O MUTIRÃO URBANO: DA SOLIDARIEDADE À EXPLORAÇÃO
THE URBAN "MUTIRÃO": FROM SOLIDARITY TO EXPLOITATION
isabel teresa pinto coelho
RESUMO
Discute-se, de uma maneira crítica, a utilização do mutirão como instrumento implementador de Políticas
Públicas Habitacionais. Para tanto, aborda-se a origem da crise habitacional brasileira e o consequente
surgimento do conceito de habitações sociais, com enfoque nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro.
Discute-se, ainda, a obrigação do Estado em garantir o direito à moradia, bem como a caracterização deste
como direito fundamental. A fim de aliar a teoria à prática, são analisados modelos de mutirão, com destaque
para o modelo paulista de Mutirão Autogerido e suas diferenças práticas com o mutirão tradicional, que há
muito deveria ter sido abolido como instrumento isolado de política habitacional. Porém, com base em um
exemplo real encontrado na Cidade de Resende, interior do Estado do Rio de Janeiro, constata-se que ainda
é pensado como solução de déficit habitacional, o que é inconcebível em pleno século XXI.
PALAVRAS-CHAVES: PALAVRAS CHAVES: Mutirão – Exploração - Instrumento de Política Pública –
Habitação – Autogestão.
ABSTRACT
This report wants to discuss, in a critical way, the use of “mutirão” as an instrument to implement abode's
public policies. For so, will be search the origins of the brazilian abode's crisis and, in consequence, the
outbreak of the social habitation, with emphasis to São Paulo e Rio de Janeiro. Also, will be analysed the
government obligation in provide the habitation right, as well its caracterization as a fundamental right.
Alling the theory to practice, the report brings models of “mutirão”, with distinction for São Paulo's model of
selfmanagement and its differences with the tradicional “mutirão”, which should have been abolished, as an
isolated instrument of abode's public policies, a long time ago. However, based on a real example found in
Resende, a city located in the countryside of the Rio de Janeiro State, wil be able to certify that the “mutirão”
is still a solution for the habitation lack, which is an absurd solution in the XXI century.
KEYWORDS: KEYWORDS: "Mutirão" – Exploitation – Public Policy Instrument – Habitation – Self
Management.
1. Apresentação.
O presente trabalho pretende discutir a real natureza do mutirão, enquanto instrumento utilizado pelo Poder
Público para implementação de Políticas Públicas Habitacionais.
No texto, a expressão "moradia" será utilizada para designar o direito fundamental atualmente previsto no
artigo 6º da Constituição da República Federativa do Brasil. Já, o termo "habitação" irá designar o modo
pelo qual o direito à moradia é concretizado na vida em sociedade.
Ressalve-se, ainda, que os termos autoconstrução, auto-empreendimento e mutirão serão utilizados como
sinônimos para designar a prática da construção da habitação residencial pelos próprios trabalhadores, com o
auxílio da família, amigos e, até mesmo, de profissionais informais. O texto ficará adstrito à autoconstrução
realizada pela população de baixa renda, seja situada em favelas, seja em loteamentos periféricos.
Para tanto, será abordado, inicialmente, a origem da crise habitacional brasileira e o consequente surgimento
do conceito de habitações sociais, com enfoque nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro.
Antes de ingressar na temática central do texto, será analisada a obrigação do Estado em garantir o direito à
moradia, bem como a caracterização deste como direito fundamental.
Após, será enfrentada a temática principal deste artigo: a utilização do mutirão como instrumento
implementador dessas Políticas. Indagar-se-á a sua efetividade e em que bases é realmente utilizado, ou seja,
como forma de estimular "redes de solidariedade" e, assim, construir noções de cidadania; ou, como mero
instrumento de solução da crise habitacional.
Por fim, será analisado o modelo paulista de Mutirão Autogerido e suas diferenças práticas com o mutirão
tradicional, que há muito deveria ter sido abolido como instrumento isolado de política habitacional.
Todavia, surpreendentemente, ver-se-á que ainda é pensado como solução de déficit habitacional.
2. A origem da Crise Habitacional Brasileira e o Conceito de Habitações Sociais. A Autoconstrução.
É fato que a industrialização é o marco caracterizador da sociedade moderna, o que não induz,
necessariamente, a uma sociedade industrial. Até mesmo porque, é óbvio que a cidade preexiste ao processo
de industrialização, assim, o último não explicará sempre a origem do urbano em toda e qualquer cidade.
Porém, é inconteste que industrialização e a urbanização são fenômenos interligados.
Para Henry Lefebvre "a industrialização é o motor das transformações da sociedade"1. Refere-se, ainda, a um
"duplo processo, ou, um processo com dois aspectos"2: a industrialização e a urbanização, inseparáveis,
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porém, conflitantes.
Contudo, como já tido acima, não se pretende alongar acerca desta questão, mas apenas introduzir a
temática da crise habitacional, a fim de contextualizar a discussão do que se almeja: a crítica do mutirão tão
somente como instrumento de solução para o déficit de moradias, sem qualquer comprometimento de
alteração da realidade social da comunidade em questão.
Assim, faz-se necessária uma breve explicação do início da Crise Habitacional no Brasil, concentrando-se,
para fins didáticos, nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, bem como acerca do nascimento do conceito
de Habitação Social, que será aqui utilizado como a habitação produzida e financiada pelo Poder Público
para a população de baixa renda3.
Ultrapassada a discussão se a origem do urbano no Rio de Janeiro e em São Paulo deu-se em razão da
industrialização, já que, repita-se, não é esse o objetivo do texto, é essencial ter-se em mente que, em dado
momento histórico, por diversas causas, houve um adensamento populacional nessas cidades. O aumento
repentino da população gerou uma Crise Habitacional, ante o fato de não existirem moradias suficientes para
abrigar os novos trabalhadores.
Por certo, além de não existirem locais suficientes para abrigar esses moradores recém chegados, tampouco
havia habitações dignas compatíveis com os seus rendimentos. Surgem, então, os primeiros cortiços,
principalmente na cidade de São Paulo4.
