Esta não é uma cadeira, apenasmente: é um pensamento. É
uma cadeira pensando a cadeira, aspirando a ser todas as
cadeiras possíveis, A cadeira, a idéia da cadeira e das cadeiras.
Dela não se diga, como alerta Read, que “ilustra” os princípios
neoplasticistas:
“Quando, portanto, falamos da catedral gótica como uma
ilustração concreta da Suma, de Tomás de Aquino, em pedra,
devemos recordar que quando São Tomás era ainda um
estudante em Paris, Notre Dame já se erguia em sua glória
sintética e em seu esplendor lógico. Panofski evita essa
metáfora; prefere falar de um desenvolvimento sincrônico da
arquitetura gótica e da escolástica; paralelismo é outra das
palavras empregadas. Panofski diz que a escolástica primitiva
nasceu no mesmo momento e no mesmo ambiente em que a
primitiva arquitetura gótica nasceu em Saint-Denis de Suger.
Podemos talvez aceitar a noção de sincronia, sem abandonar a
nossa tese, se reconhecermos que uma captação plástica dos
conceitos metafísicos básicos era essencial para a síntese
medieval”.
aula
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Autor: Décio Pignatari
História da Arte do Século XX
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CADEIRA RIETVELD
05
Este texto faz parte de um livro
no qual se emprega os termos
da análise semiótica, com base
em Charles Sanders Peirce, o
criador dessa ciência. Tomarei
a liberdade, aqui, de inserir
notas que esclareçam o leitor
leigo. As notas do próprio autor
virão marcadas com a convenção (N. do A.).
:: READ, Herbert
Ob. cit., p. 104. (N. do A)
Trata-se de Imagen e Idea de
Herbert Read, na edição
mexicana de 1957.
Esta é uma sedia ragionata, embora não exatamente no sentido
original dessa expressão, tal como a empregou Carlo Lodoli,
aquele estranho frade veneziano, que manteve correspondência
com Montesquieu e Vico e que foi um designer “avant la lettre”,
na linha funcionalista do Neoplasticismo, de Gropius, de Mies
van der Rohe e de Breuer, como observou o poeta e engenheiro
Leonardo Sinisgalli, no breve ensaio que lhe dedicou, em seu
delicioso Furor Mathematicus. Do frei, diz Sinisgalli, citando
um cronista da época, que dizia “esperar que as costas dessem
forma aos encostos das cadeiras e que o traseiro desse forma
aos assentos”. Chegou a projetar e construir mais de um
exemplar de sua sedia ragionata, que não teve maior êxito na
Itália, mas cuja idéia acabou metamorfoseada em cadeiras
francesas e inglesas. E perguntava: “Não se pode fazer casas
como cadeiras raciocinadas?”.
Expressão francesa que significa
alguém que está à frente de seu
tempo.
SINISGALLI, Leonardo
Furor Mathematicus, Milao,
Mondadon, 1950, pp. 104107. (N. do A.)
A semiótica peircena distingue
três tipos de signo : com
relação a si mesmo, o signo
pode ser quali-signo, (signo de
uma qualidade), sin-signo (de
uma singularidade) e legi-signo
(signo de uma lei); com relação
ao objeto que o signo representa, ele pode ser um ícone
(confunde-se, quase, com o
objeto), um índice (que aponta
para o objeto) e um símbolo
(que representa o objeto por
convenção); com relação ao
interpretante, isto é, ao novo
signo que se forma da relação
entre signo e objeto, o signo
pode ser um rema (uma
hipótese, por exemplo), um
dicente (o interpretante
singular gerado pelo índice) ou
um argumento (uma generalidade, com poder de tornar-se
uma lei geral, comprovável).
A cadeira Rietveld é uma sedia ragionata - mas tambem
ragionante.
No conflito dialético qualis vs. quantum (cultura sensível vs.
cultura reflexiva), é um ícone arquitetônico do sentar, projetado
pelo arquiteto e designer Gerrit Thomas Rietveld, mas o seu
funcionalismo não é de natureza anatômica ou ergonômica:
seu encosto e assentos são ideais, absolutos, hegelianos. – É
um qualissigno que aspira a ser um legissigno, um ícone visando
a um símbolo, um Rema tendendo a Argumento.
