Tema 01 - Apologia de Sócrates O texto exprime a versão da defesa feita por Sócrates em seu próprio julgamento. Motivos do julgamento: a) Corromper a juventude b) Não aceitar os deuses que são reconhecidos pelo estado, c) Introduzir a crença em novas divindades. Para Platão, Sócrates era vítima do poder do discurso político que agiu contra o raciocínio filosófico. Uma vez que a filosofia é superiora à política, Sócrates não poderia ser condenado porque o que ele fazia era tão somente filosofar. A arte de filosofar encontrava-se justamente na atividade que foi suscitada pela sacerdotisa do Oráculo que Delfos que afirmou ser Sócrates o mais sábio de todos os homens. No texto “Apologia de Sócrates”, Platão narra os fatos que marcaram o julgamento e posterior condenação à morte de Sócrates. O filósofo afirma que em sua defesa, Sócrates, assume ser a ignorância a condição previa para a busca do conhecimento, uma possibilidade aberta a todos os homens, e desde então, Sócrates dedicou-se incansavelmente a demonstrar aos que se julgavam sábios a falsidade de seus conhecimentos. Se autêntica essa declaração de ignorância ou então um artificio para a atividade investigativa de Sócrates, ela constitui-se um ponto de partida de uma atividade filosófica radical que põe em dúvida a validade dos princípios morais assumidos pela tradição, expondoos ao exame da razão. Cabe ao homem o exercício da dúvida com o propósito de fazer com que seus interlocutores identifiquem as falhas de seus próprios argumentos e, consequentemente, a ilegitimidade de seus conhecimentos. A moral socrática não tem uma ação e interesse particular e com opiniões pessoais, mas sim está vinculada à superação das opiniões, das crenças e dos costumes pela identificação racional do bem e do mal pelo logos, ou seja, uma moral racionalmente sustentada. Em Sócrates, o conceito de areté é modificado e apresenta a excelência humana como virtude plenamente contida no conhecimento. A filosofia moral socrática: conhecimento e virtude Se a virtude está atrelada ao conhecimento, então ela deve ser explicada e justificada pela razão. Portanto, os valores morais possuem existência objetiva e apenas podem praticar as virtudes aqueles que sabem o que ela é. O conhecimento, então, é condição necessária para qualquer oficio, mas não é suficiente, afinal, todas as coisas podem ser feitas ou não, e a decisão sobre o que se deve ou não fazer remete automaticamente a outro tipo de saber, que é exatamente o conhecimento moral. Para Sócrates os comportamentos realmente éticos são consequência imediata do saber acerca da moral. Assim, o conhecimento do bem e a prática do mal são termos incompatíveis, uma vez que a alma humana, com a posse do saber virtuoso, não se engana na escolha dos seus bens. A virtude torna-se, aqui, sinônimo de felicidade. A unidade das virtudes Sócrates reafirma a virtude como conhecimento, a ignorância como origem do erro e a unidade de todas as manifestações da virtude, porque coragem, justiça, piedade, prudência e todos os bens da alma são virtuosos porque são concretizações diferentes de um mesmo princípio, a virtude da sabedoria. Neste aspecto se estabelece a proposta socrática, que propõe a autonomia moral dos homens a partir do discernimento racional entre o certo e o errado, ou seja, a formação humana em sua autentica areté é fundamentada na razão e na existência de valores morais em si. A ética socrática é denominada de intelectualista, por compreender a vida virtuosa como desdobramento imediato do conhecimento, desconsiderando qualquer possibilidade de inclinação contrária à sabedoria da virtude que, opondo-lhe resistência, exigisse um esforço realizado pela vontade para vencer as paixões. As oposições à virtude manifestam-se apenas na ausência da sabedoria, anulando-se naturalmente com a sua presença. A questão socrática: o que é a virtude? Virtuoso é o homem que dedica sua vida na importante tarefa de encontrar a natureza da virtude, ou seja, todo o empenho do sujeito será devotado na incansável busca, mas para isso precisamos examinar em que consiste a natureza das virtudes particulares. Então, para Sócrates, devemos partir do particular em direção ao geral, confiando somente nos argumentos derivados da razão. Sócrates estabelece um método que o auxilia nessa tarefa, e esse método é a dialética que consiste em mostrar, mediante o diálogo, um debate racional sobre qualquer tema, onde os interlocutores assumem uma posição de igualdade e com