Título:
O
RESGATE
DA HISTÓRIA
DE
VIDA E
DE
LUTA DOS
TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA
Área temática: Educação De Jovens E Adultos E Movimentos Sociais
Autores: SÔNIA FÁTIMA SCHWENDLER (1),
ANA GILKA DUARTE
CARNEIRO (2), CLOTILDE ALBERICI (3), JEFFERSON SALLES (3) e
SONIA REGINA LOURENÇO (3)
Instituição: Universidade Federal Do Paraná
Introdução
Os assentamentos rurais para fins de Reforma Agrária constituem
fenômenos sociais que remontam ao passado colonial e à velha estrutura
agrária brasileira. Revelam de forma explícita, as contradições de uma
sociedade estruturada no sistema de economia capitalista. O Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) é um agente social e político que dá
visibilidade à estrutura desta sociedade, na qual as relações sociais são
estruturas construídas a partir do antagonismo existente entre as categorias
capital e trabalho, que são, por assim dizer, a mola propulsora do capitalismo.
Os movimentos sociais são, portanto, oriundos da luta de classes que se
desenrola nessa sociedade. O meio rural brasileiro é um espaço social e
político que se caracteriza pelo manifesto das expressões das relações de
força e de poder. Nestes espaços, notar-se-á como se desenrolam as relações
entre campesinato, latifundiários e o Estado, ou seja, a luta pela terra de ambos
os agentes sociais, cada um defendendo seus interesses de classe, disputando
a legitimidade da função social da terra.
Foi no Projeto de Extensão Exercitando a Cidadania no Campo: um
olhar e um compromisso multidisciplinar em área de ocupação do Movimento
dos Trabalhadores Rurais Sem Terra que o presente trabalho se originou,
desenvolvendo-se numa ocupação do MST, a Fazenda São Joaquim, que a
partir de agosto/98 constituiu-se em Assentamento de Reforma Agrária. No
Assentamento São Joaquim, situado no município de Teixeira Soares - PR, à
157 Km de Curitiba, vivem 96 famílias numa área de 2.835 hectares. Através
de um planejamento participativo entre universidade e comunidade, foram
levantadas as demandas sociais da comunidade. Neste processo, surgiu a
proposta de realizar a reconstituição da história dos assentados e do
Assentamento. A partir desta proposição, iniciou-se o projeto de pesquisa
intitulado A Luta Pela Terra, A Luta Pela Vida: uma história vivida e
reconstruída pelos trabalhadores rurais sem terra (4).
Dessa forma, a inserção na comunidade através da extensão e da
vivência no seu cotidiano e nos seus espaços de luta, bem como a reflexão
sobre esta realidade a partir de referenciais teórico-metodológicos voltados
para compreensão e o trabalho de pesquisa e extensão com movimentos
sociais,
possibilitou
a
definição
dessa
pesquisa
e
sua
abordagem
metodológica, num grupo que procurou realizar uma reflexão interdisciplinar.
A Luta Pela Terra e a Conquista de Assentamentos
A luta pela terra no Brasil tem uma longa história e é marcada por
momentos mais intensos de resistência, de organização dos trabalhadores
rurais e por momentos de recuos. Contudo, é principalmente nas últimas
décadas que encontramos maior resistência frente ao processo de exclusão
social, maior organização e luta dos trabalhadores a partir de diversos fatores
que se entrecruzam na história. Segundo Grzybowski (5), a quase totalidade
dos movimentos sociais no campo surgiu como resistência a um processo
econômico e político que provocou a rápida modernização da agricultura.