Uma cadeira que desoculta os espaços abertos e que tem a
e1oquência muda de uma máquina, diz dela van Doesburg.
Para uma leitura mais sistematicamente didática, valemo-nos
da conhecida tricotomia dos diferentes níveis de abordagem,
conforme o discípulo de Peirce, Charles Morris, e outros,
a saber:
Nivel sintático ou Sintaxe (primeiridade) - estudo das
relações formais entre os signos;
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I
aula
Texto Complementar
Sintaticamente, esse objeto-escultura-arquitetura é uma
estrutura aberta e à vista que, embora necessariamente
volumétrica, exibe uma tridimensionalidade quase que virtual,
apenas indicada por planos, tanto reais quanto virtuais (reais:
encosto, assento e braços; virtuais: indicados pelo suporte e,
vazados, incorporam o fundo). Os paradigmas estruturais são
codificados por paradigmas cromáticos: ponto (amarelo), linha
(verde-negro), plano (as anteriores, mais o azul e o vermelho).
As cores puras não se mesclam, apenas se sobrepõem
juntamente com os elementos-suporte, o que tende a anular o
volume, privilegiando o sintagma geral_bidimensional, corno um
quadro “traduzido para o espaço tridimensional”, ou um objeto
“traduzido” para o plano . Enquanto cadeira, os paradigmas –
(p. ex., assento, encosto, braços) se tocam em pontos, linhas
e planos, num processo construtivo primitivo, como se o encaixe
ainda não tivesse sido inventado.
História da Arte do Século XX
Nivel semântico ou Semântica (secundidade) - estudo das
relações entre signo e objeto, das designações já existentes,
tanto denotativa quanto conotativamente;
Nivel pragmático ou Pragmática (terceiridade) - estudo do
signo ao nível do interpretante, do significado “real” que assume
no uso e no contexto efetivos, o signo “ao vivo”.
05
:: JAFFÉ, Hans L. C.
Ob. cit., p. 143. (N. do A.)
Trata-se de um clássico, De
Stijl (Londres, Thames &
Hudson, 1970) e é a principal
fonte sobre o neoplasticismo
neste livro de Pignatari.
:: MORRIS, Charles
Segni, Linguaggio e Comportamento, Longanesi, Milão, 1949,
pp.291-93. (N. do A.)
É um protótipo ao mesmo tempo construído e em construção,
com andaimes permanentes. É um princípio de cadeira, em
ambas as acepções do termo. Os braços são ambíguos, entre o
ponto, a linha e o plano. A extensão da superfície estabelece
hierarquias. A ortogonalidade da estrutura ou subsintagma de
suporte é rompida pelo ruído informacional do subsintagma
encosto-assento diagonalizado em ângulo obtuso - o único
angulo não-reto de todo o sintagma, talvez em sinal de respeito,
apesar de tudo, a ditames de natureza ergonométrica... O
nível semântico, que é o nível de secundidade, da relação signo/
objeto - uma relação diádica - implica uma negação. O signo é
uma forma significante aberta a possibilidades de significação,
que é negado pelo objeto, ao impor-lhe este, ao signo, uma
limitação significante, reduzindo as suas possibilidades de
significação. Quando se trata de um signo utilitário, como uma
cadeira, o nível semântico indica a função do signo-objeto - no
caso, o ato de sentar-se
Peirce também distingue entre
três categorias através das
quais, por gradação, a mente
apreende o mundo. Trata-se da
Primeiridade (anterior à
consciência), Secundidade
(conflito, oposição) e
Terceiridade (generalidade, lei).
Os três tipos de signos e os
três tipos de classificações
citadas anteriormente, articulam-se a essa concepção. O
próprio signo é definido como
algo (1) que representa um
objeto (2) para alguém, criando
na mente deste alguém um
signo mais evoluído, ou
interpretante (3). Aqui Décio
Pignatari propõe uma analogia
entre as categorias de Peirce e
os níveis da linguagem e do
signo propostos por Charles
Morris, conforme são descritos.
