Uma Perspectiva Emancipadora da Pesquisa e da Ação Baseadas na Determinação Social da Saúde* Jaime Breilh I. INTRODUÇÃO Ao tornar públicas as evidências científicas sobre os efeitos negativos em saúde oriundos da iniqüidade social e da injustiça, não somente se divulgam estas evidências, como também se faz uma denúncia. E ainda mais, quando esta denuncia é feita para todo o mundo, contribui-se não somente com a difusão do conhecimento acadêmico sobre “as causas das enfermidades”, mas também se reporta à mobilização daqueles agentes sociais interessados em erradicar tais iniqüidades e injustiças. Quando se coloca no centro da agenda da saúde mundial a necessidade de mobilização social para superar a iniqüidade, vai-se mais além das ações técnicas dirigidas a abrandar os estragos da iniqüidade; propõe-se, ao mesmo tempo, elaborar um programa de mudanças sociais que possibilitem o direito humano à saúde, em contrapartida dos numerosos casos de enfermidades e morte desnecessários no mundo atual. O trabalho da Comissão de Determinantes Sociais de Saúde (CDSS), assim como de diversos grupos e organizações sociais que têm surgido em torno dela, na contracorrente das postulações neoliberais, têm favorecido a denúncia da iniqüidade, têm contribuído para lhe dar visibilidade mundial y têm promovido mobilização social. Por sua vez, as evidências e denúncias apresentadas, abrem a discussão sobre um programa de mudança social que possibilite tornar realidade o direito humano à saúde. A Associação Latino-americana de Medicina Social, comunidade que nos une a acadêmicos, trabalhadores de saúde e movimentos sociais que, tanto no campo de estudo da determinação social da saúde, como no da mobilização social, temos trabalhado desde várias décadas na defesa do direito à saúde, não pode deixar de aprovar as denúncias que a CDSS tem feito nesta direção, assim como trazer nossos pontos de vista para a discussão que sobre estes problemas e sobre um programa de mudanças sociais que produzirá a informação para a CDSS. As informações dos grupos de pesquisa e o esboço do relatório final da CDSS nos colocam um conjunto de evidências sobre o efeito das iniqüidades sociais sobre as enormes desigualdades em saúde, entre e dentro dos países do mundo. Trata-se de denúncias, a maioria de situações lamentáveis, sobre as quais os grupos de pesquisa e a própria CDSS têm construído um marco ético, um marco conceitual e uma proposta política e programática. Assim, o propósito central deste documento é buscar alguns pontos centrais da discussão destes problemas, a partir da perspectiva da medicina social latino-americana. * Extraído de: http://www.alames.org/documentos/ponencias.pdf, página do “Taller Latinoamericano de Determinantes Sociais de la Salud”, de 30 de setembro a 2 de outubro de 2008, na Universidade Autônoma do México, Cidade do México. Easy PDF Creator is professional software to create PDF. If you wish to remove this line, buy it now. I. O PROBLEMA DA DETERMINAÇÃO SOCIAL DA SAÚDE A determinação social da saúde e da doença é um problema central para a Medicina Social e para a Saúde Coletiva Latino-americana (MS e SCL). Este tema tem sido motivo de reflexão há várias décadas, não somente como campo do saber científico, mas também como vínculo com os movimentos e resistências populares em defesa de sua saúde. Por tal motivo, iniciamos este documento contrastando as posições apresentadas pela CDSS e pela MS e SCL. A CDSS parte de um esquema geral da determinação social da doença que coincide e recupera o enfoque da epidemiologia social européia1. Este enfoque se resume ao esquema que é apresentado a seguir. Existem, segundo este modelo, dois tipos de determinantes sociais da saúde. Os primeiros são os estruturais, que produzem as iniqüidades em saúde, e os segundos são os chamados determinantes intermediários. Os determinantes estruturais terão impacto na equidade em saúde e no bemestar através de sua ação sobre os intermediários. Ou seja, estes últimos podem ser afetados pelos estruturais e, por sua vez, afetar a saúde e o bem-estar. a) Determinantes estruturais Segundo o modelo, os determinantes estruturais estão conformados pela posição sócio-econômica, pela estrutura social e pela classe