Título: O RESGATE DA HISTÓRIA DE VIDA E DE LUTA DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA Área temática: Educação De Jovens E Adultos E Movimentos Sociais Autores: SÔNIA FÁTIMA SCHWENDLER (1), ANA GILKA DUARTE CARNEIRO (2), CLOTILDE ALBERICI (3), JEFFERSON SALLES (3) e SONIA REGINA LOURENÇO (3) Instituição: Universidade Federal Do Paraná Introdução Os assentamentos rurais para fins de Reforma Agrária constituem fenômenos sociais que remontam ao passado colonial e à velha estrutura agrária brasileira. Revelam de forma explícita, as contradições de uma sociedade estruturada no sistema de economia capitalista. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) é um agente social e político que dá visibilidade à estrutura desta sociedade, na qual as relações sociais são estruturas construídas a partir do antagonismo existente entre as categorias capital e trabalho, que são, por assim dizer, a mola propulsora do capitalismo. Os movimentos sociais são, portanto, oriundos da luta de classes que se desenrola nessa sociedade. O meio rural brasileiro é um espaço social e político que se caracteriza pelo manifesto das expressões das relações de força e de poder. Nestes espaços, notar-se-á como se desenrolam as relações entre campesinato, latifundiários e o Estado, ou seja, a luta pela terra de ambos os agentes sociais, cada um defendendo seus interesses de classe, disputando a legitimidade da função social da terra. Foi no Projeto de Extensão Exercitando a Cidadania no Campo: um olhar e um compromisso multidisciplinar em área de ocupação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra que o presente trabalho se originou, desenvolvendo-se numa ocupação do MST, a Fazenda São Joaquim, que a partir de agosto/98 constituiu-se em Assentamento de Reforma Agrária. No Assentamento São Joaquim, situado no município de Teixeira Soares - PR, à 157 Km de Curitiba, vivem 96 famílias numa área de 2.835 hectares. Através de um planejamento participativo entre universidade e comunidade, foram levantadas as demandas sociais da comunidade. Neste processo, surgiu a proposta de realizar a reconstituição da história dos assentados e do Assentamento. A partir desta proposição, iniciou-se o projeto de pesquisa intitulado A Luta Pela Terra, A Luta Pela Vida: uma história vivida e reconstruída pelos trabalhadores rurais sem terra (4). Dessa forma, a inserção na comunidade através da extensão e da vivência no seu cotidiano e nos seus espaços de luta, bem como a reflexão sobre esta realidade a partir de referenciais teórico-metodológicos voltados para compreensão e o trabalho de pesquisa e extensão com movimentos sociais, possibilitou a definição dessa pesquisa e sua abordagem metodológica, num grupo que procurou realizar uma reflexão interdisciplinar. A Luta Pela Terra e a Conquista de Assentamentos A luta pela terra no Brasil tem uma longa história e é marcada por momentos mais intensos de resistência, de organização dos trabalhadores rurais e por momentos de recuos. Contudo, é principalmente nas últimas décadas que encontramos maior resistência frente ao processo de exclusão social, maior organização e luta dos trabalhadores a partir de diversos fatores que se entrecruzam na história. Segundo Grzybowski (5), a quase totalidade dos movimentos sociais no campo surgiu como resistência a um processo econômico e político que provocou a rápida modernização da agricultura. O projeto de modernização conservadora adotado pelos governos militares, produziu uma profunda alteração na estrutura agrária brasileira, com privilegiamento de uma agricultura empresarial, que demandava insumos e máquinas modernas, e acima de tudo, uma forte concentração da terra. Além disso, a construção de hidrelétricas no país, como campo de investimento do capital financeiro-industrial nacional e internacional, gerou a desapropriação e expulsão de milhares de trabalhadores de suas terras. Aliado ao contexto de expropriação dos trabalhadores de seus meios de produção, a crise política do regime militar após 74 criou condições para que os setores populares pudessem se organizar na legitimidade e defender seus interesses. Neste cenário, as Comunidades Eclesiais de Base e a Comissão Pastoral da Terra, 1 constituem-se nos grandes mediadores da organização do MST, bem como na renovação do sindicalismo, o qual se torna fundamental na luta pela terra (6). É neste contexto que surgiu em 