A ESCOLA DE CHICAGO DE SOCIOLOGIA:
PERFIL E ATUALIDADE
Mário A. Eufrasio*
escola de Chicago. – Entre 1912 e 1922 se desenvolveu-se no
Departamento de Sociologia da Universidade de Chicago uma
série de propostas de pesquisa e certo número de estudos
empíricos que passaram a ser tomados como pontos de partida e modelos
para pesquisadores dos anos seguintes. Depois de 1922 e se prolongando
pelo menos até 1934, concluiu-se um conjunto de trabalhos de pesquisa
animados pela perspectiva delineada por aquelas propostas e os primeiros
estudos que as seguiram, utilizando procedimentos, concepções e
teorizações semelhantes. O resultado foi a primeira linha de pesquisa contínua e consistente levada adiante por um grupo de pesquisadores motivados por uma orientação comum. Sua produção, por mais de uma década,
centrou-se na sociologia urbana e na sociologia do imigrante, das relações
raciais e da condição do negro na sociedade americana, mas abrangeu
ainda diversos outros temas. A esse grupo e à produção que empreendeu
nessa linha de pesquisa se faz referência como a “escola de Chicago”.
A primeira idéia a esclarecer para caracterizá-la é a de “escola”.
Como Bulmer (1984), pode-se pensar numa “escola” nas ciências sociais
como designando: (a) um grupo de contemporâneos, (b) que compartilha
de algum estilo, técnica ou conjunto de expressões simbólicas, (c) que
apresenta um alto grau de interação e (d) que se centra em torno da figura
de um líder [ou dois].
A
*
Professor Doutor do Departamento de Sociologia - FFLCH / USP.
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Na literatura da história da sociologia e da teoria sociológica diversos tratamentos têm sido dados à escola de Chicago; todavia, o mesmo
Bulmer, em 1985, numa análise comparada em que considera outras escolas de Chicago (de ciência política e de economia) e outra de antropologia, apresentou nove características típico-ideais presentes na criação e
manutenção de uma escola em ciências sociais:
1. uma figura central em torno da qual se organiza;
2. a localização numa universidade importante, bem organizada e
com boa presença na área de estudos e motivada pela comunidade local;
3. as características da cidade ou metrópole e a relação da universidade com essa cidade;
4. a personalidade dominadora da figura central da escola, para
inspirar admiração, respeito e lealdade;
5. o líder da escola deve ter uma visão intelectual clara e um impulso missionário;
6. deve haver intercâmbios intelectuais freqüentes e intensos entre
o líder e os outros membros do grupo: tal “rede” acadêmica deve
ser mais fortemente unida do que normalmente ocorre (por meio
de seminários, publicações, orientações, núcleos de estudos e
discussões etc.);
7. para desenvolver pesquisa empírica deve existir uma infra-estrutura adequada: métodos de pesquisa, boas idéias, ligações institucionais, apoio financeiro externo etc;
8. a escola persiste enquanto permanece atuante a geração de seu(s)
fundador(es);
9. deve haver abertura para idéias e influências de outros campos
e boas relações interdisciplinares.
À medida que apresenta cada uma dessas características, Bulmer
mostra como se aplica à escola de Chicago. É até agora a melhor caracterização da escola de Chicago como uma escola sociológica. Cabe, porém, acrescentar mais uma que Bulmer cita
sem dar o destaque necessário face à sua importância:
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10. deve haver um programa de pesquisa que impulsione, oriente,
proporcione instrumentos intelectuais e de trabalho de campo,
proponha metas, especifique temas e problemas e discrimine critérios de avaliação dos trabalhos desenvolvidos.
Um programa de pesquisa se desenvolve a partir de uma “prospecção”, de um
complexo de conhecimentos, problemas e instrumentos que funciona em grande
parte como um mapa provisório de quem faz uma prospecção geológica – um
mapa esquematizado com base em conhecimentos anteriores e que indica aqueles
lugares onde se acha que a busca e a pesquisa podem compensar. Cada uma das
prospecções alternativas constitui um programa de pesquisa potencial (virtual ou
possível) e cada programa de pesquisa constitui uma orientação ou tradição de
pesquisa possível, isto é, uma seqüência de empreendimentos de pesquisa governada por um programa de pesquisa comum e que se estende ao longo do tempo
[RADNITZKY, 1973, p. 388 (adapt.)].