social; entende-se que é deles que depende o nível educativo que influi na ocupação [emprego] e esta última, por sua vez, na renda. Neste nível se encontram, também, as relações de gênero e de etnia. Estes determinantes sociais, por sua vez, estão influenciados por um contexto sócio-político cujos elementos centrais são o tipo de governo, as políticas macroeconômicas, sociais e públicas, bem como a cultura e os valores sociais. A posição sócio-econômica, por meio da educação, do trabalho e da renda, configurará os determinantes sociais intermediários. b) Determinantes intermediários Estes incluem um conjunto de elementos categorizados em circunstâncias materiais (condições de vida e de trabalho, disponibilidade de alimentos, etc.), comportamentos, fatores biológicos e fatores psicossociais. O sistema de saúde será, por sua vez, um determinante social intermediário. Todos estes, sendo diferentes segundo a posição sócio-econômica, determinarão um impacto na eqüidade em saúde e no bem-estar. 1 Closing the gap in a generation: health equity taking action on the causes of the causes. The Commission on Social Determinants of Health Draft Final Report December 2007. Easy PDF Creator is professional software to create PDF. If you wish to remove this line, buy it now. As posições tomadas pela MS e SCL coincidem com o esquema anterior, e com outros da CDSS e da epidemiologia social européia, ao reconhecer a existência de uma articulação múltipla e complexa entre os processos sociais e os processos biopsíquicos de indivíduos e coletividades humanas. Assim, tanto uma como outra corrente reconhecem que os processos sociais macro têm variadas correlações com os padrões de saúde e de doença, e que esta relação não é única, linear e mecânica, nem se dá somente através da articulação de distintos níveis. Mediante esta articulação, a sociedade determina as condições de vida e estas últimas, na medida em que interagem com processos biopsíquicos específicos, modificam indivíduos e coletividades, seja fortalecendo sua saúde ou produzindo doença. No entanto, existem duas diferenças importantes entre a perspectiva da CDSS e da epidemiologia social européia, e a da MS e SCL. A primeira diferença está nas diferentes construções teóricas que a epidemiologia social européia e a MS e a SCL têm feito sobre as relações e processos sociais. Nas as construções elaboradas pela MS e pela SCL, iniciadas a mais de 40 anos, pretende-se explicar, de maneira sintética: a) o que é inerente à sociedade capitalista em termos de suas formas de propriedade, poder e divisão do trabalho, assim como as formas através das quais a produção e a reprodução próprias do capitalismo produzem as diferenças abismais na qualidade de vida das diferentes classes sociais, gêneros e etnias. Às iniqüidades por classe social devem se somar as iniqüidades geradas pelo patriarcado; expressas nas diversas formas de discriminação de gênero e o eurocentrismo expressado nas diversas Easy PDF Creator is professional software to create PDF. If you wish to remove this line, buy it now. relações coloniais de racismo que se tecem entre povos originários e/ou culturas subalternas com as culturas hegemônicas; b) as formas através das quais as iniqüidades de classe, gênero e etnia - com que se nutre a sociedade capitalista -, produzem grandes diferencias nas condições de vida, o que, por sua vez, se expressa nos distintos perfis de saúde, doença e atenção à saúde; c) as formas através das quais os indivíduos e as coletividades criam um conjunto de sentidos e significados da saúde e da vida que se materializam em práticas de saúde; do mesmo modo como as formas através das quais essas práticas em saúde entram em interação com as condições de vida determinadas para indivíduos e coletividades, conformando o que se tem chamado de modos de vida. As primeiras elaborações da MS e da SCL se centraram no papel da classe social2 e no processo de trabalho3 sobre os diferenciais de saúde e de doença, com o que se reivindicou a centralidade do modo de produção na distribuição da riqueza e, portanto, nas condições materiais de existência. Posteriormente, a partir desta premissa, se desenvolveu a compreensão de que a saúde e a doença das populações