1984, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), quando em vários estados os agricultores sem terra se reuniram para organizar-se de forma coletiva e lutarem juntos pela conquista da terra. Esteve portanto, na gênese deste movimento social, por um lado, o agravamento e as mudanças ocorridas nas condições de vida dos trabalhadores, e por outro a mudança na forma de conceberem a sua relação com a terra, reconhecendo o seu direito à terra e o direito de se organizarem e lutarem por ela. Dessa forma, a ocupação de terras improdutivas se constitui numa estratégia de luta pela terra e de resistência ao processo expropriação e exploração do trabalho. É com esta luta que trabalhadores estão entrando na terra, conquistando o chão, fazendo a Reforma Agrária. “Na luta pela terra, o espaço de luta e resistência é construído quando o Movimento traz a público a sua situação ao ocupar uma propriedade – um latifúndio. Conquistar a terra, uma fração do território, e se territorializar é um modo eficaz de reação e de demonstração da sua forma de organização” (7). Este espaço de luta e resistência possibilita que os trabalhadores possam sobreviver enquanto sujeitos históricos. É também neste espaço que carregam suas experiências, transformando-as e conquistando novos territórios, territorializando a própria luta pela terra. É a partir do processo de espacialização da luta pela terra que o MST conquistou os assentamentos e se territorializou, organizando-se em 22 estados brasileiros. Os assentamentos de Reforma Agrária – territórios conquistados através do processo de ocupação de terras - são culturalmente diferenciados e historicizados. São constituídos por atores sociais com diferentes trajetórias de vida e identidades sociais, mas com uma história que os identifica, perpassada pelas distintas formas de exclusão social, política, econômica, cultural. É a história de mulheres, homens, negros, brancos, índios e mulatos, que enquanto bóias frias, filhos de pequenos produtores, arrendatários, excluídos das 2 condições que lhes permitem a reprodução de sua existência material e simbólica, do seu direito de cidadãos se unem e ocupam um pedaço de terra. Neste sentido, os assentamentos são pensados como “processos sociais complexos”. Compreendê-los a partir da história de seus sujeitos – os assentados – implica em “reconhecer a diferenciação de suas origens, trajetórias de vida e discutir a perspectiva de existir uma história social comum em suas andanças, sustentada pelo vínculo representado pela relação mediata/imediata com a terra” (8). Os assentamentos constituem-se enquanto espaços recriados socialmente pelos trabalhadores rurais sem terra, após vivenciarem a luta pela terra. É a construção/reconstrução de um espaço social, do cotidiano, a partir dos referenciais que cada trabalhador assentado traz em sua história de vida e dos referenciais coletivos reelaborados na luta pela conquista da terra (9). Neste sentido, o processo de luta pela terra pode ser visto como um espaço fecundo de recriação sócio-cultural, onde as práticas cotidianas vividas pelo campesinato são reelaboradas, constituindo-se em espaços de produção de saberes e de uma participação mais orgânica. em função das condições objetivas e subjetivas que as lutas engendram (10). Abordagem Metodológica: História e Memória “A história é importante como memória coletiva do passado, consciência crítica do presente e premissa da ação futura. Sem memória coletiva, não há projetos nem sujeitos da história" (11). Registrar a história e o significado da luta pela terra, bem como as representações culturais a partir da memória de quem as vivenciou, tornandoas visíveis, documentadas e sistematizadas torna-se fundamental, para que estes trabalhadores possam vir a se reconhecerem como sujeitos da história, produtores de cultura e de conhecimento. Portanto, compreender a luta pela terra a partir da história vivida pelos seus sujeitos, implica em interagir através de um processo investigativoparticipativo com a própria comunidade assentada. Nesta perspectiva, adotamos a abordagem metodológica de pesquisa-ação, onde a comunidade 3 participa como sujeito na coleta e análise de sua realidade, visando a problematização e a transformação de seu contexto social. A pesquisa-ação constitui-se numa estratégia metodológica da pesquisa social, na qual há uma ampla interação entre os pesquisadores e as pessoas envolvidas