A IMPORTÂNCIA DO DIÁRIO DE TURMA COMO INSTRUMENTO DE
CONSTRUÇÃO DA MORALIDADE: JUÍZOS SOCIAIS SOBRE A MORALIDADE EM
CRIANÇAS DO 1.º CICLO DE ESCOLARIDADE
Miguel Leite Borges da Mata Pereira
Instituto Superior de Psicologia Aplicada
[email protected]
As regras sociais que regulam o comportamento das crianças no 1.º ciclo de escolaridade agrupam-se
em diferentes domínios de conhecimento social, como a convenção social e a moralidade (Turiel,
1978). No Modelo Pedagógico do Movimento da Escola Moderna Portuguesa (MEM), o
desenvolvimento sócio-moral é uma construção operada diária e semanalmente, por intermédio de
instrumentos curriculares de regulação da atmosfera social das turmas, como o Diário de Turma (DT).
Acontecimentos de natureza diversa são registados, pelo professor ou pelo aluno, no DT.
Apresentamos uma análise comparativa dos registos relativos a incidentes negativos inscritos no DT
de uma turma de 1.º ciclo do Ensino Básico sustentada pelo modelo pedagógico do MEM, em dois
momentos distintos: o 1.º e o 4.º ano de escolaridade. Diversas categorias de comportamentos foram
definidas para os juízos de transgressão moral, consoante o domínio de pertença (convencional ou
moral/interpessoal), em acordo com a operacionalização de Vieira (2002). Discutimos a evolução da
construção da atmosfera moral da turma, partindo do desenvolvimento sócio-moral dos alunos, da
progressiva interiorização das regras convencionadas cooperativamente pela turma, da participação
democrática e da conquista de autonomia no processo de negociação e resolução dos conflitos.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho baseia-se na análise de situações problemáticas que crianças e
adultos assinalaram nos seus Diários de Turma (DT), através do registo na coluna do DT
relativa aos “juízos negativos” (Niza, 1991, 1996) de uma turma de 1.º ciclo do Ensino Básico
sustentada pelo modelo pedagógico do Movimento da Escola Moderna (MEM), em dois
momentos evolutivos distintos: o 1.º e o 4.º ano de escolaridade. Trata-se de um estudo de
carácter comparativo, longitudinal, onde poderemos verificar a progressão, em termos sóciomorais, de uma turma ao longo destas duas etapas de escolaridade, através de uma proposta de
análise de conteúdo descritiva que codifica o tipo de actos morais e sócio-convencionais
percepcionados como transgressões pessoais e que foram objecto desses juízos. A referida
análise fundamentou-se na abordagem teórica sobre o desenvolvimento moral desenvolvida por
Turiel e colaboradores (Turiel, 1978, 1984; Nucci, 1981; Smetana, 1983, in Turiel, 1994), que
sugere uma distinção entre domínios de conhecimento social, concretamente entre moralidade e
convenção social.
Este trabalho parte do pressuposto de que as regras sociais que regulam o
comportamento das crianças no 1.º ciclo de escolaridade se organizam em domínios de
conhecimento social distintos, nomeadamente no domínio da convenção social e no domínio da
moralidade, sabendo-se no entanto que as questões de um e outro domínio se misturam e
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sobrepõem, devido ao carácter multifacetado das situações sociais vividas em qualquer contexto
educativo. Nos contextos educativos relativos ao 1.º ciclo de escolaridade as crianças podem
aprender uma pluralidade de regras convencionais como “não se deve sair da sala sem a
autorização do professor” São regularidades comportamentais associadas à especificidade da
dinâmica e da organização social de uma escola ou de um grupo/turma. Este tipo de regras,
embora possam ser importantes como reguladoras permitindo instituir e manter uma dada
ordem social e de trabalho, tem carácter arbitrário e o seu incumprimento não acarreta, em
princípio, nada de intrinsecamente negativo. Ao contrário das regras convencionais, as regras
morais ligam-se a aspectos intrínsecos das acções e interacções sociais servindo para prevenir
consequências como o dano físico ou psicológico e a violação dos direitos dos outros. A maioria
das crianças dirá que não é aceitável bater nos outros ou destruir os pertences de outrem. Desde
cedo, as crianças parecem capazes de perceber que estes actos acarretam consequências
negativas para os outros, ou seja, que têm efeitos intrinsecamente negativos e que por isso
devem ser considerados como actos errados a excluir da convivência social (Turiel, 1994).
