade bestial que é a guerra. Dessa forma, um utopiano jamais declararia guerra a uma nação para implantar a sua filosofia política, mas, já tendo declarado-a por outros motivos, a implantação de um novo sistema político seria apenas uma consequência natural do vencer e da sua conquista. Sendo assim, aquele que implanta um novo governo deve ser um oportunista, um líder militar que aproveita a sua chance e obtém uma vitória militar, como a de Utopus sobre os Abraxans, enquanto eles estavam distraídos pelas suas próprias discussões religiosas. Ao invés de ser um rei no sentido tradicional, ele usou seu poder absoluto de conquistador para impor um sistema político que impede qualquer atitude que leve à tirania. O seu exercício de poder é de autonegação, pois ele libera o Estado para atender e cuidar do coletivo, ao invés dos interesses elitistas minoritários para que um novo início seja possível. “Na verdade, ele mistura o papel de autocrata e legislador105 para o estabelecimento bem sucedido de um estado ordenado.” (BAKER-SMITH, 1991, p. 152). Ele afirma que quando o poder supremo é combinado em uma pessoa com sabedoria e temperança, somente aí a natureza gera a melhor das constituições com a melhor das leis. Se há dissonância entre as ideias cristãs de governabilidade e a perspectiva política racional da Utopia, necessário compreender o processo de mudanças, o que não ocorrerá pacificamente. A melhor cidade só pode ser realizada por um governante absoluto (correto), que iniciaria por erradicar a ordem existente, instaurando uma nova perspectiva política. A primeira coisa que precisaria ocorrer era renovar a sociedade humana com seus hábitos e torná-la idônea para proporcionar uma República. Uma vez que este homem tenha poder e institua todas as leis e costumes necessários para o bem-estar social, estará promovendo uma revolução com o consenso popular.106 104 Expoente moderno do pensamento utilitarista ou consequencialismo. 105 Combinação que Platão reconheceu nas Leis como essencial. 106 Nas Leis, Platão afirma que qualquer forma de governo em que o poder supremo em um homem se une a um julgamento sábio e autolimitado, ter-se-á o nascimento do melhor sistema político, com as leis compatíveis. 60 Quanto à dinâmica da vida política social, a perspectiva moreana é de uma unidade federativa autônoma, mas interligada em sentido de cooperação. O governo central de Utopia é formado pela reunião de três delegados provenientes de cada uma das suas 54 cidades, que se reúnem em Amauroto,107 para tratarem dos interesses coletivos da Ilha. A finalidade desta reunião é tratar dos assuntos coletivos e promover a equidade econômica entre as regiões. Nessa perspectiva, T.M. acredita fazer da ilha uma só família, já que toda a comunidade mantém-se responsável pelo bem-estar dos demais. Na compreensão de governo republicano moreano, os funcionários públicos devem submeter-se a um processo seletivo que os perfazem como representantes dos demais: Cada trinta famílias elege, todos os anos, um representante que designam na sua primitiva língua por sifogranto e em língua mais recente filarco. A cada dez sifograntos, com as suas famílias, preside um traníboro na língua de antigamente, hoje chamado protofilarco. Finalmente, todos os sifograntos, que são duzentos, depois de jurarem que escolherão aquele que considerem mais útil, em votos secretos elegem como príncipe um de entre quatro que o povo tiver designado. De fato, cada um dos quatro bairros da cidade escolhe um representante para fazer parte do Senado. O cargo de príncipe é vitalício, e não pode ser destituído senão em caso de haver suspeita de propender para a tirania. Os traníboros ficam sujeitos à eleição anual, mas não são substituídos senão por motivo sério. Os restantes magistrados todos são anuais. (MORVS, 2006, p. 497).108 Outra característica do governo no horizonte da Utopia é a valorização dos conselheiros. T.M. afirma as vantagens de se ter um bom conselheiro que incite o governante a ter atitudes boas e justas para o benefício da população. Afinal, de um governante pode jorrar, como uma fonte inesgotável, tanto benefícios como malefícios para a sua população. De forma sutil, ele deixa entender que as pessoas providas de conhecimento e sabedoria deveriam ser os conselheiros de governantes. Esta posição fica clara depois de Rafael falar a respeito das suas viagens ao redor do mundo109 e da experiência que obteve de todas as suas vivências. Dessa forma, ele faz uma espécie de modelo para o conselheiro, uma pessoa conhecedora da diversidade humana pelo mundo e que saiba separar os conhecimentos sábios. 107 Amauroto foi estrategicamente escolhida por estar no centro da Ilha, porém, ela não é entendida como a “capital”, visto que todas as cidades são rigorosamente iguais, inclusive em importância. 108 LAT118/ING119/FRA462. 109 O livro insinua que o primeiro a fazer a circunavegação do globo seria Rafael Hithloday. 61 (MORVS, p. 407).110 T.M dá uma rica orientação neste sentido ao expor o pensamento de Rafael: [...] se eu me levantar mais uma vez e porfiar em dizer que se dão ao rei todos estes conselhos, mas que eles são desonestos e perniciosos e que não só a sua honra, mas até a sua segurança está mais nas riquezas do povo do que nas suas, se eu demonstrar que os cidadãos escolhem um rei para seu bem e não para bem do rei, ou seja, com o objectivo de viverem tranquilamente no seu trabalho e nas suas preocupações, livres de serem maltratados, e que por isso ao príncipe pertence, sobretudo, cuidar que o seu povo esteja em bem, mais do que ele mesmo, como é próprio do ofício de pastor que, como tal, deve apascentar as ovelhas mais do que a si mesmo. (MORVS, 2006, p. 465).111 Nos conselhos de como governar, T.M. (2006, p. 465)112 expõe que “a majestade de um rei exige que ele exerça o poder não sobre mendigos, mas sobre um povo de homens abastados e felizes”. Como já foi exposto, T.M. define o prazer e a felicidade como formas citadinas de vida. Por isso alguém nadar em prazeres e em delícias enquanto outros só vêem gemidos e lamentações à sua volta, não é próprio de um reino, mas de uma prisão. [...] assim aquele que não sabe corrigir a vida dos cidadãos senão tirando-lhe o conforto da vida, está a confessar que não sabe mandar em homens livres. (MORVS, 2006, p. 465).113 Sobre o governo, tendo como base critérios de governabilidade no âmbito da filosofia moral e politica, T.M. assim se expressa: [..] havia o rei de dedicar-se ao reino dos seus pais, criar nele a maior prosperidade possível, torná-lo o mais florescente de todos; ter amor pelos seus e ser por estes retribuído, viver em unidade com eles, exercer o poder com brandura e deixar os outros reinos prosperarem, uma vez que aquilo que agora lhe coube é já mais que suficiente. (MORVS, 2006, p. 459).114 Assim, a ganância do rei seria não o de ampliar desmesuradamente o seu reino, vindo a escorraçar-se depois, mas de possibilitar qualidade e excelência aos seus súditos. Dispor de povo numeroso demais para ser governado não é uma lição idônea para provar a força e o poder daquele que governa, mas, sim, as condições que garanta a todos uma mesma condição social. 110 LAT048/ING049/FRA369. LAT090/ING091/FRA426. 112 LAT092/ING093/FRA426. 113 LAT092/ING093/FRA426. 114 LAT086/ING087/FRA421. 111 62 Superados os empecilhos de um bom governo, quando este compreende a razão como elemento imprescindível para estabelecer o bem-estar entre os súditos, T.M. determina o equilíbrio e a manutenção financeira na sociedade utopiana. A denotação comunista de T.M. garante a sobrevivência de todos os cidadãos, como também a prosperidade financeira. É uma inovação no campo da colheita, do mercado e da política de crédito, que é determinada pela administração transparente e pelo estabelecimento do patrimônio social. Outra designação financeira é a que T.M. apresenta quando garante ao cidadão um mercado econômico que não suprime o bem-estar, mas afiança a todos as condições necessárias para sobreviver. Assim expõe T.M.: Existe o costume de deixar parte dos recursos na própria cidade, pois consideram que não seria justo retirar a quem se serve daquilo que para eles não teria qualquer utilização. Quanto ao mais, se a situação o exigir, como é quando há que emprestar essa parte a outro povo, então, exigem-na, ou, pelo menos, quando há que desencadear uma guerra, pois é só para esta situação que guardam em casa todo esse tesouro que possuem e que lhes serve de apoio em casos extremos ou imprevistos, sobretudo para contratar mercenários [...]