no processo, onde os problemas de investigação surgem da situação social e são solucionados através de ações concretas a partir de uma dinâmica que possibilite a troca, a apropriação e a reelaboração de saberes dos sujeitos envolvidos (12). Partindo dessa ótica, o resgate da história de luta pela terra vivida pelos assentados da Fazenda São Joaquim constitui-se como essencial enquanto registro de uma história contada pelos excluídos da sociedade e da história. Dessa forma, os pesquisadores e a população assentada constituíram-se como protagonistas neste processo, onde ambos participaram em um "projeto comum de investigação e ao mesmo tempo, um processo educativo, produzido dentro da ação” (13). Assim, buscou-se possibilitar que o processo de pesquisa-ação se configurasse num espaço educativo onde “... as próprias camadas populares desenvolvam (expressem, critiquem, enriqueçam, reformulam, valorizem) coletivamente o seu conhecimento, as suas formas de apreender e explicar os acontecimentos da vida social” (14). Na mesma perspectiva, Paulo Freire nos alerta que num trabalho com as camadas populares precisamos ler a leitura do mundo que os grupos com que se trabalha fazem do seu próprio contexto e do maior onde aquele se insere. Precisamos considerar, conhecer o saber construído/reconstruído na experiência feita (15). Para compreender melhor a experiência vivida na luta pela terra e a leitura que os trabalhadores sem terra fazem da mesma, buscou-se reconstituir e documentar as suas trajetórias sociais através da técnica de história de vida, que permite estudar o fato social de seu interior, permitindo-nos conhecermos a vida do indivíduo nas sua várias relações tecidas pela coletividade no espaço e tempo históricos. A história de vida revela uma relação singular e ao mesmo tempo universal entre as pessoas que partilham de um mesmo espaço social, sendo, portanto, uma técnica que permite captar o que sucede na encruzilhada da vida individual com o social. A história de vida é "... o relato de um narrador 4 sobre sua existência através do tempo, tentando reconstruir os acontecimentos que vivenciou e transmitir a experiência que adquiriu" (16). O resgate da história vivida e (re)significada pelos moradores da São Joaquim constitui-se enquanto meio de documentação da luta pela terra a partir do olhar de quem a vivenciou. Nesta perspectiva, comunidade e universidade definiram a partir de um planejamento participativo, o registro da história de luta dos moradores assentados, articulado à outras ações, como parte de um projeto de pesquisa e extensão. Dessa forma, a equipe pesquisadora já interagia um longo tempo com a comunidade até que as histórias de vida fossem pesquisadas e reconstituídas, o que possibilitou com que os moradores se sentissem na liberdade de expressarem suas visões de mundo e contarem suas histórias. Essa interação tornou possível o enriquecimento do processo investigativo, uma vez que muito da história e da realidade do assentamento já se conhecia até o momento do resgate propriamente dito, e se tinha elementos de análise construídos a partir de uma vivência concreta. Além disso, foram realizadas visitas à 65% das famílias da comunidade, a fim de conhecer melhor sua cultura, suas necessidades, demandas e seu cotidiano, o que tornou possível um trabalho de melhor aproximação e vivência de uma metodologia participativa, como nos propomos. Para reconstruir a trajetória vivida pelo grupo investigado, seu movimento histórico no contexto social mais amplo, foram adotados dois critérios amostrais qualitativos: o da diversificação da amostra e o da saturação (17). O primeiro, busca a identificação de pessoas que possam, de uma forma bastante ampla, reconstruir e analisar a totalidade da trajetória e de temas, juízos, estratégias, fatos vividos pelo grupo no processo de luta pela terra. O segundo, possibilita ao pesquisador, saber quando é necessário parar com a investigação, pois a partir de um certo número de informações, as posteriores pouco acrescentam, pois se repetem. A diversidade de informantes é fundamental para captar as diferentes visões presentes em cada depoimento, o que permite enriquecer a análise com informantes de diferentes experiências como protagonistas do mesmo grupo social. Dessa forma, foram escolhidos diferentes atores sociais para captarem melhor a totalidade social, pois o lugar que cada um ocupa no processo de