tinham que incluir o papel dos significados e da subjetividade, e que os aspectos simbólicos da saúde também podem ser entendidos a partir de uma perspectiva de poder, de resistência e de conflito. Assim, os sentidos e significados que as sociedades outorgam a diferentes aspectos da vida e da saúde podem nas instituições, nas práticas e subjetividades, e deste modo afetar negativa ou positivamente a saúde. Este reconhecimento do simbólico e do subjetivo deu lugar a uma maior utilização de metodologias qualitativas no campo da epidemiologia4; d) as diversas respostas frente à doença, que se expressam em diferentes práticas em saúde: os serviços médicos hegemônicos, outras práticas que não são hegemônicas e que coexistem com aqueles5, as resistências dos que estão ‘embaixo’ diante das políticas e programas dos que estão ‘em cima’, aspectos assumidos sempre pelo Estado como algo a ser aceito obedientemente pelos de ‘baixo’ com o argumento de que têm sustentação cientifica; e) as formas através das quais as práticas em saúde conformam o uso dos recursos disponíveis ou se desenvolvem como diversidade de lutas e movimentos sociais contra as classes dominantes, direcionados para eliminar as restrições que impedem de viver uma vida saudável, o que necessariamente passa pela ampliação dos espaços para decidir em liberdade e com dignidade, segundo os sentidos e significados construídos, as formas de viver, de desfrutar, e por que não, de “gastar” a vida de indivíduos e comunidades, em eqüidade e democraticamente; f) as formas nas quais as classes dominantes exercem sua hegemonia dentro da sociedade, assim como as formas através das quais as classes subalternas vão construindo uma contra-hegemonia e o papel que ocupa dentro de destas, a luta pela saúde e pelo direito à saúde; e 2 Bronfman M & Tuirán R. La desigualdad social ante la muerte: clases sociales y mortalidad en la niñez. Cuadernos Médico Sociais 1983; 29:53-75. 3 Laurell, Asa Cristina “Trabalho y Salud: Estado del Conocimientos”, en Franco, Saúl, Nunes, Everardo, Breilh, Jaime, Laurell, Asa Cristina (eds.) Debates en Medicina Social Serie Desarrollo de Recursos Humanos N° 92 (Quito: OPS/ALAMES); 1991. 4 Mercado FJ & Robles L. Investigación cualitativa en salud. Perspectivas desde el occidente de México. Universidad de Guadalajara, México, 1998, 313pp. 5 Menéndez E. Antropología médica. Orientaciones, desigualdades y transacciones. Cuadernos de la Casa Chata 179. Ciesas, México, 1990. Easy PDF Creator is professional software to create PDF. If you wish to remove this line, buy it now. g) a premissa de que a distribuição da saúde e da doença, assim como a resposta social organizada diante das mesmas, é produto dos conflitos que se dão no interior das sociedades e que estes conflitos formam parte da batalha pelo poder entre as classes dominantes que articulam distintas estratégias para manter sua hegemonia e dominação e os diferentes atores como sindicatos, movimentos sociais, etc. Nas construções teóricas da MS e da SCL, portanto, se estabelece uma articulação entre a crítica do que é a sociedade, as formas nas quais produz ou se anula a saúde e as formas com que dela brotam a defesa da saúde e a luta por uma sociedade melhor, sem a exploração e o espólio próprios da sociedade capitalista. Os marcos conceituais da CDSS e da epidemiologia social européia, por seu lado, prestam muito pouca atenção ao que é a sociedade atual, centrando-se no que ela produz em termos do modelo educação – emprego – renda. Eles se baseiam fundamentalmente na sociologia funcionalista6,de acordo com a qual é da estratificação sócio-econômica que deriva a relação entre escolaridade, ocupação e renda. Assim, para eles, um dos pontos centrais daquilo que definiria a justiça ou injustiça social é o fato de que a sociedade propicie, de forma igual, uma boa educação que garanta melhores empregos e, portanto, maiores rendas, o que por sua vez permita obter melhores condições materiais e, assim, uma melhor saúde. Desta forma, as transformações que são possíveis de se ver a partir desta ótica são apenas as melhoras possíveis dentro de uma sociedade inerentemente inequïtativa, da qual se eliminou suas arestas mais agressivas e letais (como, por exemplo, o