honestidade vão construir conjuntamente um conhecimento preciso acerca do tema da discussão. No método socrático não está em destaque o espetáculo que o sofista proporciona, mas sim uma investigação que busca tão somente o conhecimento da natureza da virtude. Para Sócrates é um dever moral dialogar com qualquer cidadão para exercitar a reflexão e o raciocínio para o que realmente importa: a vida em conformidade com os princípios éticos. O método socrático O método dialético tem como objetivo a libertação da alma do caminho da ignorância, mas antes que alguém levante dúvidas sobre o conceito de alma, é preciso que se esclareça que a alma na visão de Sócrates é entendida como intelecto e não como espírito. Cuidar da alma significa cuidar da vida. Então, o método socrático é para despertar todos os homens, sem distinção alguma, para a importante tarefa de examinar sua vida e suas ideias. Esses homens devem se modificar para viver bem. Mas como fazer isso? Como esses homens vão fazer um autoexame? O ponto de partida do método é tornar-se um aprendiz, ou seja, no debate, diante do interlocutor, o aprendiz afirma desconhecer o que está sendo debatido. A expressão “sei que nada sei” é o reconhecimento de ignorância diante dos principais temas humanos e, ao mesmo tempo, é uma possibilidade de se estabelecer um diálogo. A afirmação da frase é uma recusa socrática de se estabelecer uma tese para o debate, esse fato levará o interlocutor então, a criar a tese sobre o tema. Fazendo tudo isso, tem inicio então o debate racional que visa, sobretudo, trazer uma definição que ilumine o tema. As questões obscuras serão esclarecidas pela luz do conhecimento. Dois momentos são importantes aqui: a) O protréptico ou exortação b) O élenkhos ou indagação A exortação ou protréptico O interlocutor diante do não saber de Sócrates, sente-se seguro para iniciar o diálogo, posto que quem nada sabe não poderá rejeitar a tese exposta. O interlocutor cria coragem e estabelece uma tese, e aí, ele cai em uma armadilha. Vejamos um exemplo. Sócrates lança a questão: O que é a beleza? E mais, se ela existe, pode ser encontrada somente no homem ou ela pode estar presente em outros objetos? O interlocutor responde: Em minha opinião, a beleza existe e pode ser encontrada em muitas coisas e objetos. Um homem não erra quando afirma que seu escudo é belo, seu sapato é belo e sua mulher, bela. Para o interlocutor a questão parece ter encerrada, uma vez que ele respondeu com clareza o questionamento de Sócrates, no entanto, o nosso filósofo não se contenta com a resposta dada e lança um novo desafio: Como é possível que coisas tão diferentes possam ser agrupadas sob o nome de belas? Sócrates não fez nenhuma afirmação, mas não aceita a opinião de seu interlocutor e exige uma explicação mais plausível. O interlocutor aceita o novo desafio e, estimulado continua o diálogo: Ora, o que permite agrupar coisas tão distintas é que todas são feitas e cumprem satisfatoriamente suas funções. Em outras palavras, todas as coisas são bem constituídas para servir nossas necessidades. A resposta do interlocutor parece ter sepultado todas as dúvidas, uma vez que ele definiu algo que a maioria das pessoas não conhecia a beleza. A indagação (élenkhos), a ironia e a refutação Será que o interlocutor venceu o debate? Antes de dar os parabéns ao interlocutor, Sócrates lança outra pergunta: Você sabe qual a razão de termos olhos? O que poderia ser algo fora de contexto conduzirá o interlocutor a sérias dificuldades para sustentar sua posição, mas ainda assim ele afirma: Claro que sei. Foram projetados para ver. Sócrates tem agora o que precisa para pressionar o interlocutor com uma longa série de perguntas e o processo agora vai ser a ironia (eironeia), que do grego, significa dissimulação. Aqui começa um amplo leque de disfarces e fingimentos para conduzir o interlocutor a reconhecer os limites de sua definição. Diante da resposta do interlocutor, o que segue é a afirmação socrática: Bem, sendo os olhos projetados para ver, e aceitando que o belo para você, consiste em ser bem-feito para cumprir determinada função, só me resta concluir que os meus olhos são melhores do que os seus. Como assim? Responde o interlocutor. Meus olhos são mais belos e melhores do que os seus pela seguinte razão: os seus só veem o que está à frente, os meus, como são esbugalhados veem também o que está dos lados. A ironia de Sócrates está no fato para afirmar que é “belo” os seus olhos esbugalhados. E