Neste trabalho, no que respeita à análise das informações contidas dos Diários de
Turma, formulámos os seguintes objectivos específicos: 1) Analisar e classificar os juízos
sociais de sentido negativo, sobre incidentes críticos envolvendo as relações entre crianças e a
organização social estabelecida numa classe MEM; 2) Identificar a sua frequência das
categorias de juízos; 3) Analisar a distribuição das categorias.
Corpus dos dados
Os dados deste ensaio dizem respeito a juízos sociais de desaprovação formulados
espontaneamente por crianças e professor – individualmente e em grupo – sobre incidentes
críticos ocorridos no contexto de situações sociais, vividas no quotidiano de uma classe o 1.º
ciclo do MEM no seu 1.º e 4.º ano de escolaridade. A classe em questão, constituída por 8
raparigas e 17 rapazes, pertencia a uma escola oficial de ensino regular do distrito de Lisboa.
Sistema de análise
A classificação usada neste ensaio, proveniente do estudo de Vieira (2002), apoiou-se
em algumas assunções de natureza teórica. Uma opção essencial consistiu na adopção da
posição de Turiel (1994) sobre moralidade e convenção. A utilidade da abordagem da distinção
entre domínios do conhecimento social reside na possibilidade de operacionalizar os tipos de
actos e de conceitos morais e sócio-convencionais revelados pelos juízes sociais assinalados no
DT.
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Definição das categorias de juízos de transgressão moral
Categoria A – Juízos morais / interpessoais
A1. Agressão Física: Inclui-se nesta subcategoria comportamentos de agressão física que se
revestem de várias formas tais como: bater, dar murros, dar pontapés, atirar com objectos ou
água, puxar orelhas ou cabelos, arranhar, empurrar, morder, cuspir e fazer rasteiras.
A2. Agressão verbal: São aqui incluídos os comportamentos verbais de insulto e troça como por
exemplo: chamar nomes, gritar aos ouvidos e “andar a gozar”.
A3. Apropriação indevida de objectos ou espaço do outro: Codificam-se assim comportamentos
de apropriação “indevida” de objectos e espaço de outros e de materiais pertencentes a todo o
grupo.
A4. Destruição de pertences do outro: Classificam-se nesta subcategoria as incidências relativas
aos danos sobre os pertences e/ou o trabalho realizado por outros.
A5. Rejeição ou exclusão do outro: Aqui são codificadas todas as ocorrências que expressão a
recusa em brincar com outros, as tentativas de impedir outros de participar nas brincadeiras ou
mesmo a sua exclusão.
A6. Negação de reciprocidade: Inclui-se nesta subcategoria comportamentos que configuram
situações de recusa em ajudar o outro e em emprestar/partilhar objectos pessoais ou os materiais
da sala. Nestas situações o transgressor não actua empaticamente; o seu comportamento revela
insensibilidade perante a necessidade de ajuda por parte do outro.
A7. Outros eventos: Nesta subcategoria classificam-se comportamentos que configuram
transgressões morais especificamente associadas à violação de regras de confiança interpessoal,
como por exemplo, “mentir” e “fazer batota”.
Categoria B – Juízos sócio-convencionais
B1. Transgressões de regras de utilização de espaços, materiais e equipamento: Esta
subcategoria agrupa todos os comportamentos de uso impróprio/inadequado (falta de cuidado
ou destruição) de materiais, equipamentos e espaços colectivos dentro e fora da sala de
actividades.
B2. Transgressões de regras de higiene e limpeza: Esta subcategoria inclui os comportamentos
que infringem regras que dizem respeito às rotinas de cuidados de higiene e à manutenção geral
de um ambiente limpo na sala de actividades e noutros espaços (refeitório e recreio).
B3. Transgressões de regras de comunicação e movimento em actividades e processos de
aprendizagem: Classificam-se nesta subcategoria todos os actos que constituem desvios ao que
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está estabelecido sobre como se deve comunicar e movimentar dentro da sala e do recreio no
âmbito dos tempos que incluem a rotina educativa do grupo.
B4. Transgressões de regras relativas a horários: Codificam-se como tal, os actos de não
cumprimento de normas que regulam o tempo das actividades.
