O MODULADOR DE LE CORBUSIER: FORMA, PROPORÇÃO E MEDIDA DA ARQUITETURA Ennio Possebon O MODULOR DE LE CORBUSIER: FORMA, PROPORÇÃO E MEDIDA NA ARQUITETURA Ennio Possebon* RESUMO ABSTRACT Le Corbusier é um dos raros arquitetos, não só do século XX, mas de toda a História da Arquitetura, que propôs uma teoria de proporções e forneceu descrições de como foram aplicadas em seus projetos. Na sua obra transparece, além do olhar atento para a criação de uma arquitetura consoante com as transformações sociais, trazidas pelas tecnologias despontantes no século XX, um pensamento lógico, racional e disciplinador que encontra sua plena expressão, em termos de proporções, no seu sistema denominado Modulor. LE CORBISIERS MODULATOR: FORM, PROPORTION AND MEASURE IN ARCHITECTURE Palavras-chave: arquitetura, comodulação. Le Corbusier is one of the few architects, not only in the 20th century, but in the whole history of Architecture, to propose a theory of proportions and to make descriptions on how they were applied to his projects. His work shows, besides the attentive look to the creation of an architecture consonant with social changes brought by the 20th centurys emerging technologies, a logical, rational, and disciplinary thinking that finds its full expression, in terms of proportions, in his system named Modulor. Keywords: architecture, comodulation. * Ennio Possebon é graduado e mestre pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Trabalha com arquitetura, design gráfico e artes visuais. Leciona desenho arquitetônico no curso de Arquitetura e Urbanismo do UniFIAM-FAAM e desenho de observação e geometria no curso de Educação Artística dessa Instituição. 68 R. Cult. : R. IMAE, São Paulo, a.5, n. 11, p. 68-76, jan./jun. 2004 O MODULADOR DE LE CORBUSIER: FORMA, PROPORÇÃO E MEDIDA DA ARQUITETURA Ennio Possebon Estais no país dos números. Deixai-vos permanecer nele, maravilhados diante de tanta luz intensamente espalhada. L e Corbusier é um dos raros arquitetos, não só do século XX, mas de toda a História da Arquitetura, que propôs uma teoria de proporções e forneceu descrições de como foram aplicadas em seus projetos. Mais ainda, pretendeu e propôs que sua teoria fosse utilizada por outros. Seus desenhos e projetos são, por esta razão, um fértil terreno para o estudo da Geometria na sua conexão com a Arquitetura. (Le Corbusier) sões. As dimensões medianas estão relacionadas com o corpo humano; as dimensões extremas aplicam-se, por um lado, aos detalhes diminutos dos instrumentos de precisão e, por outro lado, à escala dos grandes projetos de planejamento.2 O MÓDULO DE OURO Segundo John Summerson, [...] nos primeiros anos da Segunda Guerra Mundial Le Corbusier criou o sistema que se chamou Modulor. Modulor é uma palavra composta a partir de module, ou seja, unidade de medida, e section d´or ou secção de ouro: a divisão de uma reta de tal modo que o segmento menor está para o maior assim como o segmento maior está para o todo. O Modulor é um sistema de proporcionamento do espaço arquitetônico baseado neste critério geométrico, e oferece toda uma gama de dimen- Na obra de Le Corbusier, transparece, além do olhar atento para a criação de uma arquitetura consoante com as transformações sociais, trazidas pelas tecnologias despontantes no século XX, um pensamento lógico, racional e disciplinador, ao buscar um traçado orientador do projeto, baseado na proporção áurea. E, aí, ele não é menos clássico que Palladio ou Alberti, ao retomar um tipo de controle de projeto tão essencialmente pertencente a Renascença. A PORTA DOS MILAGRES DE LE CORBUSIER A matemática é o magistral edifício imaginado pelo homem para compreender o Universo. Nela encontrase o absoluto e o infinito, o apreensível e o não-apreensível, e está rodeada de altos muros diante dos quais pode-se passar e de novo passar sem proveito nenhum. Neles às vezes abre-se uma porta, entra-se e aí se está no lugar onde se encontram os deuses e as chaves dos grandes sistemas. Estas portas são as portas dos milagres, e, franqueada uma delas, já não é o homem quem atua, porém o Universo que se manifesta e diante dele desenrolam-se os prodigiosos tecidos das combinações sem limites. Estais no país dos números. Deixai-vos permanecer nele, maravilhados diante de tanta luz intensamente espalhada. 