a partir da ironia, podemos concluir que Sócrates vai então afirmar que a tese inicial do seu interlocutor não passa de opinião (doxa) e não merece ser elevada à categoria de conhecimento (episteme). Sócrates, então, através da ironia já fragilizou os argumentos do interlocutor, resta agora refutar, definitivamente, as ideias errôneas ou falsas que até então estiveram presentes no diálogo. Claro que este é um exemplo simplista, mas os diálogos são fundamentais para entendermos e chegarmos a alguma conclusão, e o importante aqui é nos livrarmos do falso ensino ou do falso saber. Os diálogos certamente provocam crises, e a crise (do grego krisis) significa colocar sob avaliação, parar para considerar outras opções. Da crise, decorrente da refutação de uma tese, pode nascer o pensamento crítico fundamental para nos tornar sujeitos autônomos. Parte final do método: a maiêutica O momento em que Sócrates e seu interlocutor se lançam em busca do verdadeiro saber é chamado de maiêutica ou a proposta de gerar novas ideias. Sócrates age como um verdadeiro parteiro de almas e pretende a ajudar seu interlocutor a encontrar por si mesmo a verdade, uma vez que ele, Sócrates, não pode ensinar, pois nada conhece nada sabe. O diálogo prossegue expondo varias situações envolvidas no processo da maiêutica e mostra que nem todos estão dispostos a se livrar de antigas opiniões. Para parir ideias é preciso antes de mais nada, estar apto para gerar novas ideias e, ideias novas são geradas quando as velhas são deixadas de lado. Conclusão Por que Sócrates levanta tanta paixão? Por que muitos jovens atenienses se entregaram a essa busca em Sócrates? O que convenceu jovens aristocratas a perambular em Atenas atrás de um homem descalço e muito malvestido? Em Sócrates, os filósofos subsequentes encontraram um exemplo de vida dedicada ao saber e à verdade. Vida que foi muitas vezes retratada como adequado exemplo de coragem, dignidade e coerência com que enfrentou as dificuldades da vida e a sentença de morte. Acusado de corromper a juventude e desacreditar os deuses da cidade, Sócrates foi levado ao tribunal de Atenas, aos setenta anos. Ele não precisa comparecer ao tribunal, mas foi e acatou a decisão que o levou à morte. Ao afirmar no tribunal, em sua defesa, que uma vida privada da investigação não seria digna de ser vivida, Sócrates praticamente assinou sua sentença de morte. Se o fato foi político ou não, não importa, mas o que é importante destacar é que ele viveu uma vida em conformidade com a virtude. Eis, portanto, diante de cada um de nós, o mártir da filosofia, o que ajudou a perpetuar definitivamente seu nome na história cultural do Ocidente. Tema 02 – Hans Jonas (1903-1993) Filósofo alemão de origem judaica. Desenvolveu reflexões sobre a relação entre a ética e o aumento das sociedades tecnológicas. Uma vez que a tecnologia alterou gravemente aspectos importantes do comportamento humano, a ética também sofreu os efeitos de tais mudanças e precisa enfrentar questões não consideradas pelo pensamento tradicional. Nesse sentido, o homem deve enfrentar a questão da conservação do mundo e das condições que permitem sua participação no mesmo. Esse enfrentamento constitui a expressão do projeto de Jonas de buscar uma nova ética, uma ética de responsabilidade. Influenciado pelo existencialismo de Heidegger, pela fenomenologia de Husserl e pelos horrores dos campos de concentração nazista, concentrou-se em construir uma teoria que fizesse frente à perene possibilidade de a humanidade destruir-se utilizando o enorme avanço tecnológico contemporâneo. Sua época ajuda-nos a compreender o porque da busca por uma ética da vida futura e que nos ajudasse a compreender o que deu errado com os ideais do Iluminismo e sua promessa de emancipação do homem. Em O Princípio Responsabilidade o filósofo analisa as éticas clássicas e modernas e procura demonstrar-se como estas não conseguem lidar com a possibilidade ou com o futuro, mas apenas com a proximidade e com o presente. Jonas propõe sua tese: diante dos avanços inevitáveis das tecnologias devemos nos perguntar se temos o direito de arriscar a vida futura da humanidade e do planeta. Sua conclusão é que não devemos, embora tenhamos o poder tecnológico e a arrogância política. Para Hans Jonas há um grave distanciamento entre a ciência e a reflexão ética, provocado pela degradação do sujeito consciente de sua liberdade. A teoria da responsabilidade está com suas bases em teses que podem ser