O programa de pesquisa da escola de Chicago
É a partir dessa característica de uma escola, a de que constitui
uma tradição de pesquisa que tem um programa próprio de pesquisa que
seus integrantes buscam realizar, que se deseja abordar a escola de Chicago. Um estudo retrospectivo de seu desenvolvimento revela a presença
do conjunto dessas características distintivas de forma complexa e num
encadeamento um tanto intrincado e incomum – tem, de fato, dois programas de pesquisa e o segundo integrou três formulações que se agregam
e se completam.
O primeiro foi fruto da iniciativa e da criatividade de Thomas (1912)
que publicou o artigo “Race Psychology”. O outro, de estilo semelhante,
publicado por Park (1915) no artigo denominado “The City”, era um
programa de pesquisa em sociologia urbana numa época em que esta
ainda não recebera um nome.
Nos quinze anos entre o início da I Guerra Mundial (1914-1918) e
o início da Grande Depressão (1929-1941), a sociologia nos Estados Unidos passou por uma grande mudança: de uma fase inicial de surgimento
no fim do século XIX e difusão no ambiente acadêmico nos inícios do
século XX – ainda fortemente marcada pelo interesse nos “problemas so-
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ciais” inspirado pela ideologia da reforma da Era do Progresso e em alguma medida em participar da resolução prática desses problemas pela vocação assistencialista da formação protestante dos seus primeiros cultores
– para outra fase, na qual uma delimitação precisa de seu objeto e uma
prática científica de construção de seus conhecimentos fundindo a elaboração teórica com o tratamento da informação empírica proporcionariam
a legitimação que seu ingresso no meio universitário exigia. Pode-se dizer
que a sociologia da escola de Chicago é uma representante paradigmática
dessa mudança, seguindo as tendências do desenvolvimento da disciplina
nessa época: os esquemas teórico-conceituais deixam de ser elaborados
especulativa e aprioristicamente, para se tentar derivá-los empiricamente
(com esperança até numa construção indutiva) e, em contrapartida, em
vez de usar as informações acumuladas por assistentes sociais como base
empírica, os sociólogos passaram a entrar em contato direto com os objetos de suas pesquisas, levantando seus próprios dados em combinação
com o processo de construção de suas categorias teóricas. Visavam com
isso satisfazer a exigência de cientificidade e objetividade buscada pela
sociologia nessa fase de consolidação e busca de legitimidade acadêmica e
de solidez teórico-metodológica em face às demais disciplinas sociais.
O esclarecimento de como esse processo se realizou em Chicago
passa pela consideração de diversos itens, que não e vai detalhar aqui: a
criação do seu Departamento de Sociologia, o papel de Albion Small, a
carreira de William Thomas e a contratação de Robert Park e depois de
Ernest Burgess e pela revisão das condições histórico-sociais, institucionais – organizacionais e financeiras – e, sobretudo intelectuais que permitiram a emergência e a constituição da escola de Chicago; esta conheceu
uma liderança dupla, nas figuras de William Thomas e Robert Park, entre
1913 e 1918; daí por diante, em seu período de desenvolvimento e afirmação, até 1934, foi liderada por Robert Park e Ernest Burgess e, quando o
primeiro se aposentou, Burgess sozinho não conseguiu dar prosseguimento à escola (veja-se especialmente BULMER, 1984 e de modo mais resumido
EUFRÁSIO, 1999). Cabe neste ponto apresentar os dois programas de pesquisa que impulsionaram a escola e destacar sua originalidade e importância para o amadurecimento da disciplina, numa época em que
praticamente não havia uma teoria sociológica anterior da qual partir
quanto aos temas que abordavam, nem uma prática de pesquisa sociológica empírica estabelecida, dado que a pesquisa de campo então existente
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era empreendida, sobretudo por assistentes sociais que a herdaram da
ciência social evangélica do século XIX.