3 2 SUMMERSON , John. in A linguagem clássica da Arquitetura, p.116. 3 LE CORBUSIER, in Modulor1, p. 69. (Trad. nossa.) R. Cult. : R. IMAE, São Paulo, a.5, n. 11, p. 68-76, jan./jun. 2004 69 O MODULADOR DE LE CORBUSIER: FORMA, PROPORÇÃO E MEDIDA DA ARQUITETURA ORIGENS E INTENÇÕES DO MODULOR O Modulor1 tinha como subtítulo Ensaio sobre uma medida harmônica à escala humana e aplicável universalmente à Arquitetura e à Mecânica. Sem dúvida, uma grandiloqüente e pretensiosa aspiração ... Acompanhar o fio condutor do seu pensamento ao longo do texto, tão rico em idéias mas nem sempre claro e organizado, às vezes até perturbado por excesso de dados, relatos burocráticos, citações enfadonhas e até mesmo com algumas imprecisões geométricas, de certa maneira desvenda parte do que foram seu grande esforço, seus ideais, seus sonhos, suas conquistas e seu legado: o que não é pouca coisa. Acompanhemos alguns fatos narrados nos livros Modulor 1 e 2. Pertencente a uma família de músicos, embora sem sê-lo, Le Corbusier sabia muito bem que a música, assim como a arquitetura, se desenvolvem no espaço e no tempo e dependem da medida. Em algumas considerações sobre a música ele observou como, historicamente, o continuum sonoro foi fragmentado, dividido, mas tornado passível de ser compreendido por meio de proporções estabelecidas entre suas subdivisões. Com isso teve sua transmissão possível, através do tempo e do espaço, por meio da escrita musical, que finalmente veio a ser codificada no Ocidente por J. S. Bach, em sua gama temperada. Este utensílio aperfeiçoado trouxe imenso impulso à composição e pôde exprimir o pensamento musical de Mozart, Beethoven, Debussy, Stravinsky, Satie, Ravel ... até os dias atuais. E na busca de uma analogia, Le Corbusier se coloca a questão: um utensílio correlato, que tratasse de medidas visuais, geométricas, não seria desejável também no âmbito da construção, não facilitaria também sua escrita e traria um enorme benefício à composição arquitetônica? Entende que sim, e assim conclui o seu raciocínio: Numa sociedade moderna mecanizada, cujas ferramentas se aperfeiçoam a cada dia para proporcionar recursos de bem-estar, a aparição de uma gama de medidas visuais é admissível, posto que o primeiro efeito deste utensílio será unir, enlaçar, harmonizar o trabalho dos homens, precisamente desunido neste momento até mesmo destroçado pelo presença de dois sistemas dificilmente conciliáveis: o sistema dos anglo-saxões e o sistema métrico decimal. 4 Ele compreende também que os partenons, os templos indianos e as catedrais de todos os tempos sempre foram constituídos segundo um código e se fundamentaram num sistema coerente que afirmava uma unidade essencial. E perguntando-se sobre de que instrumentos dispunham, encontra sempre a resposta nas medidas baseadas em proporções humanas: codo, dedo, polegada, pé, braço, palmo etc. . Com esses instrumentos sutis Ennio Possebon participando da matemática que rege o corpo humano, era possível sustentar, também na construção, a mesma harmonia. E como eles estavam circunscritos a cada cultura específica, sem ter de cruzar distâncias pelos mares, eram aptos e suficientes para cumprir seus desígnios, já que também não havia por que reclamar dessas medidas dentro de seus âmbitos operacionais. Com a Revolução Francesa, diz Le Corbusier, o pensamento laico entendeu que podia conquistar o mundo. E além de colocar em jogo razões profundamente humanistas, apresentou ainda muitas promessas: ciência e cálculo empreenderam caminhos sem limites. No rastro dessa revolução também foram destronados pés e polegadas, juntamente com seus complicados cálculos, e então substituídos por uma medida despersonalizada e abstrata, o metro (a décima milionésima parte do quadrante do meridiano terrestre),5 adotado imediatamente por sociedades mais ávidas de novidades, porém ainda em grande parte rejeitado em favor dos tradicionais pés e polegadas. Uma tensão se estabeleceu entre a nova medida de cálculo mais simples e a tradicional, mais complexa, porém mais adequada à escala humana. Le Corbusier entende que existe uma carência de medida ou sistema proporcionalizador que satisfaça, sendo válidos para qualquer parte do mundo estes quesitos: racionalidade, simplicidade na ordenação do cálculo e adequação à es- 4 LE CORBUSIER, in Modulor 1, p. 17. (Trad. nossa.) 