Os cortiços têm como característica fundamental o fato de serem uma construção de iniciativa particular, em
que são utilizados materiais de baixa qualidade, não havendo qualquer preocupação com higiene e conforto
para os moradores. A ideia era gastar pouco para poder cobrar pouco, já que o salário recebido pelos seus
futuros ocupantes era igualmente pouco.
"(...) cortiços se caracterizam: 1) pela má qualidade e impropriedade das construções; 2) pela falta de
capacidade e má distribuição dos aposentos, quase sempre sem luz e sem a necessária ventilação; 3) pela
carência de prévio saneamento do terreno onde se acham construídos; 4) finalmente, pelo desprezo das mais
comezinhas regras de higiene doméstica. (....). O número de torneiras para água nem sempre está em
proporção com a população do cortiço. (...). As latrinas também não guardam proporção com o número de
habitantes. (...)"5
Já, as favelas6, têm origem na ocupação do solo urbano de maneira irregular, seja por invasão ou por
grilagem, isto é, venda de terras por quem não é seu proprietário para compradores de boa-fé. Diferenciamse dos cortiços também pelo fato de, ao menos no início, as habitações serem construídas pelos próprios
moradores com finalidade de estabelecer sua morada, sem fins especulativos. Em comum, há a falta de
higiene, privacidade, conforto.
Em suma, era essa a realidade existente nas duas maiores cidades brasileiras no final do século XIX, início do
século XX. A situação havia chegado ao extremo, a ponto do Poder Público ter que tomar medidas
higienizadoras em cortiços e favelas a fim de controlar a disseminação de doenças contagiosas. É o período
higienista. Bonduki deixa claro que a preocupação das autoridades da época eram os surtos de doenças
contagiosas, em decorrência da ausência de higiene nessas habitações, e não a questão de proporcionar um
ambiente de vida adequado à essa população.
"Se as habitações populares não representassem perigo para as condições sanitárias da cidade, nada se
saberia sobre elas, pois as únicas informações sobre as mesmas nos chegaram através dos técnicos
preocupados com a saúde pública.(...). Mesmo assim, os relatos dos sanitaristas expressam uma visão elitista,
viciada pelas concepções higienísticas e preconceituosas em relação aos trabalhadores. (...)"7
De todo modo, a intervenção do Poder Público deu-se em uma época em que o Estado Liberal não
costumava intervir na esfera privada. Todavia, como a questão da moradia tornou-se, como visto, caso de
saúde pública, o Estado viu-se forçado a intervir no controle do espaço urbano.
"O poder público atacou de três frentes: a do controle sanitário das habitações; a da legislação de posturas; e
da participação direta em obras de saneamento das baixadas, urbanização da área central e implantação de
rede de água e esgoto."8
Frise-se que foi justamente a omissão do Poder Público em promover programas habitacionais, à época das
grandes imigrações/migrações9, que alavancou a mencionada Crise Habitacional. Deixou-se nas mãos dos
particulares a solução para uma questão essencialmente urbana e pública. Para a concepção liberal,
predominante naquele momento histórico, era mais vantajoso ao Estado a "produção capitalista" da
habitação. Assim, incentivava-se o investimento privado na construção de casas de aluguel, que representava
um mercado seguro e lucrativo, pois os riscos eram baixos e a valorização imobiliária certa10.
Várias modalidades de habitação surgiram (cortiços, casas de vila, casas geminadas), sendo todas "moradias
de aluguel": baixo custo na produção, baixo preço do aluguel a ser pago. Era a chamada Produção
Rentista11, que teve sua evolução contida pelo congelamento do valor dos aluguéis na Era Vargas, por meio
da edição da Lei do Inquilinato12.
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Assim, a partir do final dos anos 30, com o desestímulo pelo Estado dos investimentos privados em
habitações para a classe menos favorecida, passou-se a ter duas opções: a intervenção estatal na produção de
habitações sociais e a autoconstrução13.
A primeira opção concretiza-se, ao menos em tese, pela adoção de Políticas Públicas Habitacionais por parte
do Poder Público. A competência em matéria habitacional será delineada no item seguinte, porém, cabe a
ressalva de que, no plano federal, os primeiro órgãos que atuaram no setor de habitação social foram a
Fundação da Casa Popular e os Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAP'S), ainda durante o Governo
populista. Posteriormente, em 1964, é que será criado o BNH (Banco Nacional da Habitação)14. Todavia,
não se irá aprofundar neste item, pois, repita-se, o objeto de estudo concentra-se na autoconstrução. De todo
modo, Bonduki, já inúmeras vezes citado, faz um brilhante relato histórico e crítico acerca do tema nos
capítulos 3, 4 e 5 da sua obra, também já citada, "Origens da Habitação Social no Brasil".
Pois bem, finalmente, chega-se à segunda opção, a autoconstrução, que constitui o foco do debate. Como já
esclarecido na introdução, os termos autoconstrução, auto-empreendimento e mutirão serão utilizados como
sinônimos para designar a prática da construção da habitação residencial pelos próprios trabalhadores, com o
auxílio da família, amigos e, até mesmo, de profissionais informais. A ideia é centralizar a discussão em torno
da população de baixa renda residente em favelas, principalmente no Rio de Janeiro, e loteamentos
periféricos, realidade esta mais comum em São Paulo1516.
"(...) Nas condições em que se deu a exploração da força de trabalho no Brasil nesse período, o autoempreendimento da casa própria em loteamento tornou-se, além de um expediente de sobrevivência, parte de
um modo de vida que se desenvolveu em São Paulo, incorporado como padrão cultural e cotidiano aceito e
desejado pelos trabalhadores de baixa e média renda. (...) Assim, na década de 40, quando se intensificaram
as migrações para São Paulo e o mercado de locação entrou em colapso, havia na cidade uma alternativa que
impediu (...) o crescimento das favelas, que tanto apavorava a elite carioca. Uma solução que ficava distante
e "escondida", frequentada e observada apenas por seus moradores. O custo monetário de morar na periferia
era baixo porque o preço do terreno era baratíssimo. (...)"17
O auto-empreendimento, portanto, foi a forma que a classe trabalhadora encontrou de atingir o "sonho da
casa própria" mais rápido e de maneira que atendesse às necessidades da família. Assim, havia união de
esforços de todos os membros da família nuclear, bem como de agregados e vizinhos. Com isso, a partir do
momento que ganhassem o status de proprietários passariam a ter "direitos de proprietários", o que inclui o
direito à cidade, com todos os seus equipamentos urbanos e infra-estrutura adequada a uma vida digna.
