REFLEXÕES ACERCA DO TEMPO LIVRE
Guilherme Costa Garcia Tommaselli1
Introdução e objetivo
Esse trabalho diz respeito ao conceito de Adorno de tempo livre e pretende
analisá-lo, estabelecendo sua relação com o “hobby”. O objetivo desse trabalho é,
através das categorias desenvolvidas por Adorno e partindo de sua compreensão da
sociedade capitalista, analisar o desenvolvimento dos novos mecanismos de operação
do capitalismo, assim como as relações de trabalho e as implicações dessas na
sociedade.
Para analisar o conceito de tempo livre é necessário realizar, anteriormente, uma
análise dos elementos-chaves de desenvolvimento e funcionamento da indústria
cultural, pois esta estabelece uma relação direta com o conceito de tempo livre.
Portanto, analisá-la torna-se essencial para compreensão do contexto mais amplo em
que ela se insere e, então, entender os fenômenos dela derivados como a administração
do tempo livre.
Metodologia
A reflexão acerca do tempo livre e indústria cultural, realizada nesse trabalho, é
fruto de uma investigação teórica, realizada a partir de fontes secundárias. As fontes
utilizadas são as obras de Theodor W. Adorno, dos teóricos de Frankfurt e de alguns de
seus estudiosos e comentadores. A discussão sobre o tempo livre, proposta nesse artigo,
é embasada na leitura do texto de Adorno ‘‘Tempo Livre’’. Esse trabalho foi
desenvolvido a partir das reflexões propostas por esse texto, relacionando estas a outros
conceitos chaves do autor.
Discussão e resultados
1
TOMMASELLI, Guilherme Costa Garcia. Graduando em Ciências Sociais pela Universidade Estadual
Paulista “Julio de Mesquita Filho” – Faculdade de Filosofia e Ciências - Campus de Marilia.
[email protected]
O ponto inicial dessa reflexão é, portanto, uma análise do contexto históricosocial, que gerou condições para o desenvolvimento e o fortalecimento do fenômeno
conhecido pela expressão ‘‘indústria cultural’’.
A passagem do capitalismo liberal (até século XIX) para o capitalismo
monopolista (século XX) e seu rápido desenvolvimento, decorrente de suas sucessivas
inovações tecnológicas, provocou uma série de mudanças na sociedade burguesa. Essas
mudanças atingiram também a ordem cultural burguesa que passou por um processo de
transformação. A cultura passou por um processo de industrialização, os produtos
culturais passam a ser produzidos e reproduzidos em série e, ao mesmo tempo tornamse mais acessíveis à massa trabalhadora. Portanto a cultura foi integrada à lógica do
mercado. É nesse contexto que nasce a indústria cultural.
O termo Kulturindustrie (Indústria Cultural) foi usado originalmente por Adorno
e Horkheimer, em seu livro “A Dialética do Esclarecimento”, publicado em 1947, na
Holanda. Anteriormente, os autores utilizavam a expressão cultura de massas, porém
optaram por substituí-la por indústria cultural, pois a primeira, remete á idéia de uma
arte popular, de uma cultura de desenvolvimento espontâneo, que é exatamente do
interesse dos que estão a serviço da indústria cultural. Dessa forma, os autores
enfatizam a diferença entre os termos e seus respectivos significados, já que utilizam o
termo indústria cultural para enfatizar o contrário da expressão cultura de massas.
Quando falam de indústria cultural, o que pretendem mostrar é que essa cultura de apelo
popular, que determina os gostos da população é, na verdade, fabricada pelos meios de
comunicação de massas, que apresentam produtos adaptados ao consumo das massas,
ou seja, é a cultura transferida para esfera do consumo.
O consumo é um fator chave na discussão de Adorno e, partindo dele, nos
aproximamos do conceito de indústria cultural que afirma que, nas sociedades
contemporâneas, as produções do espírito, ou seja, as manifestações culturais; se
transformaram em mercadoria, isto é, estão subordinadas ao lucro e ao consumo. No
desenvolvimento desse processo histórico, as produções culturais tiveram que se
adequar ao mercado e à necessidade de sobrevivência, o que fez com que assumissem o
caráter de mercadoria.