trabalho forçado, o trabalho infantil, o trabalho perigoso, etc.). No enfoque da CDSS, o âmbito privilegiado para se conseguir as transformações propostas são as políticas de Estado e a promoção de culturas e valores sociais. O campo de defesa da saúde é, então, privilegiadamente, o campo de mudança nas políticas macro-econômicas, sociais e públicas (componentes do contexto no esquema visto acima) para favorecer uma melhor educação, emprego e renda, que repercutirão em melhoras nas condições materiais e, consequentemente, na saúde. Portanto, os objetos da crítica da MS e da SCL e os da CDSS, no campo da determinação social da saúde, são distintos. Para as duas primeiras, eles se iniciam com a natureza mesma da sociedade capitalista, e para a segunda, com as possíveis repercussões que esta produz em matéria de educação, emprego e renda, gênero ou etnia. Mas mesmo desta última posição derivam distintas estratégias e existe um acordo importante entre estas três concepções – educação, emprego e renda – que consiste em tornar visíveis os determinantes sociais mais imediatos da saúde, da doença e das formas de atenção, e a de lutar por medidas imediatas (através de políticas nacionais e internacionais) que melhorem a saúde, seja na perspectiva de chegar a uma situação melhor dentro da sociedade opressiva ou, inclusive, na perspectiva de superar as formas atuais de organização social opressiva. A MS e a SCL, de sua parte, têm como categoria fundamental a categoria marxista de classe social, pois desta perspectiva, a desigualdade sócio-econômica tem sua origem nas relações de exploração derivadas do processo de produção. Da relação que os indivíduos mantêm com os meios de produção é que deriva sua posição nas relações de domínio e exploração7. Estas relações são determinadas pelas formas que assumem, numa sociedade, a propriedade e o trabalho e as suas 6 Krieger N, Williams DR, Moss NE. Measuring social class in US public health research. Annu Rev Public Health 1997; 18: 341-78. 7 Santos JAF. A teoria e a tipologia de classe neomarxista de Erik Olin Right. Dados 1998; 41 (2). Easy PDF Creator is professional software to create PDF. If you wish to remove this line, buy it now. conexões através da produção, distribuição e consumo de bens, serviços e informação. As classes sociais são “grandes grupos de homens que se diferenciam entre si pelo lugar que ocupam num sistema de produção historicamente determinado, pelas relações em que se encontram com relação aos meios de produção (…), pelo papel que desempenham na organização d trabalho e, consequentemente, pelo modo e pela proporção em que recebem a parte da riqueza de que dispõem. As classes são grupos humanos, um dos quais pode se apropriar do trabalho do outro, por ocupar postos diferentes num determinado regime de economia social”8. A segunda diferença, vinculada com a anterior, é que a MS e a SCL outorgam um peso muito maior às mudanças na correlação entre as grandes forças sociais na transformação da qualidade de vida, como parte dos processos de geração de uma contra-hegemonia das classes subordinadas frente ao poder econômico, ideológico e político das classes dominantes, aspecto que será desenvolvido de maneira mais ampla no ponto IV deste documento. Ambas as diferenças (a existente entre os modelos epistemológicos e teóricos da determinação social da saúde e a existente entre os determinantes de mudança social), atravessarão as distintas temáticas de cada um dos informes parciais preparados pela CDSS9 (globalização, trabalho, desenvolvimento da criança, gênero, cidade, exclusão social, meio ambiente e sistemas de saúde). II. PROBLEMAS ÉTICOS: DESIGUALDADE, INIQÜIDADE E INJUSTIÇA O conceito de desigualdade social em saúde pode ser visto a partir de duas perspectivas: a) uma perspectiva conceitual, na medida em que representa uma forma de abordar a realidade sanitária e b) uma perspectiva ética, quando a discussão se centra na valoração das diferenças nas condições de vida e de saúde que existem entre os grupos sociais. Desde a ótica da ética, a desigualdade social pode ser vista como um fator que limita o pleno gozo dos direitos humanos de vários setores de uma sociedade10. A saúde é conceituada como uma