produção social de sua existência, nas relações que estabelece no cotidiano 5 vivido, refletem-se na sua visão de mundo, na maneira de se perceber e de perceber o seu grupo. Neste sentido, foram recolhidos relatos de pessoas que diferem quanto à: gênero, descendência étnica, idade, escolaridade, experiência de trabalho e relação com a terra anterior à ocupação, grau e intensidade de inserção na luta pela terra. Para captar a leitura que os assentados (as) fizeram da realidade e trajetória vivida tornou-se necessário uma relação dialógica entre pesquisado e pesquisador, onde o saber escutar era fundamental para que novas indagações pudessem ser colocadas sobre as questões a serem aprofundadas, dentro do relato construído pelo entrevistado, e além disto, saber escutar o relato "oculto" na sua trajetória de vida, ou seja, aquilo que não se queria dizer ou o que se dizia de outra forma (18). Para que interação entre os sujeitos-assentados e os sujeitospesquisadores se constituísse o processo de investigação participativa era essencial. A metodologia de pesquisa-ação participativa, permitiu ainda, que o pesquisador vivenciasse e observasse as experiências cotidianas vividas pelos atores sociais, o que lhe possibilita a apreensão do "significado que eles atribuem à realidade que os cerca e às suas próprias ações” (19). Desta maneira, buscou-se vivenciar todos os espaços possíveis, tais como; almoçar junto com a comunidade ou na casa das famílias, dormir nas suas casas, participar também de espaços criados pela mesma, como assembléias, festas, cultos religiosos e atividades de luta vinculadas ao Movimento dos Trabalhadores Sem terra, como as marchas. Esta vivência com a comunidade possibilitou o acesso às relações sociais desenroladas no cotidiano, este entendido como substância da vida social. Na ótica de Agnes Heller, a vida cotidiana é a vida de todo homem: " (...) nessa estrutura colocam-se em funcionamento todos os sentidos, as capacidades intelectuais, as idéias, a ideologia na qual o homem da cotidianidade é atuante, fruidor, receptivo e ativo." A autora amplia esta noção dizendo que a vida cotidiana possui uma organicidade: " ... a organização do trabalho e da vida privada, os lazeres, o descanso, a atividade social sistematizada" (20). Nesta estrutura, a vida cotidiana se configura pela heterogeneidade em relação ao conteúdo, a significação e a ordem hierárquica passível de ser 6 modificada de acordo com as diferentes estruturas econômico-sociais. O entendimento desse grupo social, através da análise das trajetórias de vida foi um elemento chave para traduzir-se e compreender sua organização sociocultural. A memória também foi tomada como um elemento de grande significação na pesquisa, uma vez que é compreendida como um conjunto de experiências vividas e lembradas ainda que de forma fragmentária, sendo, portanto, o resultado de práticas individuais e coletivas. Walter Benjamin tece as seguintes considerações a respeito das reminiscências do passado: "... o que foi é finito, limitado, mas o que é lembrado não tem limites, é infinito. A rememoração é reconstrução, resignificação permanente (...), o passado comporta elementos inacabados e que nós somos encarregados de atualizalos” (21). Esta possibilidade de lançar um olhar retrospectivo ao passado permite vislumbrar e presentificar a identidade social e, através da memória do outro, pode-se compreendê- lo dentro de seu contexto social e histórico. Sempre lembrando da indissociabilidade entre memória coletiva e memória individual, isto é, a primeira só existe a partir da existência da segunda, sendo o contrário também verdadeiro. A vivência com a comunidade, a partir de um trabalho de pesquisa e extensão, permitiu com que a memória expressa pelos trabalhadores sem terra fosse muito mais significativa, servindo de referência para o entendimento do conjunto de informações recolhidas. Foram realizadas oficinas visando a devolução à comunidade, no sentido de possibilitar uma releitura de sua realidade e a compreensão desta, num contexto histórico-social mais amplo. Estas oficinas se constituíram num momento bastante fecundo de identificação e análise da realidade e dos saberes que a comunidade constrói/ reconstrói na sua trajetória de vida, possibilitando com que a mesma pudesse rememorar a luta pela conquista da terra. As histórias resgatadas foram analisadas na sua singularidade, bem como