PÁGINA JURÍDICA > ARTIGOS DE PROFESSORES > DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO > RESUMO Nº 5 Prof. Marcos Raposo - 2002 Lei versus Tratado - O Pacto de San José da Costa Rica 1. - Vamos prosseguir discorrendo a propósito de se saber se a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (o Pacto de San José da Costa Rica), aprovada pelo nosso Poder Legislativo e posta em vigor no Brasil pelo Decreto 678, de 6/11/92, revogou, ou não, o art. 1.287 do C.Civ. de 1916, o qual permite ao juiz decretar a prisão do depositário infiel por até um ano. Além dos argumentos que já vimos no último resumo, dizem os partidários da revogação que o inciso LXVII do art. 5º da Constituição não manda prender o depositário infiel, apenas autoriza que lei a ordinária o faça. Assim, segundo essa corrente, não haveria, no caso em tela, choque entre tratado e norma constitucional, mas entre tratado e lei ordinária, o Código Civil. Como tratado revoga lei ordinária anterior, os partidários dessa vertente dizem não existir hoje lei alguma em vigor autorizando prender o depositário por dívida pois, se alguma havia, foi revogada pelo art. 7º, ítem 7, do Pacto de San José da Costa Rica. Será que têm razão? 2. - Ora, no Brasil, a prisão do depositário infiel é freqüentemente pedida e concedida no curso de procedimentos envolvendo o não pagamento e a não devolução de bens financiados sob a modalidade de alienação fiduciária, contratada nos moldes do Dec.Lei nº 911/69. No sistema desse decreto-lei (art. 4º), se o bem fiduciariamente alienado não for encontrado, ou não estiver na posse do devedor inadimplente, o pedido de busca e apreensão formulado pelo credor pode ser convertido em ação de depósito, a qual culmina com a prisão do devedor (que é considerado depositário infiel), fundada no art. 1.287 do CCiv. e no § único do art. 904 do CPC. Após a promulgação do Dec. nº 678/92, passaram os devedores cuja prisão fosse assim pedida a requerer habeas corpus, sob a alegação de que ela teria por fundamento dispositivo legal revogado, o art. 1.287 do CCiv. Esse questionamento tem progredido, em alguns casos, até o STJ, e em outros até o STF. No STF, o Min. Marco Aurélio posicionou-se contra a prisão, nesses casos, pronunciando um famoso voto vencido no HC 73044/SP (2ª Turma, julgado em 19/03/96), do qual cabe destacar a seguinte passagem: "De qualquer forma, no magistério de Francisco Rezek, veiculado em Direito dos Tratados, uma vez promulgada, a convenção passa a integrar a ordem jurídica em patamar equivalente ao da legislação ordinária. Assim, a nova disciplina da matéria, ocorrida a partir de 06/11/92, implicou na derrogação do Dec.-Lei 911/69, no que se tinha como abrangente da prisão civil na hipótese de alienação fiduciária." (grifei) A leitura na íntegra do voto do Min. Marco Aurélio (tenho disponível, para eventuais interessados) permite verificar que ele evitou pôr em choque o Pacto de San José com o art. 1.278 do Código Civil. Em sua argumentação, desenvolveu o Min. Marco Aurélio a idéia de que, na alienção fiduciária, não há um verdadeiro depósito, pois o adquirente pode usar o bem financiado enquanto o paga, adquirindo a sua propriedade quando liquida sua dívida. Isto, segundo ele, é incompatível com o instituto do depósito, tal como delineado no art. 1.265 do C.Civ. de 1916, que define o depósito como o contrato pelo qual alguém recebe coisa alheia para guardar, até que o depositante a reclame, e não para usar, enquanto estiver em dia com as prestações do preço. Diz ainda o Min. Marco Aurélio que o Dec.-Lei 911/69, ao associar a alienação fiduciária ao depósito, engendra o abuso de uma ficção jurídica, cujo propósito desenganado é permitir ao credor cobrar do devedor sob a ameaça de prisão. Para o referido julgador, esse dispositivo relativo à alienação fiduciária sempre foi inconstitucional, sempre ofendeu os direitos humanos, mas sua desvalia jurídica ficou ainda mais patente após a subscrição, pelo Brasil, do Pacto de San José, que proíbe a prisão por dívida, excetuando apenas a do devedor de alimentos. 