Revisão Qual é a melhor via de parto para o feto prematuro? What is the best delivery mode for the premature fetus? Roberto Eduardo Bittar1 Marcelo Zugaib2 Palavras-chave Parto vaginal Cesárea Prematuridade Keywords Vaginal delivery Cesarean section Prematurity Resumo A cesárea do prematuro extrema em apresentação cefálica tem sido proposta como estratégia obstétrica para melhorar os resultados neonatais em situações em que o nascimento é necessário ou inevitável. Os benefícios propostos para esse grupo de recém-nascidos incluem o menor risco de estresse causado pelas contrações uterinas do trabalho de parto e dos possíveis traumas decorrentes da passagem pelo canal vaginal. Sobre o tema, alguns estudos retrospectivos e observacionais foram publicados com resultados conflitantes. As evidências não são consistentes e conclusivas o suficiente para recomendar a cesárea, e há necessidade de estudos prospectivos para verificar os benefícios da via abdominal para essa população. Estudos retrospectivos sugerem fortemente que a cesárea é a melhor via de parto para os prematuros em apresentação pélvica, embora não tenham sido realizados estudos prospectivos para confirmar esses achados. Abstract Cesarean delivery of the very preterm cephalic fetuses has been proposed as an obstetric strategy to improve neonatal outcome in situations in which preterm delivery is necessary or inevitable. The purported benefits of cesarean section to this group of infants include avoiding the stress of labor contractions and the potential trauma of passage through the birth canal. A number of retrospective and observational studies have also shown conflicting results. The evidence is not strong and conclusive enough to recommend routine cesarean delivery so further prospective studies are warranted to assess the potential benefit of cesarean delivery in this population. Retrospective studies strongly support cesarean delivery as the method of choice for a preterm breech presentation even though prospective randomized trials have not been conducted to confirm this concept. Clínica Obstétrica da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) 1 Professor Associado de Obstetrícia do Departamento de Obstetrícia e Ginecologia da Faculdade de Medicina da USP – São Paulo (SP), Brasil 2 Professor Titular de Obstetrícia do Departamento de Obstetrícia e Ginecologia da Faculdade de Medicina da USP – São Paulo (SP), Brasil Endereço para correspondência: Roberto Eduardo Bittar – Clínica Obstétrica do Hospital das Clínicas da USP– Avenida Doutor Enéas de Carvalho Aguiar, 255 – 10o andar – CEP 05403-000 – São Paulo (SP), Brasil – e-mail: [email protected] REB, Zugaib M Introdução A discussão a respeito da melhor via de parto, se vaginal ou abdominal, ocupa cada vez mais espaço na literatura médica e na mídia em geral em função do número cada vez mais elevado de cesáreas praticadas em vários países e na maioria das regiões do Brasil. A partir da década de 1990 houve elevação do número de cesáreas em todas as faixas de idade gestacional1,2(C). Assim como no feto a termo, um dos principais objetivos da escolha da via de parto é proporcionar ao prematuro condições que evitem a acidose perinatal e os traumas decorrentes do nascimento. Se por um lado a cesárea parece reduzir algumas complicações em determinados grupos prematuros, por outro lado, ainda não há consenso em generalizar tal prática sem considerar a presença de fatores de riscos. Com o objetivo de responder ao questionamento sobre a melhor via de parto para o feto prematuro, realizamos uma revisão da literatura que abrangeu o período de janeiro de 1983 a abril de 2010, baseada nos dados de Revisão Sistemática da Cochrane e na base de dados PubMed. Os principais descritores utilizados foram: “mode of delivery”, “preterm delivery”, “cesarean delivery”, “vaginal delivery”, “preterm birth” e “vaginal versus cesarean.” Foram encontrados 261 artigos e selecionados 21 com base nos aspectos metodológicos e relevância. Mencionamos no texto o grau de evidência científica (A, B, C ou D), segundo classificação proposta pela Associação Médica Brasileira. Apresentação cefálica A maioria dos estudos sobre a via de parto na apresentação cefálica de fetos prematuros é retrospectiva e não randômica1-11 (B,C). Além disso, outras críticas podem ser feitas a esses estudos, limitando ainda mais