. (MORVS, 2006, p. 529).115 T.M. orienta o rei a não acumular riqueza pessoal quando isto trouxer miséria para o povo. Ele insiste em dizer que “de fato, este capital afigurava-se bastar, quer ao rei para se opor a qualquer rebelião, quer ao reino para combater incursões inimigas. De resto, era insuficiente para incentivar ambições alheias.” (MORVS, 2006, p. 469).116 Garantindo a circulação de dinheiro para as transações diárias dos seus súditos e sendo obrigado a compartilhar com a população o excedente do que possuía acima do estipulado pela lei, “não haveria ele de buscar violar a lei. Tal rei seria odiado pelos maus, mas apreciado pelos bons.” (MORVS, 2006, p. 469). 117 A orientação observada é que a questão financeira não deve levar a destruição, mas proporcionar a todos segurança e comodidade. Por outro lado, T.M. (2006, p. 469)118 admoesta a fim de que o armazenamento de ouro e prata seja para a finalidade de gastar com 115 LAT146/ING147/FRA497. LAT094/ING095/FRA429. 117 LAT094/ING095/FRA429. 118 LAT206/ING207/FRA574. 116 63 gastos emergenciais e para financiamentos bélicos, de modo que a política de aprovisionamento não deve ser o empenho vital, impossibilitando a viver mais à vontade. O acumulo de riquezas em ouro e prata pelo Estado, numa sociedade que é praticamente autossuficiente e possui um sistema comunista, parece fora de propósito, mas é facilmente compreendido que os metais valiosos representam uma segurança nacional, pois é livremente usado para a guerra quando o Estado precisa defender seus interesses, seja para corromper inimigos ou contratar mercenários. Os utopianos não se importam empenhá-los, tanto mais que não passariam a viver menos à vontade, mesmo que aplicassem todo o aprovisionamento. (MORVS, 2006, p. 469). 119 A guerra, no contexto utopiano, é exceção à sua regra moral em geral. Longe de seguir a teoria da virtude, eles antecipam o consequencialismo que só viria séculos depois.120 BakerSmith (1991, p. 183), analisando a Utopia, acrescenta que é no seu trato com a guerra que os utopianos são mais problemáticos. Apesar de desprezarem o ouro e a riqueza, eles fazem farto uso destes bens contra o inimigo. A guerra, eles a consideram uma atividade subumana; não há glória na guerra. Existe uma atitude anticavalheiresca, pois, sob todos os aspectos, a prática de guerra utopiana viola todas as convenções mantidas pela ideologia do cavalheirismo. Nos seus estratagemas mais sutis, eles usam a mais incavalheiresca de todas as armas: o dinheiro. Na perspectiva consequencialista de Utopia, no trato da guerra, T.M. orienta que os utopianos visem apenas a uma coisa na sua ação bélica: [...] obter aquilo que pretendem; aliás, se o tivessem antes conseguido, isso teria evitado a declaração de guerra. Quando a natureza do conflito não permite composição com os inimigos, eles reclamam vingança tão cruel sobre aqueles a quem imputam o acontecido que o terror lhes retira 119 LAT206/ING207/FRA574. Logan (1983, p. 215) chama a atenção para o fato dos utopianos serem radicalmente diferentes dos teóricos gregos, especialmente de Platão, na sua visão sobre a guerra. Platão considerava a guerra entre as cidades gregas como uma infeliz briga interna e doméstica [...]. Todos os que não eram gregos eram considerados inimigos naturais a serem conquistados. Em qualquer tipo de guerra, quem se destacar na batalha merece recompensas gloriosas. Aristóteles, por sua vez, no livro Politica, não possui o entusiasmo de Platão para a guerra, e observa que ela não é um fim em si mesmo, mas um meio para a boa vida. Os motivos gregos que levam um homem a se tornar um soldado, Logan (1983, p. 215) explica: “O treinamento militar não é feito para escravizar homens que não merecem tal fatalidade e os seus objetivos deveriam ser: primeiro, impedir homens de um dia eles mesmos serem escravizados; segundo, colocar homens numa posição de exercer a liderança. Liderança esta, direcionada aos interesses dos conduzidos, e não o estabelecimento de um sistema geral de escravatura; e, terceiro, possibilitar homens a se tornarem senhores daqueles que naturalmente merecem ser escravos (i.e. não-gregos)”. Logan lembra outro teórico de cidade-estado chamado Maquiavel, que diz: “quando é absolutamente uma questão de segurança do nosso país não há consideração de justo ou injusto, piedoso ou cruel, de elogios ou desgraça.” (LOGAN 1983, p.235). 120 64 capacidade de voltarem a cometer ousadia semelhante. Tais são os objectivos que se propõem e que procuram obter rapidamente, sem, no entanto, descuidarem evitar perigos inúteis, de preferência a andarem atrás de loas e de fama. (MORVS, 2006, p. 611).121 Para Logan (1983, p. 221), mesmo detestando a guerra, os utopianos guerreariam para proteger seu próprio território, expulsar um inimigo da terra dos amigos, livrar um povo da tirania e obter território para colonização. Os utopianos justificam suas guerras coloniais com as leis naturais. Eles consideram uma causa justa para a guerra a recusa de promover a reforma agrária por parte de nações vizinhas.122 Baker-Smith (1991, p. 184) nos revela uma questão muito controvertida que envolve tanto a guerra quanto os recursos financeiros: o uso de mercenários pelos utopianos. Ao contrário da sua valorização pela vida, os utopianos desprezam completamente a vida dos mercenários que contratam para a guerra. Outro ponto significativo, levantado por Logan (1983, p. 197), é que nos assuntos militares a República apresentou um precedente quanto ao costume dos soldados utopianos de serem acompanhados pela sua família no campo de batalha, uma prática justificada pelo fato de que qualquer animal luta melhor na presença de sua cria. Baker-Smith (1991, p. 184) completa descrevendo as forças utopianas, as quais são compostas por uma milícia civil, que comporta ambos os sexos, e organizadas em grupos familiares para aumentar a intensidade da resistência.123 Até mesmo a criação de grupos de extermínio, que visam a autoridades estrangeiras durante a guerra, mostra claramente como eles incorporam o poder da razão nas aplicações bélicas, perseguindo um objetivo coerente por todos os meios ao seu poder, até alcançá-lo. Os utopianos fazem um contraste com o modo de guerra europeia, por este ser baseado em exércitos, na sua maior parte, profissionais, repleto de elementos cavalheirescos. Para os utopianos, que não possuem nenhum senso de honra nos assuntos de guerra, o sucesso é a única preocupação. Tirando todos os elementos cavalheirescos, o que sobra é a vontade inquebrantável de conquistar o inimigo. 121 LAT204/ING205/FRA573. 122 Postura que justificaria hoje as invasões de terra promovidas pelo MST, no Brasil, buscando uma reforma agrícola. 123 O ideal socrático, presente na República, de pais, irmãos, filhos e mulheres, moldados juntos numa força irresistível, é, certamente, a origem do arranjo utopiano. 65 T.M. defende que não há sentido numa guerra para o enriquecimento, visto que o preço seria excessivo. Os utopianos consideram loucura, como também vergonhoso, qualquer vitória cruenta, preferindo a astúcia derivada da razão, pois, [...] se alcançam uma vitória encurralando os inimigos por habilidade e engano, então celebram o acontecimento a grandes gastos e organizam um triunfo público, levantando os troféus como se nisso estivesse envolvido um acto de bravura. Só nessas circunstâncias se gabam de terem actuado como homens e terem procedido com valor; fazem-no todas as vezes que vencem desse modo, dado que nenhuma criatura, com excepção do homem, o poderia fazer, já que implica forças de inteligência. De facto, explicam, com as forças do corpo, lutam os ursos, os leões, os javalis, os lobos, os cães e outras feras, que na sua maior parte nos ultrapassam pela força e pela ferocidade, mas todas são vencidas pela inteligência e pela razão. (MORVS, 2006, p. 611).124 Para Logan (1983, p. 222), a Utopia mostra que todo assunto referente à guerra foge de todo e qualquer sistema moral de igualdade e parece que, por se tratar de algo tão bestial, envolve outro sistema moral: o consequencialismo, que visa aos resultados. Observa-se que os resultados que são buscados seguem rigorosamente o princípio de que, se não há como impedir o mal, que se minimizem os seus danos o máximo possível. Há, portanto, um caso de confronto entre a deontologia do cavalheirismo europeu e o consequencialismo utopiano. Atos impensados aos cavalheiros numa guerra seriam feitos tranquilamente pelos utopianos visando a alcançar os resultados buscados. Como já citado, os utopianos em geral são extremamente desprovidos de cavalheirismo medieval125, e mesmo a contragosto atribuem um valor inferior à vida de todos os demais povos, inclusive a dos seus aliados.126 Na hierarquia bélica dos combatentes envolvidos nas contendas dos utopianos, os mercenários serão os primeiros sacrificados. Havendo necessidade de mais soldados, eles 124 LAT204/ING205/FRA570. Chivalry. 