B5. Transgressões de regras que regulam a execução de tarefas específicas: Incluem-se nesta
subcategoria os comportamentos que não cumprem o que está estabelecido relativamente aos
modos ou procedimentos acordados para a execução de tarefas quotidianas.
B6. Outros eventos de transgressão sócio-convencional: São aqui agrupados os comportamentos
que configuram de forma inespecífica desvios ao conjunto de normas que regulam a ordem
social e do trabalho da sala.
RESULTADOS E SUA ANÁLISE
1.º Ano
Para o 1.º ano, os juízos de transgressão moral/interpessoal aparecem registados no
Diário de Turma (DT) com uma frequência absoluta de 207 incidentes. A Agressão Física surge
como a categoria mais vezes assinalada, com uma frequência de 147 incidentes. Quando
analisamos a variação dos registos do DT respeitantes às categorias que constituem o domínio
moral/interpessoal, verificamos a existência de uma tendência geral para uma diminuição ao
longo do ano lectivo (do primeiro para o terceiro período), na maioria das categorias de juízos
considerados. Este resultado poderá indiciar que o processo de interiorização das regras
estabelecidas pela e para a turma está já a decorrer, bem como a apropriação de uma maior
autonomia para a resolução de conflitos de natureza moral/interpessoal, sem que seja necessário
recorrer ao DT. A análise da variação mensal dos registos neste mesmo domínio reforça esta
ideia. Por exemplo, nos juízos sobre transgressões para a categoria “Agressão Física”, o mês de
Novembro é o mês com maior número de incidentes, havendo uma progressiva diminuição até
Abril, embora no 3.º período se verifique um aumento da frequência dos incidentes. Os meses
que apresentaram mais vezes frequências máximas nas diferentes categorias foram Novembro e
Janeiro, e os aqueles que apresentaram mais vezes frequências mínimas os meses Abril e Junho.
Na globalidade, os meses mais problemáticos são Novembro e Maio, correspondendo ao meio
do 1.º período e ao início do 3.º período, respectivamente. Refira-se, ainda em relação a este
domínio, que as transgressões, em norma, diminuem ao longo dos meses constituintes de cada
um dos períodos lectivos, tendendo a aumentar depois de cada um dos períodos de férias. Parece
então existir um efeito de desmobilização e de suavização de algumas das regras conhecidas e
respeitadas, pelo simples facto de os alunos se encontrarem distantes dos contextos donde estas
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regras foram emanadas e relativamente às quais dizem respeito, como elementos reguladores do
ambiente social. Demora sensivelmente um mês, de acordo com os registos do DT observados,
a reapreciação plena das normas e da sua funcionalidade.
No que respeita aos juízos de transgressão sócio-convencional, o DT apresenta uma
frequência absoluta de 101. A categoria Comunicação e Movimento surge como a mais
considerada, com 43 participações. Quando observamos as oscilações das frequências dos
registos das categorias que compõem o domínio sócio-convencional, por período, verificamos
que as duas categorias com maiores frequências, “Utilização e Manutenção do Material” e
“Comunicação e Movimento”, não acompanham o padrão de decréscimo gradual por período,
verificado para o domínio moral/interpessoal, notando-se um acréscimo no número de
incidências no 2.º período e um grande declínio no 3.º período. Uma hipótese explicativa para
este efeito poderá ser adiantada se tomáramos em consideração que as categorias constituintes
do domínio sócio-convencional prendem-se mais com as actividades e normativos que regulam
as interacções e os trabalhos decorrentes do processo de ensino e de aprendizagem. Estas
convenções são cooperativamente construídas por todos os elementos da turma, e a sua
apropriação é feita de um modo gradativo. Relembramos que os alunos em consideração
pertencem ao 1.º ano de escolaridade, pelo que a interiorização das regras não se efectuará em
apenas três meses lectivos. O pico de incidências registado no 2.º período poderá reflectir que as
regras foram sendo apropriadas (se os alunos não as conhecessem, não as transgrediam, pelo
menos enquanto não verificassem os efeitos provenientes dessas transgressões). No 3.º período,
a diminuição do número de registos pertencentes às categorias do domínio sócio-convencional,
poderá indiciar que para além das regras, também as consequências respectivas foram
entendidas por todos os alunos. Ainda para o domínio sócio-convencional, o mês que
apresentou mais vezes frequências máximas nas diferentes categorias foi Janeiro, e aquele que
apresentou mais vezes frequências mínimas foi o mês de Março. Verifica-se, também, que
normalmente as transgressões diminuem ao longo dos meses que constituem cada período
lectivo, com tendência a aumentar depois dos períodos de férias, padrão já verificado para o
domínio moral/interpessoal.