Desse modo, a indústria cultural cria a necessidade de uma produção em função
da comercialização, ou seja, a produção cultural perde seu sentido, já que ela, em seu
sentido original, servia como instrumento de protesto, reflexão, conscientização,
humanização e emancipação humana. Assim, a cultura adquire um novo sentido, ligado
ao consumo, que provoca a sua decadência e a decadência do processo de formação
diretamente relacionado a ela. Portanto, o conceito de cultura é apropriado pela indústria
cultural que o transforma de tal maneira que ele perde seu sentido, e o que acaba
acontecendo é uma inversão do seu sentido original.
Para Adorno, a indústria cultural exerce um poder de ilusão sobre os
consumidores, pois se apresenta como progresso, novidade, quando na verdade é
sempre uma repetição. Além disso, quando submetido aos mecanismos da indústria
cultural, o consumidor é iludido a acreditar que é o sujeito do processo, quando na
verdade ele é objeto da indústria cultural. A indústria cultural não tem relação nenhuma
com a liberdade, já que, na verdade, através dela os homens são submetidos à adaptação
que gera a atrofia da criatividade, da capacidade crítica e da espontaneidade e, através
desse processo ideológico, a adaptação toma o lugar da consciência.
A adaptação é um passo importante para a constituição da consciência
deformada, gerada pela indústria cultural. Os homens, quando adaptados, perdem sua
capacidade reflexiva e, desse modo, se sujeitam ao domínio da indústria cultural. Eles se
tornam dependentes dela e de seus produtos, e servos de sua ideologia. Assim, a
indústria cultural dita as regras de um mundo que se organiza à sua maneira, nega aos
homens a possibilidade da formação e impede a formação de indivíduos autônomos,
independentes, críticos e com capacidade de julgar conscientemente suas ações.
Em alguns de seus textos, Adorno nos alerta sobre a necessidade do processo de
emancipação para a construção de uma sociedade mais justa, formada por seres
autônomos. Esse novo tipo de sociedade teria a função de privilegiar o processo de
formação do sujeito e não o desenvolvimento tecnológico e científico. Porém, o que
Adorno constata é que essa sociedade é extremamente desigual, e isso pode ser
verificado através de fatos como a exclusão tecnológica, a desigualdade econômica e
social e a semiformação cultural. Portanto, diante desse quadro, seria ingênuo acreditar
que o progresso técnico caminha de mãos dadas com a emancipação humana. Esse
poder que a técnica exerce sobre a sociedade industrial, cria um processo ilusório capaz
de mascarar atrocidades como o fenômeno do fascismo.
Quando o conceito de indústria cultural, foi utilizado pela primeira vez em 1947,
já se tornava notável o nascimento de um setor de produção cultural, devidamente
comprometido com as relações de mercado. Nesse momento, Adorno e Horkeimer se
encontravam exilados nos Estados Unidos, fugidos do regime fascista que atingira a
Alemanha e parte da Europa. É nesse mesmo momento que, influenciados pela situação
da Europa e pelo seu contato com o modo de vida americano, o American way of life,
que trazia consigo a uma indústria do entretenimento com grande força massificadora,
que os autores estabeleceram relações entre o autoritarismo e o fascismo cultural. É
importante lembrar que, para Adorno, os Estados Unidos estabelecem com o fascismo
uma diferença de grau e não de natureza.
Adorno e Horkheimer se preocupavam em investigar as estruturas autoritárias
presentes nos mecanismos da indústria de produção cultural e se preocupavam em
explicitar a contradição entre o potencial técnico e a capacidade do sujeito de
desenvolver sua dimensão crítica, que possibilitaria o desenvolvimento de um gosto
autêntico.