126 Talvez seja mais adequado afirmar que os utopianos colocam a vida dos seus acima de todos os demais. Para Logan (1983, p. 215), os utopianos desconhecem os conceitos de inimigos e escravos naturais e consideram que a guerra é uma atividade boa somente para animais e a encaram com a mais absoluta aversão. Eles consideram infame a glória alcançada em guerra. Estas atitudes, que derivam dos estoicos, seguem o conceito de uma fraternidade humana universal que os utopianos, tanto quanto os estoicos, derivam da razão. Quando os utopianos são obrigados a guerrear, suas táticas são governadas por considerações humanitárias que os estoicos aplicariam a todas as guerras, mas que Platão restringe a disputas internas e domésticas. Platão se opõe à prática de devastar as terras e queimar as casas de inimigos gregos; da mesma forma, os utopianos não arrasam o território do inimigo ou queimam sua colheita. Assim como os guardiões platônicos não consideravam a população como seus inimigos, mas somente a minoria responsável pela briga, os utopianos sabem que gente comum não vai para a guerra por sua própria escolha, mas pela loucura dos governantes. T.M. aceita alguns princípios dos teóricos gregos, mas refina estes princípios formulando mais precisamente a relação entre as metas do indivíduo e as metas da comunidade e, por reconhecer a inevitabilidade destes conflitos, aplica o método do cálculo de prazer da ética epicuriana para a solução de tais conflitos. 125 66 chamam aqueles para quem estão lutando a favor e, depois, as forças armadas dos demais aliados. Somente em última instância, adicionam um contingente de seus próprios cidadãos. [...] nem por isso os tomam à sua parte, a não ser para protegerem as suas fronteiras ou para escorraçarem os inimigos que tenham invadido os territórios dos aliados ou bem assim, quando levados por sentimento de comiseração, se propõem libertar da servidão e do jugo de qualquer tirano algum povo oprimido pela tirania (fazendo-o, aliás, por filantropia). (MORVS, 2006, p. 605).127 Os motivos que levam ao combate vão da defesa à retaliação, inclusive respondendo a ataques. Após minucioso estudo do caso e esgotados todos os recursos para uma solução pacifica e diplomática, a guerra é declarada. Tal decisão, porém, é tomada não somente de cada vez que uma pilhagem se fez mediante incursão armada, mas também, e nesse caso com sentimentos mais hostis, quando os seus homens de negócios, em qualquer povo, seja em razão de leis iníquas, seja por violação imperdoável de leis boas, são objecto de ataque, sob capa de justiça. (MORVS, 2006, p. 605).128 Buscando evitar a todo custo o envolvimento dos seus próprios cidadãos na contenda, quando se torna imperativa a participação de utopianos, esses se mostram inimigos intrépidos e determinados. A força do seu ataque aumenta com o passar do tempo, tornando-se mais obstinada. Apesar de valorizarem a vida, o sacrifício no campo de batalha só visa a um resultado: a vitória ou a morte. Isso se deve à absoluta tranquilidade que possuem em relação aos seus entes queridos que ficaram em casa, pois nenhum combatente se preocupa com os seus filhos, por saber que nada faltará caso um ou os dois genitores sejam abatidos no campo de batalha. “A sua perícia da disciplina militar gera intrepidez; enfim, a mentalidade em que foram formados (com doutrinas com que se foram imbuindo desde a infância e com boas práticas coletivas) acrescenta maior coragem” (MORVS, 2006, p. 623).129 O preparo de um combatente utopiano vem de muitos anos de treinamento, cada um, especializado na sua arma. Diferentemente dos europeus da sua época, os utopianos naturalmente investem parte do seu tempo livre em exercícios marciais, preparando-se para a remota possibilidade de se envolverem em combate. 127 LAT200/ING201/FRA566. LAT200/ING201/FRA566. 129 LAT212/ING213/FRA581. 128 67 Os camponeses Ingleses também eram estimulados no período medieval a se exercitarem em atividades marciais; a diferença é que eles tinham quase certeza de que iriam participar de excursões militares tão logo chegassem a primavera e os campos semeados. Os governantes e nobres europeus usavam livremente seus próprios cidadãos no campo de batalha, a ponto de que a mortandade decorrente de guerras, que duravam décadas, acabava por comprometer o fornecimento de mão de obra camponesa para as atividades agropecuárias. O contraste entre o alto preparo de um combatente utopiano e a remota possibilidade de participar de um conflito armado se faz com o camponês europeu, pouco preparado militarmente e com grandes chances de se envolver de fato num conflito. A visão utopiana sobre a guerra é o inverso da ética cavalheiresca do seu tempo, que desprezava a estratégia e honrava o derramamento de sangue.130 A arte da guerra utopiana, não cavalheiresca, tem como premissa a ideia de que a honra e a glória cavalheiresca e os métodos de guerras falsamente heroicos servem aos interesses de uma pequena classe de homens decadentes, todos corrompidos por costumes violentos, príncipes tirânicos e alguns dos seus nobres apoiadores. A estratégia utopiana segue um humanismo racional e o ódio à tirania, e usa qualquer meio que a razão pode criar para terminar uma guerra com vitória, mas com o mínimo de baixas tanto do inimigo quanto de si próprio. Só há um conflito nesta ética consequencialista utopiana quanto à minimização dos efeitos da guerra, pois sempre há [...] a intenção de eliminar a maior quantidade de mercenários possíveis, pois, há uma política de genocídio contra todos os mercenários, pois, não importa quantos eles perdem e consideram que seriam da maior utilidade para a raça humana se o mundo fosse aliviado desse povo abominável e ímpio. (LOGAN, 1983, p. 226). 3.2 O dever-ser da nobreza meritocrática T.M. reconhece a estrutura nobiliárquica de Utopia. Assim, ele descreve as diferentes funções existentes na comunidade e as suas funcionalidades. 130 Logan (1983, p.226) reflete que as táticas de guerra utopianas são perfeitamente consistentes com o pacifismo de humanistas da linha erasmiana. Estes humanistas estavam profundamente impressionados pela crítica estoica da ética marcial da Antiguidade, e eles rotineiramente aplicavam técnicas estoicas racionais que desbancavam visões cavalheirescas das táticas e glória marciais da Idade Média. 68 Assim, o serviço público constitui uma necessidade para a comunidade utópica, mas, ao contrário do costume europeu de associar cargos a pessoas de que se queira tirar algum proveito próprio, para quem delega estes cargos, o costume utopiano seria o exato oposto.131 Isso porque T.M. adverte que “aquele que anda a cata de uma magistratura só ganha frustrações com isso”. (MORVS, 2006, p. 597).132 Como os cargos são distribuídos de acordo com votação popular, secreta e universal, com base nos méritos e popularidade de cada candidato, que se encontra absolutamente proibido de fazer qualquer promoção pessoal ou sequer mostrar interesse no cargo, não é de se admirar que os candidatos sejam sempre pessoas de alta estima da população, repercutindo positivamente na relação com as autoridades. T.M. mostra claramente a enorme diferença destas relações na Europa e na Utopia: As relações com os magistrados são de convivialidade feita de amabilidade, e de facto nenhum deles é arrogante nem grosseiro; tratam-nos por pais e eles demonstram que lhes fica bem esse título; as homenagens são-lhes prestadas de espontânea vontade, não são impostas contra vontade. O próprio príncipe não se distingue dos outros cidadãos por trajar diferentemente ou usar diadema, mas por andar com um manipulo de espigas de trigo na mão, como é característica de um pontífice ser precedido por círios. (MORVS, 2006, p. 597).133 De acordo com pesquisas realizadas por Logan (1983, p. 151), um dos temas evidentes em T.M. é a educação. Isto porque, como um bom humanista, a formação do ser humano era uma prioridade na civilização utopiana. Desse modo, a educação caracterizava, acima de tudo, uma necessidade. Na perspectiva educativa, T.M., de acordo com Logan (1983, p. 200), afirma134 que não há necessidade de tantas leis para cidadãos bem educados, o que reflete, na sociedade utopiana, no fato de terem poucas leis, graças a uma população bastante educada. Para Baker-Smith (1991, p.190), a educação é um tema evidente em T.M. e, segundo o autor, como afirma Raphael, o declínio de um Estado sempre pode ser seguido de vícios que 131 Para Logan (1983, p.197), de Platão T.M. retira a regra de que aqueles que buscam funções públicas a desqualificam para tal. Isso pode ser encontrado no argumento de Platão de que “aqueles que são capacitados de governar, os verdadeiros filósofos, vão repudiar poder político enquanto que os moralmente inferiores sempre vão ter a esperança de alguma compensação da sua própria inadequação de uma carreira política.” 