5 Na atualidade, definido como a distância correspondente a 1.553.164, 03 longitudes de onda da banda vermelha do cádmio no espectro a ar seco, a 15º de temperatura e a 760 mm de Hg de pressão. 70 R. Cult. : R. IMAE, São Paulo, a.5, n. 11, p. 68-76, jan./jun. 2004 O MODULADOR DE LE CORBUSIER: FORMA, PROPORÇÃO E MEDIDA DA ARQUITETURA cala humana tanto para a Arquitetura quanto para a Mecânica. Desde o início do século XX ele vinha observando em obras de arquitetura aquilo que chamou de o ângulo reto dirigindo a composição. Também encontraram ressonância nele as palavras de Choisy com sua História da Arquitetura (1902), especialmente quando trata de traçados reguladores ao explicar a organização de composições arquitetônicas. Na revista L´ Esprit Nouveau, junto com outros, Le Corbusier produz artigos teóricos, base doutrinária para sua atividade projetual posterior. A grande indústria deve ocupar-se com a edificação e estabelecer em série os elementos da casa. Deve ser criado o estado de espírito da série: de construir casas em série, de habitar casas em série, de conceber casas em série. 6 E aqui a normatização se torna questão fundamental. Depois que publica o artigo Os traçados reguladores na L´ Esprit Nouveau, em 1921, Le Corbusier conhece os livros de Matila Ghyka, sobre a proporção áurea, que lhe confirmam e demonstram matematicamente assuntos que já o ocupavam. E também em suas pinturas, experimenta a plasticidade sobreposta a uma rigorosa geometria. Posteriormente, por volta dos anos 1940, as idéias desenvolvidas por Wittkower a respeito do Renascimento, da proporção e dos traçados reguladores de projetos também encontrarão ressonância em Le Corbusier. Embora tenha expres- Ennio Possebon Nos anos de ocupação da França durante a Segunda Guerra Mundial, instituiu-se o AFNOR, um órgão cuja função era auxiliar a reconstrução do país. sado algumas críticas à arquitetura renascentista, por ver nas suas construções, quando rigorosamente orientadas pela geometria, e por vezes segundo complexas estruturas, a pressuposição de um observador ideal que teria de se colocar no centro da obra e perceber como um todo, simultaneamente, todos os detalhes. Contra essa interpretação ele argumenta, então, que o observador concreto sempre está de pé, tem o foco de visão a mais ou menos 1,60 m de altura e está em movimento pelo espaço, apreendendo, a cada vez, e no decorrer do tempo, as suas várias perspectivas. Tem percepções diferenciadas a cada momento e, enfim, uma estatura que deve ser sempre considerada. Nos anos de ocupação da França durante a Segunda Guerra Mundial, instituiu-se o AFNOR, um órgão cuja função era auxiliar a reconstrução do país. Industriais, engenheiros e arquitetos foram convocados a participar do empreendimento. Le Corbusier foi um deles. O AFNOR propõe normatizar os objetos da construção e seu método é simplista: simples aritmética aplicada aos usos e utensílios dos arquitetos, engenheiros e industriais. Parece-me arbitrário e pobre. As árvores, por exemplo, com seu tronco, seus ramos, suas folhas e nervuras, me afirmam que as leis de crescimento e combinação podem e devem ser mais ricas e sutis. Um laço geométrico tem de intervir nestas coisas e sonho instalar nas obras que mais tarde cobrirão o país, um enredado de proporções traçado sobre o muro ou apoiado nele, feito com ferros laminados e soldados, que será a regra da obra, o modelo que inicia a série ilimitada das combinações e das proporções. O pedreiro, o carpinteiro e o serralheiro irão aí escolher as medidas para seus trabalhos, os quais, diversos e diferenciados, serão testemunhos da harmonia. Tal é o meu sonho. 7 6 In Casas em série, L´ Esprit Nouveau, 1921, citado em LE CORBUSIER, Modulor 1, p. 31. (Trad. nossa.) 