O projeto de modernização conservadora adotado pelos governos
militares, produziu uma profunda alteração na estrutura agrária brasileira, com
privilegiamento de uma agricultura empresarial, que demandava insumos e
máquinas modernas, e acima de tudo, uma forte concentração da terra. Além
disso, a construção de hidrelétricas no país, como campo de investimento do
capital financeiro-industrial nacional e internacional, gerou a desapropriação e
expulsão de milhares de trabalhadores de suas terras. Aliado ao contexto de
expropriação dos trabalhadores de seus meios de produção, a crise política do
regime militar após 74 criou condições para que os setores populares
pudessem se organizar na legitimidade e defender seus interesses. Neste
cenário, as Comunidades Eclesiais de Base e a Comissão Pastoral da Terra,
1
constituem-se nos grandes mediadores da organização do MST, bem como na
renovação do sindicalismo, o qual se torna fundamental na luta pela terra (6).
É neste contexto que surgiu em 1984, o Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra (MST), quando em vários estados os agricultores sem terra
se reuniram para organizar-se de forma coletiva e lutarem juntos pela conquista
da terra. Esteve portanto, na gênese deste movimento social, por um lado, o
agravamento e as mudanças ocorridas nas condições de vida dos
trabalhadores, e por outro a mudança na forma de conceberem a sua relação
com a terra, reconhecendo o seu direito à terra e o direito de se organizarem e
lutarem por ela.
Dessa forma, a ocupação de terras improdutivas se constitui numa
estratégia de luta pela terra e de resistência ao processo expropriação e
exploração do trabalho. É com esta luta que trabalhadores estão entrando na
terra, conquistando o chão, fazendo a Reforma Agrária.
“Na luta pela terra, o espaço de luta e resistência é construído quando o
Movimento traz a público a sua situação ao ocupar uma propriedade – um
latifúndio. Conquistar a terra, uma fração do território, e se territorializar é um
modo eficaz de reação e de demonstração da sua forma de organização” (7).
Este espaço de luta e resistência possibilita que os trabalhadores
possam sobreviver enquanto sujeitos históricos. É também neste espaço que
carregam
suas
experiências,
transformando-as
e
conquistando
novos
territórios, territorializando a própria luta pela terra. É a partir do processo de
espacialização da luta pela terra que o MST conquistou os assentamentos e se
territorializou, organizando-se em 22 estados brasileiros.
Os assentamentos de Reforma Agrária – territórios conquistados através
do processo de ocupação de terras - são culturalmente diferenciados e
historicizados. São constituídos por atores sociais com diferentes trajetórias de
vida e identidades sociais, mas com uma história que os identifica, perpassada
pelas distintas formas de exclusão social, política, econômica, cultural. É a
história de mulheres, homens, negros, brancos, índios e mulatos, que enquanto
bóias frias, filhos de pequenos produtores, arrendatários, excluídos das
2
condições que lhes permitem a reprodução de sua existência material e
simbólica, do seu direito de cidadãos se unem e ocupam um pedaço de terra.
Neste sentido, os assentamentos são pensados como “processos
sociais complexos”. Compreendê-los a partir da história de seus sujeitos – os
assentados – implica em “reconhecer a diferenciação de suas origens,
trajetórias de vida e discutir a perspectiva de existir uma história social comum
em suas andanças, sustentada pelo vínculo representado pela relação
mediata/imediata com a terra” (8).
Os
assentamentos
constituem-se
enquanto
espaços
recriados
socialmente pelos trabalhadores rurais sem terra, após vivenciarem a luta pela
terra. É a construção/reconstrução de um espaço social, do cotidiano, a partir
dos referenciais que cada trabalhador assentado traz em sua história de vida e
dos referenciais coletivos reelaborados na luta pela conquista da terra (9).
Neste sentido, o processo de luta pela terra pode ser visto como um
espaço fecundo de recriação sócio-cultural, onde as práticas cotidianas vividas
pelo campesinato são reelaboradas, constituindo-se em espaços de produção
de saberes e de uma participação mais orgânica. em função das condições
objetivas e subjetivas que as lutas engendram (10).
Abordagem Metodológica: História e Memória
“A história é importante como memória coletiva do passado, consciência
crítica do presente e premissa da ação futura. Sem memória coletiva, não há
projetos nem sujeitos da história" (11).