"O acesso à casa própria tornou-se realidade. (...) não foi necessária nenhuma campanha educativa para
mostrar ao trabalhador as vantagens dessa solução: bastou a crise de habitação eliminar qualquer outra
possibilidade para que os trabalhadores mudassem para a periferia. (...) O modelo de ocupação da periferia
deu origem, portanto, a ampla gama de soluções habitacionais de baixo custo"18
Todavia, não se pode deixar de registrar o sacrifício pessoal e familiar que a autoconstrução exigia. As
empreitadas ocorriam após os expedientes e nos fins de semana, sendo um processo extremamente
dilapidador, porém, recompensador, pois representava a segurança de um "teto" permanente, além da
possibilidade de, futuramente, garantir uma renda extra com a sublocação de cômodos no lote.
"Assim, pelo mesmo processo de produção doméstica com que tinham construído suas casas, os habitantes
da periferia também passaram a produzir moradias para outros trabalhadores que ainda não haviam adquirido
um lote. Uma casa edificada informalmente, ..., aproveitando uma nesga de terreno cuja função principal era
servir de residência a seu proprietário, podia ser alugada por valor inferior ao de uma casa produzida em
bases mercantis. Trata-se, portanto, de mais um recurso para baratear a habitação do trabalhador e criar uma
alternativa de baixo custo à produção rentista formal que estava em declínio. (....). Ao contrário da produção
rentista "clássica", a locação de casas no próprio terreno onde morava o proprietário facilitava a retomada do
imóvel e a consequente elevação do aluguel."19
3. A moradia como direito fundamental e Obrigação do Estado.
No tocante ao ordenamento jurídico brasileiro, antes da Emenda Constitucional nº 26/2000, que incluiu o
direito à moradia no caput do art. 6º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, havia
controvérsia a respeito da aceitação da moradia como direito humano social e, por conseguinte, fundamental.
Fazia-se, assim, uma construção intelectual para incluir o direito à moradia no rol dos direitos fundamentais,
uma vez que era unânime a não exaustão dos mesmos no rol do art. 5º, CR/88. O fundamento teórico estava
nas Declarações e Convenções Internacionais sobre direitos humanos, muito embora os mesmos resultem
apenas compromissos políticos não vinculantes para os Estados. A Declaração Universal dos Direitos
Humanos no seu art. XXV, dispõe sobre o direito a um padrão de vida adequado, incluindo o direito à
habitação, a saber20:
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Artigo XXV
1. Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem
estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais
indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou
outros casos de perda dos meios de subsistência fora de seu controle. (grifo nosso)
(...)
Nas palavras de Nelson Saule Junior:
"O direito à moradia derivado do direito a um nível de vida adequado, configura sua interdependência e
inter-relacionamento como direito humano por exemplo, com o direito de liberdade de escolha de residência,
o direito de liberdade de associação, direito de privacidade na família (....)"21
Outros, por sua vez, defendiam, e continuam defendendo, que o direito à moradia decorre do princípio da
dignidade da pessoa humana, sendo inconteste a sua fundamentalidade.
Nessa linha de raciocínio, o princípio da dignidade da pessoa humana possui 4 corolários: liberdade,
igualdade, integridade psico-física e solidariedade social.22 A solidariedade social também expressa como
princípio constitucional da ordem econômica (art. 170) mitiga o princípio da livre iniciativa, expressando
clara orientação solidarista do ordenamento jurídico nacional. Dessa forma, o direito à moradia já encontrava
fulcro em nossa Carta Magna, cuja positivação no rol dos direitos sociais apenas o reconhece
positivamente.23
Na perspectiva de direito interno, o direito à moradia estaria constitucionalmente implícito nos art. 7º, IV
(salário mínimo) e arts. 183 e 191 da CR/88 (usucapião especial urbano e rural).24
Porém, toda essa discussão tornou-se inócua com a inclusão expressa do direito à moradia no caput do art.
6º da Carta Maior Brasileira:
"Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência
social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição."
(grifo nosso)
Dessa forma, o direito à moradia passou a ter status de norma constitucional fundamental, o que traz como
consequência direta a sua aplicação imediata ao ordenamento jurídico brasileiro. Em termos práticos, gera
para o Poder Público a obrigação imediata de adoção de uma Política Habitacional que priorize a
população de baixa renda.
A divisão de competências no tocante à promoção da concretização deste direito fundamental à moradia está
prevista na Constituição de 1988 da seguinte forma:
1) A União possui competência privativa para instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano,
incluindo habitação, conforme disposto no art. 21, XX, CR/88.
2) O art. 24, CR/88 prevê a competência concorrente da União, Estados e Distrito Federal para legislar
sobre direito urbanístico.
3) O art. 23, IX, CR/88 dispõe que União, Estados e Municípios devem promover programas de
construção de moradias e melhoria das condições habitacionais e saneamento básico. Exemplo de
concretização desta norma constitucional seriam os programas de regularização e urbanização de favelas.
4) O Município, na forma do art. 30, I, II e VIII, CR/88, é o principal ente federativo responsável pela
execução da política urbana, via desenvolvimento de uma política habitacional local.
A questão que se coloca neste ponto do estudo, estabelecida a premissa de que a moradia é um direito
fundamental, e, portanto, de cumprimento obrigatório pelo Poder Público, é justamente o alcance da
concretização deste direito. Em outras palavras, é o Estado obrigado a fornecer a habitação de forma
inteiramente gratuita ou deve cobrar, ainda que parcela ínfima, do cidadão que a está recebendo?
Deve-se ter em mente que os beneficiários de políticas habitacionais, integralmente ou parcialmente
subsidiadas pelo Estado, são aqueles que integram a população de baixa renda tratada neste artigo, qual seja,
a pertencente à faixa de 0 a 3 salários mínimos, que, como visto, constitui a grande maioria dos habitantes
das favelas e periferias.
