DOENÇA FALCIFORME Melina Swain Hospital Regional da Asa Sul/SES/DF www.paulomargotto.com.br Brasília, 15 de agosto de 2012 INTRODUÇÃO • Hemoglobinopatia caracterizada pela substituição do aminoácido glutâmico pela valina na sexta posição da cadeia β do DNA do gene da hemoglobina [GTG GAG] – Doença hereditária mais prevalente no Brasil • Autossômica recessivo ( HbSS) • Estado heterozigoto → traço falciforme (HbAS) • Outras anormalidades da hemoglobina podem se associar com o gene S – – – – HbSβ – talassemia HbSC HbSD HbSE Ao conjunto dessas alterações, homozigose ou associações denomina-se doença falciforme FISIOPATOGENIA • Alterações fisiopatológicas observadas são decorrentes de seu defeito básico • A substituição do ácido glutâmico pela valina – modifica a solubilidade da molécula de hemoglobina, quando esta se encontra na forma reduzida • polimerização da molécula na carência de oxigênio→conferindo forma de foice ao glóbulo vermelho • Eritrócitos deformados evoluem mal na circulação capilar – Obstruindo fluxo sanguíneo ( vasoclusão) – Destruídos prematuramente ( hemólise) • Alteração endotelial gerando estado inflamatório crônico. • Quadro clínico variável – Homozigose ( HbSS) – Associações com outras hemoglobinopatias – Concentração da Hb Fetal • Nível de HbF inversamente associado com a gravidade da doença • Quadro clínico variável Haplótipo – 5 diferentes haplótipos associados ao gene HbS • Recebem o nome da região onde foram descritos pela 1º vez – – – – – Benin Senegal Bantu (ou república centro africana)→ parece ter pior evolução clínica Camarões Árabe-indiano – No Brasil » Maior prevalência do haplótipo Bantu, seguido pelos haplótipos Benin e Senegal • Manifestações clinicas devem-se a dois fenômenos principais – Oclusão vascular pelos glóbulos vermelhos seguida de infarto nos diversos tecidos e orgãos (estado inflamatório crônico) – Hemólise crônica e seus mecanismos compensadores • Esses eventos associados tendem a lesar progressivamente os diversos tecidos e órgãos Pulmões Coração Ossos Fígado SNC Rins Retina Pele Alterações no crescimento e atraso puberal Destruição progressiva do baço → auto- esplenectomia e suscetibilidade aumentada para infecções graves • Manifestações – Desenvolve paralelamente ao declínio pós-natal da HbF – Evidente em torno do 6º mês de vida, juntamente com as primeiras manifestações clínicas – Frequentemente com edema e dor no dorso das mãos e pés (Vasooclusão) – Ocasionado por infarto e necrose dos ossos metacarpianos e metatarsianos → síndrome mão-pé • Evolução da doença caracterizada por crises precipitadas por inúmeros fatores – – – – – – Febre Infecção Exercícios físicos Desidratação Exposição ao frio Tensão emocional • Crises podem ser – Vasoclusivas – Anêmicas (aplásticas, sequestro, hiper-hemolítica) • Vasoclusiva – Mais frequente – Pode atingir qualquer órgão e tecido – Episódios dolorosos de intensidade variável • Dependem do grau de lesão isquêmica e do órgão ou tecido afetado – Lesão tissular isquêmica secundária à obstrução dos vasos sanguíneos pela células falcizadas – Dor persiste mesmo após o processo de falcização ter cessado • Em média 3 a 6 dias • Dores podem ocorrer – – – – Extremidades Abdome Tórax Manifestações musculoesqueléticas • Sistema nervoso central – Doppler transcraniano – Verifica velocidade do fluxo na arteria cerebral media. Velocidade > 170 cm/s aumenta o risco para AVC – – – – – 17% dos portadores de doença falciforme 5% dos portadores de HbSC Idade média < 7 anos de idade Mortalidade: 15% Manifestações neurológicas • Geralmente focal – Hemiparesia – Hemianestesia – Deficiência no campo visual – Afasia – Paralisia de nervo