Por fim, consideramos conjuntamente, para os domínios moral/interpessoal e sócioconvencional, as autorias dos registos sobre transgressões sociais para este 1.º ano. Em 88% de
todos os registos do DT do 1.º ano os conflitos estiveram relacionados com rapazes, estando as
raparigas implicadas em 12% destes registos. A variação do número de incidentes por período,
tanto para as raparigas como para os rapazes, e de acordo com os dados já analisados
anteriormente para este 1.º ano, decresce à medida que decorre o ano lectivo, verificando-se o
mesmo padrão, em termos globais, para os diversos meses lectivos. Verifica-se, portanto, para o
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primeiro ano, um predomínio de juízos de desaprovação sobre actos de natureza
moral/interpessoal quando comparados com os actos pertencentes ao domínio sócioconvencional. Esta diferença está associada em grande medida às agressões físicas, muito
frequentes neste 1.º ano de escolaridade, embora devamos ter a precaução de reflectir sobre as
interpretações possíveis associadas a esta forma de agir, uma vez que os dados apresentados
fornecem informação no que respeita à forma do comportamento de transgressão, mas não no
que respeita às suas intenções e motivos ou sequer relativamente às consequências desses actos.
A este respeito refira-se que existe maior número de registos sobre agressões físicas do
que todas as ocorrências registadas nas diferentes categorias que constituem o domínio sócioconvencional. Este dado poderá indicar que neste 1.º ano, a resolução de conflitos é efectuada,
sobretudo, de uma forma primária, recorrendo os alunos à agressão física na tentativa de sanar
os problemas. Poderá também indiciar que a funcionalidade do DT, como instrumento de
resolução de conflitos e de construção da moralidade, ainda não foi apropriada, ao mesmo
tempo que poderá denotar a ineficácia destes alunos para se expressarem por intermédio da
linguagem escrita, ainda numa fase inicial do se processo de aquisição. A agressividade,
manifestada através das agressões físicas, estará associada a uma incapacidade destas crianças,
ainda muito novas, para se descentrarem dos problemas em que estão envolvidas e, portanto,
para se distanciarem relativamente a esses conflitos. A interiorização das regras de
funcionamento na sala de aula parece encontrar-se numa etapa bastante primária, uma vez que a
regra do “não bater nos colegas” é uma das mais comuns em todas as salas de aula e uma das
normas unanimemente aceite por todos os alunos.
Uma conclusão comum a vários estudos indica-nos que entre crianças mais novas (2 a 3
anos) o bater e a agressão física, o magoar o outro, tirar ou estragar o que pertence a outros e
insultar são actos errados e “maus” (Vieira, 2002). Para as crianças mais velhas (4 a 6 anos),
este tipo de comportamentos interpessoais também é passível de desaprovação, embora as
crianças destas faixas etárias passem igualmente a considerar outro tipo de actos que não têm
efeitos intrínsecos e directos no bem-estar pessoal ou sobre os direitos dos outros, mas que
constituem transgressões a regras convencionadas como, por exemplo, ser indelicado no
tratamento dirigido a adultos. Os estudos de Nucci e Turiel (1978, citados por Vieira, 2002)
relatam que existem diferenças nas frequências com que as crianças atribuem significados
negativos a actos morais e a actos convencionais, isto é, as crianças tendem a considerar as
transgressões interpessoais com maior frequência do que as transgressões convencionais.
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4.º Ano
No 4.º ano, os juízos de transgressão moral/interpessoal aparecem registados com uma
frequência absoluta de 278 incidentes. A “Agressão Verbal” surge como a categoria mais vezes
assinalada, com uma frequência de 80 incidentes. Considerando a evolução por período lectivo
das frequências de registos neste domínio moral/interpessoal, podemos verificar que existe uma
tendência geral de diminuição do número de incidentes ao longo do ano lectivo, com algumas
excepções em determinadas categorias como a Apropriação de Objectos e a Negação de
Reciprocidade, que apresentam o padrão inverso. Existe nos registos dos alunos do 4.º ano sobre
transgressões morais/interpessoais, analisadas mensalmente, uma grande variação entre as
categorias, sendo Janeiro o mês mais consensual em termos das frequências das transgressões
neste domínio. Em geral, o mês de Outubro apresenta frequências bastante acentuadas
relativamente ao mês de Setembro, coincidindo com uma eventual readaptação dos alunos às
dinâmicas da sala de aula, após um prolongado período de férias lectivas.