Para Adorno a técnica é um instrumento de dominação social, ou seja, quem
possui o controle dela tem consigo um aliado forte no processo de manipulação das
massas. A técnica na sociedade do capitalismo tardio está sob o monopólio da classe
dominante. A própria racionalidade técnica é a lógica da dominação. A indústria
cultural utiliza a técnica na manipulação das massas no processo de padronização da
cultura. Esse processo dá ênfase ao quantitativo, o que, por sua vez, gera uma
decadência na qualidade do que é produzido.
A arte burguesa pura se encontrava em oposição à práxis material, e isso
acontecia através da exclusão das classes inferiores. Com a indústria cultural, a arte é
levada à esfera do consumo e as classes excluídas têm, nesse momento, a chance de
possuir acesso a ela. Porém, por não participarem do processo de formação, não tem
capacidade de compreensão sobre o que têm acesso. Ao mesmo tempo, pode-se afirmar
que, mesmo que esses produtos culturais venham a ter qualidades que os diferenciem
dos padrões, eles acabam submetidos à articulação do sistema, e passam a buscar a
integração do consumidor à lógica da mercadoria. Isso acontece devido à dinâmica de
integração do capitalismo.
Nesse período a burguesia perdeu seu privilégio sobre a cultura e acabou
também se submetendo ao processo semiformação cultural que, por sua vez, gerou a
perda da dimensão crítica, atrofia da imaginação e da espontaneidade. Quando
submetidos aos mecanismos da indústria cultural, os indivíduos estão sujeitos ao seu
controle, assim, o que ocorre é a normatização das condutas. A espontaneidade do
espectador é dirigida, o público tem suas reações condicionadas por padrões criados
pelo próprio sistema da indústria. A atitude do público é parte integrante do sistema da
indústria cultural.
É nesse momento que Adorno identifica um grave problema gerado pela
indústria cultural, a atrofia da imaginação do público. Essa atrofia ultrapassa os
mecanismos psicológicos. As imagens dos filmes prendem a atenção do público e
obstruem a capacidade imaginativa. O filme adestra o espectador que é induzido a se
identificar com a realidade. A riqueza das imagens, a poluição visual e a sonora forçam
o espectador a redobrar a atenção sobre o que vê. Nesse momento, ele tem sua atividade
intelectual e imaginativa obstruída. O poder dos efeitos e a velocidade do que é
apresentado conduz a um abandono da capacidade imaginativa, pois caso não queiram
perder a seqüência de fatos que desfilam rapidamente diante de seus olhos, a atividade
intelectual é abandonada e aspectos importantes como enredo do filme, se tornam
secundários.
Além disso, os homens que estão por trás da indústria cultural, reprimem as
produções que não se encaixam no sistema de padrões. Adorno mostra que existe uma
preocupação de fornecer ao público uma hierarquização de qualidade que, na verdade,
tem a função de quantificação. Nesse processo, o indivíduo deve se reconhecer em um
tipo de produto. Porém não existe diferença porque todos são produtos massificados,
produzidos para um tipo específico, com a finalidade de conduzir sua maneira de agir de
acordo com o tipo escolhido.
A diferenciação do produto, ou seja, as vantagens que uma marca apresenta em
relação a outra, na verdade é apenas uma forma de controle, através do qual os
indivíduos são iludidos sobre o processo de concorrência. Isso ocorre porque os
conteúdos são os mesmos, as mudanças estão restritas ao plano das aparências, ou seja,
é uma ilusão produzida pela própria indústria cultural.
Um outro ponto chave, na reflexão de Adorno, é em relação à heteronomia do
sujeito. O ideal inicial da sociedade burguesa era a construção de uma sociedade mais
justa, constituída por seres livres, autônomos. Porém, isso não aconteceu, e essa
sociedade sucumbiu ao processo de semiformação que, por sua vez, impossibilita que o
indivíduo se torne autônomo. Então diante da semiformação socializada e,
consequentemente, das produções da indústria cultural, o sujeito não possui autonomia,
vivendo um processo de heteronomia. A heteronomia do sujeito consiste na
incapacidade de governar a si mesmo, por suas próprias leis. Desse modo ele recebe
suas leis de fora, ao invés de extraí-las de si mesmo.