A urbanista norte-americana Jane Jacobs25 posiciona-se contrariamente ao tratamento paternalista do Poder
Público com relação aos habitantes de favelas e cortiços. Ao contrário, entende que essa população de baixa
renda é perfeitamente capaz de "compreender seus interesses pessoais e lidar com eles"26, e é dessa forma
que devem ser tratados, isto é, como pessoas capazes. Ressalta o que dificilmente é enxergado pelos
governantes:
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"Precisamos discernir e levar em consideração as forças de recuperação existentes nos próprios cortiços e
evoluir a partir delas, o que comprovadamente funciona nas cidades reais. Isso é muito diferente de tentar
encaminhar condescendentemente as pessoas para uma vida melhor, e muito diferente do que é feito hoje"27.
Por certo não existe uma resposta absoluta, já que as Políticas Habitacionais irão variar de acordo com a
realidade de cada cidade. Porém, deve-se concordar com Jacobs quanto à vedação ao caráter paternalista
destas. Ora, ao menos no Brasil, sempre houve historicamente a concentração das decisões políticas sobre o
tema nas mãos do Estado, configurando-se o que Bonduki denomina de modelo central-desenvolvimentista.
A principal característica deste modelo é a centralização da gestão e o autoritarismo, excluindo-se a
participação do cidadão nas decisões. Esse foi o modelo que prevaleceu no Brasil desde o Estado Novo e
que, como comprova a realidade social/habitacional brasileira, não deu certo.
"(...) A crença de que o desenvolvimento e o crescimento a qualquer custo seriam sempre positivos e que a
centralização de poderes no Estado para intervir sobre a cidade traria as soluções adequadas para resolver os
problemas caracterizam o modelo central-desenvolvimentista"28
Por isso, deve-se caminhar para um novo modelo de gestão de cidades, denominado por Bonduki de
ambiental-participativo, em que se baseia no "trinômio participação-desenvolvimento sustentável-qualidade
de vida e do ambiente"29
Vale a transcrição resumida do conjunto de práticas e características dessa nova postura ambientalparticipativa elencadas por Bonduki:
"1.Gestão descentralizada e democrática, com destaque para o papel do poder local e para a articulação
das políticas setoriais. (...);
2. Criação de canais institucionais de participação popular, como Conselhos de gestão urbana e
participação dos cidadãos nas decisões sobre as prioridades de governo, através da elaboração do
orçamento participativo e acompanhamento da execução orçamentária.(...);
3. Inversão de prioridades para garantir o direito a habitação e à cidade. (...);
4. Parceria entre o poder público e organizações não-governamentais para o desenvolvimento de
programas e projetos, através do estímulo a processos autogestionários e congestionários em programas de
produção do habitat e de geração de emprego e renda. (...);
5. Busca de barateamento da produção habitacional através de novas formas de gestão, produção e do
financiamento direto para o usuário final w do reconhecimento da cidade real, através de regularização
fundiária e urbanização das áreas ocupadas espontaneamente.(...);
6. Compatibilização entre preservação do meio ambiente e implantação de projetos urbanos, produção
habitacional e recuperação ambiental de áreas de preservação já ocupadas. (...);
7. Busca de reaproveitamento, através da reciclagem, dos dejetos urbanos visando a preservação
ambiental e sua reutilização em programas públicos.(...);
8. Prioridade para o transporte coletivo e para a segurança no tráfego. :(...)"30
O importante, além da mudança do foco na gestão das cidades, é exterminar a mentalidade de caridade no
atuar estatal. Isso só faz refletir naquele que a recebe uma sensação de carência, de dependente do Poder
Público, o que não é verdadeiro e nem deve ser estimulado pelo Estado, já que é atividade a qual está
vinculado.
Por isso, é essencial a participação tanto dos cidadãos diretamente interessados, como também dos cidadãos
em geral, na formulação, controle e execução de políticas públicas habitacionais.
4. Mutirão: de prática de subsistência a instrumento de Política Pública Habitacional.
Ermína Maricato aborda em seu texto "Autoconstrução, a arquitetura possível"31, escrito em 1976, a origem
dessa "prática" de construção da habitação. Destaca que a construção das próprias moradias era frequente no
meio rural, o que pode ser explicado pela economia de subsistência característica nessas localidades. A
essência do mutirão está na solidariedade entre as pessoas que se ajudam mutuamente.
"A autoconstrução, o mutirão, a auto-ajuda, a ajuda mútua são termos usados para designar um
processo de trabalho calcado na cooperação entre as pessoas, na troca de favores, nos compromissos
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familiares, diferenciando-se portanto das relações capitalistas de compra e venda da força de
trabalho.
Seja para a construção de casas, seja para o tratamento da colheita, no meio rural, o mutirão, ..., implicou
frequentemente festas com danças e bebidas, num acontecimento que coroava o fim do dia, ou do processo
de trabalho. A festa era uma forma de o pequeno produtor retribuir uma parte da ajuda prestada sendo que a
outra parte seria retribuída em forma de trabalho, quando da convocação de um novo mutirão. Através dele
firma-se um compromisso de troca de favores, em bases espontâneas, apesar de ser ditado pela
necessidade."32 (grifos nossos)
Todavia, com a vinda do "homem do campo" para a cidade, tal prática tipicamente rural, acabou tornando-se
comum também no meio urbano por uma questão de sobrevivência: essa nova população trabalhadora
simplesmente não podia arcar financeiramente com as habitações existentes e o Poder Público não se
preparou estruturalmente para alocá-los.
Dessa forma, sem qualquer outra alternativa, a população urbana teve que tomar a iniciativa e resgatou a
modalidade tipicamente subsistente de autoconstrução da habitação, que se dava nas horas de folga com a
ajuda de parentes e amigos.
Quer-se deixar claro que a crise habitacional, qualquer que seja o contexto histórico, coincide com o início
da industrialização, que trouxe consigo o capital industrial e, para tanto, uma massa de trabalhadores
oriundos do meio rural e/ou imigrantes. Estes, ao não encontrarem local para residir compatível com seus
rendimentos, viram-se forçados a construir a sua própria morada, tal como faziam no campo. Isso seria
natural não fosse o fato de agora o trabalhador ser assalariado e, portanto, deveria estar apto a consumir
produtos e serviços.