7 LE CORBUSIER, in Modulor 1, p. 34. (Trad. nossa.) R. Cult. : R. IMAE, São Paulo, a.5, n. 11, p. 68-76, jan./jun. 2004 71 O MODULADOR DE LE CORBUSIER: FORMA, PROPORÇÃO E MEDIDA DA ARQUITETURA TENTATIVA E ERRO NA INVENÇÃO DO MODULOR Em 1943, Le Corbusier propõe a seu assistente Hanning uma tarefa: Tome um homem com o braço levantado com 2,20 m de altura, inscreva-o em dois quadrados superpostos de 1,10 m, coloque-o a cavalo sobre os dois quadrados e um terceiro quadrado resultante lhe dará uma solução. O lugar do ângulo reto deve poder ajudá-lo a colocar o terceiro quadrado. Com este enredado, regido por um homem instalado no seu interior, estou seguro que chegará a uma série de medidas que poderão colocar de acordo a estatura humana (o braço levantado) e a Matemática.8 Essa indicação, um tanto enigmática quando meramente lida, entretanto, continha o germe do que viria a ser claramente desenvolvido no traçado final do modulor. Era ainda uma primeira intuição. Mas daí surgiu o primeiro traçado, em 25 de setembro de 1943, que sofreria uma retificação realizada por Elisa Maillard, três meses depois, em 26 de dezembro de 1943. Ambos os traçados têm ainda incoerências e incorreções geométricas, que, embora não interfiram totalmente na praticidade e na aplicabilidade da idéia, serão revistos posteriormente, e mediante várias tentativas e aproximações, progredirão até resultar num traçado rigoroso e preciso em todos os sentidos. O traçado definitivo contou com a colaboração de dois jovens, Ennio Possebon o uruguaio Justino Serralta e o francês Maisonnier, e foi relatado no Modulor 2. Esse traçado produz duas séries de valores baseados na proporção áurea, então chamadas série vermelha e série azul, esta última correspondendo aos valores referidos ao duplo quadrado. a altura padrão do homem será retificada para 6 pés ou 182,88 cm. (altura média de um inglês), valor esse que irá satisfazer mais, em virtude de os valores em polegadas corresponderem com mais proximidade à série Fibonacci que se forma na série azul: 3, 5, 8, 13, 21, 34 ... Essa rede de proporções antropometricamente combinadas, recebeu depois a denominação modulor (sugerida a Le Corbusier por Robert Lancrey-Javal, doutor em Direito). O modulor, na sua primeira versão, tinha como base um homem com 1,75 m (a altura média de um francês), de onde resultavam suas medidas principais. Tecnicamente foi definido da seguinte maneira: O modulor é um aparato de medida fundamentado na estatura humana e na matemática. Um homem com o braço levantado dá os pontos determinantes de ocupação do espaço: o pé, o plexo solar, a cabeça e a ponta dos dedos com o braço levantado três intervalos que definem uma série de secções áureas de Fibonacci; e ainda por outra parte, a matemática, que oferece a variação mais imediata e significativa de um valor: o simples, o dobro e as duas secções áureas. 9 Em síntese, a unidade, a duplicidade e a proporção áurea o modulor. Essa régua de proporções combina-se, assim, através do ponto das duas séries de segmentos áureos, que ele chamou de vermelha e azul, com a estatura humana nos seus principais pontos de ocupação do espaço. Num momento posterior, Le Corbusier quer contribuir para o jogo das normatizações necessárias a uma produção em série, racional e eficiente, de elementos pré-fabricados. Mas quer evitar também o empobrecimento formal produzido por normatizações efetuadas pelo mínimo esforço. Quer colocar no lugar do trivial, do monótono e sem graça o harmonioso, o diverso, o elegante. E remover o obstáculo que resulta da incompatibilidade das medidas centímetro e polegada. O modulor rege as longitudes, as superfícies e os volumes, mantendo sempre a escala humana, prestando-se a infinitas combinações e assegurando a unidade na diversidade: benefício inestimável, milagre dos números. 10 Quando elege a proporção áurea como princípio estruturador do seu enredado de proporções (modulor), Le Corbusier preocupa-se em acoplar nele a estatura humana (estabelecida no padrão médio de 1,82 m ou 6 pés) e pretende com isso criar um dispositivo proporcionador das medidas de sua arquitetura. E neste aspecto parece se colocar em perfeita sintonia com o conceito vitruviano de simetria, de comodulação. A proporção áurea é o módulo que engendra as 8 Idem, op. cit., p. 35. (Trad. nossa.) 