Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 40 – O ensino de Língua Portuguesa para a pluralidade linguística e cultural. REFINANDO O FOCO DO ENSINO DA LÍNGUA PORTUGUESA (L1) PARA UMA POLIGLOSSIA INTERNA Darcilia Marindir Pinto SIMÕES1 Cláudio Luiz Abreu FONSECA2 Rosane Reis de OLIVEIRA3 RESUMO: Os últimos anos 90 trouxeram à baila o problema do preconceito linguístico. As discussões acerca da proibição do uso de palavras estrangeiras, do gerundismo, de escrita não-padrão, contribuíram para a amplificação do preconceito verbal. A escola enredou-se em atitudes equivocadas no trabalho com alunos de várias origens socioculturais. Desenvolveram-se então duas condutas antagônicas: (1) na escola regular (salvo poucas exceções), prega-se a não intervenção no “estilo” do aluno, do que decorre o abandono à gramática; (2) nos cursos preparatórios para concursos de toda sorte, ensina-se exclusivamente a gramática da norma padrão, geralmente por meio de recursos mnemônicos que se sustentam na noção de erro linguístico. Com vistas a contribuir para a solução desse desvio de percurso técnicopedagógico, o grupo de pesquisa SELEPROT vem buscando desenvolver estratégias que possam instruir os sujeitos para a atuação em situações formais e orientá-los acerca da pluralidade dialetal da língua portuguesa e de seus usos. Por meio da leitura, escrita e reescritura de textos, são destacadas as formas que representam usos distintos da língua portuguesa. A base desse trabalho é a Teoria da Iconicidade Verbal (Simões, 2007 ─ fundada na Semiótica de Peirce [1839─1914]) associada ao Funcionalismo Sistêmico (Halliday, 1984). Discute-se a adequação da expressão ao ato comunicativo, promovendo-lhe os ajustes de estilo que respondem às funções ideacional, interacional e textual. Essa perspectiva visa a instrumentalizar os sujeitos para a expressão plural e destruir qualquer hipótese de elitização linguística, a partir da correlação entre gênero textual e estilo. PALAVRAS-CHAVE: ensino de português L1; instrução multidialetal; poliglossia interna; gênero e estilo. Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) – Instituto de Letras – Docente do Programa de Pós-graduação em Letras; Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP) – Pós-doutora pelo Programa de Pós-graduação em Comunicação & Semiótica; Universidade Federal do Ceará (UFC) – Em estágio pós-doutoral do Programa de Pósgraduação em Linguística; Colaboradora do Sistema Elite de Ensino; Líder do Grupo de Pesquisa Semiótica, Leitura e Produção de Textos (SELEPROT) e Membro da Diretoria da Associação Internacional de Linguística do Português (AILP). Contatos: Darcilia Simões. URL: http://www.darciliasimoes.pro.br |[email protected] 2 Universidade Federal do Pará (Campus Marabá) – UFPA; Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Doutorando Programa de Pós-graduação (Doutorado) em Letras; Membro do Grupo de Pesquisa Semiótica, Leitura e Produção de Textos (SELEPROT). Contato: [email protected] 3 Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)– Instituto de Letras – Aluna especial do Programa de Pós-graduação (Doutorado) em Letras; Docente do Sistema Elite de Ensino; Membro do Grupo de Pesquisa Semiótica, Leitura e Produção de Textos (SELEPROT). Contato: [email protected] 1 23 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 40 – O ensino de Língua Portuguesa para a pluralidade linguística e cultural. I. Competência linguística e variedade Considerando a extensão continental do país, verifica-se como relevante a diversificação lingüística condicionada pela distribuição geográfica e social dos nacionais. Assim sendo, a escola brasileira tem de preparar-se para a realização de um trabalho pluralista, pautado na diversidade cultural do povo, o que implica operar-se na escola com a variação linguística. (SIMÕES, 2008a) Partindo-se do que diz o texto em epígrafe, pode-se afirmar que os professores de língua portuguesa se defrontam, cotidianamente, com o problema da correção idiomática. Infelizmente, são poucas as vozes que ecoam sobre o problema, apesar de os linguistas modernos se terem voltado para a complexidade do que seja “correto” ou “incorreto” numa língua, propiciando um enfoque que restringe o erro à mensagem ininteligível e propõe que se trabalhe em prol da adequação verbal ao gênero comunicativo. Destaca-se aqui o pensamento de Eugênio Coseriu (1980, 1992 e 1993), que opõe ao conceito de “correto” e “incorreto” o da exemplaridade idiomática. Toda sociedade procura uma forma ideal de língua de acordo com suas necessidades e características regionais, sociais ou estilísticas. Essa é a língua exemplar, que se estrutura de acordo com cada variante da língua. Essa língua exemplar é eleita a partir do que a sociedade considera ser adequado para a expressão do pensamento em momentos sociais, cuja competência linguística é avaliada circunstancialmente, como ao escrever um e-mail para uma empresa solicitando participar de uma licitação. 