assim formuladas: a) A ação humana deve garantir uma vida autêntica. b) Não se deve por em perigo a continuidade da humanidade no planeta. c) A relação de “bem”, “dever” e “ser” constitui a base para a formulação da responsabilidade, cujo modelo é a relação pais-filhos. O livro está dividido em seis capítulos com algumas passagens menos sistemáticas do que as outras - aqui e ali Jonas anuncia a necessidade de outra obra a fim de analisar pormenores que escapariam à sua análise em O Princípio Responsabilidade . • • No capítulo I é feita a análise das diferentes perspectivas éticas clássicas e modernas ao longo de nove tópicos procura demonstrarem-se como as perspectivas clássicas e modernas não lida com a possibilidade do futuro ou com a vida potencial e seu direito à existência. No capítulo II desenvolve-se o projeto de tese e esboço do método mediante seis tópicos quanto à necessidade de um princípio responsabilidade que alcance as gerações futuras e vida planetária. • No capítulo III o pensador alemão, em cinco tópicos, constrói uma perspectiva crítica ontológico-ética a partir de algumas categorias fenomenológicas e heideggerianas quanto aos conceitos de "bem", "valor", "vida", "sobrevivência", "medo", "proximidade" e "futuro". • No capítulo IV Jonas mediante sete tópicos desenvolve toda a sua perspectiva de uma ética da responsabilidade baseada no cuidado com as futuras gerações e com a vida planetária perpassando a política, religião, valores morais e comparando com o marxismo como uma forma de utopia política que pretendeu alcançar o futuro também eticamente. • No capítulo V analisa-se em seis tópicos a idéia contemporânea de progresso, os avanços tecnológicos e científicos, o capitalismo versus marxismo como duas formas de lidar com os problemas advindos dos avanços tecnológicos e científicos e as utopias que movem essas duas concepções políticas. • No último capítulo Jonas por meio de três tópicos procura demonstrar, à luz do princípio responsabilidade, como nem o capitalismo nem o socialismo são capazes de lidar com a possibilidade da vida futura e conclui pela necessidade absoluta de uma ética da responsabilidade tanto humana quanto planetária. Destaque-se que o enorme esforço teórico de Jonas suscitou e ainda suscita muitas polêmicas quanto aos pressupostos evocados pelo pensador alemão: 1) O medo de ferir as gerações futuras como um princípio ético absoluto, 2) A tecnologia como uma face onde a possibilidade da catástrofe é maior do que a possibilidade de evitá-la, 3) As utopias políticas vigentes como incapazes de lidar com o futuro, 4) A sua leitura das perspectivas éticas clássicas e modernas como relativas exclusivamente as relações éticas presentes ou próximas e incapazes de lidar com a possibilidade da vida futura. O objetivo do Princípio Responsabilidade é formulado assim pelo filósofo: “conservar incólume para o homem, na persistente dubiedade de sua liberdade que nenhuma mudança das circunstâncias poderá suprimir, seu mundo e sua essência, contra os abusos de seu poder”. Hans Jonas merece uma boa leitura uma vez que propõe uma reflexão cada vez mais necessária sobre a nossa sobrevivência e a do planeta. E o seu princípio responsabilidade abre uma perspectiva de diálogo crítico em uma época onde o niilismo tecnológico e político fez sua morada, talvez, definitiva. Tema 03 – Rousseau (1712-1778) Jean-Jacques Rousseau: humanidade natural e sociedade civilizada Introdução Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) nasceu em Genebra na Suíça, e mudou-se para a França em 1742, onde escrever suas grandes obras, as quais o imortalizariam. Entre elas destacamos “Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens”, onde Rousseau coloca como fundamentais os valores da vida natural e ataca a corrupção, a avareza e os vícios da sociedade civilizada. Faz vários elogios à liberdade de que os selvagens desfrutavam, naquilo que ele chamou de pureza do seu estado natural, contrapondo o homem selvagem à falsidade e ao artificialismo do homem civilizado. Assim, o modo de vida dos homens de seu tempo, era por ele considerado como artificial e falso, diferente da pureza dos selvagens. Foi a partir destas ideias que surgiu o Mito do Bom Selvagem. Como Hobbes, Rousseau também concebe o homem natural ao modo de um ser que se move exclusivamente por um impulso de conservação. As aproximações, contudo, param por aí, pois as propostas filosóficas de Rousseau são contrárias às de Hobbes, para quem, como já estudamos, a natureza dos homens é agressiva e desejosa de poder. Para JeanJacques Rousseau, quem assim define a natureza do homem comete um erro primário, pois vaidade, agressividade e ambição seriam precisamente traços de uma natureza humana que se perverteu, corrompendo-se nas condições da civilização. 