Revista OABRJ, v.25, n. 02, p.55 - 75, 2010. JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO E DIREITOS HUMANOS NA AMÉRICA LATINA E NA ÁFRICA DO SUL Cristina Buarque de Hollanda Vanessa Oliveira Batista Luciana Boiteux Resumo: O presente artigo tem por foco as violações de direitos humanos ocorridas no século passado e sua reparação, e tem por objetivo realizar estudo comparado das modalidades de justiça de transição, nas experiências da América Latina e África do Sul. Palavras-Chave: Direitos Humanos. Justiça de Transição. Anistia. América Latina. Africa do Sul. Abstract: This paper focus on human right‟s violations occurred in the last century and its accountability, and intents to make a comparative study on Post-conflict Justice modalities in Latin America and South Africa experiences. Key-Words: Human Rights. Post-Conflict Justice. Amnesty. Latin America. South Africa. Direitos Humanos e Accountability na Perspectiva Internacional Na história da humanidade constatam-se inúmeras violações de direitos humanos, entendendo-se como tais as praticadas por detentores do poder contra indivíduos, motivadas por preconceito ou perseguição, política ou racial. Guerras, genocídio, tortura, desaparecimentos forçados, massacres e estupros são lamentáveis ocorrências que ficaram registradas na memória das gerações passadas. O século XX, em especial, foi marcado por sistemáticas violações de direitos humanos, mais do que qualquer outra época. Cristina Buarque de Holanda é professora adjunta do Departamento de Ciência Política da UFRJ e pesquisadora do Núcleo de Estudos de Teoria Política do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (NUTEP-IFCS). Possui Doutorado em Ciência Política (Ciência Política e Sociologia) pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, Brasil (2007). Pesquisadora convidada do Laboratório de Pesquisas em Direitos Humanos da UFRJ. Vanessa Oliveira Batista é Mestre e Doutora em Direito pela UFMG e Professora Associada de Direito Constitucional na FND/UFRJ. Coordena o Laboratório de Pesquisas em Direitos Humanos (LADIH) da mesma instituição. Luciana Boiteux é Mestre (UERJ) e Doutora em Direito (USP) e Professora Adjunta de Direito Penal da FND/UFRJ, além de pesquisadora do Laboratório de Pesquisas em Direitos Humanos da mesma instituição. 1 Revista OABRJ, v.25, n. 02, p.55 - 75, 2010. Em reação a essa realidade, apenas muito recentemente, a partir do desenvolvimento do direito e da consciência humanitária no pós-guerra, notadamente com a criação das Nações Unidas e ampla aceitação da Declaração dos Direitos Humanos Universais de 1948, do ponto de vista político, e após os Tribunais Militares de Nuremberg e Tóquio, do ponto de vista jurídico, é que foram construídos os pilares do atual sistema internacional de proteção aos direitos humanos, como reação ao genocídio praticado pelo Estado Nazista, que se tornou público e trouxe a necessária reação da comunidade internacional. Nesse sentido, o preâmbulo da Declaração reconhece a dignidade inerente a todos os seres humanos e seus direitos iguais e inalienáveis como fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo, e diagnostica que o desconhecimento e o desprezo pelos direitos humanos conduziram a atos de barbárie que revoltam a consciência da Humanidade. Como decorrência desse processo, e a partir do novo paradigma dos direitos humanos, é que se construiu o conceito de “post-conflict justice”, ou justiça de transição. Segundo Bassiouni, a recente busca pela responsabilização por violações de direitos humanos (accountability), e a minimização da impunidade são elementos essenciais para a construção de estados democráticos, que sucederam ditaduras1 ou passaram por conflitos internos ou guerras, nos quais ocorreram sistemáticas violações praticadas ou toleradas pelos detentores do poder.2 Nesse contexto, o desenvolvimento do direito nessa seara está diretamente ligado à idéia de consciência universal, ou valores humanitários supra-estatais, notadamente a partir de Nuremberg, quando se procurou construir um sistema jurídico internacional que permitisse a concreta apuração, investigação e punição das mais graves violações de direitos humanos, especialmente naqueles casos encobertos pela omissão dos respectivos Estados, que optavam por esquecer e encobrir violações de direitos humanos, quando envolviam grupos e atores estatais importantes. Na realidade, o processo de Nuremberg marcou um momento importante no desenvolvimento de um direito internacional que, posteriormente, evoluiu para outros 1 BASSIOUNI, M. Cherif, ROTHENBERG, Daniel. Facing Atrocity: the importance of guiding principles on post-conflict justice: The Chicago Principles on post-conflict justice. New York: International Human Rights Law Institute, 2007, p. 8. 2 Op. Cit., p.8. 