Com a cadeira Rietveld, é neste nível que se dá o conflito maior
(antítese vs. tese) , pois o sentar-se não parece coadunarse com a estrutura sintática, que ao mesmo tempo propõe e
repele o significado. Temos aqui, exatamente, um signo utilitário
não-funcional.
Paradigma e Sintagma, duas
noções da Lingüística, expr
essam os dois eixos pelos
quais se montam as frases nas
línguas ocidentais: o
paradigma é o eixo das
seleções (onde estão, por
exemplo, as categorias
gramaticais ou, no caso, as
partes da cadeira) e o
sintagma é o eixo das combinações (que segue as regras
da sintaxe, como aprendemos
na escola e que, no caso da
cadeira, resulta no produto
final, fruto da combinação dos
elementos).
No caso dos signos utilitários, o signo é a forma, e o “objeto” é
a sua função: daí dizer-se que o signo utilitário é um signo de
Si mesmo. É neste nível que cabe o famoso principio de Louis
Sullivan: “a forma segue a função”. A cadeira Rietveld contraria
esse princípio: nela, a função segue a forma. É ao nível de
terceiridade, ao nível chamado “pragmático”, do interpretante,
que se vai dar a negação da negação (síntese). Não me parece
muito precisa essa denominação - Pragmática - embora em
vias de consagrar-se pelo uso. Se, de um lado, facilita a
compreensão do significado “real” do signo posto em uso e
contexto, em especial no caso dos signos utilitários, explicitando
a oposição entre emissor e receptor, entre produtor e consumidor
ou usuário (“o significado é o uso”, diz Carnap), por outro lado,
vem ela contaminada pelo pragmatismo comportamentístico
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II
Nas ilustrações da Prancha IV,
vemos a aplicação sistemática
do princípio do paramorfismo à arquitetura - uma arquitetura
que aspirava ao modelo e ao módulo e não à solução de problemas
particulares: “Não estavam preocupados com uma casa em
particular, que, na terminologia do De Stijl, seria uma construção
arbitrária, sujeita às incertezas do acaso, em qualquer terreno
escolhido aleatoriamente, mas com os problemas gerais do
espaço para viver”.
De uma forma geral, pode-se dizer que o influxo neoplasticista
se infundiu e difundiu por toda a chamada arquitetura moderna,
embora certamente influenciada, por sua vez, no caso
arquitetônico, pela proposta da “casa-dominó”, de Le Corbusier,
que também seria uma exceção marcante na ruptura com o
Neoplasticismo, particularmente em Ronchamp, onde a
ortogonalidade parece destruída, juntamente com a linha reta.
Robert Venturi, corn a sua “arquitetura simbólica”, e Beaubourg ,
a mais radical proposta dos tempos recentes (e que analisaremos
mais adiante) também fazem oposição à tradição inaugurada
pelo De Stjil. Não foram os neoplasticistas, contudo, que levaram
a efeito na urbe a signagem arquitetônica de seus princípios,
de modo sistemático - e sim Mies van der Rohe. Se nos fosse
permitida uma especulação, diríamos que a arquitetura e o
urbanismo gregos tinham na clausura do quadrado o seu íconematriz. O quadrado com os ângulos rebatidos para o centro uma forma de oposição dialética - gera algo assim como um
contra-quadrado, um quadrante, uma forma aberta, que é a
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aula
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Expandir a cadeira Rietveld a uma escala monumental ou reduzila a uma miniatura não destruiria a sua informação principal,
que se dá ao nível repertorial de uma tal forma que o nível
semântico parece ficar elidido, numa ligação direta entre o
sintático e o do interpretante - ambos com maior carga ou teor
informacional
. A estrutura formal é recuperada para a
geração de uma significação amplíssima, qual seja, a de que a
sua “função” é outra, não estando situada ao nível do utilitário,
do aqui e agora do sentar-se, mas ao nível da representação.
Em toda a sua concretude, é uma cadeira “teórica”, cosa
mentale, um protótipo de protótipos, um arquétipo construído.