Em determinado momento de sua reflexão acerca da indústria cultural, no livro
“Dialética do esclarecimento”, Adorno chega à conclusão de que a violência da
sociedade industrial se instalou, efetivamente, nos homens. Assim, até o mais distraído
dos indivíduos vai consumir atentamente os produtos dessa indústria. Ela é formada por
um gigantesco mecanismo econômico que não dá trégua a ninguém, nem no período de
trabalho, nem no período de descanso que, para Adorno, é muito semelhante ao do
trabalho.
Seguindo esse raciocínio, Adorno introduz uma questão essencial em seu
pensamento, que é a administração do tempo livre.
“Os dominantes monopolizaram a formação cultural numa sociedade
formalmente vazia. A desumanizacão implantada pelo processo capitalista de
produção negou aos trabalhadores todos os pressupostos, para a formação e,
acima de tudo, o ócio.” (Adorno, 1972).
O tempo livre do trabalhador deveria ser o momento de repor suas energias e
buscar atividades de seu interesse e necessidade para um crescimento espiritual que ele
não obtém durante o processo de trabalho. O preenchimento do tempo livre da classe
operaria é, contudo, uma tarefa que coube a indústria cultural. Esse processo cria uma
ilusão de escolha sobre o tempo livre, mas, na verdade, sua função é excluir o potencial
de resistência e eliminar a capacidade de reflexão daqueles que estão subordinados a
ela.
Além disso, a indústria cultural opera através de um processo de identificação
com as necessidades do público, e não em oposição a elas. Ela vende a diversão, e a
utiliza como forma de controle. Os trabalhadores, exaustos da jornada de trabalho,
necessitam de diversão, e é isso o que ela fornece. “Divertir significa sempre: não ter
que pensar nisso, esquecer o sofrimento até mesmo onde ele é mostrado”’(Adorno,
1986: p.135). Os trabalhadores buscam, nessa diversão, fugir dos problemas diários e do
desgaste e cansaço que o trabalho lhes proporciona.
“Os filmes de animação fazem mais do que habituar os sentidos ao novo
ritmo, eles inculcam em todas as cabeças a antiga verdade de que a condição
de vida nesta sociedade é o desgaste continuo o esmagamento de toda
resistência individual. Assim como Pato Donald nos cartoons, assim também
os desgraçados na vida real, recebem a sua sova para que os espectadores
possam se acostumar com a que eles próprios recebem” (Adorno, 1986:
p.130).
Nessa fuga dos problemas diários, eles são induzidos a naturalizar um
processo de desgaste, através de identificação com o personagem que sofre humilhações
parecidas com a suas.
Para Adorno, a única forma de escapar do processo de trabalho é adaptando-se
a ele durante o ócio. O ócio é parte do processo e nele há uma busca constante e
desesperada pelo prazer. O prazer é anulado pelas obrigações, ou seja, para se ter prazer
não se deve exigir esforço. Dessa maneira, o mecanismo criado pela indústria para o
consumidor atingir o prazer é diretamente relacionado com a idéia de esforço. O que
requer esforço é um aborrecimento, logo, o prazer vem do que não requer esforço, ou
seja, o ócio. Na busca pelo prazer, é necessário a exclusão da reflexão, pois o ato de
refletir exige um esforço intelectual e, portanto deve ser anulado. O público necessita
consumir aquilo que lhe proporciona prazer, ou seja, o que não lhe causa esforço, pois
ele já está exausto da jornada de trabalho.