2 Revista OABRJ, v.25, n. 02, p.55 - 75, 2010. modelos de Tribunais, sendo os mais conhecidos os da Antiga Iugoslávia e de Ruanda, criados no início da década de noventa, por ato do Conselho de Segurança da ONU, para permitir a punição de crimes praticados naqueles territórios em momento de conflito por uma Corte Internacional ad hoc. Mais recentemente, a criação de um Tribunal Penal Internacional permanente, em 2002, foi o ápice desse processo. É interessante notar, também, que a aceitação internacional das ideias e estratégias de justiça de transição está ainda relacionada à expansão das operações das Nações Unidas, que incluem missões de paz, e o crescente reconhecimento institucional da correlação entre direitos humanos, desenvolvimento e paz internacionais. Outras iniciativas da ONU incluíram também a criação de comissões de verdade, reformas institucionais e a instituição de tribunais mistos ou híbridos, como em Serra Leoa, Kosovo, Timor Leste e Camboja. Ao lado desses esforços globais, muitos países implementaram internamente suas próprias estratégias de justiça transicional, tais como a persecução doméstica de pequenos e grandes criminosos e uma variedade de reformas institucionais, incluindo novas constituições, reforma judicial, criação de sistemas de monitoramento, comissões de memória e verdade, e outros sistemas alternativos de reparação. Sob essa perspectiva, relacionam-se mutuamente as noções de direitos humanos, paz, segurança e desenvolvimento, como metas a serem alcançadas pelos países após superarem seus conflitos internos. A ideia de Justiça a estas noções se acrescenta, já que, segundo Bassiouni, “one of the goals of the movement for post-conflict justice is to demonstrate that peace and justice are complementary”.3 A complementaridade entre paz e justiça é uma base referencial importante no processo de reconstrução da paz. O enfrentamento do passado de violações de direitos, por meio da Justiça, reparação ou da responsabilização dos seus autores passa a ser visto como mecanismo essencial para se superar os conflitos e desafios, prevenir futuras vitimizações e alcançar a verdadeira reconciliação e o respeito aos direitos humanos. Em que pese esse avanço na construção de um novo paradigma teórico, por outro lado, na prática, o que se observa é que, em alguns países, ainda se tem a impunidade institucionalizada, que protege a maioria dos violadores, enquanto as demandas por 3 BASSIOUNI, Cherif. ROTHENBERG, Daniel. Facing Atrocity: the importance of guiding principles on post-conflict justice: The Chicago Principles on post-conflict justice. New York: International Human Rights Law Institute, 2007, p. 8. 3 Revista OABRJ, v.25, n. 02, p.55 - 75, 2010. justiça das vítimas são ignoradas. Conforme aduz Bassiouni: “More often than not, justice for past atrocities is sacrificed for political expediency, often as a means to negotiate the end of a conflict.”4 América Latina e Justiça de Transição Em termos doutrinários, não há um consenso acerca do impacto da justiça de transição. Não obstante, em 2007, duas cientistas políticas da Universidade de Minnesota, EUA, divulgaram o resultado de suas pesquisas sobre o impacto dos tribunais de direitos humanos na América Latina5, o mais conhecido dos mecanismos de justiça restaurativa, utilizado a partir do final de regimes autoritários6. O lapso temporal estudado se inicia em meados dos anos 1980 e avança até a primeira década dos anos 2000. Não é aleatória a escolha da América Latina: além de ter sido palco de diversas ditaduras ao longo de aproximadamente cinqüenta anos no século XX, vários países latino-americanos foram inovadores ao adotar comissões de verdade ou tribunais de direitos humanos nos últimos decênios. O resultado das pesquisas de Sikkink e Walling contraria alguns prognósticos pessimistas do final do século passado7, além da idéia, então disseminada, de que a busca da verdade deveria ser feita pelas comissões da verdade e de que a justiça restaurativa deveria se aproximar mais da reconciliação do que propriamente de um tribunal8. Os esforços, nacionais e internacionais, para reparar os abusos de direitos humanos cometidos em épocas passadas incrementaram assinaladamente, em nível mundial, a judicialização da política, mas a mais importante conclusão é que os 4 Op. Cit., p. 1. SIKKINK, Kathryn e WALLING, Carrie Booth. The Impact of Human Rights Trials in Latin America, Journal of Peace Research 2007, v. 44, p.427-445. 6 São mecanismos de justiça restaurativa: as comissões de verdade; os tribunais domésticos; os tribunais estrangeiros (quando um terceiro país julga violações de direitos ocorridos em território nacional, como no caso que envolveu Argentina, Chile e Espanha); os tribunais internacionais, sob a égide da Organização das Nações Unidas (Tribunal Penal Internacional para a Antiga Iugoslávia e o Tribunal Penal Internacional para Ruanda); e os tribunais híbridos, de cunho nacional e internacional (Camboja, Serra Leoa e Timor Leste). 7 Conferir especialmente em: HUNTINGTON, Samuel P., 1991. The Third Wave: Democratization in the Late Twentieth Century. Norman, OK: University of Oklahoma Press; e ainda O‟DONNELL, Guillermo e SCHMITTER, Phillipe C., 1986. Transitions from Authoritarian Rule: Tentative Conclusions About Uncertain Democracies. Baltimore, MD: Johns Hopkins University Press. 8 Zalaquett, Jose, 1995. „Confronting Human Rights Violations by Former Governments: Principles Applicable and Political Constraints‟, reprinted in Neil J. Kritz, ed., Transitional Justice: How Emerging Democracies Reckon with Former Regimes, Vol. 1: General Considerations. Washington, DC: United States Institute of Peace (3–31). 