"Se o Estado ignora o assentamento residencial da classe trabalhadora urbana, oriunda dos fluxos
migratórios, é principalmente por que essa classe não constitui demanda econômica para pagar esses
bens e serviços"33 (grifos nossos)
Conclui-se, então, que o regime de mutirão tem sua origem em uma prática de solidariedade entre a
população rural, que é reproduzida no meio urbano em razão de uma necessidade de sobrevivência. Ou seja,
o que era uma prática natural no campo, no meio urbano torna-se uma "solidariedade forçada"34.
Todavia, não finda aí a deturpação do sentido do mutirão. Ressalte-se, mais uma vez, que tal prática foi
incorporada às cidades por absoluta ausência de intervenção do Poder Público e extrema necessidade de
moradia da população trabalhadora.
Com a finalidade de solucionar o problema habitacional, em 1964, o Governo Federal criou o BNH (Banco
Nacional de Habitação), que tinha a função de repassar os recursos destinados à habitação para agentes
privados e públicos que viabilizariam a construção das moradias. Porém, o BNH acabou alocando os
recursos das habitações populares para a produção de habitações para as classes alta e média, já que estas
poderiam arcar com os juros e correções35.
Assim, a população de baixa renda mais uma vez é excluída e vê-se, novamente, obrigada a solucionar
sozinha, com a ajuda de parentes e amigos, o seu problema de habitação por meio da autoconstrução.
"Se a habitação, a chamada infra-estrutura urbana, e os equipamentos constituem mercadorias, se a
política habitacional é centralizadora e elitista, e se por outro lado o salário é mantido a um nível
abaixo daquele que permitiria a compra desses bens, as necessidades são em grande parte supridas
pela prática da autoconstrução ou não são supridas" 36(grifos nossos)
Posteriormente, como se não bastasse todo o histórico de omissões aqui relatados, o mutirão passou a ser
utilizado pelo Poder Público como solução oficial para o déficit habitacional das classes menos favorecidas,
especialmente em regiões de favelas e periferias, sem qualquer preocupação de transformação social.
A crítica que se faz, qual seja, a utilização do mutirão como instrumento de solução do déficit habitacional
pelo Poder Público, não reside apenas no fato da "expropriação" de uma prática que está baseada em um
sentimento de solidariedade espontânea para sanar uma deficiência causada e agravada pelo próprio Poder
Público, mas sim no uso de tal prática sem qualquer preocupação de alteração da realidade social dos
"expropriados", bem como sem qualquer participação destes, reais interessados, no processo de produção da
habitação.
Em suma, critica-se o uso do mutirão atrelado ao modelo central-desenvolvimentista, tal como já definido
acima. Assim, desde que associado a um modelo de gestão da cidade do tipo ambiental-participativo, em
todas as suas práticas, estará dando uma nova perspectiva a este instrumento.
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A seguir serão analisados dois exemplos de gestão participativa em Política Pública Habitacional. O primeiro
foi desenvolvido na cidade de São Paulo no governo Luiza Erundina nos anos de 1989-1992. O segundo foi
realizado na cidade de Resende, situada no interior sul fluminense do Estado do Rio de Janeiro, como parte
do Programa Habitar Brasil, financiado pelo BID, tendo início no ano de 2002 e, atualmente, em fase de
conclusão.
Após, como contraponto do que não deve ser feito, citar-se á um exemplo também da cidade de Resende,
iniciado na mesma gestão municipal anterior, ou seja, sob o comando do mesmo Prefeito Eduardo Mehoas,
porém, totalmente contrário ao que se espera do Poder Público nos dias de hoje.37
O primeiro exemplo cuida do Programa de Produção de Habitação em Mutirão e Autogestão desenvolvido
na cidade de São Paulo durante a administração da Prefeita Luiza Erundina (1989-1992), beneficiando mais
de 60 mil pessoas. Foram realizadas parcerias entre o poder público e a sociedade organizada, em total
consonância com o modelo de gestão participativo, tal como antes apontado. Deve-se ressaltar que não se
trata de um Programa de Mutirão comum, mas sim de um Mutirão Autogerido, ou seja, "uma forma de
gestão pública não-estatal em que organizações não-governamentais, com o apoio e financiamento do poder
público, equacionam a produção de moradias com a participação dos moradores e a introdução de avanços
tecnológicos e sociais que só o trabalho coletivo pode propiciar." 38 O resultado final foi a produção de
qualidade, contrariando a visão antiga de associar mutirão a projetos de baixa produção e qualidade.
Em suma, havia a participação na produção da habitação de três agentes: o Poder Público (no caso por
intermédio do Funaps e da Habi39), as Associações Comunitárias formadas por todos os futuros moradores e
a Entidade de Assistência Técnica, que será de grande ajuda para racionalizar o processo produtivo.
Funcionava da seguinte maneira: as Associações Comunitárias assinavam um convênio com o Funaps para
receber um financiamento e promover a construção das moradias. Havia um limite de financiamento de 7 mil
dólares por unidade e 110 dólares por metro quadrado, além de regras para utilização dos recursos,
prestação de contas, mecanismos de liberação das parcelas etc. De acordo com o convênio, cabia às
Associações de Moradores gerir todo o processo de construção. Para tanto, deveriam contratar Entidade de
Assessoria Técnica utilizando até 4% do financiamento, montar canteiro de obras, adquirir materiais,
organizar o mutirão, podendo contratar mão-de-obra especializada no limite de 10% do financiamento40.