na sua totalidade, como referências de um movimento social mais amplo, enquanto produtos e produtores de uma determinada estrutura social. Foram 7 sistematizados, visando a documentação da história vivida e (re)significada pela comunidade. O campo e suas significações O processo de reconstituição das histórias de vida contou com o trabalho de campo composto por entrevistas que foram registradas por escrito ou gravadas. A realização do campo teve um longo processo de interação com a comunidade. No processo de registro das entrevistas, houve uma préseleção por parte do entrevistador, visto que não havia a possibilidade de anotar todas as informações de cada trajetória. Para tal, foi elaborado um roteiro que pudesse estar orientando a entrevista. Neste sentido, conforme Clifford Geertz (22), realizou-se interpretação de outras interpretações, na medida em que apenas os assentados possuem uma leitura específica da realidade. Uma realidade que é complexa e esquadrinhada, e a interpretação de primeira mão só o assentado, como agente social e político, adquire e detém. Depois das entrevistas concluídas, forma lidas, estudadas e sistematizadas por assuntos. A sistematização e divisão foi pautada a partir de todas as informações contidas nas entrevistas. A interpretação dos dados retomou o conhecimento acumulado nos anos de pesquisa e extensão com a comunidade (encontros, marchas, oficinas e vivência com a comunidade). Durante o trabalho, realizou-se dois seminários entre universidade e comunidade que possibilitou a construção de um texto coletivo dos assentados, onde contaram um pouco da história da entrada no movimento e da ocupação. Nestes momentos, observou-se que há um processo de formação de consciência política entre os assentados, ou seja, a inserção no movimento social possibilita que os acampamentos e assentamentos rurais se tornem territórios nos quais se constróem espaços de socialização política, espaços de comunicação e de interação (23). Identificou-se na fala dos entrevistados que a partir da entrada no MST, iniciou-se um novo processo de aprendizagem em suas vidas. Na medida em que se organizaram em prol de um objetivo coletivo, a luta pela terra, estavam, ao mesmo tempo, de certa forma, se colocando como classe social, a classe 8 trabalhadora. A categoria de luta pela terra parece ser o motor propulsor de sua organização e resistência. A partir desta inserção, conseguiram, como expressa uma liderança do assentamento: “identificar quem são os aliados e quem são os inimigos, juntando forças, respeitando os companheiros como cidadãos, colocando o homem no centro. Existe uma possibilidade de um socialismo humanista” (24). Notar-se-á que esta tomada da consciência de classe provoca e dá início ao processo de construção e exercício da cidadania. O espaço de socialização política não se limita apenas nos acampamentos e assentamentos, mas também fora deles. As marchas, romarias, encontros do movimento, e outras manifestações que se configuram como um enfrentamento direto com o Estado e com as classes econômica e politicamente dominantes, e, neste sentido, são relações de força que se desenrolam dentro e fora dos assentamentos. A socialização política se desenvolve em territórios que o próprio movimento constrói. Para que esse processo realmente ocorra, é preciso que cada acampamento ou assentamento seja um espaço comunicativo. No trabalho de campo, na vivência com os assentados da São Joaquim e na fala dos entrevistados, observou-se que a matriz discursiva que possibilitou identificar os agentes sociais envolvidos na luta pela terra, a elaboração de categorias de nomeação e interpretação de conjunturas e eventos determinadas, foi gerada e reproduzida no seio das relações sociais cotidianas. Ao longo de 11 anos, os assentados da São Joaquim construíram um conjunto de relações sociais em seu território. Num primeiro momento, organizaram-se na forma de associações para que pudessem aglutinar seus interesses relativos à educação, produção e saúde. Mas, ao longo dos anos, esse assentamento acabou ficando isolado tanto do próprio movimento como de outros agentes sociais. Sua organização política foi se enfraquecendo. Enquanto isto, a sociabilidade se fortalecia, recriando novas relações sociais entre eles, tanto é que nasceram crianças, pessoas desistiram de esperar a Reforma Agrária e foram embora para outros lugares, jovens estudando e trabalhando nas cidades, casamentos e separações também ocorreram nas relações familiares e de parentesco. 