o valor dos resultados: 1) a maioria destaca a influência da via de parto somente para prematuros extremos com peso inferior a 1.500 g; 2) não é feita a distinção entre as fases clínicas do trabalho de parto; 3) os dados em relação a eventuais fatores de risco maternos e fetais são insuficientes; 4) os grupos comparados geralmente diferem entre si. As Tabelas 1 e 2 demonstram os principais estudos disponíveis que relacionam a via de parto de prematuros extremos em apresentação cefálica com a respectiva sobrevida neonatal e ocorrência de hemorragia intracraniana. Não há estudos de maior consistência que demonstrem que a compressão da cabeça fetal pela passagem do canal de parto 544 FEMINA | Outubro 2010 | vol 38 | nº 10 em prematuros extremos seja responsável pelo aparecimento da hemorragia intracraniana. Segundo a Tabela 2, os resultados são variáveis. Apenas alguns sugerem que a cesárea diminui a incidência de hemorragia intracraniana. Até mesmo os dois estudos mais recentes mostram resultados contraditórios. Há de se destacar que a maioria dos fetos considerados nesses dois estudos possuíam pesos significativamente maiores do que os considerados prematuros extremos, o que limita ainda mais a aplicabilidade dos resultados. O estudo de Ment et al.12 (B) apesar de prospectivo e randômico e de ter evidenciado que tanto o corticoide antenatal como a cesárea protegem contra a hemorragia intracraniana, não tinha como objetivo inicial avaliar diretamente o efeito da via de parto sobre a incidência de hemorragia intracraniana, mas sim o possível efeito protetor da indometacina pós-natal sobre a ocorrência da hemorragia. A partir de 2005, dois estudos sugeriram maiores benefícios neonatais com a realização da cesárea em prematuros extremos nascidos nos Estados Unidos em duas séries – de 1999 a 2000 e de 2000 a 20033,13(B). Além de serem dois estudos retrospectivos, tais autores não esclareceram os motivos da interrupção da gestação, ou seja, se em razão da prematuridade ou de indicações clínicas e/ou obstétricas. Em análise futura da primeira série, os mesmos autores demonstraram que as vantagens se limitavam a fetos com diagnóstico de restrição do crescimento fetal abaixo de 31 semanas14, mas isso não foi observado em outra avaliação10. Nesta última publicação, o autor verificou o impacto da cesárea na mortalidade neonatal em prematuros extremos do período de 2000 a 2003 nos EUA13. A sua análise sugere que a cesariana associou-se à redução da mortalidade neonatal (0 a 27 dias de vida) quando praticada entre 22 e 25 semanas de fetos em apresentação cefálica, independentemente de outros fatores de risco que possam ter indicado a cesárea (B). Há de se destacar que não foram considerados os casos complicados que sobreviveram durante o período neonatal e as complicações a longo prazo. Deve-se ter em mente que os prematuros extremos são mais vulneráveis ao trauma. As chances de sofrerem lesões de partes moles, fraturas, lesões neurológicas e hemorragias intracranianas são maiores do que em fetos de idades gestacionais mais avançadas. Por essa razão, mesmo com a realização da cesárea, cuidados especiais devem ser observados para não traumatizar esses fetos. Estudo recente demonstrou que alguns tipos de traumas fetais estão mais associados à cesárea do que ao parto pela via vaginal15(C). Em relação aos prematuros de idades gestacionais mais avançadas, destaca-se o estudo de Malloy16(B). Trata-se de estudo retrospectivo em que foi avaliada a influência da via de parto Qual é a melhor via de parto para o feto prematuro? Tabela 1 – Efeito do tipo de parto em relação à sobrevida de fetos prematuros extremos em apresentação cefálica Autores Wylie et al. Ano 2008 Casos (n) 2.466 Peso ao nascer < 1.500 g Lee e Gould 2006 40.116 < 1.500 g Muhuri et al. 2006 60.364 < 1.500 g Riskin et al. Jonas e Lumley Malloy et al. Malloy et al. Worthington et al. 2004 1997 1991 1989 1983 2.955 2.763 1.765 3.095 214 < 1500 g 500-1500 g 500-1500 g < 1500 g 500-1500 g Achado/grau de evidência Negativo** Positivo*** para RCF (B) Positivo Positivo para RCF (B) Positivo 500-749 g Negativo 750-999 g Positivo 1.000-1249 g Prejudicial 1.250-1.499 g (B) Negativo (C) Negativo (C) Negativo (C) Negativo (C) Negativo (C) Nota: todos os estudos são retrospectivos e todos buscaram indicadores de sobrevida por meio de regressão logística. **Negativo: ausência de influência da cesárea na sobrevida; ***Positivo: quando a cesárea relacionou-se à melhora da sobrevida. RCF: restrição do crescimento fetal. Fonte: modificado de Skupski et al.21 Tabela 2 – Resultados de alguns estudos sobre o efeito do tipo de parto e a ocorrência de hemorragia intracraniana (HIC) de fetos prematuros extremos em apresentação cefálica Autores Wylie et al. Riskin et al. Haque et al. Wadhawan et al. Ment et al. Malloy et al. Worthington et al. Ano 2008 2008 2008 2003 1995 1991 1989 Casos (n) 2.466 5.033 213 1.273 505 1.765 214 Peso ao nascer < 1.500 g < 1.500 g < 1.250 g 401-1.000 g 600-1.250 g 500-1.500 g 500-1.500 g Achado/grau de evidência Positivo** para HIC (B) Negativo*** para HIC (B) Negativo para HIC (C) Negativo para HIC (C) Positivo para HIC (B) Positivo para HIC (C) Negativo para HIC (C) Nota: com exceção do estudo de Ment et al., que foi prospectivo, embora não delineado para avaliar a influência da via de parto sobre a HIC, os outros foram retrospectivos e utilizaram regressão logística. **Positivo: quando a cesárea relacionou-se à menor ocorrência de HIC; ***Negativo: ausência de relação da cesárea sobre a ocorrência de HIC. Fonte: modificado de Skupski et al.21 (vaginal – 309.150 casos; cesárea – 112.851 casos) em termos de morbidade e mortalidade neonatal para prematuros intermediários e tardios (32-36 semanas) entre os anos de 2000 e 2003 nos Estados Unidos, independentemente dos fatores de risco conhecidos. Nesse grupo de prematuros, observou-se aumento do risco de morbidade e mortalidade neonatal naquelas submetidas à operação cesariana. O autor atribui tais complicações a distúrbios de adaptação respiratória do recém-nascido. Dessa maneira, os dados de literatura são escassos, há dificuldades metodológicas de amostragens e de comparação de resultados de diferentes locais. Os estudos, até o momento, não trouxeram evidências científicas suficientes para recomendar a cesárea com o intuito de melhorar a sobrevida e as complicações de prematuros em apresentação cefálica. Apresentação pélvica Comparadas com mulheres que têm parto a termo, no trabalho de parto prematuro há maior probabilidade de encontrar um feto em apresentação pélvica. Há algumas evidências de que a via vaginal em apresentação pélvica traz maiores riscos perinatais do que a via abdominal, especialmente para os prematuros extremos. No entanto, tal recomendação se baseia em antigos estudos retrospectivos que, por suas características, possuem vieses que podem ter interferido nos resultados, tais como eventuais fatores agravantes, tipo de assistência obstétrica e neonatal1,17,18(C). Lee et al.17 observaram que, com a prática da cesárea, a mortalidade neonatal (até 28 dias) foi três vezes menor do que com a via vaginal em recém-nascidos com peso entre 1.250 e 1.500 g (72/1.000 cesáreas contra 233/1.000 partos vaginais). A falta de estudos prospectivos e randômicos sobre o tema pode ser explicada principalmente pela baixa incidência de apresentações pélvicas na população geral. Na apresentação pélvica, a cabeça fetal é relativamente maior do que o tronco e pode haver dificuldade de seu desprendimento. Neste caso, manobras de extração podem causar lesões traumáticas, hipoxia e sequelas neurológicas. Em virtude destas possíveis complicações, a cesárea é intuitivamente indicada para o prematuro em apresentação pélvica. Diante da recomendação da via abdominal, deve-se ficar atento aos cuidados para facilitar a extração fetal e evitar traumatismos. FEMINA | Outubro 2010 | vol 38 | nº 10 545 REB, Zugaib M Em revisão de 416 partos pélvicos submetidos à cesárea por meio de incisão segmentar transversa ou segmentocorporal, os resultados foram semelhantes19 (C). No entanto, o estudo foi observacional e os dois grupos possuíam características diferentes. Recomendamos que, na ausência de segmento inferior adequado, seja feita a incisão segmentocorporal. Em situações em que inadvertidamente se tenha praticado a incisão segmentar transversa e ocorram dificuldades para a extração fetal, deve-se recorrer à incisão complementar longitudinal em “T” invertido. Conclusões Há incerteza e controvérsia na escolha da via de parto do prematuro. Apesar de alguns estudos retrospectivos sugerirem que a cesárea é benéfica para o prematuro extremo em apresentação cefálica, não há evidências científicas consistentes de que a prática da cesárea melhore a sobrevida ou diminua a morbidade neonatal. No prematuro pélvico, embora seja recomendada a operação cesariana, não existem estudos prospectivos controlados que confirmem essa conduta. Leituras suplementares 1. Jonas HA, Lumley JM. The effect of delivery mode on neonatal mortality in very low birthweight infants born in Victoria, Australia: cesarean section is associated with increased survival in breech-presenting, but not vertex-presenting infants. Paediatric Perinat Epidemiol 1997;11(2):181-99. 