24 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 40 – O ensino de Língua Portuguesa para a pluralidade linguística e cultural. É importante ressaltar a gramática internalizada como condição de entrada nos estudos da língua. Chomsky (1978) denominou esse conhecimento nato como competência linguística. Esta permite ao falante emitir, receber e julgar enunciados, reconhecendo-os quando já realizados ou quando novos. Destarte, a efetiva comunicação não se dá pela competência linguística do falante, mas pelo seu desempenho. Ainda segundo Chomsky, é o desempenho que possibilita o sujeito fazer uso dessa competência, ou seja, a realização da comunicação propriamente dita. A gramática internalizada independe de frequentar a escola, conforme comprovam os analfabetos que se comunicam verbalmente com relativa eficiência. Ao serem expostos a uma língua na infância, os sujeitos aprendem intuitivamente a sua gramática. O pesquisador gerativista norte-americano diz que a criança nasce munida de um dispositivo de aquisição de linguagem, o que lhe permite descobrir as regras da gramática de sua língua, observando os dados linguísticos de seu ambiente. Uma criança cresce ouvindo frases como Você não pode fazer bagunça, Mamãe já vai chegar etc. das quais subentende e extrai as regularidades da língua, aplicando posteriormente esses princípios na criação de suas próprias falas. Ou seja, a criança não apenas repete as frases que ouviu, mas a partir delas deduz regras que com que constrói novas frases. Sendo isso verdade, a escola tradicional, que não leva em conta a gramática internalizada, desconsiderando o conhecimento prévio que o aluno tem das regras gramaticais intrínsecas de sua língua, está, no mínimo, se revelando antieconômica, já que insiste em ensinar muitas coisas que os sujeitos já sabem. Essa perda de tempo vai gerar um vácuo no ensino, quando os professores, preocupados em ensinar o óbvio, se afastam do que realmente é necessário que a escola ministre. No mais das vezes, o que a 25 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 40 – O ensino de Língua Portuguesa para a pluralidade linguística e cultural. escola ensina não é língua, mas a nomenclatura gramatical desvinculada do uso cotidiano, do interesse dos alunos e da variedade linguística de que fazem uso. Para resolver esse óbice, a escola deveria estimular o ensino da gramática contextualizada em diferentes gêneros discursivos de variantes da língua, promovendo o amadurecimento linguístico do aluno, por meio de exercícios que comparassem o uso e a regra e que deixassem claro para o aluno em que circunstâncias essas manifestações são aceitas pela comunidade linguística. A partir dessas considerações, é preciso que se distinga aqui uma concepção linguística geradora de transtornos no processo de ensinoaprendizagem: a de que existem formas corretas e incorretas da língua. Não há erro de português, desde que a comunicação se realize. No entanto, a eficiência da mensagem exige a adequação da forma a cada situação comunicativa. Visto que existem vários níveis de fala (fala, para Saussure, ou variedades, na ótica sociolinguística). Em prol de um ensino eficiente, os professores devem adequar suas ações, produzindo as orientações gramaticais segundo a variação idiomática e dando uma nova orientação a certos conceitos gramaticais (cf. Bechara, 2005). Portanto, não cabe à escola ensinar uma língua artificial, elitizada, encurralando os sujeitos com seus conceitos cartesianos, trazendo inibição dos atos de fala e, principalmente, de escrita, por se considerarem inaptos a se comunicar em uma língua intitulada “culta” e, por conseguinte, “correta”. Como deve então proceder o professor, já que se admite como “correto” todo fato linguístico fixado historicamente numa comunidade? Tomem-se por referência dois fatos: o primeiro é o percurso da língua comum, que se pretende supradialetal, unificada pela escolarização, ainda que com seus 26 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 40 – O ensino de Língua Portuguesa para a pluralidade linguística e cultural. fracionamentos diatópicos (regionais), diastráticos (níveis de língua) e diafásicos (de estilo); o segundo é o percurso da língua exemplar, com seu conjunto de sistemas linguísticos, ou seja, o diassistema. A língua exemplar, eleita pela elite escolarizada, documentada pela tradição literária e trabalhada nas academias, deve ser um dos componentes da educação linguística. Assim, desde as séries iniciais, é preciso promover o contato com os falares dialetais da sociedade plural, que é o Brasil, rica em suas diferenças. Apresentam-se então duas indagações que nortearão o raciocínio que aqui se procura desenvolver sobre a necessidade de “tornar o sujeito um poliglota em sua própria língua” (BECHARA, 1991): 1. Será de fato um constrangimento, um ato preconceituoso, discriminatório, estimular o estudante à aprendizagem do padrão culto da língua? 2. Ou será constrangedor o sujeito concluir a Escola Básica sem competência para a leitura e para a escrita eficientes? Entende-se como poliglossia interna a possibilidade de comunicação que permite o trânsito dos sujeitos, no mínimo, pelas variedades diastráticas (ou sociais). O sujeito que não é capaz de se comunicar verbalmente com eficiência em mais de um grupo social (família, escola, trabalho, religião etc.), efetivamente não está preparado para enfrentar as exigências da sociedade contemporânea, que é competitiva, por conseguinte, seletiva. Uma educação linguística adequada deve, portanto, demonstrar a existência das variedades linguísticas, suas características e a adequação de uso de cada uma. A prática pedagógica deve postular o ensino da língua a partir de textos de tipologias e gêneros variados, produzidos por autores representantes das diversas esferas da sociedade, a fim 27 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 40 – O ensino de Língua Portuguesa para a pluralidade linguística e cultural. de possibilitar aos alunos uma leitura múltipla de mundo. Essa atitude além de considerar a variante decorrente da extensão territorial brasileira, respeita a pluralidade de seu povo, advinda da variedade religiosa, étnica, cultural e social. No entanto, colocar os alunos diante dessas variantes não deve ser uma atitude desmedida que acaba por afastar os sujeitos da norma padrão. Conforme se lê em Simões (2006), [...] o aluno deve ser posto em contato com a variedade sem perder de vista que seu aprendizado escolar será pautado no uso padrão (ou culto, para alguns). É preciso situar claramente a variante padrão no âmbito sócio-político, para que o estudante tome consciência da necessidade dessa modalidade de língua em benefício da comunicação ampla entre os usuários do português do Brasil. Sem alimentar a idéia de que um uso lingüístico possa ser melhor ou pior que outro, a variante padrão pode passar a ser buscada pelo estudante, ao invés de imposta pela escola. Para tanto é preciso demonstrar, através dos textos e de seu compromisso comunicacional, a necessária adequação de registro e a variedade estrutural decorrente da pluralidade de estilos à disposição do falante. É preciso também mostrar aos sujeitos as diferenças entre as modalidades falada e escrita de modo que seus usuários adquiram a habilidade requerida para eleger o estilo adequado a cada prática textual, evitando uma transposição do texto oral para o escrito. Essa transposição, em geral, cria falhas que inviabilizam a comunicação e a expressão do projeto de dizer do enunciador. 28 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 40 – O ensino de Língua Portuguesa para a pluralidade linguística e cultural. Esse ideal de ensino acha-se claramente exposto num trecho de Serafim da Silva Neto (1963, p.265), até hoje explorado pelos estudiosos que se têm ocupado com o assunto: O essencial é que os professores ─ sal da terra filológica ─ não esmoreçam no bom combate. Não no combate cego e desatinado, preso à servil imitação d’antanho, surdo às realidades da evolução ─ mas no combate bem orientado, que leva em conta os fatos da língua e não esquece a distinção entre a língua escrita, que é escolha e disciplina, e as línguas faladas, livres ao sabor das paixões. Uma análise competente dos textos é aquela em que se examinam os mecanismos internos (as relações gramaticais entre as partes do texto) associados aos fatores de coerência externos (conhecimento de mundo, conhecimento partilhado, contexto histórico e social, etc.). Estes últimos veiculam signos com seus valores funcionais provocando abordagens estilísticas e semióticas de onde partem as relações gramaticais e as necessidades comunicativas. É