Registrar a história e o significado da luta pela terra, bem como as
representações culturais a partir da memória de quem as vivenciou, tornandoas visíveis, documentadas e sistematizadas torna-se fundamental, para que
estes trabalhadores possam vir a se reconhecerem como sujeitos da história,
produtores de cultura e de conhecimento.
Portanto, compreender a luta pela terra a partir da história vivida pelos
seus sujeitos, implica em interagir através de um processo investigativoparticipativo com a própria comunidade assentada. Nesta perspectiva,
adotamos a abordagem metodológica de pesquisa-ação, onde a comunidade
3
participa como sujeito na coleta e análise de sua realidade, visando a
problematização e a transformação de seu contexto social.
A pesquisa-ação constitui-se numa estratégia metodológica da pesquisa
social, na qual há uma ampla interação entre os pesquisadores e as pessoas
envolvidas no processo, onde os problemas de investigação surgem da
situação social e são solucionados através de ações concretas a partir de uma
dinâmica que possibilite a troca, a apropriação e a reelaboração de saberes
dos sujeitos envolvidos (12).
Partindo dessa ótica, o resgate da história de luta pela terra vivida pelos
assentados da Fazenda São Joaquim constitui-se como essencial enquanto
registro de uma história contada pelos excluídos da sociedade e da história.
Dessa forma, os pesquisadores e a população assentada constituíram-se como
protagonistas neste processo, onde ambos participaram em um "projeto
comum de investigação e ao mesmo tempo, um processo educativo, produzido
dentro da ação” (13).
Assim, buscou-se possibilitar que o processo de pesquisa-ação se
configurasse num espaço educativo onde “... as próprias camadas populares
desenvolvam (expressem, critiquem, enriqueçam, reformulam, valorizem)
coletivamente o seu conhecimento, as suas formas de apreender e explicar os
acontecimentos da vida social” (14).
Na mesma perspectiva, Paulo Freire nos alerta que num trabalho com as
camadas populares precisamos ler a leitura do mundo que os grupos com que
se trabalha fazem do seu próprio contexto e do maior onde aquele se insere.
Precisamos
considerar,
conhecer
o
saber
construído/reconstruído
na
experiência feita (15).
Para compreender melhor a experiência vivida na luta pela terra e a
leitura que os trabalhadores sem terra fazem da mesma, buscou-se reconstituir
e documentar as suas trajetórias sociais através da técnica de história de vida,
que permite estudar o fato social de seu interior, permitindo-nos conhecermos a
vida do indivíduo nas sua várias relações tecidas pela coletividade no espaço e
tempo históricos. A história de vida revela uma relação singular e ao mesmo
tempo universal entre as pessoas que partilham de um mesmo espaço social,
sendo, portanto, uma técnica que permite captar o que sucede na encruzilhada
da vida individual com o social. A história de vida é "... o relato de um narrador
4
sobre sua existência através do tempo, tentando reconstruir os acontecimentos
que vivenciou e transmitir a experiência que adquiriu" (16).
O resgate da história vivida e (re)significada pelos moradores da São
Joaquim constitui-se enquanto meio de documentação da luta pela terra a partir
do olhar de quem a vivenciou. Nesta perspectiva, comunidade e universidade
definiram a partir de um planejamento participativo, o registro da história de luta
dos moradores assentados, articulado à outras ações, como parte de um
projeto de pesquisa e extensão. Dessa forma, a equipe pesquisadora já
interagia um longo tempo com a comunidade até que as histórias de vida
fossem pesquisadas e reconstituídas, o que possibilitou com que os moradores
se sentissem na liberdade de expressarem suas visões de mundo e contarem
suas histórias. Essa interação tornou possível o enriquecimento do processo
investigativo, uma vez que muito da história e da realidade do assentamento já
se conhecia até o momento do resgate propriamente dito, e se tinha elementos
de análise construídos a partir de uma vivência concreta. Além disso, foram
realizadas visitas à 65% das famílias da comunidade, a fim de conhecer melhor
sua cultura, suas necessidades, demandas e seu cotidiano, o que tornou
possível um trabalho de melhor aproximação e vivência de uma metodologia
participativa, como nos propomos.