1) A condição de natureza Ao falarmos do homem natural ou selvagem de Rousseau é preciso que destaquemos que o que conta, sobretudo, é que, descrevendo tal condição de natureza, se pretende definir a humanidade natural, quer dizer, como seríamos se não fôssemos desde muito cedo submetidos às influências da vida em sociedade. E na natureza humana, há seres solitários que se movem apenas por seu instinto de conservação e que têm como características o amor de si, a comiseração, a liberdade e a perfectibilidade. O amor de si, segundo Rousseau, nada mais é do que um sentimento natural de preservação da vida, presente em todos os animais e que se concretiza em movimentos para a sobrevivência, como a busca por comida, água ou proteção. Movidos pelo amor de si, os seres humanos vivem a harmonia da satisfação com os desejos, conseguindo o suficiente para as exigências de seus instintos. Bastam a alimentação, a sexualidade, o descanso, ou seja, não há transtornos de paixões ou graves conflitos, porque o homem em natureza precisa de muito pouco para a sua conservação. Os atritos ou confrontos acontecem muitas vezes por uma disputa entre dois homens por uma única refeição que resultaria segundo o filósofo em rápidas agressões, que se encerrariam sem maiores consequências, com o vencedor se apossando da presa e o perdedor, sem rancores, procurando seu almoço em outro lugar. Junto a esse amor de si temos a comiseração ou compaixão – uma disposição natural pelo qual o homem se identifica com os seres vivos, causando-lhe repugnância a contemplação do sofrimento de um ser sensível, especialmente quando se trata de um ser da própria espécie. Para Rousseau, no homem natural, a dor de um é, em certo sentido, a dor de quem a presencia. Podemos concluir então que para o filósofo, no homem natural, o amor de si possibilita a autopreservação individual, e a comiseração promove a sobrevivência da espécie. Além do amor de si e da comiseração, citamos a liberdade e o senso de perfectibilidade. A liberdade é um dado da natureza específica do homem, distinguindo-o dos demais animais. O homem é dotado de capacidade de resistir ou de ceder às exigências da natureza, de controlar seus impulsos, de adiar uma satisfação diante de outra expectativa, enfim, contemplando com a faculdade de querer, a liberdade, coloca-se como ser espiritual, acima das leis físicas. A perfectibilidade, por sua vez, é um desdobramento da liberdade, pois o livre-arbítrio humano diversifica os comportamentos da espécie para a satisfação dos seus instintos. É dessa perfectibilidade que se enseja as ações humanas sobre o meio, como a fabricação de ferramentas, a agricultura, manufatura e as ciências, ou seja, um repertório cumulativo de conhecimentos por meio dos quais os homens transformam a natureza, tanto interior quanto exterior, ou ainda, a perfectibilidade é uma tendência humana ao progresso e ao aprimoramento do controle do homem sobre o mundo exterior. 2) O surgimento da sociedade civilizada O surgimento da propriedade privada é afirmado no texto de Rousseau “Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens”, como a chegada do homem à vida civilizada e isso é visto pelo filósofo como a ruptura definitiva do estado de natureza. Instauram-se, assim, os piores sentimentos entre os homens, que deixa o amor de si e a comiseração, passando a valorizar o amor-próprio, ou seja, uma vida de egoísmo, inveja, deslealdade e a elevação das riquezas materiais ao plano principal da vida. Importante destacar que o aparecimento da propriedade privada, não é propriamente o momento da corrupção do estado natural, mas a realização concreta de paixões artificiais como a vaidade, o orgulho, a cobiça, a materialização, na desigualdade de riquezas, do leque de vícios abertos pelo amor-próprio. Desde então, a ânsia por multiplicar a fortuna é a tônica da vida em sociedade e, nesse sentido, a estima por bens materiais já não tem nenhuma correspondência com o impulso de conservação, uma vez que, mesmo quando as riquezas excedem necessidades futuras de sobrevivência, não há saciedade para quem as possui, persistindo o esforço em ampliá-la. Esse sujeito civilizado é, segundo Rousseau, um homem fora de si, que reforça posições de prestígio, mando e poder, reforça hierarquias nas quais os homens não são mais homens; são senhores uns dos outros, escravos uns dos outros e por essa razão, estão fora de sua humanidade natural. 