5 4 Revista OABRJ, v.25, n. 02, p.55 - 75, 2010. tribunais de direitos humanos não desestabilizam a democracia nem aumentam os casos de violações de direitos nos países latino-americanos que os adotaram9. Para o caso específico da América Latina, são igualmente importantes as comissões de verdade, os tribunais estrangeiros e os tribunais domésticos, sendo que há uma concentração na utilização das comissões na região, como acontece também na África, como veremos neste artigo. Não é incomum verificar que mais de um dos mecanismos citados pode ser usado concomitantemente em um mesmo caso.10 Particularmente, na América do Sul, todos os países que adotaram comissões de verdade lançaram mão também dos tribunais domésticos. Por outro lado, vários deles tiveram leis de anistia. É interessante observar ser bastante usual a interação das esferas jurídicas nacional e internacional com a esfera política, quando se trata dos tribunais, o que atinge especialmente os países que adotaram leis de anistia pois, por bloquearem o acesso à justiça em caso de violações de direitos humanos no passado, têm provocado a busca de tribunais estrangeiros para reparação, como nos casos Pinochet e Scilingo, envolvendo Argentina e Espanha nos anos 2003-2005. Nessas situações, é patente a utilização do conceito e prática de jurisdição universal nas sentenças. Como assevera Sikkink, nesse sentido as leis nacionais de anistia têm impulsionado a ação dos tribunais estrangeiros, o que, em certa medida, acaba por incentivar a reabertura de processos internos, uma vez que a maioria dos Estados e violadores de direitos prefere se submeter a julgamentos nacionais que no exterior11. Outro dado importante da investigação apresentada por Sikkink e Walling é que, nos países onde ocorreram comissões de verdade ou tribunais de direitos humanos, o apoio da população à punição dos violadores desses direitos, durante os regimes autoritários, não arrefece com o decurso do prazo, e tampouco se restaura a influência dos grupos de poder instalados durante o regime após o exercício da justiça de transição, a exemplo do que ocorreu no Chile com Pinochet; com Bordaberry e Blanco no Uruguai; e com os militares e seus aliados civis na Argentina, Chile e Uruguai.12 Na avaliação das autoras citadas, a interferência dos tribunais estrangeiros na reabertura de processos, por 9 SIKKINK, Kathryn e WALLING, Carrie Booth. Op. cit., p.431. SIKKINK, Kathryn e WALLING, Carrie Booth citam os seguintes países, que adotam ao mesmo tempo comissões de verdade e tribunais de direitos humanos: Bolívia, Argentina, Uruguai, Chile, El Salvador, Alemanha, Guatemala, Haiti, Sri Lanka, Burundi, África do Sul, Equador, Indonésia, Granada, Serra Leoa, Coréia do Sul , Panamá, Peru, e Paraguai. Op. cit., p. 431 11 Idem, p. 434. 12 Ibidem, p. 435. 10 5 Revista OABRJ, v.25, n. 02, p.55 - 75, 2010. tribunais internos, a fim de julgar violações de direitos nos países latino-americanos levou a um desenvolvimento de mecanismos de justiça de transição que se insere, inclusive, no contexto político internacional posterior à Guerra Fria. Comparada a outras regiões, a América Latina foi a que mais se valeu dos tribunais de direitos humanos para realizar a transição para a democracia. Outrossim, foi a região que realizou mais completamente a mudança de regimes autoritários para regimes democráticos, sendo uma das parte do globo com maior índice de governos dessa natureza (91%), se confrontada com África (40)%), Ásia (48%) ou Europa Oriental (67%). Na realidade, os três golpes de Estado ocorridos na América Latina depois de 1978, quando começaram a ser aplicados mecanismos de justiça restaurativa, foram absolutamente desvinculados dos tribunais de direitos humanos ou das comissões de verdade: Peru, em 1992; Haiti, em 2004; e Equador, em 2000. Pode-se concluir, pelos dados disponíveis, que a justiça restaurativa não contribuiu, portanto, para a desestabilização da democracia na região13. A justiça de transição na América Latina tampouco é caracterizada por longa duração no tempo ou por dicotomias. A demanda por justiça tem se demonstrado uma constante, e as vítimas não hesitam em buscar reparações e remexer no passado, a fim de recuperar a memória histórica do país. Nos Estados latino-americanos as comissões de verdade foram, majoritariamente, seguidas de julgamentos, mesmo com consideráveis lapsos de tempo registrados. Em dezesseis dos dezenove países da América Latina que passaram por ditaduras no século XX houve leis de anistia, sendo exceções somente Granada, Guiana e Paraguai. É evidente que as diversas decisões geradas a partir da aplicação das leis de anistia nos Estados latino-americanos se relacionam com as respectivas normas adotadas, o que, em alguns casos, levou à revisão das normas internas, e em outros, a excludentes do crime. Por exemplo, na Guatemala a lei de anistia exclui crimes contra a Humanidade; no Chile, a interpretação da lei de anistia levou à conclusão de que o crime de desaparecimento é um crime permanente. Em 2001, a Corte Interamericana de Direitos Humanos considerou a lei de anistia peruana contrária à Convenção Americana de Direitos Humanos e, em 2005, a Suprema Corte Argentina declarou a lei argentina inconstitucional. 13 SIKKINK, Kathryn e WALLING, Carrie Booth, p. 434. 6 Revista OABRJ, v.25, n. 02, p.55 - 75, 2010. Dos dezesseis países latino-americanos que adotaram leis de anistia, apenas um não teve julgamentos por violações de direitos humanos cometidos no passado. Este único país é o Brasil. O que seria, então, a anistia, especialmente no caso do Brasil? Na realidade, a anistia é considerada por alguns autores como mais uma forma de justiça de transição, uma maneira possível de se lidar com a justiça e a memória, ao lado das comissões de verdade e dos tribunais. Nesse caso, seria “o esquecimento para o bem de um futuro comum”14. A opção política brasileira, na época da transição da ditadura militar para a democracia, foi a de seguir o caminho do esquecimento do passado, por meio da “anistia, geral e irrestrita”, contida na Lei n. 6.683/79, por meio de um projeto de lei enviado pelo então Presidente, João Figueiredo, ao Congresso Nacional. A proposta dos militares era, segundo palavras de do General Ernesto Geisel, a de uma transição “lenta, gradual e segura”, tendo se passado onze anos até que os civis retomassem o poder e