132 LAT194/ING195/FRA558. 133 LAT194/ING195/FRA558. 134 E neste ponto se assemelha a Platão. 69 surgem de atitudes errôneas. Educação, na Utopia, é uma questão de política nacional, e a formação dos jovens, uma função desprezada na Europa, é atribuída, na Utopia, à categoria mais reverenciada na comunidade, os sacerdotes. Há um clima científico na Utopia, que caracteriza uma condição moral e política. Baker-Smith (1991, p. 181) ressalta que a vida intelectual utopiana é direcionada a três áreas distintas: a primeira é cientifica, no sentido prático: os ilhéus são observadores habilidosos do mundo natural, tanto do ambiente imediato quanto dos céus e, junto com o interesse em medicina, ambas as ciências contribuem para o bem-estar físico; a segunda, com seus debates sobre filosofia moral, é direcionada para a saúde espiritual; e a terceira pode ser resumida como especulativa ao invés de prática, e leva em direção à teologia natural. Para Surtz (1957a), a estrutura da sociedade quanto à questão de função educacional se divide em três classes de estudantes: a primeira, os profissionais, pessoas que se destacam nas suas atividades profissionais ou de conhecimento e que são isentas de todas as outras tarefas, a fim de se dedicar ao estudo; na segunda, estão todas as crianças em idade escolar, porque a educação é universal e compulsória na Ilha; e a terceira constitui-se de uma boa parte da população adulta, que se dedica ao estudo e à leitura quando nas suas horas de folga. Este envolvimento pelo estudo condiz com sua filosofia do prazer, pela sua convicção de que os prazeres da alma são superiores aos do corpo, e por estarem persuadidos de que, entre os prazeres da mente, a contemplação da verdade traz verdadeiro deleite. O povo como um todo é incansável na sua busca intelectual. Literatura é objeto de amor, porque é a fonte de grande prazer. Há um enorme contraste com o desdém para o estudo da nobreza europeia, conforme explicitado anteriormente. Na perspectiva de Logan (1983, p. 200), a educação utopiana tem diversos aspectos. Um deles é a preocupação tanto pela moral e virtude, quanto pelos avanços no aprendizado. O processo educacional utopiano se compunha de treinamento militar para todos os cidadãos, e os jogos se mantinham presentes nas etapas educativas, caracterizando-se como uma parte delas. Quanto à questão da filosofia moral utopiana, a educação ensina as crianças a fazerem distinção entre os verdadeiros e os falsos prazeres, dando preferência aos primeiros. Segundo Logan (1993, p. 200), T.M. afirma que: “não há necessidade de tantas leis para cidadãos bem 70 educados, o que reflete na sociedade utopiana o fato de terem poucas leis, graças a uma população tão educada”.135 T.M. comenta a respeito da necessidade de instituições assegurarem que os cidadãos desenvolvam e mantenham um padrão de comportamento necessário para a realização e preservação das metas da política racional. Da mesma forma, comenta a respeito da natureza particular destas instituições, que constituem um sistema de educação formal; da proibição legal de certas formas de mau comportamento; de uma rede de reforços positivos e negativos para encorajar um comportamento apropriado; e de um sistema de justiça criminal. Para Logan (1983, p. 202), este controle social, além das proibições legais, envolve uma multidão de reforços positivos e negativos para encorajar o bom comportamento e desencorajar o mau. Estes dispositivos, desenvolvidos para afetar o comportamento por um apelo às emoções, refletem a concepção de que a natureza humana inclui um enorme elemento não racional.136 T.M. reconhece a importância da lei para o bom governo, acompanhada do efeito educacional que dispõe do indivíduo para melhor manuseio e, consequentemente, o deixa mais disposto ao cumprimento das leis. Por isso, na comunidade utopiana, de acordo com reflexões de Logan (1983, p. 202), “o dirigente deve elogiar e recomendar alguns cursos de ação e censurar outros, e em toda área de conduta ele deve assegurar que qualquer um que desobedecer é desgraçado”. Um traço humanista se faz mister em T.M., quando se observa seu interesse para com a educação moral e o ensinamento das virtudes. O autor prioriza o conhecimento que se deve ao homem ligado à formação do homem integral. Aqui, encontra-se a validade de uma reflexão da postura filosófica moral e política, quando a civilização utopiana, além do conhecimento das letras, traz inclinação ao conhecimento da formação ética e política, fornecendo instrumentos para a construção de uma nova sociedade. Para tanto, assim se dirige T.M.: Ministram eles instrução a crianças e jovens: prioridade é conferida não às letras, mas à moral e à virtude, pois colocam o máximo de diligência em instilar desde cedo no ânimo das crianças, ainda tenras e moldáveis, bons 135 Quando se trata de um bom governo, a educação ganha no cenário grego um tema evidente. Um exemplo disto é que Platão e Aristóteles dedicam mais espaço à educação do que a qualquer outro tópico nos seus exercícios sobre o melhor governo. 136 T.M. pode ter derivado seu interesse de controle social de Platão que explora a questão nas Leis. 71 princípios que sejam úteis para manter a comunidade humana; se esses princípios tomarem assento em profundidade nas crianças, hão-de acompanhá-los, quando homens, por toda a vida e hão-de ser de grande utilidade para o Estado (cuja ruína começa com os vícios que surgem de princípios deturpados). (MORVS, 2006, p. 651).137 Em estudos realizados por Surtz (1957a, p. 78), observa-se que a educação cuidadosa das crianças é responsável pelas boas ideias dos utopianos. Uma vez implantados na criança valores verdadeiros, estes permanecerão por toda a sua vida e serão proveitosos para a defesa e manutenção do Estado. Assim, dentro de um cenário renovador da civilização utopiana, observa-se o quanto a educação apresenta sentido e validade, garantindo equidade entre os homens. T.M. está além de seu tempo quando percebe que o acesso ao saber garante ao homem seu espaço social. Desta forma, Surtz (1957a, p. 151) revela a preocupação utopiana com formação das crianças enquanto garantia para a formação do Estado. Os utopianos perpetuam a verdade entre crianças e adultos, em parte por educação e em parte por boa literatura e aprendizado. Esta reflexão decorre da própria percepção que o texto de Utopia expressa quando Raphael não hesita em responder que os utopianos formam suas ideias corretas tanto pela educação, quanto pelo gosto do aprendizado e da boa leitura. “A diferença entre elas está no fato de que a educação se aplica à disciplina e ao treinamento, ao passo que o aprendizado abraça especialmente o conhecimento advindo de aulas, palestras ou livros.” (SURTZ, 1957a, p. 78). Quanto à questão da filosofia moral utopiana, a educação ensina as crianças a fazerem distinção entre os verdadeiros e os falsos prazeres, dando preferência aos primeiros. Pois, conforme anteriormente explicitado, cidadãos bem educados necessitam de poucas leis”.138 T.M. deixa claro que “entre as suas leis mais antigas se conta a de que ninguém pode ser desconsiderado por causa da sua religião”. (MORVS, 2006, p. 541).139 Uma única pena é prevista em lei, que é justamente para resguardar a estabilidade familiar tão importante nesta civilização comunista, pois os que a rompem, traindo o vínculo matrimonial, são punidos com a servidão mais grave. Quem se entregar a um envolvimento íntimo antes do casamento é 137 LAT230/ING231/FRA606. Quando se trata de um bom governo, a educação ganha no cenário grego um tema evidente. Um exemplo disto é que Platão e Aristóteles dedicam mais espaço à educação do que a qualquer outro tópico nos seus exercícios sobre o melhor governo. 139 LAT220/ING221/FRA594. 