Assentados e forjados na luta pela terra Ramiro Teixeira da Silva Júnior 1 Irene Alves de Paiva2 Cimone Rozendo de Souza3 Introdução As disputas em torno da questão de terras no Brasil desencadearam diversas dinâmicas no campo. De um lado, configurou-se um grupo composto por proprietários dos latifúndios, e de outro, um grupo formado por trabalhadores rurais na luta pelo acesso à posse e propriedade da terra. No segundo bloco desse embate, estão localizados, entre outros grupos sociais, indivíduos organizados em assentamentos rurais, compreendidos como novas unidades de moradia e produção agrícola, com vistas a construir estratégias voltadas para o desenvolvimento do campo através da agricultura familiar (BERGAMASCO; NORDER, 1996) em constantes embates com as políticas fundiárias traçadas para os povos do campo. Para Veiga (1986), uma reforma agrária depende do contexto das lutas políticas do país e da correlação de forças entre os grupos envolvidos, como trabalhadores assalariados, camponeses, proprietários agrícolas etc., ou seja, “os que poderão ser beneficiados com a sua realização e os que perderão parte de seus privilégios econômicos” (VEIGA, 1986, p. 81), mas, sobretudo, conta com intervenção do Estado para efetivação de políticas de redistribuição de terra e da renda agrícola. Neste trabalho, abordamos, em um primeiro momento, algumas reflexões sobre as concepções políticas do MST na organização das famílias agricultoras em assentamentos e temos como subsídios os artigos 184, 186 e 187 da Constituição Federal da República Federativa do Brasil que versam sobre as políticas agrícolas; em seguida, expomos algumas experiências vivenciadas em 2012/2013 na Associação Nova Esperança do Assentamento Rosário, localizado em Ceará Mirim/RN. Por fim, lançamos algumas observações sobre a organização da produção de alimentos em associativismo no MST. 1 Mestrando em Ciências Sociais (PPGCS/UFRN) 2 Professora Doutora do Departamento de Ciências Sociais (UFRN) 3 Professora Doutora do Departamento de Ciências Sociais (UFRN) A constituição do MST e as propostas de assentamentos O Movimento Sem Terra é produto de diversos conflitos travados no campo brasileiro, os quais contribuíram para as articulações de movimentos sociais como uma maneira de consolidação da organização dos trabalhadores neste espaço ante às emergências produzidas pelos conflitos em torno da terra (MEDEIROS, 1989). Tem-se, ainda, que o contexto sociopolítico nacional de gestação do MST é marcado por intensas manifestações sociais urbanas na luta por direitos em meados da década de 1980, período de redemocratização do país em razão do desgaste da Ditadura CivilMilitar. No âmbito das dinâmicas de lutas pela terra no campo brasileiro, observamos processos de marginalização pelos quais passaram os trabalhadores rurais quanto às decisões no campo da política institucional e informal sobre o acesso e a propriedade da terra, tendo desdobramentos sociais e econômicos na vida dos camponeses, vistos, portanto, como dependentes do poder governamental e dos proprietários latifundiários. Se por um lado os grandes proprietários de terra em alianças com parlamentares se muniram de força física e violência para submeter os trabalhadores do campo e suas lideranças ao seu poderio, por outro, temos o surgimento de articulações para organização desses trabalhadores, como o Partido Comunista do Brasil (PCB) no início do Século XX, a formação das Ligas Camponesas (início de 1950), os sindicatos rurais e a atuação de alguns setores da Igreja Católica como as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e a Comissão Pastoral da Terra (CPT), experiências de ações políticas que estão no berço de formação do MST. Este, em suas primeiras ações, atua na organização de grupos para a formação de acampamentos4 e assentamentos através da ocupação e desapropriação de terras – ações atualmente ancoradas nos Artigos 184, 186 e 187 da Constituição Federal, que tratam sobre políticas agrícolas referentes a latifúndios improdutivos –, bem como na realização de encontros com trabalhadores do campo, promovendo cursos de formação política. O contexto sociopolítico brasileiro dessa época é marcado, então, pela [...] emergência de um novo sujeito histórico (...) por sua consciência e sua luta; enfim, os trabalhadores da terra decidem emergir das sombras e da passividade e reivindicar (...) uma luta que não se 4 A formação de acampamentos configura-se como aprendizado das ações do Movimento dos Agricultores Sem Terra (MASTER). Cabe informar que os acampamentos são formados por um conjunto de barracas onde as famílias dos trabalhadores rurais moram. resume à luta pela terra (...) mas que se estende à revitalização da família e seu mundo (MARTINS, 2000, p. 27). Nesse sopro de reinvenção na luta pela terra, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra realizou o seu 1o Encontro Nacional no ano de 1984, em Cascavel/PR, contando com o apoio da Comissão Pastoral da Terra (CPT), e o seu 1o Congresso Nacional em 1985, em Curitiba/PR5. As lideranças do MST apontam que [...] era preciso ultrapassar a etapa da luta pela terra, originária na luta dos posseiros e das ocupações isoladas de latifúndios, e transformar isto tudo em luta pela reforma agrária, colocando-a em um novo patamar da política. Agora todas as mobilizações deveriam entrelaçarse com a sociedade, pois os trabalhadores sem-terra entenderam que a derrota do latifúndio no Brasil não pode ser do interesse somente dos que querem trabalhar na terra, mas de todos aqueles que querem ver alimento farto em todas as mesas (BOGO, 1999, p. 20). Apontando para dois problemas estruturais no campo, a pobreza e a desigualdade, o MST retoma a proposta da democratização da terra, acreditando