dezesseis anos até que um presidente fosse eleito por voto popular. O primeiro presidente civil após a Ditadura foi José Sarney, político atuante no regime autoritário, que até hoje se mantém no poder. A transição democrática foi negociada pela elite do sistema autoritário, e a anistia foi bilateral, de dupla via ou mão dupla, alcançando tanto os crimes praticados pelos agentes do Estado como pelos opositores do regime. Recentemente, inclusive, o Supremo Tribunal Federal, na ADPF 153, por maioria de votos, denegou o pedido de revisão da Lei de Anistia de 1979 (Lei nº 6.683). Em seu voto, o Ministro Celso de Mello afirma que essa lei, no Brasil, teria sido resultado de longo debate nacional, com a participação de vários setores da sociedade, cujo objetivo era viabilizar a transição entre o regime militar e o atual regime democrático. No entanto, em seu voto, o Ministro resguarda o direito à memória e a busca da verdade “em torno dos fatos ocorridos no período em que o país foi dominado pelo regime militar.” 15 Por outro lado, essa posição do STF, se coloca na contramão da jurisprudência das cortes internacionais, que não reconhecem como legítima a anistia em branco, ou autoanistia, concedida pelo próprio Estado aos perpetradores de crimes de lesa-humanidade, 14 BASTOS, Lucia Elena Arantes Ferreira. Anistia: as leis internacionais e o caso brasileiro. Curitiba, Juruá, 2009, p. 65-66. 15 Celso de Mello, Voto na ADPF 153, p. 17. http://www.stf.jus.br 7 Revista OABRJ, v.25, n. 02, p.55 - 75, 2010. em face do direito internacional, o que poderá levar, inclusive, o Brasil à Corte Interamericana de Direitos Humanos a partir dessa recente decisão. Assim, embora o caso brasileiro seja único e ainda esteja longe do desfecho, é importante ressaltar que a ausência de julgamentos sobre violações de direitos ocorridas durante o regime militar não levou a uma democracia menos sólida no Brasil, em termos de estabilidade das instituições democráticas. Por outro lado, o país, desde o início da transição, foi o que experimentou o maior declínio nas práticas de direitos humanos dentre os latino-americanos, o que sugere que a transição para a democracia, por si só, não garante a efetivação de práticas de direitos humanos básicos16. Esses resultados, cotejados com o incremento de discussões acerca dos direitos humanos em outros países da America Latina que fizeram revisões ou revogaram suas leis de anistia, instituíram comissões de verdade ou levaram os casos de violações passadas aos tribunais, sugerem que o uso da justiça de transição, por si mesma, pode produzir efeitos distintos e mais eficazes quanto aos direitos humanos, independentes dos resultados produzidos pela transição democrática. Apesar da diversidade de circunstâncias e modelos possíveis de transição política para a democracia, um medo comum caracteriza os operadores dos governos que declinam em favor de novos regimes políticos: serão eles responsabilizados pelas violações dos direitos humanos praticadas no passado? De que modo o novo pacto social interpretará os crimes cometidos em outros tempos, sob custódia de governos repressores? Atormentados pela síndrome de Nuremberg, os antigos agressores temem a represália pelas graves violações do passado. Os momentos de transição política incluem, de fato, a possibilidade de retaliação dos antigos agressores, em uma perspectiva de necessária reciprocidade do sofrimento. Nesta lógica, a carga de infortúnio destinada ao agente ofensor deve aproximar-se o máximo possível daquela originalmente imposta à vítima. Na Argentina, a despeito das importantes resistências com relação ao julgamento dos segmentos militares sabidamente envolvidos com a repressão política no período ditatorial, o entendimento dominante da idéia de justiça na transição política para a democracia baseou-se no princípio punitivo. 16 SIKKINK, Kathryn e WALLING, Carrie Booth, p. 437. 8 Revista OABRJ, v.25, n. 02, p.55 - 75, 2010. No Brasil, as demandas por verdade e punição não alcançaram forma política expressiva. Caso típico de blanket amnesty, o modelo de transição brasileiro originalmente negligenciou a demanda por esclarecimento dos crimes passados e, duas décadas, depois acolheu um princípio de responsabilidade difusa, legada indistintamente ao Estado, sem identificação de operadores individuais. Diferentemente do caso argentino, coube às vítimas, e não ao próprio Estado, a prova da sua condição de vítima, como se o interesse pelo reconhecimento desta identidade fosse privado, e não público. A suposição de fundo era a de que a novidade democrática, por si só, instauraria um novo tempo da política. Toda reedição do passado traria consigo o risco político dos rancores. O Caso Sul-Africano e o Princípio de Justiça Restaurativa A experiência sul-africana escapou aos extremos argentino e brasileiro – isto é, às máximas da punição e do perdão incondicionais. Na África do Sul, o ideal de conciliação nacional foi o pano de fundo de um esforço de transformação simbólica da história traumática. À semelhança do modelo argentino, o olhar para o passado teve o propósito de cancelar a possibilidade de sua reedição futura, mas, à diferença dele, não constituiu subsídio para a punição – não, ao menos, na versão tradicional das condenações em tribunal. Tal como no caso brasileiro, a transição sul-africana teve o perdão como princípio basilar, mas, à diferença dele, lançou-se à investigação do passado. Trata-se de uma experiência intermediária entre os princípios antagônicos de punição e anistia irrestrita. Na África do Sul, o processo de transição política para a democracia foi cuidadosamente