craniano • Sinais generalizados podem ocorrer – Convulsão – Coma – Recorrência de novos infartos • 70% em até 5 anos do primeiro evento • Síndrome torácica aguda – Aparecimento de infiltrado pulmonar novo acompanhado de febre e/ou outros sintomas respiratorios • Isoladamente, principal causa de mortalidade após 2 anos de idade • Principal causa de morbidade e mortalidade na doença falciforme em qualquer idade – Clinicamente • • • • • • • Febre Tosse Dispnéia Dor pleural Infiltrados pulmonares Declínio do nível basal da hemoglobina Embolia gordurosa secundária ao infarto da MO, tem evolução progressiva e grave • Priapismo – Manifestação vasoclusiva (congestão dos corpos cavernosos e/ou esponjosos do pênis por hemácias falciformes) – Ereção dolorosa e persistente do pênis, pode ser agudo ou crônico – Em qualquer idade – Grande maioria auto-limitada – Com resolução espontânea inferior a 24 horas – Casos persistentes podem resultar em impotência • Crise aplástica – Precedida em 1 a 3 semanas por infecção viral • Parvovírus B19 – Aplasia transitória do setor eritrocitário – Apresenta sintomas de anemia aguda sem aumento esplênico – Reticulocitopenia e ausência de icterícia • Sequestro esplênico – Aumento abrupto do baço – Queda acentuada dos níveis de hemoglobina – Pode ocorrer choque hipovolêmico e óbito • Quadro hiper-hemolítico – Pouco frequente – Hemólise intensa – Anemia acentuada – Icterícia • Alterações na imunidade – Mais suscetíveis às infecções por • • • • Streptococcus pneumoniae Haemophillus influenzae tipo b Neisseria meningitidis Salmonella sp DIAGNÓSTICO • História clínica – Crises dolorosas de repetição – Infecções – Anemia – Icterícia • Esfregaço periférico – Células em forma de foice – Eritroblastos – Algumas vezes células em alvo – Teste de falcização é positivo DIAGNÓSTICO • Diagnóstico laboratorial • Detecção da HbS e de suas associações com outras frações – Técnica da eletroforese de hemoglobina • Em acetado de celulose com pH alcalino • Em ágar com pH ácido Separação dos tipos de Hb de acordo com as diferentes taxas de migração das moléculas de hemoglobinas eletronicamente carregadas, quando submetidas a um campo elétrico. DIAGNÓSTICO • Diagnóstico Molecular – Alteração molecular presente na doença falciforme pode ser identificada pela reação em cadeia da polimerase (PCR), e sequenciamento do DNA • Diagnóstico pré- natal – Intra-útero: através da análise do DNA de alguma célula nucleada disponível (células das vilosidades coriônicas) detectando genótipo da doença da célula falciforme na 12º a 14º semana de gestação • Screening neonatal – Eletroforese de hemoglobina em sangue de cordão LABORATORIAL: • Hemograma • Anemia normocrômica e normocítica com reticulocitose ( 5-20%) • Hb em pacientes estáveis varia entre 5- 10 g/dl → conhecer o nível basal de cada paciente nos periodos intercrise • Valores reduzidos de volume corpuscular médio (VCM) → atenção para associação com alfa-talassemia ou S/β-talassemia ; descartando sempre a possibilidade de concomitância com anemia ferropriva • Concentração de hemoglobina corpuscular média (CHCM) é normal – Leucocitose • Achado frequente → podendo apresentar desvio para esquerda mesmo paciente fora de crise – Plaquetose • Contagem de plaquetas em geral elevada, pode atingir níveis de até 1.000.000/mm³. • Plaquetose e leucocitose → decorrente da hiperplasia da medula óssea, hipofunção esplênica. Plaquetopenia presente nos quadros de sequestro esplênico ou hepático. • Morfologia do sangue periférico – Presença de hemácias “em foice” → achado clássico na doença falciforme após 1º ano de vida, antes ausentes pelo elevado nível de hemoglobina fetal – Hemácias em alvo nas S/β-talassemia e hemoglobinopatias SC – Corpúsculos de Howell-Jolly refletem hipofunção esplênica – Eritroblastos circulantes ( 5-10%) – Hemácias fragmentadas, policromasia e esferócitos Dosagem da hemoglobina A2 – Principais métodos são eluição ou cromatografia em microcoluna; outros testes incluem estudo imunohistoquímico ou cromatografia liquída de alta pressão. – Menor componente da Hb adulta normal – Traços presentes ao nascer, alcançando níveis normais aos 6 meses – Valores até 3,5% são considerados normais Dosagem de hemoglobina Fetal – Presente ao nascimento em níveis de 65-90%, atingindo < 2% dos 6 aos 12 meses, em adultos menos de 2%. – Fatores genéticos ou estresse hematopoiético são responsáveis pela manutenção de níveis elevados desta hemoglobina. – Portadores de Hb S podem apresentar HbF de até 20% – Quantificação desta Hb é importante para diferenciar as hemoglobinopatias e avaliar as condições como medula óssea estressada e efeitos farmacológicos de drogas na produção da Hb F – Varios métodos para quantificar Hb Fetal, como desnaturação alcalina, eletroforese, focalização isoelétrica seguida por densitometria, e, HPLC. Características clínicas e laboratoriais das principais síndromes Falciformes Hb (g/dl) variação Reticulócitos % Média (variação) Grau de hemólise/ Vasoclusão Eletroforese de hemoglobina HbAS 13,0 (12,0- 16,0) Normal 0/0 HbS 35-40% HbF < 2% HbA1 50- 60% HbA2 < 3,5% HbSS 7,5 (5,5-9,5) 11,0 (5-30) ++++/++++ HbS 80- 90% HbF 2-20% HbA1 ausente HbA2 < 3,5% HbSβ+ tal 11,0 (8,0-13,0) 3,0 (1-6) + / + a ++ HbS 65-90% HbA1 5-30% HbF 2-10% HbA2 3,5 -6,0% HbSβ o tal 8,0 (7,0-10,0) 8,0 (3-18) +++ / +++ HbS 80-92% HbA1 ausente HbF 2-15% HbA2 3,5 -7,0% HbSC 11,0 (9,0-14,0) 3,0 (1-6) + / ++ HbS 45-50% HbC 45-50% HbF 1-5% TRATAMENTO • Tratamento das crises falcêmicas • Acompanhamento da doença crônica – Acompanhamento ambulatorial • Orientação do paciente e familiares sobre a doença • Penicilina profilática • Vacinas • Ácido fólico, via oral, 1 – 5mg/dia (não temos feito de rotina, nas fases de crescimento rápido como adolescência, pós episódios infecciosos, em desnutridos) • Avaliação periódica dos diversos órgãos e sistemas – Alterações cardíacas, renais, pulmonares, presença de cálculos biliares, lesões retinianas, SNC • CRISE VASOCLUSIVA DOLOROSA – Complicação mais frequente . – Tratamento consiste – Corrigir fatores desencadeantes • Desidratação • Infecção • Hipóxia – Repouso – Hidratação – Alívio da dor • CRISE VASOCLUSIVA DOLOROSA • Hidratação – Dor leve • Terapia de reidratação oral quando há colaboração – Dor moderada à grave • Via endovenosa – Cuidado com sobrecarga de fluidos – Portador de doença falciforme tem água corporal aumentada e principalmente nos que possuem algum grau de cardiopatia, pois podem desencadear edema agudo de pulmão ANALGESIA • Dor leve – paracetamol ou dipirona – Ibuprofeno – AINH • Dor moderada – Tramadol • 1mg/Kg/dose, 6/6h – Codeína • 0,5 – 0,75mg/kg/dose, 4/4 h • Dor severa – Morfina ( até pode ser contínua) • 0,1mg/kg/dose, 4/4h ou 3/3h (dose máxima 10 mg/dia) • Quando houver melhora da dor, reduzir a dose e manter intervalo , (em geral espaçamos os intervalos max 4/4h) • ACIDENTE VASCULAR CEREBRAL (AVC) – Concentrado de hemácias (10ml/kg) • Ajuda a prevenir progressão do AVC ( redução dos níveis de HbS) – Nesta fase aguda níveis de Hb devem ser mantidos em 10g/dl • Caso não seja possível a realização da transfusão simples de glóbulos vermelhos – Paciente já apresenta nível de Hb basal próximo a 10g/dl – Progressivo dano neurológico • Recomenda –se exsanguinitransfusão parcial ou eritrocitoaferese para reduzir nível de