“Race Psychology”, de William Thomas (1912)
A referência no título do artigo de que traz um “ponto de vista e
questionário” parece já revelar seu caráter programático. Não se pretende
aqui uma análise e interpretação detalhada e extensa do texto, mas apenas uma consideração de seu aspecto estrutural que ressalta seu papel de
programa de pesquisa – e isso à medida que veio a ter impacto sobre a
formação e o desenvolvimento da escola de Chicago. Em síntese, Thomas
expõe sucessivamente as seções (que numera como parágrafos), que o compõem: diz Thomas que os §§ 1 a 19 trazem “o ponto de vista”, que de fato
contém o enunciado geral do “problema e o método” no § 1 (p. 715-6), o
“ponto de vista geral” no § 2 (p. 726-7) e a tematização do assunto objeto
do plano de pesquisa nos §§ 3 a 19 (p. 727-770); os “materiais e os métodos de trabalho” são enunciados no § 20 (p. 770-2) e o “questionário” no
§ 21 (p. 772-5).
Os dois primeiros parágrafos merecem uma consideração mais detalhada, pois se pode neles perceber três partes claramente discerníveis,
trazendo: (i) um enunciado do “problema”, (ii) uma indicação do “método” e (iii) a exposição do “ponto de vista geral”.
(i) O enunciado do problema (no § 1a, p. 725): em a) Thomas esclarece que é “a questão da capacidade mental” das raças (dada a situação da
imigração e a presença do Negro nos Estados Unidos). Seria
(...) importante determinar [1] como uma raça ascende de um nível para outro de
cultura, se por estimulação interna e capacidade inata ou pela aceitação e imitação
da cultura de nível superior da sociedade [de adoção]; e (...) [2] quais raças são
aptas a progredir e quais não são, e por que (id.).
Em b) Thomas elucida que se propõe
(...) também o estudo do atraso e avanço dos diferentes grupos sociais” da mesma
comunidade e da mesma composição racial. Toda comunidade contem diferentes
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níveis de população, sem se considerar a raça, e nas grandes cidades os intervalos
culturais são talvez tão amplos quanto aqueles que costumamos pensar como características das raças. De fato, o atraso por conta da raça não pode ser apropriadamente estimado fora [da situação] do atraso dentro da raça (id.).
(ii) Quanto ao método (§ 1b: 725-6): Thomas propõe “um plano para
visualizar e coletar materiais” (plano que o próprio Thomas diz que “já
vinha usando com relação a algumas investigações entre os camponeses da
Europa e entre os negros”), que ele concebe “não como uma contribuição
para a teoria, mas como um instrumento [tool]”. Crê que muitas pessoas,
“não estudiosas da profissão, estão em posição de fazer valiosos registros
sobre essas questões”; elas bem “poderiam fazer uso de um esquema [como
esse] contendo algumas formulações de ponto de vista e sugestões para a
seleção e organização dos materiais”. Cabe aqui notar que os termos “ponto de vista” e “sugestões” constarão do artigo de Park de 1915 e que Thomas
esclarece melhor o que tem em mente pelo termo “materiais” na parte final
do artigo.
O autor tenta, então, proporcionar uma “apresentação do ‘estado
do conhecimento’ no campo da psicologia racial e social” (§ 1b, 726), por
meio de um “schedule” [ou seja, tabela, listagem ou roteiro] que “é ilustrado com exemplos de diversas fontes”, que devem ser vistos como “amostras do material que pode ser reunido sob dados tópicos” (id.). Valiosa é a
observação final aqui de que “o termo ‘raça’ não é sempre usado num
sentido exato. Hoje se reconhece que não há raças puras na Europa”
(ibid.).