9 Todas essas experiências cotidianas entre as famílias e suas relações foram dando forma ao território que ali se constituía. Estigmas sociais foram processos que se construíram e se desconstruíram nas relações entre os assentados e as pessoas da cidade. Nas suas leituras desta realidade apreendida, os entrevistados expressaram as dificuldades que tinham em estar transitando pela cidade. Segundo eles, eram chamados de invasores, vagabundos, provocando medo nas pessoas: “pensavam que éramos bichos, e estávamos querendo fazer amizade que só traria muita alegria” (25). A atribuição de estigmas sociais ao contrário do que se poderia imaginar, provocava o fortalecimento da identidade social dos assentados. Ou seja, mais um motivo para que esses sujeitos discutissem seus problemas no interior de um espaço interativo, pressupondo uma comunicação eivada de crítica social. A cada momento que se reuniram, na escola, no clube de mães e nos encontros do movimento, os interesses políticos e econômicos dos diversos grupos e classes tornaram-se transparentes, ao passo que a matriz discursiva do MST se fortalecia. O espaço interativo se desenvolve no processo de organização social e política quando se reconhecem como classe e sujeitos privados de condições básicas de vida e excluídos do acesso à direitos fundamentais. Muitas falas nas entrevistas expressaram que a inserção no movimento, as discussões no assentamento em assembléias e o trabalho com a Universidade, possibilitou que descobrissem seus direitos e se conhecessem melhor: “Descobrimos direitos que estavam engavetados. Hoje ainda tem muitos engavetados. Através da luta, acredito que descobriremos mais direitos para os assentados e para que outras pessoas lutem também. Se não derem as mãos uns aos outros, não dá para fazer nada. A cidade também tem muita luta e fome. Por quê há violência e fome? Porque as coisas estão escondidas, estão no escuro, as pessoas não conhecem seus direitos” (26). O exercício da cidadania e a reivindicação de direitos fundamentais é acompanhado por laços de solidariedade. Quando expressam suas percepções sobre os problemas urbanos e sobre outros sujeitos, demonstram que a luta 10 pela terra é um assunto de todos, que vem desmontar uma estrutura social excludente e que a participação e o pertencimento à um movimento social os colocam diante de um mundo social que precisa ser resignificado e descoberto, desengaventado direitos e conquistando a cidadania. Mesmo que no interior do assentamento haja conflitos e diferenças culturais no modo de produzir, de planejar, de se manifestar religiosamente, entre outros aspectos, isso não se constitui enquanto aspectos desmobilizadores. Os dados das entrevistas revelam que há uma diversidade na trajetória anterior de vida e de trabalho destes agricultores. A maioria trabalhou como arrendatário, bóias- frias e como pequenos proprietários, exercendo, ainda, as atividades de marceneiro, pedreiro, tratorista, assalariados. Todos de origem rural, sendo uma parte do Paraná e de outros estados como Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Dadas as origens rurais, as entrevistas expressaram uma série de representações sobre o campo. Este território seria aquele em que encontram possibilidades de trabalhar na terra sem estarem presos à uma relação de trabalho muitas vezes identificada como escravista, autoritária e exploradora como foram descritas suas relações de trabalho anterior à entrada no movimento. Além disso, o estado de pauperização em que se encontravam foi outro fator que os levou a entrar no MST. Um estado de pobreza que se constituiu historicamente nas sociedades capitalistas atingindo de tal maneira os camponeses que, a partir da década de 70 no Brasil, o processo de mecanização ocorrida na agricultura, os grandes projetos hidrelétricos, e hoje com a reestruturação produtiva que vêm mudando as estruturas dos chãos de fábrica e as novas relações de trabalho, provocaram e continuam a provocar um alto índice de desemprego e pauperização da classe trabalhadora. A percepção destas mudanças sociais por parte dos assentados de São Joaquim se faz presente, fortalecendo a visão de que a vida no campo possibilita com que se produza para comer, que se tenha espaço para sua sociabilidade (religião, lazer e discussões), e que não estejam atrelados à um patrão. Sentem-se autônomos e livres para trabalhar em seu próprio espaço. 