9 LE CORBUSIER, in Modulor 1, p. 52. (Trad. nossa.) 10 Idem, op. cit., p. 88. (Trad. nossa.) 72 R. Cult. : R. IMAE, São Paulo, a.5, n. 11, p. 68-76, jan./jun. 2004 O MODULADOR DE LE CORBUSIER: FORMA, PROPORÇÃO E MEDIDA DA ARQUITETURA Durante as conversações no processo burocrático de requerimento e concessão de patentes irão despontar as várias perspectivas comerciais e direitos possíveis pela sua utilização, aos quais Le Corbusier depois renunciará. formas da arquitetura, nas partes e no todo, e leva em conta, todo o tempo, a escala humana. E aqui, como Zeizyng o fizera no século XIX,11 reafirma a insinuação de ser ela a legismetria12 do crescimento e do desenvolvimento dos seres orgânicos. O modulor, dito de uma outra maneira ainda, é a combinação de duas séries coordenadas de segmentos áureos que estabelecem um sistema proporcional e relacionado com a estatura humana evidentemente, com um padrão médio escolhido: uma grandeza referencial que determina as dimensões e proporções criadas dentro deste criterium definido pela proporção áurea. Nota-se que existe, de certa maneira, uma obsessão em eliminar a incompatibilidade entre os sistemas métrico e de polegadas. Isso é resolvido, ou contornado, em parte, mas na verdade não é o que tem mais importância. Parece-nos mais importante a tentativa de Le Corbusier de buscar coerência na disposição das proporções de suas obras, guiando-se por determinações sugeridas pelos processos construtivos da Geometria, combinados com todas as outras disposições e determinações necessárias ao dimensionamento da Arquitetura. E nesse sentido ele age, antes de tudo, como um geômetra. O modulor é patenteado por Le Corbusier. Durante as conversações no processo burocrático de requerimento e concessão de patentes irão despontar as várias perspectivas comerciais e direitos possíveis pela sua utilização, aos quais Le Corbusier depois renunciará. Como um produto a ser lançado no mercado foi, na época, pensado e composto das seguintes peças: uma fita Ennio Possebon com 89 polegadas contendo as duas escalas, um quadro numérico com as medidas das duas séries e um manual de instruções. John Dale editou, então, um boletim mundial contendo notícias e discussões entre os usuários do modulor. Isso foi cogitado em 1947. Houve perspectivas de que empresários americanos se interessassem pela sua fabricação e comercialização, mas o produto modulor nunca chegou ao mercado. A partir da edição do livro Modulor 1 (1948) há uma intensa troca de correspondência entre Le Corbusier e inúmeros estudiosos e usuários interessados no modulor. Correções, retificações e ampliações da idéia são dirigidas a ele, e interagindo com essas respostas o projeto se redefine, torna-se mais preciso e se esclarece. Ele mesmo, por iniciativa própria, estará sempre interessado em dialogar com matemáticos, engenheiros e outros profissionais, buscando e aceitando o aperfeiçoamento do projeto quando lhe é proposto por outros. O próprio nome modulor foi proposto por Lancrey-Javal. A princípio, Le Corbusier não o considerou adequado e o rejeitou. Toda troca de informações, idéias, sugestões e advertências, e as respectivas respostas e considerações, se encontram exaustivamente descritas no Modulor 2 (1950), juntamente com as definições finais do sistema, além da descrição de inúmeros casos do sistema aplicado por ele mesmo ou por outros arquitetos. 11 ZEISING, Adolf. in Neue Lehre von den Proportionen des menschlichen Korpers, aus einem bisher unerkannt gebliebenen, die ganze Natur und Kunst durchdringenden morphologischen Grundgesetz entwicklt. (Nova teoria das proporções do corpo humano desenvolvida de uma lei morfológica básica, até então desconhecida, que impregna a inteira Natureza e a Arte.) (Trad. nossa.) 