"O projeto, a escolha do material de construção e a definição da demanda, devem ser discutidos e aprovados
em assembléia pelos mutirantes, exigência que tem garantido a qualidade do produto final e, sobretudo, sua
aceitação pelos moradores. Cabe à prefeitura analisar os projetos e a documentação apresentada para
aprovar o financiamento, fiscalizar o andamento das obras e realizar as medições para liberar novas parcelas
do financiamento, assim como avaliar as prestações de contas dos recursos utilizados. A prefeitura se
responsabiliza também pela desapropriação do terreno e pela implantação da infra-estrutura."41
Bonduki, que era o Superintendente de Habitação Popular da Secretaria de Habitação e Desenvolvimento
Urbano na gestão de Erundina, assim analisou os resultados positivos do Programa:
"Os resultados positivos dessa prática foram expressivos: obteve-se uma redução no custo de
produção da habitação de cerca de 50%, excelente qualidade nas construções e um amplo processo de
participação popular, gerando paralelamente ao empreendimento habitacional um amplo conjunto de
atividades comunitárias, como cursos de alfabetização, creches, ações culturais, atividades de
recreação etc."42 (grifos nossos)
Bonduki43 ressalta, ainda, que, durante o governo Erundina, foram celebrados 84 convênios com associações
comunitárias, beneficiando mais de 60 mil pessoas. Certamente representa parcela pequena do déficit
habitacional de São Paulo, porém, considera que o período de implementação foi extremamente curto, já que
o governo posterior não deu continuidade ao Programa. Contudo, o balanço geral pode ser considerado
positivo, já que, além das habitações construídas, houve um ganho de cidadania pelos participantes, bem
como um Know-How de construção pelas associações comunitárias envolvidas.
Passa-se, então, ao segundo exemplo de gestão participativa. Em proporções muito menores, o programa
ocorre na cidade de Resende, na região sul fluminense do Estado do Rio de Janeiro. Vale ressaltar que se
iniciou em 2002 como parte do Programa Habitar Brasil, coordenado pelo BID e, atualmente, encontra-se
em fase de finalização. Teve por objeto o loteamento Jardim Esperança, área invadida na década de 1990,
por famílias lideradas por um pároco da Igreja Católica. Os invasores abriram ruas, delimitaram os lotes,
construíram igrejas, creches, escolas, de barracos a casas simples. Atualmente residem na localidade 1.236
pessoas, agrupadas em 224 famílias, com índice de densidade domiciliar de 5,52, bem acima dos 4,29 de
adensamento médio nos assentamentos do município. A área em questão foi desapropriada por interesse
social pelo Poder Público Municipal pelo Decreto nº 035 de 16 de março de 2000.44 Porém, como a Lei
Orgânica do Município de Resende veda a doação de bens públicos, os moradores deverão ressarcir o valor
venal dos lotes que ocupam em até 60 meses, comprometendo-se a permanecer no local pelo mesmo
período. Os valores recebidos serão destinados a um Fundo Municipal de Habitação.45
O programa de ação consistia em privilegiar a participação dos moradores da comunidade, buscando
soluções de forma compartilhada para os 5 focos do Programa Habitar Brasil/BID, a saber: 1)
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Desenvolvimento comunitário; 2)Educação Sanitária e Ambiental; 3) Geração de trabalho e renda; 4)
Melhorias habitacionais; 5) Regularização Fundiária46.
Ressalve-se que não houve Mutirão para a construção ou melhoramento das habitações, pois contratou-se
uma empreiteira para tanto. Todavia, o exemplo é válido de ser citado, já que, em todos os momentos
consultou-se a população envolvida, encaixando-se na perspectiva da gestão participativa, que também faz
parte do enfoque do texto. Atualmente, cade à Associação de Moradores, por meio de mutirão dos
associados, a manutenção e a gestão dos equipamentos urbanos construídos pelo Programa. Isso demonstra,
sem dúvida, ganho de cidadania, uma das transformações almejadas e fundamentais para a gestão
participativa.47
Por fim, chega-se ao exemplo de Política Pública Habitacional envolvendo mutirão que não deve ser seguido.
Cuida-se de contrato de Regime de Mutirão celebrado entre os moradores do bairro Vicentina do Município
de Resende com a Prefeitura de Resende. Ressalte-se que tal regime de mutirão foi elaborado na mesma
gestão administrativa do Programa Habitar Brasil/BID citado anteriormente. Todavia, como será analisado a
seguir, infelizmente não houve aqui uma preocupação de gestão participativa, tampouco de geração de
emprego e renda e noções de cidadania. Apenas preocupou-se com a construção física da habitação em
premissas de exploração absurdas da força de trabalho do "mutirante"48.
Novamente, frise-se-se que a notícia deste regime foi obtida por meio de processo judicial, durante o
exercício das funções judicantes da ora signatária, proposto pela Prefeitura de Resende em face de um dos
"mutirantes", por não ter o mesmo ocupado a casa construída no prazo de 30 dias, conforme estabelecido
contratualmente.
Em poucas as palavras, pode-se dizer que o Regime de Mutirão em tela consistia na reunião dos "mutirantes"
(que são os beneficiários e suas famílias) em grupos para a construção de casas de acordo com projeto da
Prefeitura, sem qualquer ingerência dos beneficiários. A jornada de trabalho era determinada pelos
"mutirantes", que recebiam lanche nos dias de trabalho, fornecido pela Prefeitura. Porém, caso levassem
algum ajudante, este não receberia qualquer lanche, ficando tal sob a responsabilidade do "mutirante". Em
caso de desistência, que deveria ser manifestada por escrito, não teria direito à indenização pelos serviços já
executados. Nesta hipótese, a Prefeitura poderia indicar outro candidato inscrito e ainda não beneficiado. O
beneficiário e sua família deveriam ocupar a casa no prazo de 30 dias após a entrega das chaves e ficavam
proibidos de alienar, ceder, locar ou arrendar por um período de 06 anos. Assinavam com a CEF um
contrato de financiamento para a aquisição de material de construção.
Resta evidente a qualquer leitor, graduado ou não em Direito, o absurdo das cláusulas contratuais (de
adesão, claro) pensadas, pasme-se, nos idos dos anos de 2002/2003, ou seja, em pleno século XXI. De fato,
é árdua a escolha pela mais absurda: se a caridade do lanche em troca da força de trabalho ou se a vedação a
qualquer tipo de indenização no caso de desistência. Provavelmente, esta deveria consistir no lanche
fornecido ao "mutirante". Cuida-se de cláusula absolutamente inconstitucional por violação de primado
basilar do direito, qual seja, a vedação ao enriquecimento ilícito.