11 A conquista da terra significa acionar a função social da terra, fazer com que dela, extraia-se o alimento da vida. A luta pela terra aponta o caminho para a socialização e divisão de riquezas advindas da terra. Esta conquista demorou 11 anos para as famílias que ocuparam em 1987 a Fazenda São Joaquim. O trabalho de extensão possibilitou a pesquisa do processo de ocupação e espera pela legalização da área. A fazenda, onde hoje vivem aproximadamente 96 famílias de agricultores foi inicialmente ocupada por 60 famílias em 16 de outubro de 1987, oriundas da região sul do estado (Cruz Machado, Pinhão, Irati, Palmeira, União da Vitoria, Teixeira Soares, Bituruna, Rebouças, Imbituva, General Carneiro, Mallet e São João do Riunfo). Em março de 1988, chegaram outras 73 famílias, vindas do Oeste do Paraná, em sua maioria descendentes de imigrantes italianos e alemães (de Santa Catarina e Rio grande do Sul). Essas famílias vieram transferidas da Fazenda Padroeira, com grande parte desalojada pela construção da Hidrelétrica de ITAIPU. Inicialmente, foram alojados na Praia Artificial do Ipiranga, município de São Miguel do Iguaçu, um dos primeiros acampamentos do MST no estado. Durante este acampamento, esses trabalhadores (as) buscaram outras formas de luta para viabilizar a negociação da liberação das terras, ocupando, durante 8 meses a frente do Palácio Iguaçu em Curitiba. Ali, participaram integrantes de todas as famílias da Fazenda Padroeira do Ipiranga. Sem conseguir os resultados intentados, as famílias da Fazenda Padroeira do Brasil, ocuparam outras fazendas da região, nas quais outras famílias foram assentadas. As famílias que ficaram sem terra, foram para a Fazenda São Joaquim, que na época já havia sido desapropriada para fins de Reforma Agrária, pelo decreto nº 95.847, de 18 de março de 1988, na gestão do Governo Sarney. No entanto, no final deste mesmo ano, o antigo proprietário conseguiu que o decreto de desapropriação fosse anulado, dividindo a Fazenda em 15 pequenas propriedades. Além disso, exigia a indenização de 50 milhões de reais ao INCRA, pela área que havia sido avaliada em 2 milhões de reais. Esse valor justificava-se pela acusação de que teriam sido os assentados os responsáveis pela exploração de madeiras de lei. Num trabalho de parceria que envolveu vários agentes sociais (Ministério Público, 12 Universidade - através do projeto de extensão: Exercitando a Cidadania no Campo, INCRA E MST – acampados da São Joaquim), realizou-se uma investigação, vistoria, análise de dados (provas documentais) e depoimentos dos assentados e moradores da cidade que revelou e comprovou que a exploração da madeira foi pelo Plano de Exploração de Floresta Nativa, da Cia Fiat Lux, no período de março de 1980 a meados de 1987, antes da chegada dos acampados à fazenda. Como este processo (de desapropriação e anulamento, investigação da acusação) foi demorado, a área levou 11 anos para ser desapropriada efetivamente, passando a ser um território de acampamento para assentamento rural apenas em meados do ano de 1998. Considerações finais A história de vida e luta dos trabalhadores rurais sem terra resgatada numa perspectiva metodológica de pesquisa-ação, não pode servir apenas de elemento de pesquisa para se compreender melhor a trajetória de um povo, sua história, sua luta, mas também deve servir para que este povo se compreenda, faça a releitura de sua história, de seu mundo. Este trabalho demonstrou que a pesquisa-ação e a história de vida nos possibilita a inserção em universo sociais, políticos e culturais que muitas vezes nos parecem conhecidos. O que se experenciou e se viu em São Joaquim foi um longo processo de reconstrução e resignificação da concepção de sujeitos quando reivindicam seus direitos e sua cidadania, demarcando territórios nos quais se criam espaços para a socialização política, composta por processos comunicativos que acionam ações e reações. Espaços onde encontram-se diferenças culturais dentro de uma classe que busca laços de solidariedade para fortalecer uma luta social. Luta pela terra simbolizando o desejo por uma sociedade pautada pela igualdade. O resgate da história vivida e (re)significada pelos trabalhadores rurais sem terra toma outro sentido quando isto também faz parte de um desejo e de uma necessidade da comunidade