12 Legismetria . Neologismo criado por F. Muller para a tradução do vocábulo Gezetzmassigkeit, do alemão. R. Cult. : R. IMAE, São Paulo, a.5, n. 11, p. 68-76, jan./jun. 2004 73 O MODULADOR DE LE CORBUSIER: FORMA, PROPORÇÃO E MEDIDA DA ARQUITETURA Sobre o modulor, o rigoroso Ernst Neufert, a despeito de algumas críticas com relação às aproximações e arredondamentos de medidas estabelecidos nas séries vermelha e azul, comentou em seu livro A industrialização das construções: [...] é importante que um arquiteto de tanta popularidade como Le Corbusier tenha dedicado sua atenção ao problema das medidas na construção e que tenha colocado em primeiro plano necessidades arquitetônicas que haviam sido deixadas de lado, como pouco acertadas, substituídas por normatizadores mecânicos e exclusivistas. Não menos importante é o fato de que para desenvolver as construções se possa jogar com proporções baseadas na secção áurea.13 E Wittkower comenta em Sobre a arquitetura na idade do humanismo, em tom um tanto exagerado e claramente apologético: [...] Todos sabemos que quando a geometria não-euclidiana passou a ser a base da visão moderna do universo no final do século XIX e início do XX, produziu-se uma ruptura básica com o passado, mais profunda até que aquela entre o universo hierarquizado e escolástico da Idade Média e o matemático e euclidiano de Leonardo, Copérnico e Newton. Que repercussões teve e terá sobre a proporção nas artes e a substituição das medidas absolutas do espaço e do tempo por uma nova relação dinâmica espaço-tempo? O modulor de Le Corbusier constitui uma resposta preliminar. À luz da História aparece com a intenção fascinante de coordenar a tradição com o nosso mundo nãoeuclidiano. Em primeiro lugar porque toma como ponto de partida o homem e seu entorno, e não um conjunto de universálias. Com isto Le Corbusier acerta o passo das normas absolutas com o das relativas. Porém, tenta uma nova consolidação neste nível. Os velhos sistemas de proporções eram o que poderíamos chamar de sistemas de mão única, por constituírem desenvolvimentos coerentes de conceitos básicos, geométricos ou numéricos (mais aritméticos). Outro tanto ocorre com o modulor de Le Corbusier. Seus elementos são extremamente simples: quadrado, duplo quadrado e as secções áureas. Estes elementos se fundem num sistema de razões geométricas e numéricas: o princípio básico da simetria se combina com as duas séries divergentes de números irracionais derivados da secção áurea. A despeito do que esta opinião possa suscitar, se trata, sem dúvida, da primeira síntese coerente desde a decomposição dos velhos sistemas, síntese que reflete a natureza da nossa própria civilização e é, ao mesmo tempo, um testemunho de nossa tradição cultural. E, igualmente como as proporções da geometria plana utilizadas na Idade Média e as proporções musicais e aritméticas do Renascimento, o sistema dual de magnitudes irracio- Ennio Possebon nais de Le Corbusier segue dependendo dos conceitos que o pensamento pitagórico-platônico legou à humanidade do Ocidente.14 Num encontro com Albert Einstein, Le Corbusier relata que, após ouvir suas explicações e comentários, e depois de ter verificado matematicamente os esquemas do modulor, teria assim resumido seu parecer a respeito: Uma escala de proporções que torna o mau difícil e o bom fácil.15 Essa boa receptividade ele encontrou também entre numerosos matemáticos, engenheiros e arquitetos. O modulor realmente despertou, na época, um significativo interesse no ambiente profissional e acadêmico. Com o passar dos anos o interesse se esmaeceu e o próprio Le Corbusier acabou pondo de lado sua obsessão inicial e o uso persistente e sistemático do sistema. E, desafortunadamente, também deixou de ser estudado com a profundidade que merece o que representou esse importante processo surgido dentro da obra de um dos mais representativos arquitetos do século XX. O PRODUTO MODULOR John Summerson também afirma: Le Corbusier defendeu intensamente o Modulor como um sistema que, se amplamente adotado, poderia solucionar muitos dos problemas de padronização na indústria e, ainda, dar harmonia ao conjunto do meio físico. Talvez isso pudesse ter acontecido. Porém desde 13 N EUFERT, Ernst. in Industrializacion de las construciones, p. 35. (Trad. nossa.) 14 WITTKOWER, Rudolf. in Architectural principles in the age of humanism, p. 537-538. (Trad. nossa.) 15 L E CORBUSIER, in Modulor1, p. 55. (Trad. nossa.) 