necessidade básica de qualquer ser humano, uma vez que ela é um requisito para que os sujeitos possam alcançar as metas que considerem importantes, bem como para ter uma participação com êxitos na vida social11, pelo que, a desigualdade social em saúde implica um ato imoral e injusto, dado que vários setores da sociedade não podem satisfazer essa necessidade básica. Neste campo a discussão se dirige, portanto, para definir o que se considera injusto em termos da distribuição da doença dentro de uma população. De acordo com Whitehead12, as desigualdades ou iniqüidades em saúde são injustas quando não são resultado da livre escolha dos indivíduos, e sim produto de situações que 8 Bronfman M & Tuirán R. La desigualdad social ante la muerte: clases sociales y mortalidad en la niñez. Cuadernos Médico Sociales 1983, 29: 55. 9 A discussão também contempla a forma com que foram selecionados os temas ou campos dos informes parciais. 10 Krieger N. Theories for social epidemiology in the 21st century: an ecosocial perspective. Int J Epidemiol 2001; 30: 668-77. 11 Doyal L, Gough I. A theory of human need. Londres: Ed. MacMillan, 1992. 12 Whitehead M. The concepts and principles of equity and health. Int J Health Serv 1992; 22 (3): 429-45. Easy PDF Creator is professional software to create PDF. If you wish to remove this line, buy it now. estão fora de seu controle. A mesma autora assinala que as diferenças nas condições de saúde derivadas de desigualdades sociais são evitáveis, já que não são diferenças produzidas pela biologia dos indivíduos. Amartya Sen13 tem advertido que é necessário fazer a diferença entre ganhos e a liberdade de ganhar (freedom to achieve) e que neste terreno, o conflito real se dá entre os diferentes tipos de liberdade de que desfrutam as pessoas. A respeito do conceito de “desigualdade de oportunidades”, Amartya Sen pondera que melhor seria se referir a “desigualdade nas capacidades” e sustenta que a sociedade deve oferecer a seus membros a possibilidade de aumentar suas capacidades de exigir dela justiça e saúde e não somente outorgar-lhes os bens que possam lhes fazer falta. Um segundo ponto de discussão com a CDSS é o da caracterização da desigualdade, da iniqüidade e da injustiça e seus vínculos com as formas de organização social. A CDSS tem se baseado, em grande parte, nos desenvolvimentos conceituais de Margaret Whitehead14 sobre esta problemática. Resumidamente, a CDSS parte do conceito de que uma parte importante das desigualdades epidemiológicas em saúde tem uma origem social. A estas desigualdades, cuja origem está nos diferentes lugares que as pessoas ocupam na ordem social - e que são sistemáticas e evitáveis – a CDSS as designa sob o conceito de INIQÜIDADES EM SAÚDE e, na medida em que elas atentam contra o direito humano à saúde, a CDSS estabelece que as iniqüidades na saúde são injustas. Segundo este enfoque, as iniqüidades em saúde podem ser causadas, entre outras coisas, por condutas danosas para a saúde devidas a um “grau de escolha de estilos de vida” severamente restringido (por exemplo, alimentação restringida por carências econômicas); exposição a condições de vida e trabalho insalubres e estressantes, ou ao acesso inadequado a serviços essenciais de saúde e outros básicos como saneamento, moradia ou atenção médica. As iniqüidades em saúde, no enfoque da CDSS, têm suas causas na distribuição desigual da riqueza e do poder entre grupos de indivíduos na sociedade. O objetivo final da CDSS é melhorar a saúde mundial pela via de alcançar a eqüidade em saúde, encarando-a como um assunto de justiça social. Para lograr a eqüidade em saúde se necessitam políticas sociais que empoderem indivíduos, comunidades e países e a redistribuição da riqueza social, a fim de promover uma vida saudável e próspera. As medidas propostas, como se verá com maior detalhe num momento seguinte, estão orientadas para recomendar políticas que reduzam as desigualdades em saúde, eliminando a disparidade em saúde no curso de uma geração. A medicina social latino-americana (MS e SCL), desde seu surgimento, tem se manifestado em documentos, investigações e ações, numa direção semelhante à da CDSS. 13 Sen A. Capacidad y bienestar, en La calidad de vida. comp. de M.C. Nussbaum y A. Sen. México. FCE, 1993. 