É um “princípio de cadeiras”, assim como se fala de “princípio
de expansão dos gases”. É um conceito icônico - ou seja, um
modelo. Mesmo ancorada fortemente no esteio verbo-simbólico
do Hegelianismo e do Neoplasticismo, a sua iconicidade resiste,
incentivando o verbal, mas não aceitando ser reduzida a ele. O
sintagma se monta segundo paradigmas paramórficos , as
formas semelhantes se rebatendo umas nas outras, do ponto
quadrado ao plano retangular, num constelacionamento de
semelhanças moduladas, de trocadilhos que se co-respondem.
É o cromo-plasticismo, que Mondrian desejava ver aplicado à
arquitetura, tendo em vista uma síntese monumental: “Os
mesmos conceitos são expressos pela poltrona Rietveld, cuja
construção simples confere urna forma harmoniosa à função de
sentar”.
História da Arte do Século XX
desenvolvido por Charles Morris, onde a dialética fica
neutralizada por uma espécie de recuo à lógica tradicional e
linear, de causa-e-efeito. Preferimos nos referir a esse nível
como nível repertorial, onde todo o complexo de signos,
diacronica e sincronicamente, é posto em jogo na operação
significante, segundo o repertório de cada ser ou grupo
(animado, inanimado ou maquinal) - ou, simplesmente, nível de
interpretante.
05
ergonométrica
A ergonomia é a ciência que
estuda a adequação dos
corpos aos objetos. É parte de
todo currículo de design.
Refere-se o autor à concepção
da dialética de Hegel, outro
autor muito usado nesse
estudo. A tese e a antítese
são categorias ideais de cujo
conflito resultaria a síntese.
De fato, isto ocorre, pois hoje
é comum encontrar miniaturas
dessa cadeira em várias lojas
de Museus pelo mundo.
De paramorfose, semelhança
de formas.
:: JAFFÉ, Hans L. C.
Ob. cit., pp. 162-63. (N. do A.)
:: Ira!
Aqui Pignatari passa a se
referir aos projetos de residência de Van Doesburg e
Eesteren reproduzidos nessa
aula.
::
JAFFÉ, Hans L. C.
Ob. cit., p.31. (N. do A.)
Le Corbusier é o principal
representante, na arquitetura,
do esprit nouveau e configura a
forma arquitetônica que mais
conhecemos modernamente.
Trabalhava com um rígido
código de proporções e foi a
principal influência dos brasileiros Oscar Niemeyer e Lúcio
Costa. O prédio do Ministério da
Educação, no centro do Rio de
Janeiro, deve a ele seu traçado
original.
III
aula
Texto Complementar
Algumas composições de Mondrian, entre 1915 e 1917, são
também conhecidas corno as da fase “Mais e Menos”; elas
exibem uma hesitação entre o quadrado e a cruz, que se vai
tornar determinada e determinante em toda a sua obra, numa
contraposição que pode ser lida como a oposição dialética entre
dois grandes sintagmas: o sistema viário (cruzamento) e o das
edificações (quadras), tal como de resto ocorre na estrutura
reticular da tecelagem e da cestaria. Essa concepção
estruturante chegaria ao seu ponto extremo de exacerbação
no Boogie Woogie da Vitória, que já aponta outros caminhos
e outras formas dinâmicas de organização urbanística e
arquitetônica, como a dos agrupamentos constelares ou
arquipelágicos, distribuídos em grandes espaços “vazios”.
História da Arte do Século XX
cruz - ícone-matriz da arquitetura da Idade Média, e que ainda
presidiu ao projeto de Brasília, na concepção de Lúcio Costa.
05
:: Beauburg
O Centre Georges Pompidou,
em Paris, é talvez o mais
importante museu de arte
moderna e contemporânea
francês. Foi projetado por
Richard Rogers e Renzo Piano
(1971-77) e será objeto de
comentários ainda nesse
curso. Pignatari também se
refere ao arquiteto Robert
Venturi, autor do clássico que
inaugura o pós-modernismo
em arquitetura (Learning from
Las Vegas, 1977).
Reproduzimos, em nossa aula,
o Broadway Boogie-Woogie, ao
qual se aplicam as mesmas
observações.
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