negociado entre segmentos políticos em conflito de longa data. As primeiras eleições livres no país aconteceram em abril de 1994. O regime do Apartheid, instituído em 1948, foi o corolário de um modelo de organização da sociedade que hierarquizava brancos, coloured, asiáticos e bantus, nesta ordem. A adesão do país aos rituais formais da democracia foi uma novidade radical, sem precedentes na história nacional. Para a população não-branca, sobretudo o segmento negro, não era possível extrair uma utopia de futuro do passado político sul-africano. Entre os negros vitimados pelo Apartheid estavam homens sem necessário envolvimento com a política, pois o fundamento da discriminação era racial. A condenação ideológica ao socialismo – que configurou o vocabulário da resistência no país – vinha calcada na ameaça implícita à ordem racial. A resistência ao Apartheid era sobretudo constituída por massas empobrecidas da 9 Revista OABRJ, v.25, n. 02, p.55 - 75, 2010. população, atingidas pela segregação cotidiana, sem prejuízo da solidariedade de outros segmentos. As possibilidades limite de anistia irrestrita ou justiça retributiva, das quais resultam vencedores e perdedores na política, não se ajustavam ao objetivo de uma transição negociada, já tensionada por níveis altos de ressentimento social. A despeito do claro sentido de ruptura envolvido na mudança de regime, o percurso político que culminou em eleições amplas para a presidência do país foi um processo negociado com os operadores em declínio da política. O princípio de unidade da nação sul-africana, em contraponto com a retórica radicalmente divisonista do Apartheid, previa justamente um paradigma inclusivo, comprometido com garantias ao novo lugar político e social dos brancos. O principal desafio do governo Mandela foi, portanto, o de constituir uma delicada arquitetura institucional para gerir os rancores sociais legados do regime segregacionista. No novo marco da vida nacional, o Estado deveria equipar-se para lidar com o terreno imprevisível e mutável das emoções. O objetivo, em larga medida, era o de apaziguar as pulsões de conflito e dar novo sentido ao sofrimento. Havia, contudo, forte dificuldade em acomodar a semântica dos rancores à constituição habitual das instituições, rígida e impessoal. Era preciso contornar os marcos da política formalista e instituir uma dimensão pública de diálogo e reconhecimento. Comissão de Verdade e Reconciliação na África do Sul Inspirada em modelos já experimentados na América Latina e também no Leste Europeu, a Comissão de Verdade e Reconciliação (CVR) sul-africana, criada pelo governo Mandela em abril de 1996, foi a principal expressão institucional do paradigma transicional sul-africano. À diferença dos tribunais de guerra à la Nuremberg, na CVR houve espaço para lamento e emoção. Mais do que punir os culpados, a comissão buscou reabilitar as vítimas e reinventar os padrões de sociabilidade entre segmentos da população tradicionalmente antagônicos. O olhar para o passado foi incentivado apenas como exercício contra-normativo, isto é, como exemplo do que não poderia voltar a ser. Não havia nele a intenção da pena. A referência aos direitos humanos constituía sobretudo um projeto de futuro, uma imagem do que deve ser, e não um ajuste de contas com o passado, isto é, uma imagem do que deveria ter sido. 10 Revista OABRJ, v.25, n. 02, p.55 - 75, 2010. O lugar marginal do princípio punitivo não ofuscou a busca pelo esclarecimento dos crimes passados. Estabelecida em quatro escritórios regionais – Cape Town, Gauteng, Durban e East London – que mobilizaram 438 funcionários e 17 comissionários, a rede da comissão alcançou grandes e pequenas cidades, tendo reunido cerca de 20.000 testemunhos e 2.000 solicitações de anistia17 . Investida de poderes investigativos, a comissão pôde associar às audiências de vítimas e agressores confessos a pesquisa de provas materiais e a condução de exames periciais – quando ainda cabíveis. Deste modo, pretendia-se esclarecer as motivações e circunstâncias das graves violações de direitos – cometidas pelo e contra o regime – entre os anos de 1960 e 1994. A busca pelo esclarecimento do obscuro universo criminal destes anos veio associada ao objetivo de conciliação nacional. Este duplo movimento teve o perdão como fundamento. Para Desmond Tutu, Arcebispo da Igreja Anglicana que presidiu a comissão, o exercício do perdão era a melhor forma de auto-interesse e libertação (Tutu, 2000, p. 31). Movidos pelo espírito de ubuntu18, os sul-africanos teriam uma alma aberta aos caminhos da transição pacífica. Cabia à comissão apoiá-los neste percurso. Afinados com esta premissa, os rituais da comissão envolviam liturgia própria, pontuada por hinos religiosos, leituras de fragmentos da Bíblia, rezas e cerimônias de iluminação de velas. Além disso, as vítimas depoentes eram assistidas, durante todo o tempo, por pessoas ligadas a igrejas (Du Toit, 2004, p. 120). Deste modo, buscava-se criar um ambiente favorável à concessão genuína do perdão. A expectativa era a de que o ritual catártico dos testemunhos tivesse como corolário o abandono da demanda retributiva, em si desorganizadora da filosofia transicional da comissão. Os relatos individuais eram projetados em um universo amplo, de sofrimento compartilhado, de modo que as vítimas se sentissem parte de uma comunidade de dor e fugissem à solidão do trauma. Desmond Tutu foi protagonista desta arquitetura emocional que marcou as atividades do comitê das vítimas, parte fundamental da comissão. Na avaliação de Tutu, os caminhos de cura da sociedade sul-africana carregavam a marca do cristianismo, que, segundo censo de 1991, mobilizava, através de suas diversas denominações, mais de 70% da 17 Boraine, 2000, p. 87 Ubuntu é um conceito de origem africana que se refere à idéia de que um ser faz-se humano apenas através do outro. Nesta perspectiva, a humanidade é medida pelo tratamento digno dado ao outro. 