Verifica-se que, para o 4.º ano, as agressões físicas são substituídas pelas agressões
verbais como a categoria de transgressão mais vezes inscrita no DT. A influência do processo de
socialização da turma e das rotinas instauradas para resolução de conflitos e da apropriação de
controlo sobre comportamentos mais primários, aparece como incontestável. Em termos das
querelas existentes entre os alunos do 4.º ano, consideradas como transgressões
morais/interpessoais, a agressão verbal parece ser suficiente como forma imediata de lidar com
as situações conflituosas, não necessitando os alunos de recorrer à agressão física.
Quando analisamos os juízos de transgressão sócio-convencional no 4.º ano,
verificamos que constituem uma frequência absoluta de 330 incidentes. A “Comunicação e
Movimento” surge como a categoria mais considerada, com 113 participações. Esta é uma
categoria que está intimamente associada com as regras convencionalmente criadas e
partilhadas pela turma, e que se relaciona sobretudo com a participação inadequada dos alunos
nas actividades propostas. Parece existir uma certa descentração dos dilemas e conflitos
individuais, para uma maior concentração sobre a melhor atmosfera global da turma, que
proporcione a todos os alunos as adequadas condições para o envolvimento e sucesso nas
actividades curriculares. Assim, as regras de carácter sócio-convencional surgem, no 4.º ano,
como as principais reguladoras do grupo. Este padrão é também identificável e justificável com
o aumento do número de transgressões ao nível da execução de Tarefas e Cumprimento de
Responsabilidades, reguladas por normas convencionadas pela turma. A análise da variação das
transgressões de carácter sócio-convencional, por período lectivo, evidencia uma diminuição
gradual do número de incidentes registados do 1.º para o 3.º período, com excepção das
categorias Horários e Responsabilidades e Tarefas que apresentam maiores frequências no 2.º
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período. No domínio sócio-convencional o mês que apresentou mais vezes frequências máximas
nas diferentes categorias foi Outubro, e aquele que apresentou mais vezes frequências mínimas
foi Abril. Também neste domínio, as transgressões diminuem ao longo dos meses que
constituem cada período lectivo, com tendência para aumentar depois dos períodos de férias.
A regulação das diferentes tarefas, por intermédio das normas convencionadas que as
sustentam, ganha neste 4.º ano de escolaridade um peso bastante mais significativo do que
aquele que se verificou no 1.º ano. De facto, a preocupação com a oportunidade de
Comunicação e Movimento, Utilização e Manutenção de Material e com as Responsabilidades e
Tarefas, parece indiciar que para todos os alunos se tornou importante não só a regulação das
relações interindividuais mas também a atmosfera da turma, da qual todos fazem parte
equitativa, e para a qual todos contribuem. É precisamente este tipo de contributo que passa a
ser alvo de um rigoroso controlo e avaliação, seja na competência com que algum aluno
desempenha uma tarefa que lhe foi atribuída por consenso geral, seja no incumprimento de
normas que possam prejudicar o desenvolvimento dos trabalhos e actividades de todo o grupo,
como as constantes movimentações ou o falar inoportunamente. É pelo grupo e para o grupo
que as regras são reajustadas e avaliadas. A equidade verificada e real permite que todos se
sintam responsáveis por esta regulação. A rotatividade das tarefas e a discussão dos conflitos
inscritos no DT é apreciada e considerada no Conselho de Turma. Democraticamente, são
discutidas as situações prejudiciais ao grupo, e os alunos avaliam-se mutuamente quanto ao seu
desempenho semanal.
No que respeita à autoria das transgressões, verifica-se, novamente que são os rapazes
que mais prevaricaram as normas instituídas, contribuindo para aproximadamente 83% de todos
os incidentes relatos no DT enquanto que o grupo das raparigas aparece como responsável por
17% de todas as transgressões cometidas no 4.º ano. Este número total de ocorrências para o
grupo dos rapazes diminui sensivelmente relativamente ao conjunto das ocorrências verificadas
para o mesmo grupo no 1.º ano, e parece relacionar-se sobretudo com a diminuição do número
de incidentes provocados por agressões físicas, que neste 4.º ano também decresceu.