Para reconstruir a trajetória vivida pelo grupo investigado, seu
movimento histórico no contexto social mais amplo, foram adotados dois
critérios amostrais qualitativos: o da diversificação da amostra e o da saturação
(17). O primeiro, busca a identificação de pessoas que possam, de uma forma
bastante ampla, reconstruir e analisar a totalidade da trajetória e de temas,
juízos, estratégias, fatos vividos pelo grupo no processo de luta pela terra. O
segundo, possibilita ao pesquisador, saber quando é necessário parar com a
investigação, pois a partir de um certo número de informações, as posteriores
pouco acrescentam, pois se repetem.
A diversidade de informantes é fundamental para captar as diferentes
visões presentes em cada depoimento, o que permite enriquecer a análise com
informantes de diferentes experiências como protagonistas do mesmo grupo
social. Dessa forma, foram escolhidos diferentes atores sociais para captarem
melhor a totalidade social, pois o lugar que cada um ocupa no processo de
produção social de sua existência, nas relações que estabelece no cotidiano
5
vivido, refletem-se na sua visão de mundo, na maneira de se perceber e de
perceber o seu grupo. Neste sentido, foram recolhidos relatos de pessoas que
diferem
quanto
à: gênero,
descendência
étnica,
idade, escolaridade,
experiência de trabalho e relação com a terra anterior à ocupação, grau e
intensidade de inserção na luta pela terra.
Para captar a leitura que os assentados (as) fizeram da realidade e
trajetória vivida tornou-se necessário uma relação dialógica entre pesquisado e
pesquisador, onde o saber escutar era fundamental para que novas
indagações
pudessem
ser
colocadas
sobre
as
questões
a
serem
aprofundadas, dentro do relato construído pelo entrevistado, e além disto,
saber escutar o relato "oculto" na sua trajetória de vida, ou seja, aquilo que não
se queria dizer ou o que se dizia de outra forma (18).
Para que interação entre os sujeitos-assentados e os sujeitospesquisadores se constituísse o processo de investigação participativa era
essencial. A metodologia de pesquisa-ação participativa, permitiu ainda, que o
pesquisador vivenciasse e observasse as experiências cotidianas vividas pelos
atores sociais, o que lhe possibilita a apreensão do "significado que eles
atribuem à realidade que os cerca e às suas próprias ações” (19).
Desta maneira, buscou-se vivenciar todos os espaços possíveis, tais
como; almoçar junto com a comunidade ou na casa das famílias, dormir nas
suas casas, participar também de espaços criados pela mesma, como
assembléias, festas, cultos religiosos e atividades de luta vinculadas ao
Movimento dos Trabalhadores Sem terra, como as marchas.
Esta vivência com a comunidade possibilitou o acesso às relações
sociais desenroladas no cotidiano, este entendido como substância da vida
social. Na ótica de Agnes Heller, a vida cotidiana é a vida de todo homem: " (...)
nessa estrutura colocam-se em funcionamento todos os sentidos, as
capacidades intelectuais, as idéias, a ideologia na qual o homem da
cotidianidade é atuante, fruidor, receptivo e ativo." A autora amplia esta noção
dizendo que a vida cotidiana possui uma organicidade: " ... a organização do
trabalho e da vida privada, os lazeres, o descanso, a atividade social
sistematizada" (20).
Nesta estrutura, a vida cotidiana se configura pela heterogeneidade em
relação ao conteúdo, a significação e a ordem hierárquica passível de ser
6
modificada de acordo com as diferentes estruturas econômico-sociais. O
entendimento desse grupo social, através da análise das trajetórias de vida foi
um elemento chave para traduzir-se e compreender sua organização
sociocultural.