3) A desigualdade e as relações políticas A sociedade política ou o Estado como produto de um contrato social surge desta instabilidade social e da divisão da sociedade entre pobres e ricos. As competições entre os homens, desprovidas de regras que enquadrem suas ações, impedem a harmonia social e colocam sob risco a situação dos afortunados, que mal podem usufruir da superioridade de suas riquezas ante os perigos dos levantes tão comuns à desordem da concorrência civilizada. A procura pela paz, concebida como fixação da desigualdade e institucionalização do domínio dos poderosos sobre os fracos, faz com que os ricos promovam a mobilização da sociedade para a formalização de normas pertinentes à convivência amistosa entre os homens, com a criação de um poder ao qual todos, indistintamente, devem se submeter: o Estado. O Estado é criado sob o pretexto de evitar aos fracos a opressão dos poderosos, de inviabilizar os projetos ilícitos dos ambiciosos e de assegurar a casa um o usufruto de suas conquistas particulares, estando todos, independente de serem ricos ou pobres, submetidos a direitos e deveres diante do poder estatal. Rousseau, porém, alerta que, sob a aparência de preocupação com o bem comum, esse pacto social reforça as condições de desigualdade entre os homens e legaliza a sujeição dos homens uns aos outros, eliminando qualquer vestígio de humanidade autêntica e conferindo pretensa legitimidade ao homem fora de si da sociedade civilizada. 4) O contrato social proposto por Rousseau A proposta filosófica de Rousseau é de uma humanidade que se civilize a partir de sua natureza, e não em perspectiva contrária a essa natureza. O contrato social é a proposta política rousseaniana que tem igualmente por base a retomada da natureza humana em dimensões morais civilizadas, reconhecendo-a como alicerce de um poder que tenha por fim a realização da própria humanidade. O contrato social propõe a reposição do eu comum dos seres humanos na organização das relações sociopolíticas de acordo com os interesses coletivos dos cidadãos, aos quais devem ajustar-se as expectativas individuais. Dessa forma, a soberania do poder político somente será legítima se expressar, nos planos moral, legal e institucional, a supremacia da identidade entre os homens, senda esta proveniente da comiseração ou compaixão. Para explicar isso, é preciso diferenciar os conceitos de vontade geral e vontade da maioria. Vontade da maioria corresponde às posições defendidas por um número maior de indivíduos, o que é bastante variável, dependendo de contextos específicos e dos assuntos apresentados à apreciação dos cidadãos. Assim, sua face é quantitativa e, portanto, não exprime necessariamente o interesse comum, podendo ser tão somente a soma confusa de interesses individuais. A vontade geral define-se qualitativamente, quer dizer, não é uma simples relação de soma e subtração, sendo, isto si, a manifestação do pertencimento de todos os indivíduos à mesma humanidade, que não procede de outra coisa senão do sentimento natural de comiseração, pelo qual são capazes de perceber-se na partilha de interesses coletivos. Conclusão Nos textos de Rousseau se localizam dois tipos de contrato social: o primeiro é o pacto social de fato instituído sob a aparência do bem comum, mas verdadeiramente realizado na institucionalização do domínio dos mais fortes sobre os mais fracos. O segundo é o pacto autêntico por ser fundado na natureza e realmente voltado para o bem comum. Por fim, resta observar que, se muitas de suas teses filosóficas parecem improváveis quando confrontadas com o desenvolvimento posterior do conhecimento, por outro lado, sua influência não é pouca no mundo contemporâneo, seja no âmbito teórico, seja na realidade sociopolítica. As críticas de Rousseau à civilização, por exemplo, são válidas para a atualidade, assim como é notável a ascendência de suas reflexões sobre diferentes áreas do saber contemporâneo, como a pedagogia e a sociologia, dentre outras. Do mesmo modo, na história sociopolítica dos últimos séculos, não raramente as ideias de Rousseau exerceram ascendência direta e indireta sobre diversos movimentos sociais reformistas ou revolucionários que s inspiraram em suas teses.