por isso que os textos escritos se vinculam aos falares do povo e acabam por ter seus valores ajustados ao propósito enunciativo. O que cabe à escola, então, é propiciar o caminho progressivo do educando desde o dialeto em que se comunica – sem violentar o seu vernáculo ou intimidá-lo – até a inserção na língua padrão, atentando para a pluralidade da língua que se estende de fora para dentro das paredes da sala de aula. Veja-se o conselho ponderado de Simões (2008b): 29 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 40 – O ensino de Língua Portuguesa para a pluralidade linguística e cultural. Pregando o domínio mais amplo possível das variedades da língua portuguesa do Brasil, como condição de eficiência comunicacional e de competência cidadã, alerto os docentes sobre a importância de uma metodologia interacionista, funcional, dinâmica, onde a estilística seja de fato trabalhada como ciência do estilo, e a semiótica seja convidada a participar da festa do idioma (classes de português), atuando como “bússola” para a composição dos melhores textos e, por conseguinte, para a leitura destes. Por isso, a escola deverá apetrechar o aluno, se não com o uso imediato de qualquer variante, mas pelo menos com a disponibilidade de interagir com qualquer delas sem atitude preconceituosa ou discriminatória. Com uma prática pedagógica que valoriza a poliglossia interna, então, o professor põe seus alunos em convivência contínua com os valores expressivocomunicativos dos textos analisados, tornando-os competentes leitores e escritores, exercendo a cidadania das diferenças, que tanto preconiza a Constituição Federal Brasileira de 1988, a fim de construir uma Nação mais respeitada pela pluralidade e ciente de que essa é a verdadeira identidade de seu povo. Esse trabalho com as variedades linguísticas e gêneros textuais deve, pois, possibilitar uma prática verbal no estilo padrão (o que se espera de um graduado), a partir da análise de todos os níveis de língua, reunindo características que viabilizem o entendimento da mensagem que se pretende veicular e a tornem precisa e objetiva. A análise dos valores semânticos e pragmáticos dos signos verbais cumpre um papel importantíssimo nessa estratégia de ensino, que é o de orientar as escolhas lexicais para a composição de um texto produzido com uma determinada finalidade comunicativa. 30 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 40 – O ensino de Língua Portuguesa para a pluralidade linguística e cultural. Essas entidades verbais escolhidas desenham o contorno semântico-pragmático do texto e representam a visão de mundo do enunciador diante do assunto tratado no texto. O vocabulário acionado no texto representa, assim, a língua comum, refletindo as variações sociais e culturais de um País gigante e da iníqua distribuição de renda de seu povo. Essa educação linguística, que começa na pré-escola, deve chegar à universidade que tem um papel múltiplo na educação de jovens. Os graduandos precisam adquirir, no curso superior, o uso adequado do vernáculo para cada objetivo comunicativo que se impuser em situações específicas de sua futura vida profissional. Cabe aos professores universitários buscar desenvolver ainda mais a competência linguística dos sujeitos, cujas deficiências apontam para uma educação de base ineficaz, fruto do descaso com que a língua materna é ensinada nas escolas fundamentais. II. A formação do acadêmico de Letras e futuro professor de língua portuguesa sob o signo da poliglossia interna As disciplinas não são estáticas, domínios demarcados de conhecimento aos quais pedimos emprestados construtos teóricos, mas são elas mesmas domínios dinâmicos de conhecimento. (PENNYCOOK, 2006, p. 72) Considerar a poliglossia interna como um ingrediente significativo para a formação do acadêmico de Letras e futuro professor de português, pressupõe um diálogo necessário entre a diversidade que permeia as línguas, as culturas, as sociedades, numa dada conjuntura histórica e contemporânea. 