(iii) O “ponto de vista geral” (§ 2, p. 726): Thomas adverte que sua
ênfase é mais “nos aspectos sociais do que nos biológicos e econômicos do
problema” (726); assim, “sem ignorar o determinismo econômico [isto é,
sua causalidade] ou negar a importância de características raciais específicas”, parte da suposição de que: (1) “a variação individual é de mais importância do que a diferença racial”, e que (2) “os principais fatores na
mudança social são: a atenção, o interesse, a estimulação, a imitação, a
diferenciação ocupacional, a atitude mental e a acessibilidade a oportunidades e a cópias” (§ 726). Como endosso a essas perspectivas, transcreve
(às págs. 726-7) dois trechos de antropólogos da época, um de Boas (1901)
e outro de Luschan (1911).
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Em seguida, Thomas expõe no artigo seções sucessivamente
dedicadas aos temas: § 3: faculdades mentais (727-32), § 4: atenção (73234), § 5: hábito (734-736), § 6: crises (736-740, § 7: imitação (740-744), § 8:
isolamento (744-745), § 9: preconceito racial (745-747), § 10: determinismo
econômico (747-748), § 11: classes sociais (748-750), § 12: as ocupações
(750-752), § 13: estado do conhecimento (752-753), § 14: família, comunidade e gang (753-756), § 15: associações e clubes (756-757), § 16: arte e
divertimentos [play] (757-760), § 17: magia e religião (760-762), § 18: a
posição a mulher (763-766) e § 19: as idéias morais (766-770). Essas seções
constituem 90% do conteúdo do artigo e uma análise conceitual mais
detalhada pode revelar a hierarquia dos termos e proposições que constituem o esquema teórico nelas presente, que está centrado nas concepções
de “atenção, hábito e crise”.
Thomas expõe, no § 20, esclarecimentos sobre os “materiais e métodos de trabalho” (770-772) e no § 21 apresenta um “questionário” (772-775).
Esclarece então que “os materiais para a interpretação da vida mental de
uma raça podem ser reunidos a partir de três princípios – da observação
pessoal, de registros não planejados e de registros planejados” (§ 20, 770).
No caso dos materiais reunidos a partir da observação pessoal (771),
assinala que “é desejável viver em meio ao grupo, de preferência numa
família, e gradualmente chegar ao contexto da vida do grupo” (771) – e se
pode perceber aí o insight que o levou a propor a observação participante
na pesquisa sociológica. Aqui, “o erro mais comum é aceitar casos particulares como gerais”; mas é preciso também “desconfiar dos casos espantosos”, que podem ser tão surpreendentes para as pessoas com quem
ocorrem como para o investigador, que, se os considerar fora do comum,
deve registrá-los como tais (id.). E podem surgir equívocos “em ocasiões
de comunicação incompleta” e de “não se entender as condições particulares por trás de uma ocorrência” (id.). Thomas adverte para que “as entrevistas podem ser consideradas como parte de uma observação pessoal,
mas o habitante comum tem um interesse singular em enganar quem é de
fora e de atribuir uma face diferente às coisas. Em geral, as entrevistas
podem ser tratadas como um corpo de erros a ser usado para fins de
comparação em futuras observações” (id.). Mas ressalva que certos agentes na sociedade moderna (como assistentes sociais, juízes, professores,
médicos) “estão em posição de fornecer dados confiáveis e com freqüência
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estão interessados em fazê-lo” (id.), pelo que seu depoimento pode ser
valioso.
Os registros planejados são representados pela “história, a etnologia
e o folclore (...), [embora decerto] freqüentemente não centrados em nosso ponto de vista” (771).
Os registros não planejados são:
(...) as cartas, diários, jornais, registros de tribunais, de igrejas e de clubes, os
sermões, as palestras, os currículos escolares e mesmo os folhetos e almanaques.
As cartas, por exemplo, do imigrante para as pessoas de sua pátria, e os destas
para ele, revelam a vida e a mente de uma maneira muito íntima (771-2).
Se a mitologia é mais confiável que a história ao representar um
estado de consciência, isso também é verdadeiro quanto ao jornal: “se
dois ou mais artigos representam interesses e atitudes diferentes dentro
do grupo, tanto melhor” (772).