A memória também foi tomada como um elemento de grande
significação na pesquisa, uma vez que é compreendida como um conjunto de
experiências vividas e lembradas ainda que de forma fragmentária, sendo,
portanto, o resultado de práticas individuais e coletivas. Walter Benjamin tece
as seguintes considerações a respeito das reminiscências do passado: "... o
que foi é finito, limitado, mas o que é lembrado não tem limites, é infinito. A
rememoração é reconstrução, resignificação permanente (...), o passado
comporta elementos inacabados e que nós somos encarregados de atualizalos” (21).
Esta possibilidade de lançar um olhar retrospectivo ao passado permite
vislumbrar e presentificar a identidade social e, através da memória do outro,
pode-se compreendê- lo dentro de seu contexto social e histórico. Sempre
lembrando da indissociabilidade entre memória coletiva e memória individual,
isto é, a primeira só existe a partir da existência da segunda, sendo o contrário
também verdadeiro.
A vivência com a comunidade, a partir de um trabalho de pesquisa e
extensão, permitiu com que a memória expressa pelos trabalhadores sem terra
fosse muito mais significativa, servindo de referência para o entendimento do
conjunto de informações recolhidas.
Foram realizadas oficinas visando a devolução à comunidade, no
sentido de possibilitar uma releitura de sua realidade e a compreensão desta,
num contexto histórico-social mais amplo. Estas oficinas se constituíram num
momento bastante fecundo de identificação e análise da realidade e dos
saberes que a comunidade constrói/ reconstrói na sua trajetória de vida,
possibilitando com que a mesma pudesse rememorar a luta pela conquista da
terra.
As histórias resgatadas foram analisadas na sua singularidade, bem
como na sua totalidade, como referências de um movimento social mais amplo,
enquanto produtos e produtores de uma determinada estrutura social. Foram
7
sistematizados, visando a documentação da história vivida e (re)significada
pela comunidade.
O campo e suas significações
O processo de reconstituição das histórias de vida contou com o
trabalho de campo composto por entrevistas que foram registradas por escrito
ou gravadas. A realização do campo teve um longo processo de interação com
a comunidade. No processo de registro das entrevistas, houve uma préseleção por parte do entrevistador, visto que não havia a possibilidade de
anotar todas as informações de cada trajetória. Para tal, foi elaborado um
roteiro que pudesse estar orientando a entrevista. Neste sentido, conforme
Clifford Geertz (22), realizou-se interpretação de outras interpretações, na
medida em que apenas os assentados possuem uma leitura específica da
realidade. Uma realidade que é complexa e esquadrinhada, e a interpretação
de primeira mão só o assentado, como agente social e político, adquire e
detém.
Depois
das
entrevistas
concluídas,
forma
lidas,
estudadas
e
sistematizadas por assuntos. A sistematização e divisão foi pautada a partir de
todas as informações contidas nas entrevistas. A interpretação dos dados
retomou o conhecimento acumulado nos anos de pesquisa e extensão com a
comunidade (encontros, marchas, oficinas e vivência com a comunidade).
Durante o trabalho, realizou-se dois seminários entre universidade e
comunidade que possibilitou a construção de um texto coletivo dos assentados,
onde contaram um pouco da história da entrada no movimento e da ocupação.
Nestes momentos, observou-se que há um processo de formação de
consciência política entre os assentados, ou seja, a inserção no movimento
social possibilita que os acampamentos e assentamentos rurais se tornem
territórios nos quais se constróem espaços de socialização política, espaços de
comunicação e de interação (23).
Identificou-se na fala dos entrevistados que a partir da entrada no MST,
iniciou-se um novo processo de aprendizagem em suas vidas. Na medida em
que se organizaram em prol de um objetivo coletivo, a luta pela terra, estavam,
ao mesmo tempo, de certa forma, se colocando como classe social, a classe
8
trabalhadora. A categoria de luta pela terra parece ser o motor propulsor de sua
organização e resistência. A partir desta inserção, conseguiram, como
expressa uma liderança do assentamento: “identificar quem são os aliados e
quem são os inimigos, juntando forças, respeitando os companheiros como
cidadãos, colocando o homem no centro. Existe uma possibilidade de um
socialismo humanista” (24).