31 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 40 – O ensino de Língua Portuguesa para a pluralidade linguística e cultural. Tendo por premissa (cf. Pennycook, 2006) que os saberes disciplinares não são estáticos e podem ser mobilizados consoante as particularidades do contexto sócioeducacional, impõe-se pensar nas singularidades que emergem de culturas híbridas, de saberes oriundos de sujeitos que se manifestam por diferentes variedades linguísticodiscursivas. Essa compreensão implica que a formação do professor de L1 prescinda de uma prática de reflexão e pesquisa sobre a diversidade de competências dos usos de linguagem que o professor vai encontrar em sala de aula e também fora dela. Muitas vezes o que se instala na sala de aula e no espaço escolar é uma situação diglóssica, em que alunos e professores falam dialetos diferentes, colocando à luz seus antagonismos sócio-culturais por meio da linguagem. Compreende-se que o trabalho com e sobre a linguagem envolve diferentes conhecimentos institucionalizados ou não, que o contexto educacional faz emergir, o que exige uma formação acadêmica no campo das Letras, que prepare o professor de L1 a enfrentar os desafios de lidar com sujeitos que estão em processo de construção de seus saberes experienciais, linguísticos, (co)existenciais, valorativos, identitários etc. Em virtude disso, a poliglossia interna pode ser compreendida pela heterogeneidade que constitui a linguagem e os sujeitos. Se os sujeitos se encontram em processo, mobilizados pelos saberes que os vão constituindo nas várias esferas sociais, cujos atos de linguagem, compreendidos como gêneros de discurso (BAKHTIN, 1992 e BAKHTIN, 1997), são praticados, segundo a relativa estabilidade que os caracteriza, é possível, por essa via, compreender que o trabalho com e sobre a linguagem pode ser realizado, considerando esse conhecimento em formação, que compõe toda a história do sujeito, mesmo antes dele começar a se constituir como sujeito também dentro dos muros da escola. 32 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 40 – O ensino de Língua Portuguesa para a pluralidade linguística e cultural. Sabe-se das dificuldades de comunicação entre os saberes, sejam aqueles sistematizados pela universidade, dentro e entre os diferentes cursos, sejam aqueles sistematizados pela escola de educação básica, sem falar naqueles que emergem dos discursos na esfera escolar e que constituem seus vários sujeitos. Geralmente, estes últimos são negligenciados ou convivem conflituosamente com a disciplinaridade escolar. Talvez se possam elencar aqui diversas razões que têm demonstrado que esses conflitos descendem de vários problemas, da ordem dos discursos sócio-econômicos, educacionais, culturais e linguísticos. O regime de globalização contemporâneo afetou, numa escala mundial, as relações comerciais entre os países, mas não logrou oportunidades similares para que todas as comunidades se beneficiassem social e economicamente, proporcionando condições efetivas de qualidade de vida mais dignas para os povos das periferias do mundo. Há, sim, uma cobrança de órgãos internacionais, como a ONU, UNESCO, OEA, BID etc., por meio de “cartas de intenções”, de que os países periféricos melhorem seus índices de qualidade de vida, procurando atingir metas nos campos da educação, do trabalho, da saúde, da distribuição de renda interna, do combate à corrupção e ao trabalho infantil, da cidadania etc. Ninguém poderia em sã consciência ser contra essas metas, se não fossem elas apenas paliativos, para amenizar as desigualdades e conflitos erguidos durante uma longa história de dominação e colonialismo que ainda persiste sob várias roupagens. Altamente necessárias, essas metas, quando não atingidas, geram o incremento de políticas humanitárias em países que vivem em situação de guerra, de conflitos eminentes, de desarranjos sociais de várias ordens. A benemerência mundial dos países ricos ou blocos como a União Européia se estende até os limites de suas fronteiras 33 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 40 – O ensino de Língua Portuguesa para a pluralidade linguística e cultural. políticas, salvaguardando suas práticas excludentes que governam seus interesses hegemônicos. Sem uma globalização que envolva relações multilaterais de respeito à diversidade política, religiosa, cultural, social, de distribuição de recursos econômicos, tecnológicos, naturais, consoante a preservação da biodiversidade e do respeito à humanidade, não há como vislumbrar uma integração global que favoreça de fato a progressão dos índices educacionais e sociais, por exemplo, como gostam de aventar, por meio de pesquisas quantitativas generalizantes os órgãos nacionais e supranacionais, a colocação de cada nação numa escala numérica, segundo os critérios que medem a qualidade de vida, não ou pouco considerando as especificidades de cada povo ou país para a consecução de metas a eles impostas. Diante desse quadro, as periferias do mundo, tal como o Brasil, não vêm conseguindo atingi-las, ainda que tenham incorporado ao seu modelo