2. Jonas HA, Khalid N, Schwartz SM. The relationship between caesarean section and neonatal mortality in very low birthweight infants born in Washington State, USA. Paediatric Perinat Epidemiol 1999;13(2):170-89. 3. Lee HC, Gould J. Survival advantage associated with cesarean delivery in very low birth weight vertex neonates. Obstet Gynecol 2006;107(6):97-105. 4. Malloy MH, Onstad L, Wright E, for the NICHD Neonatal Research Network. The effect of cesarean delivery on birth outcome in very low birth weight infants. Obstet Gynecol 1991;77(4):498-503. 5. Muhuri PK, MacDorman MF, Menacker F. Method of delivery and neonatal mortality among very low birth weight infants in the United States. Maternal and Child Health J 2006;10(1):47-53. 6. Riskin A, Riskin-Mashiah S, Lusky A, Reichman B. The relationship between delivery mode and mortality in very low birthweight singleton vertex-presenting infants. Br J Obstet Gynecol 2004;111(12):1365-71. 7. Worthington D, Davis LE, Grausz JP, Sobocinski K. Factors influencing survival and morbidity with very low birth weight delivery. Obstet Gynecol 1983;62(5):550-5. 8. Wylie BJ, Davidson LL, Batra M, Reed SD. Method of delivery and neonatal outcome in very low birthweight vertex-presenting fetuses. Am J Obstet Gynecol 2008;198(6):640.e1-7. 9. Malloy MH, Rhoads GG, Schramm W, Land G. Increasing cesarean section rates in very low-birth weight infants. Effect on outcome. J Am Med Assoc 1989;262(11):1475-8. 10. Riskin A, Riskin-Mashiah S, Bader D, Kugelman A, Lerner-Geva L, Boyko V. Delivery mode and severe intraventricular hemorrhage in single, very low birth weight, vertex infants. Obstet Gynecol 2008;112(1):21-8. 546 FEMINA | Outubro 2010 | vol 38 | nº 10 11. Haque KN, Hayes AM, Ahmed Z, Wilde R, Fong CY. Caesarean or vaginal delivery for preterm very low birth weight (< 1.250g) infant: experience from a district general hospital in UK. Arch Gynecol Obstet 2008;277:207-12. 12. Ment LR, Oh W, Ehrenkranz RA, Phillip AG, Duncan CC, Makuch RW. Antenatal steroids, delivery mode, and intraventricular hemorrhage in preterm infants. Am J Obstet Gynecol 1995;172(3):795-800. 13. Malloy MH. Impact of cesarean section on neonatal mortality rates among very preterm infants in the United States, 2000-2003. Pediatrics 2008;122(2):285-92. 14. Lee HC, Gould J. Survival rates and mode of delivery for vertex preterm neonates according to small or appropriate-for-gestational-age status. Pediatrics.2006;118(6):e1836. 15. Moczygemba CK, Paramsothy P, Meikle S, Kourtis AP, Barfield WD, Kuklina E, et al. Route of delivery and neonatal birth trauma. Am J Obstet Gynecol 2010;202(4):361.e1-6. 16. Malloy MH. Impact of cesarean section on intermediate and late preterm births: United States, 2000-2003. Birth 2009;36(1):27-33. 17. Lee KS, Khoshnood B, Sriram S. Relationship of cesarean delivery to lower birth weight-specific neonatal mortality in singleton breech deliveries in the United States. Obstet Gynecol 1998;92(5):769-74. 18. Wolf H, Schaap AH, Bruinse HW. Vaginal delivery compared with cesarean section in early preterm breech delivery: a comparison of long term outcome. Br J Obstet Gynaecol 1999;106(5):486-91. 19. Schutterman EB, Grimes DA. Comparative safety of the low transverse versus the low vertical uterine incision for cesarean delivery of breech infants. Obstet Gynecol 1983;61(5):593-7. 20. Wadhawan R, Vohr BR, Fanaroff AA. Does labor influence neonatal and neurodevelopmental outcomes of extremely-low-birth-weight infants who are born by cesarean delivery? Am J Obstet Gynecol 2003;189(2):501-6. 21. Skupski DW, Greenough A, Donn SM, Arabin B, Bancalari E, Vladareanu R. Delivery mode for the extremely premature fetus: a statement of the prematurity working group of the World Association of Perinatal Medicine. J Perinat Med 2009;37(6):583-6.