3. - Por poderosa e impressionante que seja a argumentação do Min. Marco Aurélio, o fato é que predominou nesse julgamento a tese contrária, assim resumida pelo Min. Maurício Correa, relator: "A alienação fiduciária, tal qual introduzida no nosso ordenamento jurídico, já se arraigou na cultura de nossos costumes comerciais. A alienação fiduciária se consolida no depósito e portanto na prisão. Excepcionada a prisão pelo não pagamento de prestação alimentar, que a Constituição ostensivamente autoriza, o depósito regulamentado no Código Civil também seria inconstitucional? Respondo que a prisão do depositário infiel, no caso de alienação protegida pela cláusula fiduciária, de igual forma está protegida por lei. Não vejo diferença nas duas situações. Pois tanto uma quanto a outra são produtos da construção do direito civil, com base na lei infraconstitucional, não atentatória ao enunciado no inciso LXVII do art. 5º da Constituição Federal, porque nele prevista a figura do depositário infiel." Como se vê, o Min. Maurício Correa conceitua como verdadeiro depositário aquele que se propõe a adquirir um bem sob o regime de alienação fiduciária. Não faz ele a distinção que permitiu ao Min. Marco Aurélio tangenciar a questão principal, qual seja a de saber se a alienação fiduciária é incompatível com o depósito próprio, e se, portanto, o Pacto de San José revogou, ou não, o art. 1.287 do C.Civil de 1916. Há de entenderse, portanto, que o Min. Maurício Correa nega ter havido a revogação em causa, por entender que a prisão do depositário infiel está literalmente prevista na Constituição, e porque a Constituição não pode ser revogada por um tratado. Essa tese foi sufragada como vencedora, tanto no HC 72131-1 RJ, julgado pelo STF pleno, em 23/11/95, quanto no HC 73044-2 SP, decidido pela 2ª Turma (in DJ de 20/09/96), nos mesmos termos. Após esses arestos, a jurisprudência do STF pacificou-se nesse sentido. 4. - Não ficou por aí, entretanto, a discussão. Como dissemos, alguns casos de prisão do devedor depositário, decorrente de alienação fiduciária, chegaram não ao STF, mas ao STJ. Nesses casos julgados pelo STJ, o que estava precisamente em foco era o choque entre o art. 1.287 do CCiv. de 1916 e o art. 7º-7, do Pacto de San José: choque entre tratado e lei. O resultado foi que o Superior Tribunal de Justiça, por sua Terceira Turma (rel. Min. Eduardo Ribeiro), valendo-se dos mesmos argumentos aduzidos pelo Min. Marco Aurélio, que já vimos acima, discrepou diametralmente do Supremo ao decidir, entre outros, o REsp 238.372-RS (in DJ de 15.05/2000). Eis a ementa, na parte relevante: "A incorporação a nosso ordenamento jurídico das disposições constantes do Pacto de São José de Costa Rica elimina a possibilidade de prisão civil, tratando-se de alienação fiduciária. Concessão, de ofício, de habeas corpus. Do voto do relator, que conduziu à decisão unânime no STJ, destacam-se as passagens a seguir: "Não olvidando o papel constitucional do STF, entendo que o tema está a merecer reexame do ângulo de norma resultante de tratado internacional que, no âmbito interno, tem hierarquia inferior (à Constituição), cabendo ao STJ velar por sua exata interpretação. Refiro-me ao já citado Pacto de San José da Costa Rica. ...(omissis)... Certo, também, que ao serem incorporadas ao nosso direito interno, as disposições constantes dos tratados têm a mesma hierarquia das leis ordinárias, aplicando-se-lhes as regras destinadas a regular questões de direito intertemporal. ...(omissis)... Não tenho dúvidas em afirmar que o dispositivo em exame (o art. 5º, LXVII da CF) não impôs a prisão civil naqueles casos. Limitou-se a estabelecer uma ressalva ...(omissis)... Estatuiu-se que da proibição que ali se lançou ficariam excluídas aquelas hipóteses, facultando-se ao legislador ordinário ter como possível a prisão. ...(omissis)... Desse modo, se norma constante de convenção restringe os casos de prisão, não há choque algum com o texto constitucional. ...(omissis)... Em verdade, está-se diante de uma ficção jurídica, tendente a encobrir o que realmente se verifica. Trata-se de empregar a coerção pessoal como meio de forçar o pagamento do débito." (grifei). 