Notar-se-á que esta tomada da consciência de classe provoca e dá
início ao processo de construção e exercício da cidadania. O espaço de
socialização
política
não
se
limita
apenas
nos
acampamentos
e
assentamentos, mas também fora deles. As marchas, romarias, encontros do
movimento, e outras manifestações que se configuram como um enfrentamento
direto com o Estado e com as classes econômica e politicamente dominantes,
e, neste sentido, são relações de força que se desenrolam dentro e fora dos
assentamentos. A socialização política se desenvolve em territórios que o
próprio movimento constrói.
Para que esse processo realmente ocorra, é preciso que cada
acampamento ou assentamento seja um espaço comunicativo. No trabalho de
campo, na vivência com os assentados da São Joaquim e na fala dos
entrevistados, observou-se que a matriz discursiva que possibilitou identificar
os agentes sociais envolvidos na luta pela terra, a elaboração de categorias de
nomeação e interpretação de conjunturas e eventos determinadas, foi gerada e
reproduzida no seio das relações sociais cotidianas.
Ao longo de 11 anos, os assentados da São Joaquim construíram um
conjunto de relações sociais em seu território. Num primeiro momento,
organizaram-se na forma de associações para que pudessem aglutinar seus
interesses relativos à educação, produção e saúde. Mas, ao longo dos anos,
esse assentamento acabou ficando isolado tanto do próprio movimento como
de outros agentes sociais. Sua organização política foi se enfraquecendo.
Enquanto isto, a sociabilidade se fortalecia, recriando novas relações sociais
entre eles, tanto é que nasceram crianças, pessoas desistiram de esperar a
Reforma Agrária e foram embora para outros lugares, jovens estudando e
trabalhando nas cidades, casamentos e separações também ocorreram nas
relações familiares e de parentesco.
9
Todas essas experiências cotidianas entre as famílias e suas relações
foram dando forma ao território que ali se constituía.
Estigmas
sociais
foram
processos
que
se
construíram
e
se
desconstruíram nas relações entre os assentados e as pessoas da cidade. Nas
suas leituras desta realidade apreendida, os entrevistados expressaram as
dificuldades que tinham em estar transitando pela cidade. Segundo eles, eram
chamados de invasores, vagabundos, provocando medo nas pessoas:
“pensavam que éramos bichos, e estávamos querendo fazer amizade que só
traria muita alegria” (25).
A atribuição de estigmas sociais ao contrário do que se poderia
imaginar, provocava o fortalecimento da identidade social dos assentados. Ou
seja, mais um motivo para que esses sujeitos discutissem seus problemas no
interior de um espaço interativo, pressupondo uma comunicação eivada de
crítica social. A cada momento que se reuniram, na escola, no clube de mães e
nos encontros do movimento, os interesses políticos e econômicos dos
diversos grupos e classes tornaram-se transparentes, ao passo que a matriz
discursiva do MST se fortalecia.
O espaço interativo se desenvolve no processo de organização social e
política quando se reconhecem como classe e sujeitos privados de condições
básicas de vida e excluídos do acesso à direitos fundamentais. Muitas falas
nas entrevistas expressaram que a inserção no movimento, as discussões no
assentamento em assembléias e o trabalho com a Universidade, possibilitou
que descobrissem seus direitos e se conhecessem melhor:
“Descobrimos direitos que estavam engavetados. Hoje ainda tem muitos
engavetados. Através da luta, acredito que descobriremos mais direitos para os
assentados e para que outras pessoas lutem também. Se não derem as mãos
uns aos outros, não dá para fazer nada. A cidade também tem muita luta e
fome. Por quê há violência e fome? Porque as coisas estão escondidas, estão
no escuro, as pessoas não conhecem seus direitos” (26).