14 Whitehead, M., Göran Dahlgren, Levelling up (part 1): a discussion paper on concepts and principles for tackling social inequities in health, WHO Collaborating Centre for Policy Research on Social Determinants of Health University of Liverpool. Göran Dahlgren Margaret Whitehead, Levelling up (part 2): a discussion paper on European strategies for tackling social inequities in health Studies on social and economic determinants of population health, No. 3 WHO Collaborating Centre for Policy Research on Social Determinants of Health University of Liverpool. Easy PDF Creator is professional software to create PDF. If you wish to remove this line, buy it now. Um compromisso central da MS e SCL tem sido estudar e evidenciar as grandes desigualdades em saúde no mundo derivadas das formas de organização social e da injustiça. Porém, ela tem conceitualizado a iniqüidade de uma maneira distinta da CDSS e, portanto, tem impulsionado estratégias distintas desta. De maneira resumida, e seguindo a um de nossos principais autores, a medicina social latino-americana (MS e SCL), estabeleceria o seguinte marco15: As sociedades ineqüitativas são aquelas onde existe um processo de distribuição desigual do poder. Não somente do poder que controla a propriedade e o uso das riquezas materiais, mas também o poder que se requer para definir e expandir a identidade, os projetos e as aspirações de utopias. A iniqüidade não se refere à injustiça na distribuição e acesso, mas ao processo intrínseco que a produz. A iniqüidade diz respeito ao caráter e modo de ser de uma sociedade que determina a repartição e acesso desiguais (desigualdade social), constituindo-se como conseqüência desse modo de ser. Esta distinção é muito importante porque se nossa análise estratégica se fixa no nível da desigualdade, estaríamos reduzindo ou desviando nossa atenção para os efeitos, deixando de enfocar seus determinantes. A iniqüidade dá conta da essência do problema, é o que está no fundo ou na raiz, enquanto a desigualdade é uma evidência empírica que se torna clamorosa nos dados estatísticos. A desigualdade é uma injustiça no acesso, uma exclusão produzida frente ao usufruto, uma disparidade na qualidade de vida, enquanto a iniqüidade é a falta de eqüidade, ou seja, a característica inerente a uma sociedade que impede o bem comum. A iniquidade é a injustiça produzindo desigualdades. Então, para a compreensão da desigualdade é necessário revelar a iniqüidade que a produz. A desigualdade é, melhor dizendo, uma expressão observável típica e grupal da iniqüidade. Expressa o contraste de uma característica ou medida produzida pela iniqüidade. A categoria desigualdade é a expressão observável de uma iniqüidade social. As desigualdades são medidas, as iniqüidades são julgadas. Quando aparece historicamente a iniqüidade, isto é, a apropriação do poder e da concentração do mesmo em determinadas classes, em um dos gêneros ou em algumas etnias, então a diversidade, em lugar de ser fonte de progresso humano, passa a ser um veículo de exploração e subordinação. A origem primogênita de toda iniqüidade é a apropriação do poder: a apropriação privada da riqueza que deu origem às classes sociais, a apropriação patriarcal do poder e a apropriação por parte de grupos étnicos situados em vantagem estratégica. Esta é a tríplice iniqüidade que produz nossas desigualdades sociais em saúde. As desigualdades em saúde, na sociedade atual, são produto desta tríplice iniqüidade que determina aquelas e que acompanha, inevitavelmente, uma sociedade como a capitalista, que está regida pela acumulação da riqueza num pólo, e a exploração, o saque e a exclusão em outro pólo da sociedade. Por tanto, para a MS e SCL, não se trata de centrar-se ou limitar-se às desigualdades sociais em saúde (que a CDSS equipara com iniqüidades), mas sim em examinar a iniqüidade que lhes dá origem, a mesma que deverá ser julgada a partir da apropriação de poder e de riqueza que a produz e as formas nas quais se manifesta. Assim, a MS e a SCL, ainda que apóiem o avanço de políticas sociais que 15 Breilh, Jaime. Epidemiología Crítica Ciencia emancipadora e interculturalidad. El Lugar Editorial, Buenos Aires, Argentina, 