12. - O que deflui desses dois acórdãos? Ninguém discute que tratado internacional tem a mesma hierarquia de lei ordinária, e que pode revogá-la. Todos concordam igualmente em que, quando um tratado fere texto constitucional, não pode prevalecer. O cerne da discussão, que resultou nesse divórcio entre o STF e o STJ, reside precisamente na discordância quanto a haver o Pacto de San José vulnerado, ou não, texto constitucional. O STF (pleno) entende que sim, e conseqüentemente considera que o Pacto não vigora, nesta parte. O STJ mantém que não, que a Constituição prossegue intocada, pois não manda prender o depositário infiel, apenas permite sua prisão, nada havendo de inconstitucional em que o Pacto de San José exclua tal prisão, revogando lei ordinária que antes a permitisse. Não custa reproduzir trecho de decisão que a 4ª Turma do STJ veio, no rastro da 3ª, a adotar, no mesmo sentido: "(C)om o advento do Pacto de São José, não mais é possível, à luz da legislação infraconstitucional, a prisão do devedor em caso de ação de busca e apreensão convertida em depósito do bem fiduciariamente alienado." (RESP 263551/PR, in DJ de 7/5/01, pág. 148). 13. - Cabe anotar que a mesma 4ª Turma do STJ já havia decidido, desde 1999, que a prisão continuava possível nos casos de depósito decorrente de penhora em execução, que nada tivesse a ver com alienação fiduciária (HC nº 9.556/PR - DJ de 17/12/99). Ficou claro, no voto do Min. Barros Monteiro, relator, proferido em tal acórdão, que a privação da liberdade foi aí admitida porque não se relacionava com dívida ou com alienação fiduciária. Na hipótese em tela, tratava-se de depositário de bens penhorados que se furtara a entregá-los no momento em que foram exigidos, para serem levados à praça. Que conclusão se há de tirar disso tudo? Por certo a de que o STJ traça uma clara distinção entre duas situações bem diversas: o art. 1.287 do C.Civ. só teria sido revogado pelo Pacto de San José nos casos em que o depósito haja sido contratado como modo espúrio de garantir uma dívida. Nos outros casos, como por exemplo no de depositário de bem penhorado, o art. 1.287 do C.Civ. está em vigor. 14. - A situação, depois desses acórdãos, é a seguinte: o STJ, por ambas as suas 3ª e 4ª Turmas, continua decidindo que o devedor, no caso de alienação fiduciária, não pode ser preso como depositário infiel. Quando essas decisões do STJ chegam, em grau de recurso extraordinário, ao STF, este invariavelmente as reverte, admitindo a prisão; sempre, porém, com o voto divergente do Min. Marco Aurélio. Acórdãos recentes, de junho e agosto de 2002, demonstram que o divórcio entre os dois mais altos tribunais do País continua, nos mesmos termos. A este professor parece que o Min. Marco Aurélio e o STJ têm iniludivelmente razão, quando recusam tratar como verdadeiro depósito o negócio que decorre de uma alienação fiduciária. E é exatamente por isso que não se pode dizer que o Pacto de San José revogou o art. 1.287 do CCiv. de 1916. Cabe a pergunta: porque será que o Pacto de S. José não excetuou a prisão do depositário infiel? Só pode ser porque a prisão do depositário, que não seja devedor de empréstimo algum, não é considerada, pelos juristas de outros países em geral, como uma prisão por dívida, e sim como uma prisão administrativa, que tem por objeto constranger alguém a cumprir uma ordem judicial. Isso também acontece, por exemplo, no caso da decretação de prisão do falido que se ausenta, sem autorização do juiz, do local onde corre o processo falimentar. É esse o motivo provável por que o Pacto de San José não excetuou a prisão do depositário infiel. 15. - Antes de encerrar o assunto, anotemos que os tribunais inferiores, indiferentes à discrepância de posições das cortes de Brasília, exercem sua liberdade de julgamento. Vejam o seguinte exemplo: "Ementa 26 - Se o depósito na hipótese fiduciária nasce de verdadeira ficção, ostentando finalidade diversa da simples devolução da coisa nas condições ajustadas quando solicitado, despropositada a prisão civil, cuja ameaça representa simples modo de constrager o fiduciante ao cumprimento do débito." (Ementário do 2º Tribunal de Alçada Civil de São Paulo, nº 14/2000) Como ficaremos após a entrada em vigor do NCCiv., em 2003? Para quem entende que o Pacto de San José revogou o art. 1.287 do C.Civ. de 1916, não há saída: o novo Código, no seu art. 652 revogará o art. 7º, ítem 7, do Pacto de San José, impondo novamente o princípio de que o depositário infiel pode ser preso. No entanto, para quem considera, com o Min. Marco Aurélio, que na alienação fiduciária não há um verdadeiro depósito, porém o abuso de uma ficção jurídica, o adquirente de um bem alienado fiduciariamente em garantia continuará imune à prisão civil, pois não é um verdadeiro depositário.