Como dito alhures, não houve qualquer preocupação de geração de emprego e renda, criação de noções de
cidadania, inclusão dessa população na cidade legal, mas, tão somente a expropriação da força de trabalho
dos "mutirantes" como solução do déficit habitacional. Ou seja, exatamente o contrário de tudo o Urbanismo
moderno propõe. É esse faceta do mutirão que se pretende criticar, uma vez que, como visto, existem
soluções mais apropriadas para o problema habitacional.
Muito embora haja informação informal prestada pela Secretaria de Habitação de Resende de que, ao final,
todas as casas foram construídas pelo Poder Público, "não tendo dado certo o regime de mutirão", ainda
assim critica-se essa modalidade de implementação de Política Pública. Isso porque continua colocando o
trabalhador em condição de inferioridade, de recebedor das "caridades" estatais, sem qualquer alteração na
mentalidade e na forma de se colocar a classe de baixa na renda como parte integrante da cidade legal.
5. Conclusão.
Pretendeu-se fazer um retrospecto da origem da prática do mutirão, destacando a sua característica de
subsistência e solidariedade no meio rural. Com a vinda dessa população para o meio urbano, associada à
massa de imigrantes recém desembarcados e a ausência de políticas habitacionais pelo Poder público, o
mutirão transmudou-se para uma "solidariedade forçada", corroborando-se expressão cunhada por Maricato
e que amolda-se perfeitamente à realidade social da época. Não havia outra alternativa a não ser a
autoconstrução, com a ajuda de familiares e amigos que se encontravam na mesma situação.
Surpreendentemente, após décadas de omissões e estímulo à produção capitalista da moradia, o que apenas
contribuía para o aumento da miséria e do déficit habitacional, o Poder Público resolve "apropriar-se" desta
prática genuinamente espontânea e utilizá-la como instrumento de solução de um problema criado por ele
próprio. E, como se não bastasse, o faz, muitas vezes, sob a ótica da caridade, como se estivesse prestando
um favor àquele cidadão-trabalhador que não possui condições de arcar com uma moradia digna, pelo fato
de não ter rendimentos suficientes para tanto.
Contudo, demonstrou-se que a mentalidade vem sendo alterada com outros modelos de gestão habitacional,
sendo a participação da população envolvida fundamental, até mesmo para acabar com eventual caráter
paternalista ainda existente.
* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010
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O Mutirão Autogerido praticado em São Paulo, a mais populosa cidade brasileira, é uma demonstração dessa
mudança de pensamento. Provou-se que trazendo os habitantes das localidades de baixa renda para a gestão
das melhorias na sua moradia e arredores, abarca várias finalidades e não apenas a solução do déficit
habitacional. Faz-se isso sem a exploração da mão de obra do trabalhador nos seus dias de folga, além de
gerar emprego, renda e noções de cidadania para uma parcela da população que não se sente merecedora de
moradia e equipamentos urbanos dignos.
O caso do Programa Habitar Brasil/BID desenvolvido na cidade de Resende, muito embora não envolva,
inicialmente, o mutirão para construção ou melhoramento das moradias, é também um exemplo dessa
mudança de mentalidade. A uma porque houve a consulta da população envolvida em todas as decisões
tomadas. A duas porque houve a preocupação de alterar a realidade do loteamento em questão, cuja
Associação criada ficará responsável pela manutenção e gestão dos equipamentos urbanos construídos.
O que não se pode aceitar nos dias de hoje é a concepção de um Programa Habitacional nos moldes do
segundo exemplo citado na cidade de Resende. Trata-se de um tipo de solução da questão habitacional
inconcebível em pleno século XXI, com a pura e simples exploração da força de trabalho do cidadão
miserável. Trata-se de uma modalidade de gestão do problema que apenas merce ser citado para não ser
repetido.
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1 LEFEBVRE, Henry. O Direito à cidade. São Paulo: Centauro, 3ª edição, 2008, p. 11.
2 Ibidem, p. 16.
3 Por uma questão metodológica, a fim de delimitar o objeto de estudo, o termo "habitação social" terá, no
presente texto, sua abrangência restrita ao sentido acima explicitado, não englobando a "regulamentação
estatal da locação habitacional e incorporação, como um problema do Estado, da falta de infra-estrutura
urbana gerada pelo loteamento privado", tal como entendido por Nabil Bonduki, na sua obra Origens da
Habitação Social no Brasil, São Paulo: Editora Estação Liberdade Ltda, 1998, p. 14. Por sua vez, a
expressão "população de baixa renda" quer ter em mente a população que, pelos padrões atuais, insere-se na
faixa de 0 a 3 salários mínimos, pois, em regra, são os que se encontram em habitações precárias.
* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010
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4 BONDUKI, Nabil, op. cit., p. 23.
5Ibidem, p. 24-25.
6 A título de curiosidade, segundo historiadores, a origem das favelas no Rio de janeiro guarda relação com
a Guerra de Canudos: "(...). A favela do Morro da Providência teria sido formada por soldados que
retornaram da luta contra Antônio Conselheiro em 1897. Os ex-combatentes acampados nas cercanias do
Ministério da Guerra na base do morro, aguardavam definição sobre sua situação o exército; como não
recebessem resposta, permaneceram à espera, estabelecendo-se em casebres precários construídos nas
encostas"; ZAINAGHI, Diana Helena de Cássia Guedes Mármora, Cidade e Habitação: Cortiços e
Favelas na Cidade de São Paulo, in GARCIA, Maria, A Cidade e seu Estatuto. São Paulo: Editora Juarez
de Oliveira, 2005, p. 365-366.
7 BONDUKI, Nabil, op. cit., p. 22.
8Ibidem, p. 27-29.
9 Com imigração quer-se referir àquelas de outros países para o Brasil, tal como aconteceu com italianos,
japoneses, etc. Já, o termo migração aponta para o deslocamento populacional entre estados e regiões do
Brasil.
10 BONDUKI, Nabil, op. cit., p. 44.
11 A vila operária era a modalidade ideal de habitação para os higienistas, contando, inclusive, com
incentivos fiscais, com a finalidade de obter um aluguel mais baixo. Cabe apenas a sua menção nesta nota de
roda pé, pois, destinava-se a uma pequena parcela de trabalhadores, em regra mais qualificados e com salário
superior à média, escapando à faixa populacional que se tem em mente no presente artigo, tal como
mencionado em nota anterior.