de educação diretrizes e resoluções forjadas globalmente, segundo a lógica de um paradigma pósmoderno que propõe modificações para que tudo fique como está, uma vez que parecem desconhecer as singularidades que permeiam as diferentes culturas educacionais, projetando um sujeito educacional, segundo uma perspectiva universalizante. O incremento de soluções locais, que resultem de uma apreciação do contexto de onde os problemas emergem, poderia ser viabilizado por uma poliglossia interna que dialogue com o outro, em virtude do sujeito se constituir também das interações que trava com os outros, com o mundo que o cerca, local e globalmente. Postula-se, então, uma poliglossia dialógica que é constituída sob o signo da alteridade. Se um sujeito é um poliglota dentro de sua própria língua, fazendo uso de diferentes gêneros, verbais, não-verbais, falados ou escritos, multimidiáticos, é porque 34 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 40 – O ensino de Língua Portuguesa para a pluralidade linguística e cultural. vem construindo, por meio das interações de que participa ao longo da vida, um saber discursivo e linguístico que lhe possibilita utilizá-lo e modificá-lo, segundo as peculiaridades e circunstâncias de cada nova situação em que age com e sobre a língua. A poliglossia interna, desse modo, não é algo exclusivo e concluso do sujeito. Ela só passa a ser internalizada, porque é alimentada pela poliglossia do outro, da família, dos amigos, dos grupos, das autoridades, dos desafetos, dos políticos, enfim, das pessoas todas com quem convive e dos diferentes papéis sociais que desempenha. Compreendese, pois, a poliglossia não apenas como um conjunto de competências linguísticas que um indivíduo possui internamente por conta das características biopsicofisiológicas que a genética humana lhe permite desenvolver, mas, sobretudo, como resultado de um processo social que lhe possibilita a condição de se comunicar. A linguagem é um dos constitutivos humanos, logo, consoante a sua heterogeneidade, constitui a cada um dos sujeitos que a falam. São diversas as variedades linguísticas como o são também os grupos e sujeitos que as utilizam nas mais diversas situações. Também são diversos os domínios discursivos que circulam socialmente, exigindo do professor de L1 uma série de conhecimentos linguísticos e semióticos que lhes possibilitem integrá-los a outros saberes, respeitando-se as especificidades epistemológicas, as diferentes concepções de linguagem que os atravessam, bem como as singularidades dos contextos educacionais para os quais vão ser transpostos. Em virtude disso, pensa-se que a formação do acadêmico de Letras e futuro professor de língua portuguesa pode ser pautada por uma maior integração entre os saberes ali institucionalizados e aqueles que o acadêmico traz para a universidade, uma vez que pertence a uma comunidade, a um grupo, a uma torcida, a um trabalho, a um 35 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 40 – O ensino de Língua Portuguesa para a pluralidade linguística e cultural. bairro, a uma cidade, a um país. São desses sujeitos também que emergem as pesquisas que trazem à cena científica pessoas anônimas com suas artes de fazer, de dizer (CERTEAU, 1994), que com suas maneiras peculiares de caminhar pela vida vão tecendo conhecimentos. Cabe à universidade e ao curso de Letras em especial trabalhar no sentido de sistematizar esses saberes, legitimando-os como fenômenos significativos que podem ser investigados. A linguagem em sua heterogeneidade expressa, pois, os diferentes gêneros e tipos de texto, materializados por diferentes variedades linguísticas, que condicionam as escolhas lexicais e combinações gramaticais, consoante o estilo e a intenção de cada autor, em relação ao seu interlocutor e ao contexto que os situa. O curso de Letras, na sua modalidade licenciatura, pode buscar formar um acadêmico e futuro professor que saiba adequar o ensino e a aprendizagem de língua portuguesa, ao contexto educacional em que vai atuar, procurando nas práticas discursivas de seus alunos e comunidade manifestações de linguagem que mereçam ser estudadas, apresentando ao mesmo tempo outras manifestações em diferentes suportes: literárias e não-literárias, verbais e não-verbais, escritas ou faladas, estabilizadas, padronizadas, modificadas, novamente estabilizadas, ainda que provisoriamente, pelo movimento histórico e ininterrupto da língua. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAKHTIN, M. 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