Comparação 1.º Ano vs. 4.º Ano de escolaridade
Quando comparamos os dois anos lectivos percorridos pelos alunos desta mesma turma,
verificamos como resultado mais evidente que existem mais 300 registos de transgressões sobre
juízos sociais (608 para 308) no 4.º ano, ao longo do ano lectivo, comparativamente ao 1.º ano.
Duas justificações parecem alinhar-se na explicação possível destes resultados: por um lado à
medida que os alunos se vão desenvolvendo e evoluindo nas suas aprendizagens curriculares, e
à medida que vão interagindo cada vez mais uns com os outros e adequando as formas de
370
regulação interindividuais, parecem interiorizar não só as normas e regras vigentes no seio do
grupo mas também demonstram uma maior compreensão da funcionalidade do DT e do
Conselho como instrumentos de mediação e promoção sócio-moral. Outra justificação prendese com o entendimento dos alunos das funções sociais da escrita, nomeadamente, a descentração
e mediação impostas por este instrumento semiótico.
A distribuição por domínios sociais permite-nos vislumbrar que tanto para as
transgressões morais/interpessoais como as pertencentes ao domínio sócio-convencional
apresentam frequências totais superiores no 4.º ano. A categoria Agressão Física, muito
frequente no 1.º ano é substituída por outras formas de transgressão moral, no 4.º ano, sobretudo
transgressões pertencentes às categorias agressão Verbal e Outros, demonstrando que os alunos
apropriaram outras formas de reagir aos conflitos, no imediato e em tempo real, denotando uma
maior maturidade. A agressão física como meio de resolução de conflitos vai sendo
progressivamente abandonada.
Observando a comparação entre a evolução do 1.º ano e do 4º ano, em termos das
frequências registadas quer por período lectivo, quer por mês, verificamos que para ambos os
anos lectivos, se regista uma diminuição gradual do número de ocorrências apontadas nos DT, à
medida que transcorrem os anos lectivos. Esta diminuição cadenciada é pautada,
ocasionalmente, por uma inversão do número de incidentes verificados em algumas categorias
do domínio moral/interpessoal. Naturalmente, em virtude de uma maior número total de registos
no 4.º ano, o 1.º ano por período e por mês (em termos globais) apresenta frequências inferiores
nas categorias constituintes do domínio moral/interpessoal. É em Janeiro que se verifica uma
maior homogeneidade de frequências entre o 1,º e o 4.º, mês que se segue a um período de férias
lectivas.
Quando comparamos as transgressões do domínio sócio-convencional entre os dois
anos analisados, verificamos um aumento em todas as categorias deste domínio no 4.º ano, com
ênfase nas categorias “Comunicação e Movimento” e “Responsabilidades e Tarefas”, podendo
ser indicador de um maior envolvimento e participação dos alunos nas tarefas, bem como uma
maior responsabilização dos mesmos por parte da turma. Os alunos levam a sério o
cumprimento das tarefas e responsabilidades para que foram eleitos, o que poderá constituir um
indicador da apropriação por parte dos alunos da própria natureza dessas tarefas (direitos e
deveres). Deste modo, as transgressões associadas a este domínio da moralidade no 4.º ano são
sobretudo causa do desrespeito pelas regras e normas estabelecidas para o funcionamento da
turma.
A comparação dos registos dos DT do 1.º e 4.º ano, para o domínio sócio-convencional,
em termos da sua variação por período e por meses lectivos, demonstram o mesmo padrão já
371
verificado no domínio moral/interpessoal, isto é, uma progressiva diminuição do número de
ocorrências, em termos gerais, para as categorias constituintes deste domínio.
Quanto à autoria das transgressões, nos domínios moral/interpessoal e sócioconvencional, e para ambos os anos lectivos considerados, os rapazes são maioritariamente os
responsáveis pela autoria dos registos ou pelos conflitos assinalados nos DT. A percentagem das
transgressões é sensivelmente equivalente para o grupo dos rapazes, que constituem a maioria
dos elementos da turma analisada, nos dois anos lectivos. A diminuição do número de
incidentes registados do 1.º ano para o 4.º para o grupo dos rapazes deverá estar associada a um
decréscimo verificado no número de ocorrências de agressões físicas. Para o grupo das
raparigas, em ambos os anos considerados, a percentagem de registos não ultrapassa os 15%.