A expressão tempo livre é recente, e foi utilizada por Adorno para substituir
ócio, e trata da distinção do tempo não livre, ou seja, o tempo de trabalho. “O tempo
livre é acorrentado ao seu oposto” (Adorno, 1995: p.70). Com essa afirmação, Adorno
mostra que o tempo livre é entendido como mero apêndice do trabalho, e representa
uma relação de continuidade a este. Dessa relação surgem as principais características
do tempo livre. Além disso, a questão do tempo livre está diretamente relacionada com
o tipo de sociedade existente. Portanto, é necessário entender que tratamos do
capitalismo monopolista, e do fascínio que esse sistema exerce sobre os indivíduos.
Nesse contexto, os indivíduos estão sujeitos a um esquema de não-liberdade, ou seja,
tanto no trabalho, quanto em sua consciência, eles não possuem acesso real a liberdade.
Perante esse quadro, o indivíduo se confunde, com aquilo que é em si, e com o
seu papel social. O papel social que ele deve exercer acaba se fundindo com suas
características pessoais, e desse modo participa da formação do sujeito. Diante desse
quadro, é complicado estabelecer o que resta no sujeito, sem que haja sido determinado
de fora, isso se torna mais grave devido ao fato de nos encontramos em uma época de
adaptação, e esse fator é determinante na questão do tempo livre.
O problema pode ser entendido através da situação de não-liberdade, em que as
pessoas se encontram quando sujeitas a esse sistema. Mesmo onde o fascínio e os
mecanismos de controle estão mais atenuados e as pessoas acreditam agir por vontade
própria, essa vontade é determinada por aquilo que querem fazer fora do tempo de
trabalho. Na verdade o tempo livre estabelece com o seu próprio conceito uma relação
de oposição, já que, ele é o momento da não-liberdade, onde as pessoas não-livres
acreditam estar sobre escolhas livres.
O problema é que o tempo livre é entendido como mera distração, diversão, e
não é encarado com seriedade. A ocupação do tempo deve ser séria, sem
necessariamente ser algo que não cause o prazer. A idéia de ocupar o tempo não pode
ser encarada, como um “hobby”. Ao encarar o tempo livre como “hobby”, o
entendemos como uma possibilidade de matar o tempo, de distração, reforçando o
caráter de utilidade contido nesse tempo. Desse modo, atividades como ouvir música,
ler, ou outras manifestações artísticas ou culturais, que são momentos de crescimento do
sujeito e de sua experiência pessoal, são entendidas através de seu caráter de utilidade, e
perdem seu sentido original, ou seja, seu potencial de formação. Assim como, em
oposição, o trabalho que pode vir a ser algo que cause prazer e satisfação, é remetido à
idéia de sacrifício, criando a oposição entre prazer e dor. O fato é que, essa oposição
não é necessária, ela é uma criação. Para que não houvesse essa oposição, seria
necessária a possibilidade de organizar o trabalho segundo as próprias intenções do
indivíduo, situação rara nos dias de hoje.
Essa distinção entre trabalho e tempo livre foi embutida como uma regra no
consciente e inconsciente das pessoas. De acordo com essa regra, o tempo livre tem
como função repor as energias gastas nesse processo, para que o trabalhador possa fazer
ainda melhor o seu trabalho, e por esse motivo, o tempo livre não deve jamais lembrar o
trabalho. E é desse aspecto do tempo livre, que surge a inutilidade da maioria das
atividades exercidas durante ele. É nesse esquema normativo que podemos reconhecer a
conduta do caráter burguês, onde é necessário executar bem o trabalho, com
brilhantismo, com cuidado e atenção.