18 11 Revista OABRJ, v.25, n. 02, p.55 - 75, 2010. população. A extraordinária capacidade de perdão das pessoas ordinárias é que teria tornado possível o caminho da CVR. (Tutu, 2000, p. 47). Além da utilidade atribuída aos rituais públicos de testemunho, a Comissão, através do comitê de reparação, recomendava indenizações e reparações simbólicas às vítimas depoentes, na forma de monumentos, parques, museus, renomeação de ruas e escolas, localização de corpos e rituais fúnebres. Por fim, a Comissão tinha ainda o comitê de anistia, destinado a recolher testemunhos de ex-agressores confessos, elucidar lacunas da história e, quando oportuno, arbitrar anistia. Neste comitê, o princípio punitivo contornava sua versão judicial habitual: os réus permutavam confissão por anistia, mas experimentavam, segundo Alex Boraine, a dolorosa exposição à “vergonha pública”. A publicidade da tortura pela confissão constituiria, por si mesma, neste paradigma, uma pena vigorosa para seus executores. Para os idealizadores da comissão, o benefício da anistia era uma concessão necessária à conciliação entre dois objetivos de difícil convivência, isto é, a garantia de condições para uma transição pacífica e a produção de conhecimento sobre o passado – através das confissões de anistiáveis, o governo teria condições de produzir esclarecimentos que, por outras vias, não seriam alcançados. Numa sociedade radicalmente cindida, era preciso dar forma política à intenção de reconciliação e “cura” e extrair vantagens dela. O recurso da anistia sintetizava o espírito geral da comissão. Um dos caminhos de interpretação do tema da reconciliação apontava na direção de uma natureza única e compartilhada do sofrimento. Para Boraine, o lugar ativo da violência não exime seu sujeito da experiência da dor. A imposição de desumanidade ao outro produz desumanização de si mesmo. A retórica do perdão fortalece-se nesta leitura que estende a condição de vítima aos criminosos. Tutu desessencializa a alma humana, esvaziando-a de toda substância a priori. Segundo ele, temos todos a potência para as ações mais terríveis e para as ações mais admiráveis (Tutu, 2000, p. 85). O curso de nossas ações, portanto, é influenciado, de modo significativo, pelo ambiente que nos cerca. Bondade e maldade, neste discurso, ganham uma inesperada dimensão de acaso e oportunidade. Tutu afirma não podermos “prever como agiríamos se estivéssemos no lugar do agressor, sujeito às mesmas influências e pressões”. Para ele, “não podemos subestimar o poder de condicionamento das circunstâncias”. A proximidade entre este discurso e os prefácios ao relatório do Brasil 12 Revista OABRJ, v.25, n. 02, p.55 - 75, 2010. Nunca Mais é inequívoca, embora inequívoco também seja o alcance distinto da mesma formulação nos casos sul-africano e brasileiro. Na África do Sul, a especulação sobre o lugar do torturador constituiu subsídio para a retórica do perdão, fundamento de uma experiência social de grandes proporções no país. No Brasil, o mesmo exercício de imaginação foi marginal, curiosamente produzido num contexto de resistência ao modo de condução da transição política. A fala de Tutu baseia-se na suposição de uma nação de vítimas e sobreviventes (Tutu, 2000, p. 102). O Apartheid, nesta perspectiva, constituía um infortúnio comum vivido por toda população sul-africana. Mais do que a violência organizada (física e psíquica) contra largos segmentos da população, o regime segregacionista teria produzido os fundamentos de uma sociabilidade violenta, que multiplicara os vetores da crueldade. Aprisionadas pelo ódio, as vítimas originais mimetizam-se com seus agressores. Entre os 25.000 homicídios violentos cometidos ao longo do Apartheid, estima-se que cerca de 16.000 tenham resultado de conflitos entre segmentos rivais da luta política19. Muitos indivíduos acumulavam o lugar de agressores e vítimas. As identidades constituíam-se de modo ambíguo, inapreensíveis por categorias morais rigorosas. Reações à Comissão de Verdade e Reconciliação na África do Sul A anistia foi, sem dúvida, o aspecto mais controverso da CVR. Por parte do Partido Nacional, dos brancos, houve oposição veemente à exposição pública e estigmatização dos confessores. Esta visão foi expressa pelo General Deon Mortimor, entrevistado para esta pesquisa. Por parte de vítimas e ativistas de direitos humanos, houve forte suspeita sobre o perdão como metáfora da transição política. Para Hugo Van der Merve, “a religião foi poderosa, inspirou as pessoas a serem mais compreensivas com seus agressores, inspirou tolerância e compaixão”, mas teve um custo alto para aqueles que não estavam “prontos para perdoar”. Segundo Van der Merve, “a abertura para o perdão não é incondicional”20. Muitos depoentes teriam sido constrangidos a declarar perdão, tendo em vista a tácita obrigação moral neste sentido, potencializada ainda pela exposição pública no evento espetacular das sessões do comitê das vítimas. Todo sinal de demanda punitiva era lido pelos comissionários como ameaça ao espírito nacional de ubuntu, modo romântico e indistinto de interpretar a cultura africana. O sentimento de 19 20 Esta informação foi dada por Madeleine Fullard em entrevista para este projeto. Essas impressões foram compartilhadas em entrevista para este projeto. 