CONCLUSÕES
Os juízos de desaprovação registados nos Diários de Turma (DT) em ambos os anos
lectivos considerados, assinalam actos sociais que constituem uma grande variedade de
comportamentos em torno de regras ou normas que regulam as interacções sociais dentro da sala
de aula e o próprio funcionamento do grupo. Esta multiplicidade de acções manifesta-se no
registo escrito, por intermédio da avaliação negativa dos acontecimentos de natureza diversa, na
coluna “Não Gostámos” dos DT. Assim, aparecem registados comportamentos que violam os
direitos pessoais à integridade física e à propriedade pessoal, ou então que configuram actos
injustos como os de rejeição e exclusão ou a recusa de reciprocidade que, segundo Turiel (1984)
se encaixam no domínio moral ou interpessoal. Por outro lado, também aparecem registados
comportamentos que se relacionam com a transgressão de normas associadas a questões de
carácter sócio-convencional, ou seja, relacionadas com as regras intrínsecas do grupo, com os
modos de agir acordados nos diferentes contextos e actividades, para a manutenção da ordem
social e da união do grupo ou da turma. Verifica-se uma diminuição das transgressões de
carácter moral/interpessoal ao longo dos períodos dos anos lectivos considerados e, aspecto
importante, uma diminuição do número de incidentes catalogados neste domínio do 1.º para o
4.º ano. É provável que à medida que o ano escolar progride, os grupos se tornem mais capazes
de chegar a acordo sobre os tipos de comportamentos sociais que são ou não são aceitáveis do
ponto de vista interpessoal. De acordo com Niza (1996), o “núcleo duro do instituído” nas salas
MEM é formado pelo conjunto de regras que regulam as interacções e as relações com os
outros. Nestas classes, os exercícios sistemáticos de debate de problemas, de confrontos de
pontos de vista, de oportunidades para se colocar no lugar do outro e de busca de soluções são
proporcionados às crianças durante o Conselho Semanal sempre com o suporte da leitura
372
cooperativa dos conteúdos do Diário. É importante salientar que a evocação implícita das regras
sociais construídas em cooperação e instituídas na sala de aula face a incidentes críticos
interpessoais, sócio-convencionais ou que misturam questões morais e convencionais, e à qual o
Diário dá espaço ao registar os juízos de desaprovação da criança, do grupo e do adulto, pode
indicar que as crianças progridem na compreensão da função deste instrumento, para regular as
interacções sociais e o clima de trabalho e, simultaneamente, que o grupo acredita na existência
de um acordo sobre regras e na obrigação implícita de as cumprir (Niza, 1991).
A diferença substancial entre o 1.º e o 4.º ano desta mesma turma, em termos do número
total de registos escritos nos respectivos DT, parece querer indiciar que, pelo facto de no 4.º ano
lectivo terem aparecido bastantes mais ocorrências, as regras de gestão e regulação da turma
parecem ter sido realmente interiorizadas. Parece, então, que todos os alunos parecem estar
alerta para o incumprimento das normas negociadas. Este comportamento poderá indicar que
entre a eclosão de um incidente crítico e a resolução (ou, pelo menos, tentativa de resolução), se
interpõe um mediador semiótico que apazigua e controla as emoções desencadeadas no âmbito
dos incidentes. Este mediador é, nada mais, nada menos, do que a escrita. Ao escreverem a suas
narrativas sobre os incidentes experienciados ou observados, os alunos deslocam efectivamente
o foco do conflito e da agressividade associada para um momento espácio-temporal que não é
imediato. A reacção de impulsividade é adiada para um debate de explicitação e
recontratualização sobre os acontecimentos, que decorrerá, com pleno conhecimento de todos os
elementos da turma, no próximo Conselho de Turma. A mediação semiótica da escrita parece
também deslocar o foco dos incidentes críticos do domínio moral/interpessoal, para o domínio
sócio-convencional, à medida que os alunos evoluem do 1.º para o 4.º ano de escolaridade. Este
processo gradual poderá estar associado a um aumento pelo respeito interindividual entre os
alunos e a uma maior consciencialização da ineficácia e das consequências negativas da
tentativa de resolução de conflitos por intermédio da agressividade e conflituosidade física entre
alunos.