74 R. Cult. : R. IMAE, São Paulo, a.5, n. 11, p. 68-76, jan./jun. 2004 O MODULADOR DE LE CORBUSIER: FORMA, PROPORÇÃO E MEDIDA DA ARQUITETURA a sua publicação, em 1950, o interesse por esse sistema vem diminuindo. Estou inclinado a pensar que, como em outras situações semelhantes, a importância real do Modulor está em que ele é parte da aparelhagem mental de seu autor e lhe permite realizar projetos tão originais como a capela de Ronchamp um edifício de forma tão livre que chega a ser quase uma escultura abstrata , seguro de seu completo domínio dos procedimentos racionais.16 Summerson parece ter alguma razão quando afirma que a racionalidade conquistada por Le Corbusier, ao aprofundar-se na pesquisa da proporção áurea e sua expressão sistematizada, que é o Modulor, tem um valor relativo, isto é, vale como ferramental de projeto de seu autor, porém não pode como tal servir a mais ninguém. Mas também essa afirmação tem valor relativo. Pois ao esforço de Le Corbusier para chegar até este pretendido produto final, o Modulor, subjaz todo um processo de pensamento organizacional de projeto que tem a proporção áurea como célula-mãe e se desdobra em harmonias derivadas dela. E o que tem valor maior, finalmente, é a compreensão que hoje temos desses desdobramentos que ele pôde executar, operando com este paradigma, e não aquilo que ele bemintencionadamente, mas talvez equivocadamente, tenha sonhado em oferecer à cultura do século XX como produto. O resgate e o aprofundamento no estudo desse processo de busca de uma comodu- lação, que estão contidos no seu trabalho, é que podem ser de imenso valor. Ou seja, se o Modulor não pôde servir como produto final, pronto e acabado para ser usado por outros é, no mínimo, um imenso manancial de pesquisa para uma profunda imersão no significado real e mais profícuo do que pode a Geometria, quando bem compreendida, significar para o trabalho do arquiteto. Mas mesmo arquitetos e teorizadores que tiveram o velho mestre como a grande figura inspiradora de uma arquitetura racional, liberta das formas do passado, criativa e inovadora, parecem ter deixado de lado esse aspecto de sua obra. Mas a carência dos tempos sempre acaba por despertar potencialidades latentes. KlausPeter Gast, por exemplo, é uma bem-vinda alteração dessa situação com seu livro Le Corbusier. ParisChandigarh, recentemente publicado (2000). Poderíamos discutir a estética de suas obras, questionar até que ponto Le Corbusier conseguiu, por esse seu geometrizar, resultados significativos e expressivos. Mas, independente disso, sua atuação como arquiteto-geômetra, que é inegável, está longe de ser entendida e divulgada tanto quanto o são tantos outros aspectos exemplares e conhecidos de sua obra. E dentro do âmbito desta pesquisa, nossa ênfase é justamente no processo geometrizador por meio do qual eram gerados seus projetos. Ennio Possebon CRÍTICAS UNILATERAIS Recentemente, Frings, num artigo sobre a ocorrência e o papel que a proporção áurea desempenhou na teoria da Arquitetura, escreve duras e unilaterais críticas ao trabalho de Le Corbusier, embora, em exame de detalhes, também possam ser justificadas em parte. E como contraponto ao que já foi exposto até agora, cabe aqui também a sua apresentação: O Modulor, na proposta de Le Corbusier, combina quadrado e secção áurea, mas como resultado não oferece nada além de um sistema modular. Da série azul de números (secção áurea da altura total) e da série vermelha (altura do umbigo) resulta uma seqüência de medidas de 27 a 226 cm (e mais além) em degraus de 27 e 16 cm. Na função desempenhada pelo umbigo como origem da série vermelha, Le Corbusier alude à tradição do homo vitruvianus e às especulações relacionadas com as harmonias num cosmos antropocêntrico, bem mostrados numa figura emblemática no livro Modulor 2. O Modulor tem, entretanto, algumas deficiências. Primeiro, embora Le Corbusier pretenda que seja usado para todas as dimensões, verticais e horizontais, ele prioriza a dimensão vertical. Além disso, é baseado em aproximações aos números da série Fibonacci. E desde que as séries azul e vermelha podem ser combinadas ao sistema, ele se torna tão