Thomas então recomenda ao investigador que
(...) faça seus registros por casos tão afastados quanto possível, ou seja, dê exemplos mais do que descrições gerais. Cite suas fontes literalmente em vez de parafraseálas. Assegure declarações escritas em vez de entrevistas, se possível. Sempre enuncie a fonte de sua informação e no caso de a fonte ser matéria impressa use extremo cuidado ao registrar a referência. Faça e reúna fotografias (772).
Por fim, no § 21, Thomas apresenta um longo “questionário”, com
cinqüenta e oito perguntas, em alguns casos acompanhados de pequenos
esclarecimentos, comentários ou indicações que auxiliam o estudioso em
seu trabalho de campo. De fato, em pelo menos oito casos não apresenta
perguntas, mas enuncia tarefas a serem realizadas no processo de pesquisa
empírica – e nisso está ressaltado o caráter e o propósito do questionário:
seria como um “mapeamento” preliminar de problemas a serem abordados, implicando uma indicação – ou prospecção – de tarefas para a pesquisa empírica, única forma possível de respondê-las.
Cabe notar que no decorrer da tematização (§§ 3 a 19), além da
especificação da seqüência de temas, ocorre a inclusão de diversos elementos do esquema teórico-conceitual que o autor propõe. De certa for-
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ma, pode-se dizer que de início esse esquema se centra nas concepções
que constituem o núcleo do “ponto de vista”: atenção, hábitos e crise
(veja-se Sourcebook for Social Origins: 17-18 e 858, por exemplo), que por
sua vez remetem a detalhamentos, especificações e desdobramentos
conceituais como o de “imitação e inibição” (743). Mas já se pode surpreender em operação a concepção do ciclo “organização-desorganizaçãoreorganização” que seria mais amplamente utilizado em The Polish Peasant,
por exemplo, no § 5, p. 735, sugerida originalmente em Sourcebook: 21.
Essas formulações operaram como pontos de partida ou de referências
programáticas para estudos posteriores de Thomas sobre a condição do imigrante (The Polish Peasant, 1918-20, com Znaniecki – cuja “Nota Metodológica” introdutória, com suas prospecções adicionais, é um dos importantes
textos metodológicos da história da sociologia; Old World Traits Transplanted,
1921, com Park e Miller) e sobre os processos de socialização na sociedade
moderna (The Unadjusted Girl, 1923; Child in América, 1927, com Dorothy
S. Thomas). Orientandos seus (Edward Reuter, Kimball Young) ou pesquisadores associados, como Henry P. Fairchild, e outros associados a Park e Burgess
na década de 1920 (Ching Chao Wu, Louis Wirth, Pauline Young, Ernest
Mowrer) assumiram parte dos temas e problemas desse programa de pesquisa
em seus trabalhos acadêmicos no departamento de sociologia da Universidade de Chicago – o que veio a constituir uma face efetiva do que cabe entender como a escola de Chicago.
“The City”, de Robert Park (1915)
A menção no título de que traz “sugestões para a investigação do
comportamento humano” destaca ainda mais que o de Thomas seu caráter programático: se no caso daquele a “race psychology” era um sub-campo da “social psychology” – e quanto a isso The Polish Peasant não deixará
nenhuma dúvida – aqui o “comportamento humano” dá a idéia de uma
“psicologia social urbana”; há aqui, porém, uma dupla caracterização,
pois logo de início a cidade é considerada como uma instituição (nos
termos de Folkways, de William Sumner), uma totalidade associando um
“conceito” ou significado cultural e uma estrutura (física) – e aí está a
origem da dupla dimensão, natural e cultural (que Park chama de ordem
moral), da cidade na sociologia urbana até os nossos dias – resultante de
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um processo de desenvolvimento que incorpora “os trabalhos de sucessivas gerações” (p. 577-8). Deve-se lembrar que “city” é a cidade grande, não
a “town”, cidade média ou pequena: é a sede da sociedade moderna; ao
republicar o artigo em 1925, Park falaria no “meio urbano”, acentuando a
oposição com o meio rural, onde ocorre a sociedade tradicional de grupo
primário, no dizer de Charles Cooley.