138 72 punido com o impedimento de casar, e isso é considerado uma grande vergonha para o malfeitor e principalmente para a família, que é acusada de não saber educar o membro adequadamente nos costumes dos ilhéus. Existe uma questão a ser destacada: [...] se uma das pessoas lesadas, apesar de a outra parte não o merecer, persistir em afecto por ela, não lhe está vedado permanecer fiel à lei do matrimônio, aceitando acompanhar o culpado nos trabalhos a que for condenado; acontece, por vezes, que o arrependimento de um e o acompanhamento empenhado de outro, ao induzirem o príncipe a ser indulgente, conseguem restituí-los de novo à liberdade. Porém, ao que volta a cair em falta, a pena de morte é o castigo a ser infligido. (MORVS, 2006, p. 541).140 Os utopianos são mais severos nos castigos com os próprios ilhéus do que com os estrangeiros, visto que todos tiveram acesso à educação de melhor qualidade; por isso, não pode alegar desconhecimento das leis e costumes, além de terem tido melhores condições de desenvolver o seu caráter. Quando se aborda a temática das leis na Utopia, não podemos esquecer a eficácia e aplicabilidade do sistema penal. T.M. deseja que o corpo legal tenha como função deter o crime, reformar e reabilitar o criminoso e reparar o mal que fora acometido a alguma vítima. (LOGAN, 1983). Nesse contexto, segundo Baker-Smith (1991, p. 110), estabelece-se como meta no sistema penal utopiano destruir os vícios, mas salvar os criminosos. Na Utopia, todos os criminosos são escravos, entretanto, o contrário não se dá. A distinção se faz nos termos atribuídos a estes: servus e famuli. Os servus, tratados como subumanos, contempla: primeiro, criminosos utopianos que recebem a forma mais severa de penalidade, pois as suas educação e criação são motivos suficientes para evitar o erro; segundo, prisioneiros de guerra, já que os Utopianos consideram criminosas as pessoas que lutam contra eles, por isso fazem cumprir pena na Ilha141; e, terceiro, os condenados à morte noutros lugares e comprados pelos utopianos estão cumprindo penas judiciais. Os famuli consistem de voluntários estrangeiros que, por sua vontade própria, decidem oferecer a sua mão de obra aos utopianos; estes são recebidos como trabalhadores e vivem livres. Dessa 140 LAT190/ING191/FRA554. Convém a observação de que os utopianos só escravizam prisioneiros de guerra capturados nos conflitos em que eles próprios participavam. 141 73 forma, a escravidão é encarada primariamente como uma condição penal, embora, para os estrangeiros que são voluntários, ela possa se tornar benevolente. Os escravos rebeldes são executados, mas, para os verdadeiramente arrependidos, sempre há esperança de perdão em troca de penitência sincera. Neste aspecto, o sistema penal é reformativo, ao invés de punitivo, e é um grande avanço em relação à prática europeia. A exceção se faz aos prisioneiros adquiridos no estrangeiro, e sua reabilitação pode ser menos garantida. No caso dos prisioneiros de guerra, estes, de todos, são os que menos são reabilitados. (BAKER-SMITH, 1983). Um castigo severo infligido ao seu concidadão é um excelente objeto de lição para os utopianos, que preferem a escravidão à morte como castigo. O exemplo do escravo dura mais tempo para deter outros de crimes semelhantes. No caso de uma ofensa severa, é vantajoso, para a moralidade pública, que o castigo seja efetuado publicamente142. O sistema criminal utopiano proporciona a severidade do castigo ao grau de hediondez do crime. Criminosos incorrigíveis são executados como bestas indomáveis, que não podem ser contidas por prisão ou corrente.143 3.3 O dever-ser da plebe A constituição de uma nova civilização carecia de cidadãos capazes de renovar as estruturas atrasadas, corruptas e decadentes da velha Europa. Como um exímio humanista, T.M. pretendia fazer dos utopianos homens fortes e vigorosos, pois assim deveria ser a nova sociedade criada por ele. T.M. mesmo dá uma descrição dos habitantes, mostrando que: [...] de corpo, são eles destros e robustos, de forças maiores do que a estatura deixaria prever, ainda que ela não seja baixa. O seu solo não é uniformemente fértil nem o clima é dos mais salubres, mas eles protegem-se contra a temperatura mediante um regime alimentar apropriado, e com tal solicitude cuidam da terra que em nenhum outro lugar haverá colheitas e rebanhos mais reprodutíveis, nem corpos de homens mais vigorosos e menos atreitos a doenças. Assim, poder-se-á admirar a diligência com que executam os trabalhos que habitualmente fazem os lavradores, de tal modo que não só uma terra um tanto ingrata por natureza é melhorada pela sua habilidade e pelo seu trabalho. (MORVS, 2006, p. 565).144 142 A concepção didática do castigo é encontrada na obra platônica Leis. Como também recomenda Platão nas Leis. 144 LAT178/ING179/FRA538. 143 74 Quanto à forma de se organizarem, T.M. apresenta um modelo novo de cidadão e uma nova dimensão de sociedade. Por isso, acrescenta: “É um povo acolhedor e alegre, inteligente, que gosta do lazer, bastante sofrido nos trabalhos braçais a que se entregam. De resto, aliás, é comedido nas suas ambições, infatigável em se entregar ao trabalho do espírito.” (MORVS, 2006, p. 567).145 Uma preocupação igualmente humanista, e que retrata a preocupação moreana com a condição dos utopianos, é o tratamento dado àqueles que se caracterizavam como excluídos ou discriminados socialmente. Assim, adverte ele que: Troçar de um homem disforme ou estropiado é tido como torpe e baixo, não por aquele que é posto em troça, mas por quem assim o faz, pois lança estultamente em rosto a um infeliz, como se fosse uma falta, o que não está em suas mãos poder ser evitado. (MORVS, 2006, p. 595).146 Desse modo, condena toda forma de caçoar, rir e discriminar os desvalidos, como uma crítica à sociedade em que vivia. Os esquecidos e humilhados socialmente não existiam no contexto do reino e nem havia quem se preocupassem com eles. A paridade sexual na sociedade utopiana também era uma peculiaridade, visto que o espaço dado à mulher na Utopia era significativo, pois a ela era dada a mesma condição que aos homens, até mesmo a habilidade militar para com o combate. (MORVS, 2006, p. 605).147 Caracteriza isto, portanto, uma inovação para a sociedade tradicional do tempo de T.M. Baker-Smith (1991, p. 165) acrescenta ainda que o papel da mulher na vida utopiana pode ajudar a revelar alguma coisa do seu caráter único. Nota-se um traço marcadamente patriarcal no ordenamento da sociedade. Ao casar, as mulheres passam a conviver com os maridos no domicílio deles, e elas participam de tarefas mais leves, como tecelagem, trabalhos agrícolas, alimentação e cuidados maternos. Dentro da família individual, atendem aos seus maridos, assim como os jovens atendem aos mais velhos. No final de cada mês, as esposas fazem uma confissão de suas falhas aos pés do seu marido, como as crianças fazem aos pés dos seus pais, numa versão secular de uma tradição monástica. 145 LAT178/ING179/FRA538. LAT194/ING195/FRA557. 147 LAT200/ING201/FRA566. 146 75 Outra descrição significativa feita à população utopiana, além da condição social feminina, era a realidade do idoso e de funcionários públicos. Para Logan (1983, p. 212), embora não haja exceções à regra comunitária, para idosos e alguns funcionários públicos são permitidos certos privilégios, como: a isenção de trabalho manual, a preferência de alguns assentos de oficiais e idosos nas refeições em comum e a distribuição dos melhores quitutes aos mais idosos. Tudo isso serve apenas para destacar a autoridade destes grupos, conferindolhes um destaque. Na hierarquia familiar, “é ao mais idoso que compete chefiar a família”. (MORVS, 2006, p. 517).148 Todos na família devem obediência ao parente mais antigo, a não ser que, por senilidade, ele tenha perdido faculdades, situação em que é substituído pelo que vem a seguir na idade. Isto tem como resultado possibilitar aos membros mais responsáveis de uma comunidade assegurar o comportamento correto dos menos responsáveis. Desse modo, o contexto social, quanto ao povo que habita a ilha, não é complexo, revelando o desejo de T.M. de estabelecer uma sociedade sem burocracia e pautada nos critérios e valores cristãos. É também uma crítica ao modelo europeu de burocratismo e de corrupção institucional. Numa análise da constituição familiar de Utopia, Baker-Smith (1983) ressalta que os utopianos praticam a monogamia, e o seu código legal apóia essa prática de forma enfática.149 Isso não é surpresa, pois, a unidade familiar é a base da sociedade utópica. Há, no entanto, costumes bem peculiares: Se tal costume para nós se torna objecto de riso e o censuramos por estulto, eles, pelo contrário, admiram-se de que haja uma estultice tão grande da parte de todos os outros povos a ponto de, quando se trata de comprar um potro, em que a operação envolve pouco dinheiro, serem tão cautelosos que recusam fazer negócio sem o verem em pêlo, depois de lhe retirarem a sela e depois de lhe arrancarem todos os adereços, não vá acontecer que debaixo das mantas se esconda alguma matadura, mas, quando se trata de escolher cônjuge, em que a situação é de ficar acompanhado, a gosto ou a contragosto, para um vida inteira, procedem com tamanha displicência que deixam todo o corpo encoberto pela roupa e avaliam a mulher no seu todo por um palmo mal medido (de facto não mais se vê que não seja o rosto) e trazem-na para junto de si sem terem em conta o perigo, que é grande (se só 148 LAT136/ING137/FRA482. 