A falha no processo de formação acarreta na não geração de autonomia, o que
esclarece a prisão do sujeito a essa normatização, já que ele é privado do processo de
reflexão. A questão do “hobby” pode explicar esse aspecto. Para Adorno, o “hobby” foi
naturalizado entre os sujeitos, ou seja, ele é supostamente natural ao ser humano. Na
ausência de um “hobby” ele não é reconhecido dentro do grupo e acaba sofrendo um
processo de coerção social. O “hobby” é um passatempo que todo individuo deve
possuir, ou seja, uma forma de tempo livre. O indivíduo é coagido quando não possui
um “hobby”, ou seja, é a sociedade impondo o tempo livre. O indivíduo anseia pelo
tempo livre, pois esse é seu momento de fuga, porém esse tempo é um tempo de não
liberdade. Durante o tempo livre o indivíduo acredita ser livre, mas não existe liberdade
e nem possibilidade de escolha consciente, até porque a liberdade é gerada apenas em
seres autônomos, e a autonomia sequer foi gerada, devido a decadência do processo de
formação. Isso fica mais claro na seguinte passagem:
“a integração do tempo livre é alcançada sem maiores dificuldades; as
pessoas não percebem o quanto não são livres lá onde mais livres se
sentem, porque a regra de tal ausência de liberdade foi abstraída delas.”
(Adorno, 1995 p.74).
É nesse ponto da autonomia do individuo que surge mais uma questão
importante quanto ao tempo livre, que é o tédio. “O tédio existe em função da vida sob
a coação do trabalho e sob a rigorosa divisão do trabalho” (Adorno, 1995: pag76). O
que Adorno pretende mostrar é que, na verdade, o tédio não é necessário, ele não
precisa existir. Se as pessoas tivessem a possibilidade de decidir sobre si mesmas e
sobre as suas vidas, não estariam presas sempre à mesmice, e não se entediariam. Uma
conduta autônoma, determinada pelos próprios indivíduos, enquanto seres livres,
eliminaria o tédio ou, ao menos, permitiria a emancipação frente a este.
Outro aspecto relativo ao tempo livre, que é importante salientar, é o
atrofiamento da fantasia e da capacidade criativa. O processo de adaptação exige que as
pessoas, renunciem à capacidade criativa. Esse processo é incentivado pela própria
sociedade e provoca um desamparo nas pessoas em relação ao seu tempo livre. O que
acontece é que, quando submetidas a esse processo de adaptação, as pessoas acabam
atrofiando as suas capacidades criativas e fantasiosas e, desse modo, o pouco que
poderia tornar prazeroso o tempo livre lhes foi tomado.
Assim, a diversão se torna necessária para que o trabalhador sustente essa
estrutura, apoiado na idéia de prazer que ela traz, ou seja, o sistema adestra o
trabalhador. Sob as condições a que estão submetidos, se torna insensato esperar ou
exigir que os indivíduos façam algo de produtivo em seu tempo livre, já que sua
capacidade produtiva e criativa foi destruída. Portanto, aquilo que produzem no tempo
livre não ultrapassa a superficialidade do “hobby” ou das imitações de manifestações
artísticas, como poesias e músicas, é claro, com conteúdo empobrecido.
Conclusão
Adorno termina sua reflexão sobre o tempo livre, estabelecendo uma relação
com a indústria cultural. A administração do tempo livre é uma forma de integração e
manutenção da dominação das consciências, que estão sujeitas ao sistema da indústria
cultural. Além disso, sabe-se que a produção regula o consumo, tanto no que se refere à
vida material, quanto na vida espiritual. Assim, a indústria cultural e seus consumidores
são adequados um ao outro. Porém, Adorno conclui que, apesar de consumir o que a
indústria cultural lhes oferece, os indivíduos o fazem com ressalva, ou seja, eles não
crêem em tudo que lhes é apresentado por ela. Isso acontece porque a integração da
consciência e do tempo livre não aconteceu integralmente. Assim, mesmo que
submetidos a esse processo ideológico, permanecem nos indivíduos seus interesses
particulares, que são suficientes para que eles resistam à integração total. É através
dessa lacuna no tempo livre que Adorno enxerga a possibilidade da vitória da
emancipação sobre o tempo livre, transformando-o em liberdade.
Bibliografia
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Ramos-de-Oliveira. In Educação & sociedade: Revista quadrimestral de ciência e
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PUCCI, B. (org). Teoria crítica e educação: a questão da formação cultural na Escola
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