Já se teve ocasião de mostrar a natureza programática desse artigo
(EUFRASIO, 1999, p. 48-56), ressaltando sua importância para o desenvolvimento da teoria da estrutura urbana e do programa de estudo da sociologia urbana; por isso far-se-á aqui uma consideração mais breve e bastante
seletiva; o leitor interessado encontrará na seção “a massive reseach
program: The City” do cap. 2 (p. 67-80) de Lindner (1996) um comentário
preciso e pertinente desse texto.
A cada um dos quatro grupos de elementos que compõem a análise
da cidade corresponde uma seção do texto. Assim, em “O Plano da Cidade e a Organização Local”, Park se centra na organização física e introduz
a idéia de estrutura urbana, que se tornaria no artigo de Burgess de 1922
talvez o conceito mais central da sociologia urbana de Chicago. Suas três
sub-seções correspondem aos sub-temas a serem explorados sob este título: “o plano da cidade” (p. 578-80), que “estabelece a distribuição e os
limites (...) a localização e o caráter das construções da cidade e impõe
uma organização ordenada” a elas; “a vizinhança” (580-2), “uma localidade com sentimentos, tradições e uma história dela própria” (579), [é] “a
menor unidade local da organização social e política da cidade” (580); e
“as colônias e áreas segregadas” (582-4), verdadeiras “cidades dentro das
cidades”. Já na sub-seção sobre as vizinhanças cinco questões são listadas
– e cabe salientar seu papel programático: só podem ser respondidas por
pesquisa empírica – e o objetivo é permitir identificar a organização espacial física e cultural das áreas da cidade; esse procedimento de indicação
de questões se repete ao fim da sub-seção seguinte e nas demais até o fim
do artigo. Percebe-se o modelo em que a composição do artigo se baseou:
o texto de Thomas de 1912 que se comentou acima – e se sabe que o
artigo foi escrito atendendo a um pedido de Thomas, interessado na permanência de Park, que tão boa impressão causara ao ministrar como
convidado uma disciplina sobre “O Negro na América”, em 1913, no
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A segunda seção, “A Organização Industrial [isto é, econômica] e a
Ordem Moral”, compõe-se das sub-seções: “as classes vocacionais e os
tipos vocacionais” (584-7), “as notícias e a mobilidade do grupo social”
(587-91) e “a bolsa de valores e a multidão” (591-3) que destacam o potencial de diversidade e de convívio em meio às diferenças sócio-culturais
que a cidade oferece e como os antecedentes, as aptidões e as “relações
impessoais definidas pelo dinheiro” põem os indivíduos em competição e
provocam a mobilidade da população – e esta poderia ser medida pelo
número e variedade de estímulos a que respondem – o que revela uma
inspiração em Georg Simmel que estaria presente em toda a obra de Park.
A terceira seção, sobre “As Relações Secundárias e o Controle Social”
revelam outras duas influências nesse enorme empreendimento que Park
propõe: Charles Cooley (citado) e Edward Ross (não citado, mas inequivocamente presente nas preocupações dos sociólogos da época). Nas subseções “a igreja, a escola e a família” (594-5), “as crises e os tribunais”
(595-600), em que se surpreende o conceito de “crise” incorporado de
Thomas, “o vício comercializado e o tráfico de bebidas alcoólicas” (600-1)
(que revela o impacto de uma situação transitória extrema da época), “a
política dos partidos e a publicidade” (601-04), em que Park trata do paradoxo que identifica de condições próximas da sociedade primitiva em
meio à plena vida moderna na grande cidade, e “a propaganda e o controle social” (604-7), em que estão indicados claramente os pontos de partida de uma sociologia da comunicação na sociedade moderna que mais
tarde desenvolveria (sobretudo em The Immigrant Press and Its Control,
1922) – e à qual associaria orientandos (como Frederick Detweiller e Helen
Hughes). A quarta seção, sobre “O Temperamento e o Meio Urbano”,
trata da interação entre os tipos diferentes de personalidades na cidade.