Assistimos, tanto no 1.º ano de escolaridade como no 4.º, e sobretudo do 1.º para o 4.º
ano, a uma redução do número de incidentes críticos de índole física, à medida que transcorrem
os períodos lectivos. Estes dados poderão apontar para a hipótese de que a mobilização de
conhecimentos sobre as regras da sala de aula está em contínuo processo de apropriação. O D T
constitui-se como instrumento de construção da moralidade e de promotor de justiça equitativa,
uma vez que independentemente da força física, estatuto ou influência, todos os alunos poderão
revelar os seus sentimentos, escrever as suas queixas e revelar a sua desaprovação sobre os
incidentes críticos do quotidiano da turma. As agressões físicas vão sendo substituídas, do 1.º
para o 4.º ano, por outras formas de transgressão moral, por exemplo a agressão verbal,
373
denotando uma provável influência do processo de socialização introduzido pela apropriação de
regras comummente criadas, definidas e partilhadas. Logicamente que o número de registos de
incidentes críticos inscritos na coluna “Não Gostámos” se prende, também, com a autonomia e
competência dos alunos na linguagem escrita. Ou seja, os alunos do 4.º ano de escolaridade
terão maior facilidade em escrever e expressar-se por intermédio do Diário de Turma, uma vez
que no 1.º ano de escolaridade serão poucos os alunos que, pelo menos nos períodos iniciais do
ano lectivo, sejam efectivamente capazes de escrever sem o auxílio de uma adulto ou de um
professor. Todavia, o aumento da frequência de ocorrências do domínio sócio-convencional, do
1.º para o 4.º ano, poderá simbolizar a descentração dos alunos sobre os seus problemas
individuais, para uma maior preocupação com as tarefas e actividades em que toda a turma está
envolvida. O respeito e o desrespeito, a eficácia e a ineficácia, a competência e a incompetência,
foram, aliás, alvo de muitos dos juízos críticos inscritos no DT do 4.º ano.
Um aspecto fundamental que aparece neste trabalho, embora de forma implícita, é a
influência do Conselho de Turma. Este tempo semanal introduz na discussão e decisão sobre os
incidentes críticos, uma dupla mediação semiótica: por um lado, procede-se à leitura dos
registos inscritos no Diário durante a semana (mediação da escrita), e portanto, assiste-se, não
ao processo que instaurou o conflito, nem sequer ao conflito em si mesmo, mas às diferentes
narrativas sobre os acontecimentos.
Este aspecto relaciona-se directamente com a importância e funcionalidade do Diário e
do Conselho de Turma como mediadores semióticos. Para além da escrita, outro dos aspectos de
mediação introduzido pelo Conselho de Turma é, precisamente, a distanciação espácio-temporal
que decorre entre a instauração do conflito (e seu registo em Diário) e a discussão e resolução
do mesmo (em reunião de Conselho de Turma). Essa distanciação permite uma descentração
sobre os factos relacionados com a instauração do conflito, e possibilita a tomada de perspectiva
do outro relativamente a essa mesma situação problemática. Esta capacidade para entender o
ponto de vista do outro, é um indicador de desenvolvimento moral. A resolução de conflitos é
assim assumida como tarefa a ser desempenhada por todo o grupo, e todos se responsabilizam
pelas tomadas de decisão (as actas dos Conselhos de Turma são assinadas por todos os
participantes).
É inegável a autonomia que os alunos adquirem no processo de negociação,
participação, e resolução dos problemas do quotidiano da sala de aula e da escola. Todos são
chamados a participar e a intervir, democraticamente, na construção da atmosfera de moralidade
da própria turma. Estamos, portanto, com o Modelo Pedagógico e Curricular do MEM, muito
próximos das “comunidades justas” defendidas por Kolhberg (1987) como um aspecto fulcral
do desenvolvimento da moralidade. As regras da turma são interiorizadas por todos os alunos, e
374
a sua violação é registada para posterior debate democrático. Oxalá, um dia, as sociedades
possam agir em conformidade com o exemplo com que os mais novos, na prática e na
cooperação, nos continuam a incentivar.
Nota: Por motivos de espaço disponibilizado para o resumo, e dada a extensão da
apresentação dos gráficos e tabelas relativos à análise dos dados (que prefaz aproximadamente
10 páginas, optamos deliberadamente por não apresentar qualquer elemento gráfico descritivo
neste resumo
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a importância do diário de turma como instrumento de construção