149 Existe uma grande divergência em relação à proposta platônica na República, em que a comunhão dos bens inclui a comunidade de parceiros. Entretanto, o costume de apresentar noivos nus uns aos outros antes do casamento possui paralelo nas Leis platônicas, em que o dançar nu preenche a mesma função. 76 derem com ele depois), de quadrarem mal um com o outro. (MORVS, 2006, p. 587).150 Todo utopiano sabe quem são seus filhos, mas as famílias nucleares são integradas nas famílias estendidas de cada casa, que, em regra, são ligadas por sangue. Estas casas, por sua vez, são integradas dentro de famílias maiores, encabeçadas pelos sifograntos (ou filarcos), o que resulta em a ilha inteira ser considerada como uma única família. Esta elaborada organização familiar é um dos meios pelos quais os utopianos se protegem dos possíveis efeitos nefastos do seu igualitarismo. Cada família contém entre 10 (dez) e 16 (dezesseis) adultos na cidade, e até 40 (quarenta) no campo. Sobre cada uma, preside o casal mais idoso, o paterfamilias e sua esposa. O magistrado mais baixo, chamado de sifograntos (ou filarcos), proporciona uma ligação entre a familiae de uma cidade e o senado. Existem 200 (duzentos) deles. Cada um é eleito por um grupo de 30 (trinta) famílias para servir por um ano. Das suas funções constitucionais, a sua principal tarefa é supervisionar o trabalho e evitar a preguiça. Outro papel é assegurar que o governo não perca contato com o cidadão. Os eruditos representam o grupo de onde são eleitos estes funcionários públicos. Os sifograntos (ou filarcos) possuem um papel primordial entre os dois extremos da constituição, limitando o poder do senado e proporcionando a oportunidade para a participação popular no debate. Quanto aos números da população: Existem 6 mil famílias com uma média de 13 adultos em cada cidade, isto é, 78 mil. Se isto é duplicado no campo, então cada Cidade-estado possui em torno de 156 mil adultos, e a Utopia possui 8 milhões e 424 mil adultos. Em 1516 a população de Londres era em torno de 60 mil e da Inglaterra 2 milhões e 300 mil, dos quais somente 300 mil residiam em cidades. (BAKER-SMITH, 2006, p. 196). T.M. redige uma série de orientações para a população utopiana, indo desde a quantidade de habitantes que devem compor a ilha, pois o número de habitantes de cada cidade deve ser mantido dentro da média predeterminada. Quando existem famílias excedentes ou deficitárias, pessoas são deslocadas para compensar. Se, no entanto, exceder o máximo estabelecido para a ilha, fundam-se colônias utopianas em terras estrangeiras, onde houver terra improdutiva. Convém escutar do próprio autor suas ideias sobre a reforma agrária: 150 LAT188/ING189/FRA550. 77 Se os donos originais aceitarem, ficarão todos unidos pelas mesmas instituições e pelos mesmos costumes, facilmente se fundem as populações em benefício de ambos os povos. Efetivamente, mediante as suas instituições, conseguem que aquela terra, que a outros pareceria ingrata e estéril, se torne fecunda para os dois povos. Quando os indígenas recusam as novas leis, expulsam-nos das fronteiras que eles próprios definem para si; contra os que opõem resistência recorrem à luta, pois consideram haver razões plenamente justas para uma guerra, quando qualquer povo implantado num território dele não se serve, mas apenas preserva a propriedade, deixando-o improdutivo e ao abandono, proibindo o seu uso e a sua posse a outros que por lei natural nele devem procurar subsistência. (MORVS, 2006, p. 515).151 No contexto das acomodações domiciliares, é interessante destacar sua padronização. O que pode diferenciar uma moradia da outra são os jardins, a única coisa de que eles podem sentir falta quando são obrigados a mudar de residência a cada dez anos. Podemos dizer que os jardins urbanos são o principal deleite dos cidadãos. Baker-Smith (1991, p. 160) alega que existe um aspecto simbólico nisto: o jardim representa a harmonia da arte e da natureza. Uma reconciliação da ordem com a fecundidade. Os jardins são simbólicos na própria Utopia, pois modificam o dano causado num jardim perdido anteriormente e o deleite na antecipação de um paraíso reconquistado. No decorrer da era humanista, o jardim persiste como o ambiente preferido para diálogos literários, como foi o diálogo que originou a Utopia, de acordo com a obra. (BAKER-SMITH, 1983). Quando se fala em moradia na Utopia, significa reconhecer o trabalho de quem produz na cidade. Característicos do trabalho na ilha são o esmero e o comprometimento com os resultados, e a construção civil não seria diferente. O capricho com o qual os prédios são levantados e a sua manutenção constante são típicos de uma sociedade na qual não há o comprometimento da qualidade por questão pecuniária.152 Deste modo, com um trabalho mínimo envolvendo uma manutenção constante, os edifícios utopianos são conservados por muitíssimo tempo, e os responsáveis pela construção civil dificilmente teriam trabalho a executar se não lhes fossem dadas ordens para o preparo antecipado de material para construção, como o corte e tratamento da madeira e o ajuste das pedras, para que, quando a necessidade surgir, caso ocorra alguma obra, ela possa ser construída rapidamente. (MORVS, 2006). 151 LAT134/ING135/FRA481. Na sociedade europeia, os custos envolvendo a manutenção das moradias muitas vezes estavam acima das condições dos moradores. O resultado é a degradação dos imóveis a ponto de inviabilizar o seu conserto, necessitando demolir para construir outro a um custo maior. 152 78 T.M. também fez uma série de orientações, voltadas para o vestuário utopiano, de maneira a revelar a condição em que cada habitante ocupa na ilha. As roupas são simples, porém confortáveis, e são produzidas por cada casa. Quando necessitam, por motivo de trabalho, usam artigos de couro, mas normalmente se vestem usando o linho e a lã sem tingimento, com a cor original do tecido. Assim, ele diz: “quanto ao linho, ele reclama menos trabalho e por isso o seu uso é mais frequente; mesmo assim, no linho só atendem ao candor, na lã apenas olham ao asseio, não levando em conta a delicadeza do fio.” (MORVS, 2006, p. 507).153 Dessa forma, evitam os exageros muito comuns na Europa do tempo do autor, em que nunca parecia haver o suficiente para se vestir: Em consequência disso, enquanto noutros lados por vezes se tornam necessárias para uma só pessoa quatro ou cinco togas de lã, de diversas cores, e outras tantas túnicas de seda (aliás, para os mais requintados nem dez bastam), aí qualquer um se contenta com uma apenas, a maior parte das vezes, para dois anos. Não há de facto razão alguma para andar em busca de mais para com elas se abrigar melhor contra o frio ou parecer mais bem vestido com uma nova peça ou com uma nova cor. (MORVS, 2006, p. 507).154 Lembre-se que os utopianos julgam o valor de todas as coisas de acordo com sua natureza e, já que roupas, por sua natureza, visam apenas à proteção e à modéstia do corpo, o que estiver acima disto não é natural. Portanto, o deleite nos exageros apenas demonstra o falso prazer. T.M. faz com que a roupa de todos os utopianos seja do mesmo corte, com exceção de masculino e feminino, solteiro e casado. Estas roupas persistem imutáveis através das gerações. São agradáveis a vista, ajustadas para o livre movimento do corpo e adaptadas para o frio e o calor. Enquanto que as roupas profissionais, feitos de couro, duram em torno de sete anos, as demais vestimentas duram por volta de dois anos155. A tradição cristã herdou dos hebreus uma predileção por um horário dispensado para a alimentação e sempre reservou especial atenção para as refeições. T.M., herdeiro desta 153 LAT132/ING133/FRA478. LAT132/ING133/FRA478. 