elástico que a secção áurea acaba sendo difícil de detectar. Neufert critica, numa edição mais 16 SUMMERSON, John.in A linguagem clássica da Arquitetura, p.117. R. Cult. : R. IMAE, São Paulo, a.5, n. 11, p. 68-76, jan./jun. 2004 75 O MODULADOR DE LE CORBUSIER: FORMA, PROPORÇÃO E MEDIDA DA ARQUITETURA recente do Bauordnungslehre, ambas as indefinidas práticas: de arredondar números, de tal modo que as adições passam a ser incorretas e mais ainda nas imprecisões ao transcrever medidas métricas para o sistema britânico das polegadas. E finalmente, o Modulor não está de fato longe do próprio sistema de Neufert, o Sistema Octamétrico (Neufert, 1941). Por esta razão o Modulor não deve ser considerado um sistema de proporções, mas sim um catálogo de medidas irregulares [...] Durante um longo período a secção áurea não foi mencionada na teoria da arquitetura. Ela primeiramente aparece no século XIX, através de Zeising e Fechner, e então surge novamente com um certo fascínio na terceira e quarta décadas do século XX, quando Neufert e Le Corbusier vêm a conhecê-la. Neufert alimenta grandes esperanças para uma renovação da arquitetura através da secção áurea, mas logo cai em si. Não obstante ele a apresenta in extenso. Depois dos primeiros experimentos onde Le Corbusier usa a secção áurea para desenvolver seu catálogo de medidas, o qual não tinha devido aos arredondamentos e combinações Ennio Possebon O LEGADO DE LE CORBUSIER O modulor parece representar um curioso ponto de virada na História da Arquitetura. Num sentido, foi um corajoso, persistente e pretensioso esforço para criar uma regra unificadora para toda a Arquitetura; e noutro, mostrou a falência e as limitações de tal tentativa. Mas isso não invalida nem desqualifica o processo geometrizador do seu criador, nem a riqueza formal e funcional de sua arquitetura; ao contrário, confere a esse legado de «Corbu» um imenso valor. O esforço despendido por Le Corbusier, até onde ele pode ser compreendido como intenção consciente, evidenciou uma busca intensa por determinantes e alvos que foram também aqueles mesmos anteriormente pertencentes à Arquitetura clássica, conforme descritos por Vitrúvio e expressos na Renascença por seus arquitetos e teóricos. Ou seja, a proporção, a simetria ou comodulação, a harmonia e a euritmia do edifício. A beleza, enfim. Mas isso não invalida nem desqualifica o processo geometrizador de seu criador, nem a riqueza formal e funcional de sua arquitetura. muito mais em comum com a secção áurea ou a série Fibonacci. De fato, Neufert e Le Corbusier parecem utilizar a secção áurea de modo a glamourizar sua própria criação artística subjetiva com teoria e razão. Em todo caso, a secção áurea certamente desempenha um papel nos escritos destes teoristas da Arquitetura. Antes do século XIX, todavia, a secção áurea está simplesmente ausente da teoria da arquitetura escrita até então.17 17 FRINGS. Marcus, in The Golden Section in Architectural Theory, Nexus Network Journal, vol. 4, no 1, 2002, http://www.nexusjournal.com/Frings.html Referências bibliográficas: GAST, Klaus-Peter. Le Corbusier: Paris Chandigarh. Basel: Birkhauser, 2000. LE CORBUSIER. El Modulor. Buenos Ayres: Poseidon, l953. LE CORBUSIER. El Modulor 2. Buenos Ayres: Poseidon, 1962. LE CORBUSIER. The Marseille´s block. London: The Harvill Press, 1953. LE CORBUSIER. L´Architecture et l´esprit mathématique, in Les grand courants de la pensée mathématique, presentée par F. de Lionnais. S. l.: Cahiers du Sud, 1958. LE CORBUSIER. L´ Unité d´ habitation de Marseille. Le Point, nº 38. S.l.: Souillac (Lot) Mulhouse, nov. 1950. N EUFERT, Ernst. Industrializacion de las construciones. Barcelon: Gustavo Gili, 1969. SUMMERSON, John. A linguagem clássica da arquitetura. São Paulo: Martins Fontes, 1999. Z EISING, Adolf. Neue Lehre von den Proportionen de menschlichen Korpers, aus einem bisher unerkannt gebliebenen, die ganze Natur und Kunst durchdringenden morphologischen Grundgesetz entwicklt. Leipzig: s.e., 1854. W ITTKOWER, Rudolf. Architectural principles in the age of humanism. London: Tiranti, 1952. 76 R. Cult. : R. IMAE, São Paulo, a.5, n. 11, p. 68-76, jan./jun. 2004