entrevista Um provocador intemporal Perguntas Paulo Costa Dias, foto Nuno Correia Carlos Coelho é conhecido por ser uma espécie de guru nacional das marcas, pelo seu destacado compromisso de cidadania, pela defesa indomável de Portugal e, não menos, pelas suas tiradas provocatórias, estimulantes e criativas. E brilha em todos estes aspetos! Com um discurso encadeado, tem uma visão ampla e aérea de Portugal e dos portugueses, própria de quem conhece o mundo e de quem é apaixonado pelo trajeto da nossa história e pelo alcance da nossa língua. Marcas, cidadania e Portugal: temas que o apaixonam e sobre os quais tivemos o prazer de o ouvir, e ele o prazer de falar. Qual é a marca mais valiosa, Portugal ou Lisboa? É evidente que é Portugal. Lisboa é uma marca muito conhecida internacionalmente, mas, claramente, se Lisboa é uma joia, Portugal é o cofre. os megafones, não acho que sejam mais maldizentes, acho que são igualmente maldizentes. A maledicência é uma forma de estar. Ser pessimista em Portugal chegou a ser uma forma respeitosa de existir. Os portugueses conhecem Portugal? Nomeadamente, o Portugal pluricontinental – já não do Minho a Timor, mas o da lusofonia – que é ainda mais vasto? Eu acho que a razão fundamental pela qual os portugueses dizem mal de Portugal é porque não conhecem os outros países. Primeiro. Mas também acho que os portugueses não conhecem muito do seu país. Não é só uma questão territorial, os portugueses não conhecem a sua história. Quanto à lusofonia, os portugueses conhecem algumas praias do Brasil… Portugal é um país muito maior do que a noção que os portugueses têm dele. Temos uma história improvável: sendo um país pequeno, com poucas pessoas e pouco qualificadas, é estranho como é que tivemos tanta influência no mundo, em quase todos os continentes. Estive no Sri Lanka há pouco tempo onde, além dos vestígios concretos que se encontram na rua, existem vestígios culturais, existem nomes, o Pereira, o Oliveira. Mais acima, no Japão, quando dizemos que somos portugueses, não somos vistos como estranhos. O que contraria a ideia de que ninguém sabe onde é Portugal, ou que ninguém conhece Portugal. Claro, o americano médio não sabe onde é Portugal, como não sabe onde são uma série de estados americanos. Como ser otimista é tido por condenável… Sim, sim. Eu sou assumida e provocadoramente otimista, e dizemme frequentemente que é fácil ser otimista quando as coisas correm bem – e eu digo «olhe lá, mas ser otimista não é isso». Li algures que ser pessimista é o luxo dos países ricos. Vão à Índia e vejam lá se há pessimismo. Só a abundância permite ser pessimista. Ah, os otimistas são tipos sonhadores com os pés não assentes na terra, dizem-me. Está bem, isso para mim são elogios. A sociedade portuguesa encarou o pessimismo como uma forma de conforto. Está sol em meados de outubro: pronto, está sol, é o planeta que está a mudar, que chatice... Uma espanhola disse-me uma coisa engraçada: que em Portugal temos pouco orgulho e muito conteúdo, enquanto Espanha tem muito orgulho, mas está-lhes a faltar o conteúdo. Nós temos coisas extraordinárias e achamos que é tudo normal. Quem é que descrê mais de Portugal, as elites ou o povo? Não tenho a profundidade sociológica que me permite ter uma opinião com validade. O que me é possível dizer, fruto da minha experiência, é que as elites, de alguma forma, se demitem da discussão. Tomam uma posição muito neutral, muito desprovida de intencionalidade, não assumindo, normalmente, a função que, na minha opinião, deveriam assumir – porque senão não merecem o nome de elites. Elas não têm tomado a dianteira, não têm utilizado os megafones que têm à sua disposição para conseguir, pelas palavras e pelos atos, mudar o rumo de algumas coisas. ‘Povo’ é uma expressão vaga, mas, se falarmos das pessoas que não têm Esteve envolvido num projeto em que usava a sentença de Almada Negreiros «Eu não pertenço a nenhuma geração revolucionária. Eu pertenço a uma geração construtiva.» Que geração está, ou tem estado, no poder em Portugal? O que eu acho é que quem tem estado no poder, de facto, tem sido uma geração construtivista. E eu cheguei à conclusão de que, afinal, gostava mais de pertencer a uma geração revolucionária. Tem havido uma geração de governantes incapazes de revolucionar. Revolucionar significa alterar cânones existentes. Eu sou dos otimistas da crise. A crise é uma altura para quebrar, temos 57 entrevista mesmo de acabar com várias coisas. Gostava de que a geração fosse construtivista, no sentido de construir um país melhor, mas o livro que acabámos por publicar no final do Compromisso Portugal chama-se Revolucionários, precisamente porque chegámos a uma altura em que é preciso ter uma geração revolucionária. O que se tem feito é tentar melhorar os sistemas, e tem de se destruir os sistemas para fazer outros. Não há alternativa, a questão é com que custo isso vai ser feito. Faz muitos apelos à mudança. Não será a mudança, enquanto desígnio, um conceito inaplicável em Portugal ou, quanto muito, um apelo inconsequente? Ninguém ascende ao poder propondo mudanças e, certamente, ninguém se mantém lá se as