O exercício da cidadania e a reivindicação de direitos fundamentais é
acompanhado por laços de solidariedade. Quando expressam suas percepções
sobre os problemas urbanos e sobre outros sujeitos, demonstram que a luta
10
pela terra é um assunto de todos, que vem desmontar uma estrutura social
excludente e que a participação e o pertencimento à um movimento social os
colocam diante de um mundo social que precisa ser resignificado e descoberto,
desengaventado direitos e conquistando a cidadania.
Mesmo que no interior do assentamento haja conflitos e diferenças
culturais no modo de produzir, de planejar, de se manifestar religiosamente,
entre
outros
aspectos,
isso
não
se
constitui
enquanto
aspectos
desmobilizadores.
Os dados das entrevistas revelam que há uma diversidade na trajetória
anterior de vida e de trabalho destes agricultores. A maioria trabalhou como
arrendatário, bóias- frias e como pequenos proprietários, exercendo, ainda, as
atividades de marceneiro, pedreiro, tratorista, assalariados. Todos de origem
rural, sendo uma parte do Paraná e de outros estados como Santa Catarina e
Rio Grande do Sul.
Dadas as origens rurais, as entrevistas expressaram uma série de
representações sobre o campo. Este território seria aquele em que encontram
possibilidades de trabalhar na terra sem estarem presos à uma relação de
trabalho muitas vezes identificada como escravista, autoritária e exploradora
como foram descritas suas relações de trabalho anterior à entrada no
movimento.
Além disso, o estado de pauperização em que se encontravam foi outro
fator que os levou a entrar no MST. Um estado de pobreza que se constituiu
historicamente nas sociedades capitalistas atingindo de tal maneira os
camponeses que, a partir da década de 70 no Brasil, o processo de
mecanização ocorrida na agricultura, os grandes projetos hidrelétricos, e hoje
com a reestruturação produtiva que vêm mudando as estruturas dos chãos de
fábrica e as novas relações de trabalho, provocaram e continuam a provocar
um alto índice de desemprego e pauperização da classe trabalhadora.
A percepção destas mudanças sociais por parte dos assentados de São
Joaquim se faz presente, fortalecendo a visão de que a vida no campo
possibilita com que se produza para comer, que se tenha espaço para sua
sociabilidade (religião, lazer e discussões), e que não estejam atrelados à um
patrão. Sentem-se autônomos e livres para trabalhar em seu próprio espaço.
11
A conquista da terra significa acionar a função social da terra, fazer com
que dela, extraia-se o alimento da vida. A luta pela terra aponta o caminho para
a socialização e divisão de riquezas advindas da terra. Esta conquista demorou
11 anos para as famílias que ocuparam em 1987 a Fazenda São Joaquim.
O trabalho de extensão possibilitou a pesquisa do processo de ocupação
e
espera
pela
legalização
da
área.
A
fazenda,
onde
hoje
vivem
aproximadamente 96 famílias de agricultores foi inicialmente ocupada por 60
famílias em 16 de outubro de 1987, oriundas da região sul do estado (Cruz
Machado, Pinhão, Irati, Palmeira, União da Vitoria, Teixeira Soares, Bituruna,
Rebouças, Imbituva, General Carneiro, Mallet e São João do Riunfo).
Em março de 1988, chegaram outras 73 famílias, vindas do Oeste do
Paraná, em sua maioria descendentes de imigrantes italianos e alemães (de
Santa Catarina e Rio grande do Sul). Essas famílias vieram transferidas da
Fazenda Padroeira, com grande parte desalojada pela construção da
Hidrelétrica de ITAIPU. Inicialmente, foram alojados na Praia Artificial do
Ipiranga, município de São Miguel do Iguaçu, um dos primeiros acampamentos
do MST no estado.
Durante este acampamento, esses trabalhadores (as) buscaram outras
formas de luta para viabilizar a negociação da liberação das terras, ocupando,
durante 8 meses a frente do Palácio Iguaçu em Curitiba. Ali, participaram
integrantes de todas as famílias da Fazenda Padroeira do Ipiranga. Sem
conseguir os resultados intentados, as famílias da Fazenda Padroeira do Brasil,
ocuparam outras fazendas da região, nas quais outras famílias foram
assentadas.