2003, 1a. Edición. Easy PDF Creator is professional software to create PDF. If you wish to remove this line, buy it now. reduzam a desigualdade em saúde - e nisso coincidem com a CDSS -, não limitará sua ação a isto, mas buscará a superação social da iniqüidade que as produziu16. III. OS DETERMINANTES SOCIAIS DA SAÚDE E A AÇÃO POLÍTICA A CDSS vem chamando a atenção sobre a importância de se ter um enfoque de determinantes sociais retomando a tradição de Alma Ata, que assinalava que os avanços em saúde, além de incluir ações médicas curativas e de prevenção específica, deviam incluir outros tantos aspectos relacionados com o “desenvolvimento”. Depois do retrocesso que significou o abandono da concepção original de Atenção Primária em Saúde (e sua substituição pelos pacotes mínimos) e da política neoliberal que predominou na OMS, fazendo da saúde uma mercadoria, a formação da CDSS e seu trabalho podem ser vistos como uma tentativa em reconsiderar e atualizar os enfoques de Alma Ata. Em lugar do lema “Saúde para todos no ano 2000”, a CDSS tem colocado como objetivo alcançar a eqüidade em saúde e como meta estabeleceu “acabar com os desníveis em saúde existentes no mundo, no período de uma geração”. Para lograr tal intento, tem-se estabelecido um conjunto de passos classificados em dois grupos: os condutores estruturais e as mudanças nas condições de vida. No primeiro grupo estariam situados os seguintes elementos: financiamento justo (adequado e orientado para aumentar o gasto em saúde e nos seus determinantes sociais em nível mundial), responsabilidade do mercado (justo equilíbrio entre o público e o privado); eqüidade de gênero (com respeito ao poder, normas, valores e recursos); tomada de decisões imparcial (empoderamento e ampla participação na tomada de decisões referente à eqüidade em saúde); compartilhar responsabilidades na saúde (entre diferentes instituições estatais); boa condução governamental global (a partir de um maior peso de organismos multilaterais que coloquem o marco de determinantes sociais no centro). No segundo grupo se colocam medidas dirigidas a alcançar: eqüidade desde o inicio da vida (“o desenvolvimento desde cedo da criança e a educação são grandes niveladores de saúde”, diz a CDSS); emprego justo e trabalho decente (diz a CDSS numa de suas anotações que “o trabalho remunerado tem o potencial de erradicar a pobreza e prover seguridade material, inclusão social e empoderamento político”, e, portanto, há que se combater o trabalho precarizado, o desemprego e as más condições de trabalho); lugares (moradias) saudáveis (com acesso a bens e planejados para promover a saúde física e mental); atenção médica universal (promovendo sistemas universais e gratuitos, fundados na APS, e que garantam acesso eqüitativo em cada país); e, finalmente, proteção social universal. Para a MS e a SCL também é de especial importância dar visibilidade social aos determinantes sociais da saúde, na contracorrente da concepção dominante derivada do modelo médico atual, que parte da premissa de que cada um adoece por causa do 16 Walzer M. Las esferas de la justicia. Una defensa del pluralismo y la igualdad. México: FCE, 2001. Walzer introduz o conceito de igualdade complexa que, em termos formais, significa “que nenhum cidadão localizado numa esfera ou em relação com um bem social determinado pode ser restringido por outra esfera, com relação a um bem distinto”, ou seja, que não se violem os princípios de distribuição próprios de cada esfera e evitar que o êxito em una esfera implique a possibilidade de exercer a preponderância em outras. Em nossa opinião, este conceito reproduziria permanentemente a desigualdade. Easy PDF Creator is professional software to create PDF. If you wish to remove this line, buy it now. estilo de vida que escolheu. Por sua vez, várias das medidas propostas pela CDSS são demandas que a própria MS e SCL têm reivindicado e que apoiará, tais como o aumento imediato dos gastos em saúde (que não somente com sistema de atenção médica como o reivindica corretamente a CDSS), a criação de um sistema universal e gratuito de saúde, etc. No entanto, há um problema com a lógica geral na qual se baseia a prática proposta pela CDSS, que não coincide com