promover! Tenho o otimismo de pensar que aquilo que não se fez no passado é perfeitamente possível de ser feito no futuro. Há uma frase duríssima que é sábia, mas que eu odeio, «tudo muda, menos o homem», o que me preocupa e me leva a pensar em se esse tipo de apelos são válidos, se, sendo possível fazer mudanças no nosso estilo de vida, na nossa essência nada se altera. Eu quero crer que o homem muda, embora não mude tão depressa quanto às vezes seria necessário. Há, de facto, o ciclo que a sua pergunta coloca, mas em Portugal houve alturas em que foi possível promover a mudança. A Suíça é, aliás, um excelente exemplo porque olham para coisas comuns e fazem delas coisas extraordinárias - olhe os chocolates. E venceram as adversidades constituídas pelas condições naturais, a interioridade do país, o seu isolamento, enquanto nós fomos bafejados pela sorte da nossa geografia. 58 Costuma dizer que uma marca é uma corrida de fundo. O que é que o tempo faz a uma marca? O poder de uma marca mede-se pela capacidade de a mesma ultrapassar o desafio do tempo, saindo reforçada. Muito poucos acreditarão numa empresa de uísque que, por exemplo, nasça hoje. A área dos relógios é uma das áreas onde a idade conta. E conta por duas razões: há marcas que evoluem, e isso garantelhes a sobrevivência; outras sobrevivem preservando um conjunto de valores que estão na base das suas próprias indústrias – a tradição, a investigação, a manufatura, a precisão, neste caso. O número de marcas que atinge as seis, sete, dez, 20 décadas é muito, muito, reduzido. Estas resistem a guerras, a crises, a questões culturais, e resistem por terem evoluído, ou por terem preservado a sua essência. Não quer dizer que não haja marcas de relógios novas com sucesso, mas a indústria relojoeira suíça tem como base o tempo – não só porque o mede, mas porque o próprio tempo certifica a qualidade das marcas. Que lições uma marca centenária ou bicentenária, como algumas da alta-relojoaria, pode trazer para o mundo de hoje? As marcas são atores na sociedade e são motores da economia. Trabalhar uma marca é garantir a sua perpetuidade, é plantar alguma coisa num terreno que se quer muito sólido e que não deverá ser gerido de acordo com conjunturas demasiado circunstanciais. Deve-se estabelecer uma rota que permita ultrapassar os testes impostos pelo tempo e pela conjuntura. É uma grande lição perceber como elas conseguiram, em alturas muito piores do que esta, continuar, resistir, ultrapassar dificuldades medonhas. E é assim que se fazem histórias muito bonitas. Justamente, o advento do quartzo deixou a indústria relojoeira suíça moribunda, mas acabou por ser o quartzo a permitir o ressurgimento da relojoaria mecânica... As pessoas olham para essas marcas e não sabem ou esqueceram isso. Aparentemente, naquela altura, a relojoaria tradicional deixou de fazer sentido. Até que alguém se lembrou de que, afinal, havia um património de conhecimento em que valia a pena apostar. A Suíça é, aliás, um excelente exemplo, porque olham para coisas comuns e fazem delas coisas extraordinárias – olhe o caso dos chocolates. E venceram as adversidades constituídas pelas condições naturais, a interioridade e isolamento do país, enquanto nós fomos bafejados pela sorte da nossa geografia. A maioria das principais manufaturas, e as mais antigas, nasceram e continuam a existir em locais que eram, até há muito pouco tempo, isoladissímos. Lá está, contra tudo o que é razoável. O tempo numa marca diz-nos isso tudo. A paciência, a perseverança, a abnegação, a capacidade de lutar pelo sonho – que acabam perpetuados na economia. Isto parece algo muito sonhador, mas, independentemente de as marcas terem de ter vendas, têm de ter tempo para estar com o consumidor, têm de criar uma relação, e, para que esta seja duradoura, tem de ser uma relação cuidadosa. Não se pode ter estratégias para que algo que se deve atingir em dez anos se atinja em dez meses. Isso é prostituição. O mais atrativo, o mais barato, o mais isto e aquilo pode ter resultados rápidos, mas não resiste ao tempo. Permita-me acabar com uma provocação. Faz sentido valorizar muito o conceito ‘marca’ quando a China conseguiu todo o seu sucesso sem ter uma única marca própria? Não estamos demasiado fechados na forma ‘ocidental’ de olhar para as coisas? Se calhar, estamos; mas eu não sou um entusiasta da China. A China, até agora, construiu uma sociedade que não reconhece direitos de autor e que se limita a copiar o capital intelectual de alguém produzindo-o de forma mais barata. Eles não podem continuar a sobreviver sem marcas e não sobrevivem sem marcas, produzem é as dos outros. Não acredito num mundo sem marcas. Nós somos humanos, precisamos de nos relacionar com coisas e as coisas têm nomes. A alimentação de que precisamos não é uma mera alimentação funcional; é uma alimentação de outro tipo, de vontades emocionais, sociais, estéticas. O que provou o Steve Jobs? Que o mundo queria coisas mais funcionais, mais bonitas, mais bem desenhadas, e que estava disposto a pagar por elas. Mas acho que sim, que temos de alterar alguns dogmas para podermos melhorar. www.ivity.com