155 “Os utopianos são como Lycurgus que, como Erasmus conta no seu Apophthegns, baniram a arte da tintura, pois, enquanto a cor prazerosamente engana a vista, a natureza da coisa é corrompida.” (SURTZ, 1957a, p.46). Surtz (1957a) continua afirmando que a única preocupação é com a limpeza do tecido, e nenhum valor é atribuído ao tamanho do fio. 154 79 tradição judaico-cristã, igualmente reconhecia a necessidade de prescrever orientação para os utopianos com relação à alimentação. Assim, T.M. explica que: [...] as refeições do meio-dia são bastante ligeiras, as do fim do dia são mais largas, pois às primeiras segue-se o trabalho, às outras sucede-se o sono e o descanso da noite, que é considerado de bom efeito para uma digestão que seja saudável. Não há jantar que passe sem música (58) e nunca falta uma sobremesa sem alguma guloseima. Queimam-se aromas e espalham-se essências, nada poupam que sirva para tornar agradável o convívio. Efetivamente, por seu natural, são levados a pensar que nenhum tipo de prazer é de excluir, contanto que dele não provenha qualquer inconveniente. (MORVS, 2006, p. 563).156 Outra orientação significativa de T.M. é de que, depois que o encarregado dos doentes retira a porção de alimentos prescritos pelos médicos, o restante seja distribuído equitativamente pelas mansões, de acordo com a quantidade de pessoas de cada uma, “tendose, contudo, em atenção o príncipe, o pontífice, os traníboros, bem como os embaixadores e todos os forasteiros” (MORVS, 2006, p. 521)157, sem deixar de incluir os idosos, pois para estes são reservados aquilo que não há como ser dividido igualitariamente a todos. Todos os visitantes, referidos aqui como forasteiros, quando os há, possuem sempre acomodações bem equipadas. Os horários das refeições são ao meio-dia e no fim da tarde, e são anunciados por uma trombeta de bronze. Todos, menos os acamados, se dirigem para o refeitório localizado na mansão do sifogranto. Apesar de não ser proibido levar alimento para comer em casa, ninguém dispensa a comodidade dos restaurantes onde, além de haver muita fartura, ainda existe, no caso da refeição no final da tarde, por ser mais demorada, acompanhamento de música. (MORVS, 2006). As posições que cada um ocupa no refeitório dizem respeito aos seus cargos e a sua idade. Destaca-se o Sifogranto com a sua esposa na companhia de um casal de mais idade, quando não acompanhado do sacerdote e da esposa, caso haja um templo na área. Desta mesa se tem a vista geral do refeitório. Nas demais mesas, sentam quatro: [...] frente a frente, e alternadamente, ficam colocados os mais jovens e os anciãos, com a finalidade de assim por toda a casa se relacionarem os que são da mesma idade e se misturarem os que são de tempos diferentes; assim foi estatuído, dizem, para que a gravidade dos anciãos e o respeito que lhes é 156 157 LAT142/ING143/FRA493. LAT140/ING141/FRA486. 80 devido ponham cobro a qualquer leviandade insensata dos jovens (já que nada se pode fazer ou dizer que escape aos vizinhos, quaisquer que eles sejam).” (MORVS, 2006, p. 563).158 Quanto à temática da saúde, T.M. não se refere a isto como algo relevante, visto que a preocupação está com a vida de prazer. Se a condição do utopianismo é a da experiência da vida saudável, falar de doença parece ser um desuso na ilha. No entanto, T.M. revela que mesmo “sendo eles os que menos precisam de conhecimentos médicos, em parte alguma lhe é dado maior crédito, até porque colocam a sua aquisição no plano das partes mais belas e mais úteis do saber, já que lhes permitem perscrutar os segredos da natureza.” (MORVS, 2006, p. 575).159 Acreditam os utopianos que Deus, que na obra é comparado a um autor, revela a sua criação para ser contemplada pelo homem, que foi o único a ser agraciado por esta capacidade de admirar a obra divina. (MORVS, 2006).160 Os doentes são muito bem cuidados, “e não lhes faltam com nada que lhes possa servir para restabelecer a saúde, seja em medicamentos, seja em dieta alimentar”. (MORVS, 2006, p. 583).161 Os hospitais, mais parecendo pequenas vilas em tamanho, localizados fora da área urbana, são bem equipados e repletos de funcionários capacitados. Revela-se aqui o altruísmo cristão da prática da caridade e do cuidado com os fracos e os desvalidos. Para T.M., não há como instaurar uma civilização sem o emprego destes conceitos humanistas, tão esquecidos na sociedade do seu tempo. Quanto ao trabalho na ilha, observa Surtz (1957a), como devotos da razão e do senso comum, os utopianos seguem um raciocínio lógico e valorizam os prazeres da alma como os mais importantes. Os seus habitantes dividem o dia, incluindo a noite, em vinte e quatro horas de tempos iguais: seis horas são dedicadas a trabalhar, três antes do meiodia, depois das quais tem lugar o almoço que se prolonga pela sesta em descanso, retomando de seguida o trabalho durante três horas, para tudo terminar com a refeição principal. Uma vez que se contam as horas a partir do meio-dia, é às oito horas que se deitam; o sono exige oito horas. (MORVS, 2006, p. 505).162 158 LAT142/ING143/FRA490. LAT182/ING183/FRA542. 160 LAT182/ING183/FRA542. 161 LAT186/ING187/FRA546. 162 LAT126/ING127/FRA469. 159 81 Antes do amanhecer, são disponibilizadas palestras sobre os mais diversos assuntos, em que a participação para os estudantes é obrigatória, sendo abertas para os demais membros da comunidade. Graças a uma vontade de se instruir cada vez mais, inerente ao utopiano, essas palestras são bastante populares. No entanto, para aqueles que não se interessam por disciplinas intelectuais, “se alguém quiser aplicar esse mesmo tempo a trabalhar no ofício que lhe cabe (há quem não tenha dotes para se dedicar a disciplinas intelectuais), não fica impedido de o fazer, mas até é elogiado por ser útil à comunidade”. (MORVS, 2006, p. 505).163 Riquezas e honrarias nada significam para os utopianos, que desprezam estes falsos prazeres, pois afirmam que nada se compara com o deleite de conhecer a verdade e a realidade. Este é o motivo por detrás da decisão de reduzir as horas de trabalho ao máximo para que os cidadãos possam ter o máximo de tempo para se dedicar a perseguir os verdadeiros prazeres, pois “acreditam que todos os cidadãos devem se libertar do serviço corporal para alcançar a liberdade da mente, é disso que eles acreditam que consiste a felicidade desta vida.” (SURTZ, 1957a, p. 62).164 Na Utopia, todos satisfazem seus desejos, contanto que trabalhem. Até viajantes devem contribuir, com suas tarefas costumeiras, antes de serem alimentados. Assim, o trabalho é a base do valor, e a vida está de tal forma ordenada que o trabalho em tarefas essenciais, como a agricultura, possui alta estima na sociedade utopiana. Mencionar a temática de religião significa dizer que é algo que reúne a instância pública e a efetivação do Estado. Os utopianos dispõem da condição pública da religião, em que todos exercem a sua confissão de fé amparada pelo Estado (SURTZ, 1957b, p. 189).165 A política de tolerância, implantada pelo primeiro governante da Utopia, atende aos interesses da religião, pois permite que a melhor religião, a verdadeira, se revele. Com isso, 163 LAT126/ING127/FRA469. Baker-Smith (1991, p.202) relaciona a condição do trabalho na Utopia com o dinheiro, o que revela o quanto ele pode ser objeto que corrompe a dignidade humana na ilha, à luz das investigações que realizou sobre T.M. Dinheiro é o meio pelo qual uma comunidade natural é corrompida para um sistema artificial, em que os ricos controlam em benefício próprio. Numa sociedade em que dinheiro, um mero cifrão, substitui o valor intrínseco das coisas, distorções fundamentais se tornam possíveis. 165 Para Baker-Smith (1991, p.172) “A crença na alma, conforme os conceitos platônicos, demonstra que os utopianos são platonistas florentinos. Este aspecto da influência de Platão era particularmente proeminente no início do Século XVI.” Surtz (1957b, p.49) complementa: “Aeneas Silvius declara que os príncipes filósofos, principalmente Sócrates, Platão e Aristóteles, possuem as mesmas verdades: eles acreditam nas mesmas coisas que os cristãos a respeito do governo do mundo, da imortalidade da alma, e a respeito de Deus”. 