Junto com “a mobilização do homem individual” (607-10), “a região moral” (610-11), que contém uma proposição original e importante de área
sócio-cultural urbana, e “o temperamento e o contágio social” (611-2) completa-se o quadro de uma abordagem da psicologia social do citadino
moderno. Essas idéias e concepções prévias apresentadas, propostas, conceitos e questões indicadas, receberam sucessivamente dois acréscimos: a
concepção de “ecologia humana”, que Park desenvolveu a partir de 1918
e se tornou uma marca distintiva da sociologia da escola de Chicago ao
longo da década seguinte, foi pela primeira vez exposta em alguns capítulos de Introduction to the Science of Sociology, tratado didático publicado
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por Park e Burgess em 1921, e a teoria “ecológica” da estrutura urbana em
círculos concêntricos proposta em 1922 por Ernest Burgess no artigo “O
Crescimento da Cidade”, que só foi amplamente divulgado em 1925 na
coletânea The City – verdadeiro manifesto da sociologia urbana que então progredia em Chicago. Com isso se criaram as condições para desenvolver o projeto de pesquisa “A Cidade como Laboratório Social”, que a
partir de 1923 se tornou multidisciplinar e institucionalizado, recebendo
verbas decisivas da Laura S. Rockefeller Memorial, ramo da Fundação
Rockefeller para as ciências sociais que então se criava. A partir dessas
formulações, tornaram-se viáveis numerosos temas identificando possibilidades de projetos específicos de pesquisa empírica; assim, nas duas décadas seguintes aproximadamente cinqüenta dissertações e teses acadêmicas
foram completadas (das quais aproximadamente trinta foram publicadas
como livros), num caso singular de pesquisas coordenadas e sob orientação compartilhada, com o que se desenvolveu a linha de pesquisa em
sociologia urbana que constituiu o eixo central da pesquisa da escola de
Chicago, cujas aquisições e elaborações marcam até hoje essa sub-disciplina. Tanto em Bulmer (1984) como em Eufrasio (1999) o leitor interessado
poderá encontrar uma enumeração de muitos títulos que, a partir da
publicação de The Hobo, de Nels Anderson, em 1923, até meados da
década de 1930, compõem a produção de estudos sociológicos que constituíram a escola de Chicago na sociologia americana.
Presença atual de contribuições devidas à escola de Chicago
A presença atual de contribuições devidas à escola de Chicago pode
ser percebida sobretudo no uso que se faz em estudos urbanos de sociologia, e também de antropologia e geografia urbanas e de urbanismo, de
termos que naquela escola, na década de 1920, foram cunhados ou pela
primeira vez usados como conceitos sociológicos: “C.B.D.” (como a área
comercial central), “zona de transição”, “área de deterioração”, “zona de
commuters” (como os moradores de bairros ricos exclusivos na periferia
urbana, diariamente “pendulares” entre suas mansões e o centro da cidade), “centros comerciais secundários”, “distrito industrial” e vários outros, por pesquisadores que muitas vezes desconhecem a origem desses
termos. Tal desconhecimento das origens e dos esquemas teórico-
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conceituais nos quais adquiriram significado próprio chegou a levar muitas vezes a equívocos não só quanto ao significado conceitual preciso
desses termos, mas também quanto ao seu uso – já que não são noções
meramente empíricas ou intuitivas. Numa breve indicação, podem-se assinalar casos de incorporação de instrumentos intelectuais, de interpretação teórica ou de análise empírica em contextos temáticos e de pesquisa
recentes; trata-se apenas de alguns exemplos, que nem de longe representam um levantamento exaustivo – e sem ressaltar as aplicações de técnicas e procedimentos de pesquisa empírica que foram utilizados com sucesso
por pesquisadores de Chicago, certamente hoje em dia muito aprimorados e redimensionados, mas na época às vezes os únicos disponíveis, como
o uso pioneiro de documentos pessoais e da história de vida, da entrevista, da observação participante etc.