12 A respeito do tema, ler Bonduki, Nabil, op. cit., capítulos 2 e 5. Porém, cabe esclarecer que a Lei do
Inquilinato, ao congelar os aluguéis, desestimulou os investimentos privados imobiliários, pois, reduziu a
rentabilidade da locação.
13 Ibidem, p. 44.
14 Ibidem, p. 99.
15 Sobre a origem dos loteamentos periféricos na cidade de São Paulo e a omissão do Poder Público na
periferia, vide BONDUKI, Nabil, op. cit., capítulo 7. Vale a transcrição do seguinte trecho: "A omissão do
poder público na expansão dos loteamentos clandestinos fazia parte da estratégia para facilitar a construção
da casa pelo próprio morador que, embora não tivesse sido planejada, foi se definindo na prática como um
modo de viabilizar uma solução habitacional "popular", barata, segregada, compatível com a baixa
remuneração dos trabalhadores e que, ainda, lhes desse a sensação, falsa ou verdadeira, de realizar o sonho
de se tornarem proprietários. Com a expansão periférica garantia-se dois objetivos há décadas buscados pela
elite: desadensar e segregar. Deste modo, os investimentos públicos poderiam ser concentrados nas áreas
habitadas pela classe média e alta, e, por outro, seria viabilizada uma alternativa de baixíssimo custo para que
os trabalhadores tivessem acesso à casa própria, sem onerar o setor público e o setor privado. (...) o poder
público foi, de modo não programado, orientando-se para esse objetivo, sem dar ouvidos aos que clamavam
por uma cidade ideal." (p. 288)
16 Os cortiços não farão parte desta análise, pois, como já esclarecido, eram produzidos por particulares
com a finalidade de constituir "moradias de aluguel". Portanto, não se enquadram no critério da
autoconstrução visando à aquisição da casa própria.
17 BONDUKI, Nabil, op. cit., p. 304.
18 Ibidem, p. 303 e 307.
19 Ibidem, p. 306.
20 JUNIOR, Nelson Saule. O Direito à moradia como responsabilidade do Estado Brasileiro, in
JUNIOR, Nelson Saule. Direito à Cidade: Trilhas legais para o direito às cidades sustentáveis. São
Paulo: Editora Max Limonad. 1999. p. 63-123.
21 Ibidem, p. 77.
22 Cf. BODIN DE MORAES, Maria Celina. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos
danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.
23 Cf. TEPEDINO, Gustavo. O Código Civil, os chamados microssistemas e a Constituição: premissas
para uma reforma legislativa. In: TEPEDINO, Gustavo (org.) Problemas de direito civil-constitucional.
Rio de janeiro: Renovar, 2000, p.1-16.
24 Ibidem, p. 78.
25 Morte e Vida de Grandes Cidades. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2001, p. 302-303.
26 Ibidem, p.302.
27 Ibidem, p. 302.
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28 BONDUKI, Nabil Georges. À guisa de conclusão: das experiências concretas para a construção de
um novo ideário em políticas urbanas, jn Habitat. As práticas bem-sucedidas em habitação, meioambiente e gestão urbana nas cidades brasileira. São Paulo: Studio Nobel, 2ª edição, 1997, p. 261.
29 Ibidem, p. 264.
30 Ibidem, p. 264-267.
31 A produção capitalista da casa (e da cidade) no Brasil Industrial. São Paulo: Editora Alfa-Omega,
1979,p. 71-93.
32 Idem, p.71.
33 Ibidem, p. 74.
34 Expressão utilizada por Maricato no sub-título do texto acima citado, p. 71.
35 Idem, p. 80.
36 Ibidem, p. 82.
37 Apenas a título de esclarecimento, esse último exemplo veio a nosso conhecimento durante a prática
judicante, por meio de uma ação proposta pelo Município de Resende em face de um dos "mutirantes" que
não havia ocupado a casa no prazo estabelecido no contrato, nem manifestado expressamente a sua
desistência. Assim, pretendia-se, em sede de tutela antecipada, autorização judicial para indicação de outro
beneficiário da lista oficial.
38 BONDUKI, Nabil Georges. Habitação, mutirão e autogestão: a experiência da administração Luiza
Erundina em São Paulo, in Habitat. As práticas bem-sucedidas em habitação, meio-ambiente e gestão
urbana nas cidades brasileiras. São Paulo: Studio Nobel, 1997, p. 183.
39 Funaps - Fundo de Atendimento à População Moradora em Habitação Subnormal
Habi - Departamento da Prefeitura de São Paulo - Superintendência de Habitação Popular.
40 A descrição detalhada das diretrizes, planejamento e resultados obtidos, in Bonduki, Nabil Georges.
Habitação, mutirão e autogestão: a experiência da administração Luiza Erundina em São Paulo, in Habitat.
As práticas bem-sucedidas em habitação, meio-ambiente e gestão urbana nas cidades brasileiras. Studio
Nobel. São Paulo. 2ª ed. 1997. p. 180-193.
41 Ibidem, p. 183.
42 Ibidem, p. 180.
43 Ibidem, p. 185.
44 Dados extraídos do Projeto Técnico do Loteamento Jardim Esperança, Programa Habitar Brasil/BID, p.
27-28, gentilmente fornecido pela Secretaria de Habitação de Resende Patricia de Oliveira Souza.
45 Ibidem, p. 85.
46Ibidem, p. 74-78.
47 Dados cedidos oralmente pela Secretaria de Habitação Patricia Vieira de Oliveira Souza e pela Assistente
Social Ivone Celestina Guimarães. Os esclarecimentos foram orais já que, como mencionado, o programa
está em fase final de implementação, não tendo sido elaborado ainda o Estudo Final de Casos.
48 Utilizar-se-á o termo "mutirante" entre aspas, pois, no caso, este não era tratado nem como cidadão
solidário tal como na origem do mutirão, nem como o cidadão participativo do Mutirão Autogerido. Ao
contrário, era tratado como mera força de trabalho posta à disposição do Poder Público para solução de
déficit habitacional.
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