164 82 acreditam os utopianos que nenhuma religião pode ser fonte ou ocasião de danos ou maus tratos. Para Surtz (1957b), a distinção e a relação entre razão e revelação fornecem a base para a interpretação humanista da Utopia, pois os humanistas da época acreditavam numa força inata e natural da verdade, pois nada é mais poderoso que a verdade. Isso significa dizer que os utopianos são livres para manterem qualquer outra verdade religiosa, contanto que eles acreditem na existência e providência divinas e na imortalidade da alma humana.166 A crença, no entanto, tem que satisfazer duas condições: primeira, ser fundamentada num argumento racional; e, segundo, não conduzir a uma vida amoral. Para Baker-Smith (1991, p. 189), “a religião utopiana possui uma característica revolucionária partindo de mitos locais a princípios gerais.” A vitoria de Útopus sobre os nativos por conta das divergências religiosas o tornou precavido quanto ao lidar com as crenças dos seus súditos, permitindo uma liberdade religiosa. No entanto, existe uma construção de elementos religiosos comuns a todas as religiões, os quais são destacados e usados para formular a essência de um culto nacional. Todos os cidadãos participam do louvor público conduzido no templo, e o rito dos cultos particulares é reservado para o lar. De acordo com Surtz (1957b, p. 119), a dependência singular utopiana na sua racionalidade torna seus habitantes: [...] ignorantes da ordem supernatural na qual vivem e, portanto, só podem filosofar a respeito da ordem natural. Consequentemente, não fazem distinção entre atos naturalmente bons e atos supernaturalmente ou salutariamente benéficos. Mas, eles acreditam na providência e no ser supremo que impôs como condição a observância da lei moral que está imbuída na natureza humana e que se tornou conhecida através do uso da razão humana. Surtz (1957b, p. 10) complementa ainda que: [...] a religião natural é nada mais do que a complexidade de verdades a respeito de Deus. É o especulativo e o prático vistos através da luz natural da razão e os deveres que fluem destas verdades. Na revelação sobrenatural, de onde advém a religião, Deus fala diretamente ao homem e atesta a verdade que ele diz também de uma forma sobrenatural. 166 Recorda-se que esta é a condição sine qua non para a moralidade utopiana. 83 Mais adiante (SURTZ 1957b, p. 49), relaciona as verdades básicas que, de acordo com a lei de Útopos, cada utopiano sensato defende. Primeiramente, a existência de Deus é pressuposto e, implicitamente, contida nesta lei. Todos os utopianos acreditam na existência de um ser supremo, mas discordam na sua identidade. Em segundo lugar, há a crença de que Deus se comporta em relação ao homem e ao universo com uma providência amável. Em terceiro lugar, a crença dos utopianos sensatos na imortalidade da alma humana. Por último, como um importante corolário, a fé na providência, pois é necessário acreditar na retribuição futura para a alma imortal. Há uma evolução religiosa em Utopia, pois Surtz (1957b) observa que a discussão dos utopianos sobre a vida boa dos mortos possui duas finalidades: primeiro, estimula os vivos no exercício da virtude; e, segundo, serve como forma de veneração que agrada aos mortos. Eles acreditam que os mortos estão presentes quando se conversa a respeito deles. A razão para isso é que os mortos podem andar por onde querem e não são mal agradecidos às boas companhias que tiveram em vida. Homens bons, acreditam os utopianos, depois que morrem, possuem um incremento no seu amor e caridade. Desse modo, podemos verificar que a religião utopiana mostra uma tendência evolutiva que parte de cultos específicos para uma formulação mais intelectual do divino. Só gradativamente, estão eles abrindo mão da superstição e compartilhando de uma compreensão intelectual de Deus em comum. O que Raphael descreve é a emergência de um sistema de teologia natural que ascende às imagens restritas de seitas em particular, por isso, não há estátuas nos seus templos. (BAKER-SMITH, 1991). 84 CONCLUSÃO O presente trabalho teve por objetivo defender a existência de uma filosofia moral e política utopiana. Como toda filosofia moral e política, o ponto inicial se faz através de uma leitura crítica de uma situação histórica, seja no presente ou no passado. Com os elementos extraídos dessa visão, idealiza-se como aquela situação deveria ser, propondo soluções para os problemas observados. Além da crítica e do dever-ser, todo estudo da moralidade, seja individual ou coletiva, deve possuir uma fundamentação filosófica. A filosofia moral e política utopiana não se encontra exposta em conceitos estanques, como costumeiramente encontra-se nos estudos sobre o tema, mas, inserida dentro de uma pseudorrealidade, cujas leitura e coerência se mostram viáveis, ou não. Portanto, não se trata de estudo de teoria pura, na qual os conceitos são abstraídos da realidade, mas antes uma teoria experimental, em que o leitor se defronta com a aplicabilidade e a viabilidade dos conceitos. Na Utopia de T.M., podemos ver nitidamente uma crítica contida, essencialmente, no Primeiro Livro, embora não se atenha a ele, e um dever-ser que se concentra nas páginas do Segundo Livro, mas estando presente também no Primeiro. Este dever-ser se encontra exemplificado na práxis, quando se apresentam as soluções para os problemas expostos na crítica. A crítica está concentrada em duas questões elementares: uma individual, que é o falso prazer; e a outra, coletiva, que promove a desigualdade. Ela se faz não somente no repúdio a atos nefastos cometidos na busca de falsos prazeres, mas também na flagrante demonstração da desigualdade que imperava na Europa. Na crítica aos governantes, T.M. rejeita a predominância dos interesses pessoais sobre os coletivos. O pensamento corrente à época era de que os súditos foram dados por Deus para o desfrute e a realização pessoal dos governantes, ou seja, a população era apenas os meios para se atingir os fins do regente. T.M. inverte esta ordem perversa, transformando a população no verdadeiro propósito de se governar. 85 A crítica feita aos nobres também se aplicava ao clero, detentor do mesmo status de nobreza. T.M recusa a exploração dos protegidos e o desrespeito à justiça, que atentava somente para os seus próprios interesses, relegando a população a um segundo plano. A população, no entanto, também não escapa do escrutínio de T.M. quanto a sua dissimulação, ao querer se convencer da validade dos falsos prazeres. Ele renegava estes vícios, que não se limitavam à população, pois eram cultivados por todos e acabavam por desenvolver os males que os assolavam, não importando a condição social. Toda a fundamentação filosófica da Utopia de T.M. se alicerça numa única questão: a existência de uma natureza humana, criada por Deus, para que o homem pudesse ser feliz. A partir desta crença no Criador, desenrolam-se os demais alicerces da moralidade utopiana. O homem teria sido dotado da capacidade de discernimento por projeto original divino, e não teria alcançado esta condição pelo pecado original. A ele foi dado o livre-arbítrio, que se constitui na virtude do uso da razão, meio pelo qual ele pode escolher entre os falsos e verdadeiros prazeres. O dever-ser moreano se vê demonstrado em todas as áreas da vida utopiana e tem como base a educação, objeto da Ética da Virtude, que proporciona a formação do homem e cidadão ideal, resultando na sociedade perfeita. Tudo se ramifica desta peculiaridade, tão inovadora para a sua época. Por fim, mister se destacar a importância da utopia moreana. A partir de tão singela obra, cunhou-se um termo, fundou-se um gênero que permeia as ciências humanas e construiu-se uma base para o socialismo, comunismo e comunitarismo contemporâneos. Em quase cinco séculos de existência, continua oferecendo soluções para os graves problemas enfrentados pela sociedade até os dias atuais. 86 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAKER-SMITH, Dominic. More’s Utopia. Toronto: University of Toronto Press, 1991. DE SILVA, Álvaro. La 'Utopia' de Moro y la crisis postmoderna. Anuário de História de la Iglesia, n.1, p. 203-235. Universidad de Navarra, 1992. GOODWIN, Barbara; et al. The Philosophy of Utopia. Oxon: Routledge, 2001. GOODWIN, Barbara. TAYLOR, Keith. The Politics of Utopia. A study in theory and practice. Essex: Hutchinson, 1982. HERTZLER Joyce Oramel. The History of Utopian Thought. London: George Allen, 1922. LEVITAS, Ruth. The Concept of utópia. Hertfordshire: Syracuse University Press, 1990. LOGAN, George M. The meaning of More’s “Utopia”. New Jersey: Princeton University Press, 1983. MORE, Thomas. Utopia. In: ADAMS, Robert M.; MILLER, Clarence H. (trad.). New York: Cambridge University Press, 1995. ______. Utopia. In: LOGAN, George M.; ADAMS, Robert M. Cambridge Texts in the History of Political Thought. Cambridge: University Press, 2005. _______. Utopia. In: SURTZ. Edward; HEXTER, J.H., The complete works of St. Thomas More. Yale: Yale University Press, 1965. Vol. 4. MORVS, Thomas. Vtopia. In: NASCIMENTO, Aires. (trad.). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2006. MUMFORD, Lewis. The Story of Utopias. New York: The Viking Press, 1922. PRÉVOST, André. LÚtopie de Thomas More. Paris: Nouvelles Editions Mame, 1978. STIELTJES, Claudio. A ironia em a Utopia de Thomas More: ideologia e história. Dissertação de doutorado em filosofia. p. 278 São Paulo: USP, 2005. STILLMAN, Peter G.. Obra. In: GOODWIN, Barbara; et al. The philosophy of Utopia. Oxon: Routledge, 2001, p. 09-24 SURTZ, Edward. The praise of pleasure: philosophy, education, and communism in More’s Utopia. Massachusetts: Harvard University Press, 1957a. ______. The Praise of Wisdom. Chicago: Loyola University Press, 1957b.