assentada para a sua afirmação enquanto sujeito histórico, possibilitando dessa forma que as novas gerações conheçam 13 e compreendam a luta vivida pela conquista da terra, e ainda, que a luta dos sem terra possa entrar para a história a partir da ótica de que a vivenciou. Notas (1) Professora. (2) Bolsista - UFPR/TN. (3) Bolsista-extensão – UFPR. (4) Assim, formou-se o grupo da história de vida, composto pelas estudantes do curso de Ciências Sociais Clotilde Alberici (sociologia) e Sonia Regina Lourenço (antropologia), pelos estudantes do curso de História Ana Gilka D. Carneiro e Jefferson de O . Salles, com orientação da Professora Sônia Fátima Schwendler, responsáveis pela elaboração e execução deste projeto. (5) Grzybowski, 1994, p.290-296. (6)Bonim et al, 1987, p.72. (7) Fernandes, 1996, p.238. (8) Bergamasso e Ferrante, 1994, p.189 (9) Schwendler, 1995. (10) Caldart, 1996; Gohn, 1997; Damasceno, 1995. (11) Lazenga apud Marre, 1991, p.135. (12) Thiollent, 1985. (13) Haguette, 1992, p.163. (14) Costa, apud Brandão, 1984, p.105. (15) Freire, 1996, p.90. (16) Queiróz, 1988, p.20. (17) Marre, 1991, p.11-12. (18) Demartini, 1993. (19) Lüdke & Andre, 1986, p.26 (20) Heller, 1970. (21) Benjamin, 1993, p.37. (22) Geertz, 1989. (23) Fernandes, 1996, p. 225 – 246. (24) Depoimento de um assentado na entrevista realizada em fevereiro de 1999. (25) Depoimento de um assentado na entrevista realizada em março de 1999. (26) Depoimento de um assentado na entrevista realizada em março de 1999. Referências Bibliográficas BENJAMIN, W. Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre a literatura e história da cultura. 5 edição, São Paulo: Brasiliense. Obras escolhidas, vol.1, 1993. BERGAMASSO, Sonia M. P. & FERRANTE, Vera L.S.B. Assentamentos Rurais: caminhos e desafios da pesquisa. In: ROMEIRO, Adhemar et. al. 14 (orgs). Reforma Agrária: Produção, emprego e renda. O relatório da FAO em debate. Petrópolis: Vozes/IBASE/FAO, 1994. BONNIM, Anamaria. A. et. al. Movimentos Sociais no Campo. Curitiba: CRIAR, 1987. BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O ardil da ordem: caminhos e armadilhas da educação popular. Campinas: Papirus, 1984. CALDART, Roseli Salete. Os Movimentos Sociais e a Construção da Escol a (do sonho) Possível . In: Contexto e Educação. Ijuí: UNIJUÍ, Ano 10, n 41, Jan-mar., 1996. DAMASCENO, Maria Nobre. O saber social e a construção da identidade. In: Contexto & educação. Ijuí: UNIJUÍ, Ano 9,N 38, abril/jun.,1995. DEMARTINI, Zeila de Brito Fabri. Histórias de vida na abordagem de problemas educacionais. In: SIMSON, Olga de Moraes. (org.). Experimentos com histórias de vida. São Paulo: Vértice, 1988. -----. Relatos orais: Nova leitura de velhas questões educacionais. Trabalho apresentado no XVII Encontro Anual da ANPOCS, Caxambu, 1993. FERNANDES, Bernardo M. MST: Formação e Territorialização em São Paulo. São Paulo: Hucitec, 1996. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à pratica educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. GEERTZ, Clifford A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Koogan/Guanabara, 1989. GOHN, Maria da Glória. Os Sem- Terra, ONGs e Cidadania. São Paulo: Cortez, 1997. GRZYBOWSKI, Cândido. Movimentos populares rurais no Brasil: desafios e perspectivas. In: STÉDILE, João Pedro. (org.). A Questão Agrária Hoje. Porto Alegre: Ed. Da Universidade/UFRGS, 1994. HAGUETTE, Tereza Maria Frota. Metodologias Qualitativas na Sociologia. Petrópolis: Vozes, 1992. HELLER, Agnes Estrutura da vida cotidiana In: O Quotidiano e a História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1970. LÜDKE, Menga & ANDRE, Marli E. D. A. Pesquisa em educação: abordagens qualitativas. São Paulo: EPU, 1986 15 MARRE, Jacques L. História de Vida e Método Biográfico. In: Cadernos de Sociologia. Porto Alegre. v 3, nº 3 jan/jul. 1991. MEDEIROS, Leonilde S. de. História dos movimentos sociais no campo. Rio de Janeiro: FASE, 1989. QUEIRÓZ, Maria Isaura Pereira de. Relatos Orais: do "indizível" ao "dizível". In: SIMSON, Olga de Moraes. (org.). Experimentos com histórias de vida. São Paulo: Vértice, 1988. SCHWENDLER, Sônia Fátima. Da utopia do acampamento à recriação social do assentamento. Dissertação de mestrado. Santa Maria-RS, 1995. STÉDILE, João pedro & GÖRGEN, Sérgio. A luta pela terra no Brasil. São Paulo: Página Aberta, 1993. THIOLLENT, Michel. Metodologia da Pesquisa-Ação. São Paulo: Cortez, 1985. 16