13 Revista OABRJ, v.25, n. 02, p.55 - 75, 2010. vingança que persistisse ao ritual de expurgação dos rancores seria expressão de um individualismo avesso ao paradigma reconciliador. Segundo Richard Wilson, em seu livro The Politics of Truth and Reconciliation in South Africa, a comissão teria procedido a uma leitura equívoca do conceito de direitos humanos. Através do conceito de ubuntu, buscou criar uma noção de self sul-africano e acomodar a linguagem dos direitos a um princípio pan-africanista de reconciliação. Do cidadão traumatizado pretendia-se passar à nação arco-íris, metáfora do amálgama cultural e racial do país repetida à exaustão pelos ideólogos do novo regime. A condição daquela mutação, contudo, era a negligência do paradigma retributivo presente nos tratados internacionais de direitos humanos. Na África do Sul, o discurso dos direitos ter-se-ia associado, de modo heterodoxo, ao princípio de anistia, isto é, à tolerância aos violadores de direitos. Haveria grave paradoxo nesta leitura (Wilson, 2006, p. 152). Para Richard Wilson, o protagonismo legado à noção de ubuntu correspondia a uma imagem estática e ahistórica da comunidade africana. O discurso articulado pelo governo, que reivindicava sensibilidade aos valores populares, fundava uma dualidade irreconciliável entre a alma africana conciliadora e uma alegada disposição revanchista ocidental. A polarização entre modelos jurídicos ocidental e africano passava ao largo da maior complexidade de suas respectivas e diversas tradições. Nesta construção dual, a idéia de retribuição legal era inteiramente abolida como caminho possível para a reconciliação. Toda expectativa retributiva era descartada como centelha de conflito e desordem. Em estudo nos tribunais populares de towships sul-africanas, Wilson dedica-se justamente a demonstrar sua tese da presença marginal do ubuntu e da preponderância real de uma expectativa de justiça retributiva nas comunidades pobres sul-africanas. Naqueles espaços, a punição aos agressores era vista como o modo por excelência de restituição da dignidade das vítimas e o cenário avesso da impunidade era interpretado como hostil às exigências primárias de sociabilidade. (Wilson, 2006, p. 170) A opinião de Richard Wilson, que sintetiza a visão de boa parte dos ativistas de direitos humanos organizados em ONGs no país, é a de que a concessão regulada ao princípio punitivo também constitui um caminho possível para a reconstrução da nação. Não haveria, nesse paradigma, incompatibilidade essencial entre retribuição e reconciliação. 14 Revista OABRJ, v.25, n. 02, p.55 - 75, 2010. Em muitos casos, a pena ao agressor seria condição da ordem. O cenário avesso de anistia motivaria um sentimento de impunidade e desordem. Congresso Nacional Africano e a Crítica da Equivalência Moral Além do desacordo em torno da interpretação legítima dos direitos humanos – bem expressa pelo contraponto entre a leitura da comissão e a crítica de Richard Wilson –, outro nível de discordância, mais basilar, dividiu os operadores da transição política. Trata-se da própria adoção do conceito de direitos humanos como categoria política e paradigma transicional. O contraste entre o neutralismo implicado na noção de direito e a linguagem socialista da luta pela libertação produziu abertas manifestações de incompreensão e frustração logo nos primeiros anos da democracia sul-africana. O abandono da retórica socialista em favor do vocabulário dos direitos, mais palatável para a elite branca da transição e afinada com as expectativas da comunidade internacional, constituiu uma ruptura importante com o repertório de expectativas políticas gestadas no longo e heterogêneo movimento anti-Apartheid. Para Madeleine Fullard, a democracia na África do Sul foi resultado de uma luta por libertação; não foi uma luta pelos direitos humanos. Direitos humanos não eram a linguagem em voga. Havia uma retórica socialista: casa para todos, liderança para a classe trabalhadora. Por causa das mudanças no Leste Europeu, esta linguagem não estava mais disponível. Neste ponto, direitos humanos era a linguagem disponível, aceita pela comunidade internacional. A CVR baseouse, então, na idéia de direitos humanos. Era uma coisa estranha, pois as categorias dos direitos humanos são mais neutras. A combinação dos direitos humanos com a retórica e a liturgia religiosas corroborou essa perspectiva universalista, que se distingue da carga contenciosa normalmente atribuída à política. No discurso de Desmond Tutu, a rejeição à turbulência da política é evidente. Tutu recusa a acusação de comunista e afirma ser “movido pela fé, pela bíblia, o instrumento mais subversivo num contexto de injustiça e opressão.” Ainda segundo ele, “estava envolvido na luta porque era religioso, não porque era político”. Sobre a idéia de política, compreendida como lugar de divisão e conflito, pairava, portanto, importante condenação moral. Religião, direitos universais e harmonia compunham a nova semântica para a reflexão sobre o coletivo. 