Os estudos de iniciativas empresariais, sobretudo de natureza imobiliária, em áreas urbanas que redundam em impactos sobre a governança
urbana e a definição e condução de políticas publicas nas cidades sob o
impacto da globalização e muitas vezes de perspectivas neoliberais, têm
seus antecedentes nos estudos das “máquinas políticas” e suas formas de
atuação na grande cidade desde antes da II Guerra Mundial pela escola
de Chicago ou sob a inspiração dela. Nesses estudos ainda devem ser
incluídos aqueles de tentativas de avaliação dos processos de descentralização e redefinição dos centros das grandes cidades, incidentes sobre a
formação e a reestruturação de metrópoles e cidades globais – e em especial de esforços coordenados de conduzir a uma revitalização das áreas
centrais dessas formações urbanas.
Também os estudos dos processos recentes de verticalização e de
enobrecimento (ou de gentrification) em áreas de renovação urbana para a
classe média alta ou uma elite econômica desde há três décadas acompanham novas feições internas da cidade contemporânea; na maior parte
dos casos tais análises partem de retomadas e desdobramentos teóricos de
processos mais simples e lineares inicialmente tratados por pesquisadores
de Chicago. Um pequeno exemplo, que ademais mostra como é equivocada a idéia de que a escola de Chicago é uma tradição sociológica
descritivista ou sociográfica (e também a-teórica e só preocupada com
técnicas de pesquisa qualitativa): algumas discussões surgidas a respeito
desses processos pretendem que sua dinâmica desmente um pressuposto
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teórico básico da mudança espacial na cidade, que é o de que a mudança
em cada área se dá por “downgrade” ou rebaixamento – como no “filtering
down”, ou filtração descendente, de uma área residencial de alta renda
que se transfere mais para a periferia em terrenos livres e é reocupada por
uma classe média alta ou média, em seguida – quando o enobrecimento
(ou “gentrification”) que se observa desde a década de 1960 é justamente
um “upgrade” sócio-econômico, a elevação de uma área deteriorada de
cortiços para residencial de classe média ou média alta: o que está em jogo
é uma tese que vem da escola de Chicago, introduzida por Burgess e mais
tarde reforçada por Hoyt, e data de oitenta e quatro anos! – é bem verdade que na escola de Chicago ela não era defendida como um dogma
inatacável: a história da ciência é mais complexa do que supõem certas
esquematizações simplificadoras e rígidas que se encontram muitas vezes.
Os estudos dos “guetos”, entendidos como áreas segregadas de populações marginalizadas ou excluídas no contexto das grandes cidades,
mais centrais ou mais periféricas, descendem em linha direta de alguns
proeminentes estudos urbanos da escola de Chicago – a um dos quais,
inclusive, devem seu nome.
No decorrer desta última década houve diversos esforços no sentido de dar conta da enorme dimensão que a crescente violência, delinqüência e criminalidade vêm assumindo na grande cidade em nossos dias.
Parte importante dessas análises com freqüência indica as origens históricas das abordagens que desenvolvem numa referência explícita aos estudos desses temas empreendidos por sociólogos formados na orientação de
Chicago; não só buscam reabilitar o que chamam de uma ecologia urbana da escola de Chicago, mas chegam mesmo a falar numa “escola
criminológica” de Chicago, em original consideração retrospectiva – vejase a propósito a série de seis títulos de estudos integrantes da escola de
Chicago já republicados na série The Chicago School of Criminology, 19141945 (Editor: Piers Beirne, 2005) pela Editora Routledge de Londres e
trabalhos como o de Davi Tangerino (Crime e Cidade: Violência Urbana e
a Escola de Chicago, Lúmen Juris, Rio de Janeiro, 2007).
Fato singular ainda é o representado pelos estudos sociológicos dos
imigrantes na sociedade moderna: as categorias teóricas com que foram
conduzidos por William Thomas e por Robert Park na escola de Chicago
desde 1912 até meados dos anos 30 – apesar da tentativa de novos aportes
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33º Encontro Nacional do Ceru, 2006
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com a concepção do “homem marginal”, introduzida em 1928 por Park –
foram pouco renovadas e recentemente na Europa, quando o problema
voltou a ganhar importância, se presencia uma retomada pouco revigorada daquelas mesmas categorias devidas à escola de Chicago, apesar das
mais de seis décadas decorridas.
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