as posições da MS e da SCL. A CDSS tem colocado no centro o alcance da eqüidade em saúde, e as medidas que propõe buscam, de fato, reduzir o que a CDSS entende como iniqüidades em saúde. Assim, estas iniqüidades podem ser atendidas por instituições sociais que se convençam de que a melhor forma de atuar para melhorar a saúde é atuar sobre alguns determinantes sociais desta. Porém, como vimos anteriormente, o que a CDSS identifica como iniqüidades em saúde são, na realidade, desigualdades sociais em saúde, isto é, manifestações concretas e conhecidas de uma iniqüidade social, ou seja, um tratamento desigual entre pessoas próprio de uma sociedade na qual predomina o interesse privado (e não o interesse comum e geral) com o perigo conseqüente de que se confundam os efeitos com as causas. O assunto, então, pode ser colocado da seguinte forma: de fato, é preciso anular as desigualdades sociais em saúde, mas superando quais iniqüidades? conformando que tipo de sociedade organizada para atender o bem comum? Sobre isto a CDSS não tem conseguido avançar numa resposta, porque em seus marcos não se colocou a necessidade de explicar a iniqüidade como fenômeno social. A MS e a SCL, por sua vez, desde suas origens buscou explicar como é que as formas de organização social privilegiam o interesse particular; como disso se produzem iniqüidades e, finalmente, explicar como estas se manifestam por complexas formas de viver, adoecer e assistir à saúde. Eliminar as desigualdades sociais em saúde é para a MS e a SCL, assim como para a CDSS, um imperativo ético, porém vinculado a outro que é eliminar as iniqüidades e a injustiça social que as origina. A MS e a SCL concebem as sociedades capitalistas atuais como um processo de reprodução no qual, da mesma forma como se produz e reproduz a iniqüidade, também estão se produzindo as forças e tendências que se lhes opõem para frear as desigualdades e iniqüidades e para construir uma sociedade mais justa. Por tanto, para a MS e a SCL, a luta contra as desigualdades em saúde há que se colocar no marco da luta contra aqueles beneficiários da atual ordem social que querem manter sua hegemonia e dominação e da luta da humanidade oprimida, produto dessa ordem social, para construir uma contra-hegemonia. A MS e a SCL não colocam no centro desta questão o fato que os governos dos que estão ‘em cima’ tomem estas ou aquelas políticas, e nem se concebem como seus possíveis assessores. Demandas tais como o aumento de financiamento destinado à saúde, a criação de um sistema universal de saúde, de mais escolas ou de trabalhos mais seguros, deverão se colocar dentro do processo de luta entre a hegemonia das classes dominantes e a criação da contra–hegemonia pelas classes subalternas. Em oposição aos enfoques que vêem as pessoas como sujeitos contratuais representados pelo Estado, a MS e a SCL vêem sujeitos sociais coletivos em luta contra aquelas formas de opressão que lhes têm sido e são impostas cotidianamente. Easy PDF Creator is professional software to create PDF. If you wish to remove this line, buy it now. Por esta razão a MS e a SCL consideram, de maneira muito importante, conhecer e difundir os movimentos sociais e seus componentes em saúde, pois aí estão surgindo as novas formas de enfrentar os determinantes sociais da saúde e estão se fazendo surgir novos modos de vida e novas práticas coletivas, solidárias e eqüitativas. Hoje podemos observar como grandes fundações privadas dirigidas pelos maiores empresários do planeta (como a Fundação de Bill e Melinda Gates) destinam recursos para a melhoria da saúde “dos que menos têm”, como compensação pelas tantas causas mesquinhas bem conhecidas. Assim, eles mantêm sua hegemonia. A MS e a SCL buscam, como a CDSS, eliminar as desigualdades sociais em saúde, sim, mas sempre na perspectiva de fortalecer a contra-hegemonia dos oprimidos por essas desigualdades e iniqüidades. Neste sentido, finalmente, na ALAMES teremos que priorizar novamente a questão sobre a qual nos unimos em outros tantos momentos: quais são os principais compromissos e desafios da medicina social e da saúde coletiva latino-americana? Easy PDF Creator is professional software to create PDF. If you wish to remove this line, buy it now.