15 Revista OABRJ, v.25, n. 02, p.55 - 75, 2010. O Congresso Nacional Africano, que participou significativamente na elaboração da arquitetura da comissão21, não tardou em voltar-se contra a chamada equivalência moral entre violadores de direitos das lutas pró e anti-Apartheid. O conflito com as diretrizes da comissão fizeram-se evidentes desde seus primeiros meses de existência. Na perspectiva de Desmond Tutu, a guerra justa travada pelo movimento de resistência não eximia seus operadores da responsabilidade pelos equívocos que produziram em nome da liberdade (Tutu, 2000, p. 108). A causa justa não poderia acolher meios injustos. A consecução do fim revolucionário não poderia ser indiferente aos seus meios. A despeito da concordância original e formal com o paradigma igualitarista, as rotinas da comissão produziram, em alguns segmentos do CNA, rejeição contundente. Para Alex Boraine, fez-se claro que a expectativa de alguns membros do CNA era que, à revelia de sua constituição formal, a comissão condenasse o Partido Nacional e seus aliados por suas políticas desumanizadoras e fizesse o CNA emergir como o “herói que freou os vilãos e fez o país ingressar em uma democracia com face humana” (Boraine, 2000, p. 326). A retórica da comissão, contudo, centrava-se na criação de uma cultura de direitos humanos, incompatível com critérios duplos. A escolha moral por um dos lados do conflito que dividiu o país não marcaria o rompimento com o Apartheid. Na democracia, a novidade radical com relação ao passado violador não era a recusa deste ou daquele ator da política, o que, em última instância, reproduziria a lógica excludente do governo extinto. A originalidade daquele momento histórico era a recusa comum da violência como instrumento da política. O princípio da não violação de direitos era universal e, como tal, exigia adesão irrestrita de todas as partes da política. A perspectiva antagônica é bem expressa por Kader Asmal, um dos mais importantes representantes do CNA no conflituoso processo de gestação da comissão. Para Asmal, a “descriminalização da resistência” era um imperativo dos novos tempos. A completa ilegitimidade do regime segregacionista conduzira a resistência a romper com a aparência de ordem que ocultava rotinas de crueldade e opressão. Nesta perspectiva, a ilegitimidade passada legitimava, por princípio, as ações revolucionárias. Para Asmal, era preciso distinguir os dois lados da luta passada e atribuir-lhes juízo distinto. O tema 21 Importante notar que o Congresso Nacional Africano tinha maioria parlamentar à época do intenso parlamentar que resultou no modelo da CVR. 16 Revista OABRJ, v.25, n. 02, p.55 - 75, 2010. da reconciliação não poderia ofuscar a natureza moral dos lugares ocupados pelos distintos contendores passados. (Asmal, 2000, p. 93) Os idealizadores da comissão, por contraste, rejeitam a permanência das categorias passadas na definição do paradigma punitivo presente. A comissão não poderia decidir sobre a boa e a má violência. A violência, em si mesma, é que mereceria sua atenção. O juízo moral, nesta perspectiva, deslocava-se dos fins para os meios da ação política. Além do desacordo sobre o tema da “equivalência moral”, a comissão recebeu crítica veemente pela dedicação exclusiva às graves violações de direitos humanos em detrimento de outros níveis de violação. A contenda sobre o tema dos direitos ganha aqui mais uma importante variável. Para muitos críticos da transição política, o entendimento prevalecente dos direitos humanos restringiu-se ao tema da violência física e negligenciou, de modo injustificável, a violência racial. Para Madeleine Fullard: “a CVR ignorou a questão da raça e da discriminação, que assumiu forma econômica e social. Raça era como uma palavra feia. Cinco milhões de pessoas foram removidas a força porque eram negras. Essas pessoas tinham circulação limitada. Nós não olhamos para isso.”22 Hugo van der Merwe, diretor de uma ONG intitulada Transitional Justice Programme, corrobora esta crítica. Para ele, a comissão sul-africana, inspirada em modelos estrangeiros, não se ajustou à especificidade da questão social e política local. Nas suas palavras, “o tema da reconciliação não deve ser entre vítimas e torturadores. A questão é racial; está para além dos agentes individuais”. Para Deborah Posel, nesta mesma perspectiva, a comissão teria passado ao largo de “violências estruturais, baseadas na raça e no gênero, por exemplo” (Posel, 2002, p. 63). Na definição do mandato da comissão, apenas os crimes por motivação política estavam sob sua alçada, o que excluía os crimes de racismo. Em uma ordem social baseada na segregação racial, a comissão teria cometido o equívoco de distinguir o racismo da motivação política. A despeito das duras críticas que recebeu, a experiência da Comissão de Verdade e Reconciliação, principal trunfo de Mandela na sua arquitetura institucional da transição, foi a principal forma política do princípio conciliador. Neste paradigma, a investigação do passado é apenas reivindicada como recurso de produção da memória social. Considerações Finais 22 Opinião compartilhada em entrevista para este projeto 17 Revista OABRJ, v.25, n. 02, p.55 - 75, 2010. Os diferentes modelos de resolução dos conflitos decorrentes de violações sistemáticas de direitos humanos nos países assinalados demonstram ser necessário o aprofundamento da reflexão sobre o tema ora analisado. O que se espera para o futuro é que cada país consiga encontrar seu caminho de reconciliação com mecanismos capazes de evitar sua repetição. Não se duvida que a justiça de transição pode e deve adotar medidas diversificadas e complementares que se mostrem adequadas à realidade social específica. A persecução penal pode ser necessária nos casos mais graves, mas não deve ser o único caminho a ser seguido, sendo o exemplo da África do Sul importante na sua perspectiva restaurativa e de conciliação, objetivos que não são alcançados pela justiça criminal. Por outro lado, qualquer que seja o mecanismo escolhido, não se pode abrir mão da busca da verdade e do resgate da memória, para prevenir futuras ocorrências e garantir o respeito aos direitos humanos. 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