HbS (< 30%) – Após regressão do episódio agudo • Terapia de transfusão regular crônica • Finalidade de manter nível de HbS < 30% • PRIAPRISMO – Hidratação e analgesia – Transfusão • Indicada quando medidas de crise vasoclusiva não reverterem o processo • Exsanguinitransfusão parcial • Não deixar Hb final > 10g/dl – Resolução na maioria dos casos em 24 h • Se não apresentar melhora →punção aspiração do corpo cavernoso – Intervenção cirúrgica • Sem resposta as medicações e transfusão • Evitar impotência • SÍNDROME TORÁCICA AGUDA (STA) – Exige hospitalização • Causa frequente de óbito no adulto Avaliação – Rx tórax – Hemograma / hemocultura – Gasometria (saturação O2 < 96%, PaO2< 75 mmHg ou decréscimo de 25% do valor basal) – Cintilografia pulmonar V/Q Diagnóstico é clinico. • Tratamento – Monitorização – Hidratação (evitar hiperhidratação) – Analgesia – Manutenção apropriada da oxigenação ( manter O2> 95% e/ou PaO2≥75mg) – Antibioticoterapia de amplo espectro para cobrir • Pneumococo • Haemophilus influenzae • Staphylococcus aureus • Mycoplasma pneumoniae (se clinica) – Transfusão sanguínea, se necessário • CRISE APLÁSTICA – Mantido sob vigilância hematológica até retorno da reticulocitose – Em geral autolimitados – Transfusão→ se descompensação cardíaca ou queda 2g do basal • Transfusão normal 10ml/Kg • SEQUESTRO ESPLÊNICO – Pronta intervensão → risco de choque hipovolêmico – Transfusão de hemácias pequenas aliquotas e monitorizar o baço – Avaliação das funções vitais e tamanho do baço • Suspeita de repetir o quadro→ possibilidade de esplenectomia nas crianças maiores de 2 anos, • < 2 anos: transfusão crônica para manter HbS < 30% • FEBRE SEM FOCO – Maior suscetibilidade às infecções • Principalmente pelo streptococcus pneumoniae e haemophylus influenzae • Risco elevado de sepse – Presença de febre – Exame físico cuidadoso • Sinais de sepse –Meningite, desconforto respiratório, dor óssea localizada, esplenomegalia – Exames laboratoriais • Hemograma com reticulócitos / hemocultura • Rx torax • EAS e urocultura • Punção lombar→ se sinais de meningite – 72h afebril, culturas estéreis, sem sepse e nível seguro de Hb→alta com antibiótico oral • TERAPIA TRANSFUSIONAL • Risco de infecções adquiridas • Sobrecarga de ferro • Aloimunização – Indicação como tratamento • Exacerbação da anemia – Anemia aplástica – Sequestro esplênico ou hepático • Crises vasoclusivas severas – Crises dolorosas refratárias – AVC – Síndrome torácica aguda progressiva – Insuficiência cardíaca congestiva – Priapismo não responsivo • Procedimentos de alto risco – Cirurgia com anestesia geral – Programa de transfusão crônica • AVC • Sequestro esplênico, antes dos 2 anos de idade Hidroxiuréia • • • • • • • • • • • • Promove aumento da HbF ( 4 – 15%) Indicação: Idade superior a 3 anos 3 ou mais admissões hospitalares ou abstenção escolar/trabalho por crises vaso oclusivas nos últimos 12 meses 1 ou mais episódios de síndrome aguda nos últimos 24 meses Hipoxemia crônica: saturação de Oxigênio < 94%, fora de evento agudo. Pacientes com disfunções orgânicas graves (priapismo, necrose óssea, retinopatia proliferativa) Hb < 7g/dl ( fora de evento agudo) HB F < 8% após 2 anos de idade Leucocitose > 20.000/mm3 (3 valores fora de evento agudo) DHL: 2 vezes acima do valor de referencia para idade Alt. Doppler transcraniano – impossibilite regime transfusional. – Hidroxiuréia • Dose inicial preconizada 20mg/kg/dia, 1x ao dia – Dose deve ser aumentada progressivamente a cada 3 a 4 meses, na ausência de sinais de supressão medular – Sinais de supressão medular » Contagem de neutrófilos < 2000 » Hemoglobina < 4,5g/dl » Plaquetas < 80000 • OBRIGADA.