As famílias que ficaram sem terra, foram para a Fazenda São Joaquim,
que na época já havia sido desapropriada para fins de Reforma Agrária, pelo
decreto nº 95.847, de 18 de março de 1988, na gestão do Governo Sarney. No
entanto, no final deste mesmo ano, o antigo proprietário conseguiu que o
decreto de desapropriação fosse anulado, dividindo a Fazenda em 15
pequenas propriedades. Além disso, exigia a indenização de 50 milhões de
reais ao INCRA, pela área que havia sido avaliada em 2 milhões de reais.
Esse valor justificava-se pela acusação de que teriam sido os
assentados os responsáveis pela exploração de madeiras de lei. Num trabalho
de parceria que envolveu vários agentes sociais (Ministério Público,
12
Universidade - através do projeto de extensão: Exercitando a Cidadania no
Campo, INCRA E MST – acampados da São Joaquim), realizou-se uma
investigação, vistoria, análise de dados (provas documentais) e depoimentos
dos assentados e moradores da cidade que revelou e comprovou que a
exploração da madeira foi pelo Plano de Exploração de Floresta Nativa, da Cia
Fiat Lux, no período de março de 1980 a meados de 1987, antes da chegada
dos acampados à fazenda.
Como este processo (de desapropriação e anulamento, investigação da
acusação) foi demorado, a área levou 11 anos para ser desapropriada
efetivamente,
passando
a
ser
um
território
de
acampamento
para
assentamento rural apenas em meados do ano de 1998.
Considerações finais
A história de vida e luta dos trabalhadores rurais sem terra resgatada
numa perspectiva metodológica de pesquisa-ação, não pode servir apenas de
elemento de pesquisa para se compreender melhor a trajetória de um povo,
sua história, sua luta, mas também deve servir para que este povo se
compreenda, faça a releitura de sua história, de seu mundo.
Este trabalho demonstrou que a pesquisa-ação e a história de vida nos
possibilita a inserção em universo sociais, políticos e culturais que muitas
vezes nos parecem conhecidos. O que se experenciou e se viu em São
Joaquim foi um longo processo de reconstrução e resignificação da concepção
de sujeitos quando reivindicam seus direitos e sua cidadania, demarcando
territórios nos quais se criam espaços para a socialização política, composta
por processos comunicativos que acionam ações e reações. Espaços onde
encontram-se diferenças culturais dentro de uma classe que busca laços de
solidariedade para fortalecer uma luta social. Luta pela terra simbolizando o
desejo por uma sociedade pautada pela igualdade.
O resgate da história vivida e (re)significada pelos trabalhadores rurais
sem terra toma outro sentido quando isto também faz parte de um desejo e de
uma necessidade da comunidade assentada para a sua afirmação enquanto
sujeito histórico, possibilitando dessa forma que as novas gerações conheçam
13
e compreendam a luta vivida pela conquista da terra, e ainda, que a luta dos
sem terra possa entrar para a história a partir da ótica de que a vivenciou.
Notas
(1) Professora.
(2) Bolsista - UFPR/TN.
(3) Bolsista-extensão – UFPR.
(4) Assim, formou-se o grupo da história de vida, composto pelas estudantes
do curso de Ciências Sociais Clotilde Alberici (sociologia) e Sonia Regina
Lourenço (antropologia), pelos estudantes do curso de História Ana Gilka D.
Carneiro e Jefferson de O . Salles, com orientação da Professora Sônia Fátima
Schwendler, responsáveis pela elaboração e execução deste projeto.
(5) Grzybowski, 1994, p.290-296.
(6)Bonim et al, 1987, p.72.
(7) Fernandes, 1996, p.238.
(8) Bergamasso e Ferrante, 1994, p.189
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