que os camponeses assentados, ao terem acesso ao capital, podem desenvolver a sua produção agrícola, instalando suas próprias agroindústrias, promovendo mecanismos de acesso a mercados e à comercialização dos seus produtos com a derrubada da cerca do latifúndio, do capital e da ignorância para a eliminação da pobreza e das desigualdades sociais no campo (STÉDILE; FERNANDES, 1999). Ora, as políticas fundiárias, tal qual a contida no Artigo 184 da Constituição Federal de 1988, trazem a prerrogativa de a União desapropriar um imóvel rural e destiná-lo para fins de reforma agrária quando este não cumprir sua função social de utilizar adequadamente os seus recursos naturais e quando não cumprir aos itens previstos nas leis trabalhistas. Podemos identificar, a partir disso, que as reivindicações do MST apontam para a importância da relação de proximidade existente entre trabalho e produção de vida em denúncia aos latifúndios improdutivos e ao não cumprimento das políticas fundiárias, como a proposta do Artigo 187 da Constituição Federal, que traz a prerrogativa de inclusão dos trabalhadores rurais no processo de produção agrícola respaldada pelo planejamento em forma de lei, pois é a partir do controle da sua produção que o homem 5 Entre as ações que impulsionaram a criação do MST, destacamos a formação do acampamento na Fazenda Sarandi, ainda em 1962, no município de Sarandi/RS. tem a possibilidade de libertação das opressões vivenciadas ao longo da história das famílias camponesas (BOGO, 2009). Para Paiva (2005), a inovação do MST no combate às desigualdades produzidas no meio rural está nos investimentos realizados na educação formal dos camponeses acompanhada pela formação política, proporcionando a apropriação do saber institucionalizado ressignificado pela leitura social crítica desenvolvida na prática militante, processo construtor de novos valores nas relações dos sujeitos em suas práticas de reivindicações de direitos. Entre as argumentações das lideranças do MST, identificamos que, mesmo sendo atribuída à causa de terras no Brasil uma repercussão nacional, desde a época das Ligas Camponesas e do sindicalismo rural, e mesmo com a observação de algumas medidas em favor dos trabalhadores rurais por parte do Estado, “o jogo de forças sociais no interior do próprio Estado e a falta de empenho do poder público acabaram por impedir maiores realizações” (BERGAMASCO; NORDER, 1996, p. 30). Enquanto as ações práticas do Estado apontam a propriedade da terra como um caráter individual, o Movimento Sem Terra propõe direitos coletivos ou comunitários em práticas de reinvenção social (discussão trazida em 1980 pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil-CNBB- no documento Igreja e problemas da terra) nas áreas onde atua, como os assentamentos, os quais [...] podem ser definidos como a criação de novas unidades de produção agrícola, por meio de políticas governamentais visando o reordenamento do uso da terra, em benefício de trabalhadores rurais sem terra ou com pouca terra; como o seu significado remete à fixação do trabalhador na agricultura, envolve também a disponibilidade e o incentivo à organização social e à vida comunitária (...) assim, os assentamentos rurais representam uma importante iniciativa no sentido de gerar empregos diretos e indiretos a baixo custo e para estabelecer um modelo de desenvolvimento agrícola em bases sociais mais equitativas; é neste contexto que (...) se registra a busca de novos padrões sociais na organização do processo de produção agrícola (BERGAMASCO; NORDER, 1996, p. 7). As ações para multiplicação de assentamentos de reforma agrária podem ser compreendidas como a novidade descrita por Martins (1984) na luta pela terra, pois se configuram como coletivos organizados por famílias forjadas na resistência política durante a fase de acampamento, morando em barracas de lona e vivendo com precárias condições de infraestrutura e que também possuem uma vida tecida por realidades partilhadas em comum, de exploração nas fazendas onde foram criadas. Podemos identificar as ações do MST como propostas de canais de cooperação social, os quais podem ser utilizados para o fortalecimento da organização dos trabalhadores do campo em suas atividades de protagonismo, a partir da participação das famílias através da agricultura familiar mediante as propostas de inovações sociais (MARTINS, 2000). Os assentamentos rurais, portanto, podem ser apreendidos como alternativas tanto à expulsão do homem do campo, da sua própria terra, quanto de resistências às formas de implantação dos processos de produção do modelo capitalista, potencializador da pobreza no meio rural (STÉDILE; FERNANDES, 1999), levantando a pauta da disputa por condições dignas de trabalho como meio de produção e construção de uma identidade humana do próprio homem no campo através da Reforma Agrária. A formação de assentamentos é, assim, um resultado do confronto, da luta de classes, se fazendo reflexo das conquistas realizadas pelos trabalhadores (STÉDILE; FERNANDES, 1999). Contudo, isso não garante a produção de vida buscada por seus protagonistas, pois não é em si apenas a luta pela propriedade da terra, mas também a disputa pelo reconhecimento e pela consolidação do acesso ao uso reordenado da terra pelos agricultores (BERGAMASCO; NORDER, 1996; MARTINS, 1989, 1999). O reordenamento na utilização da terra, com geração de empregos diretos e indiretos, aparece como um impulso a um tipo diferente de organização social dentro dos assentamentos, visando à viabilização da produção agrícola em associativismo e gerando a necessidade de continuação da organização coletiva nas lutas pela terra, podendo estender-se à produção econômica, como por exemplo, o acesso aos créditos fundiários e a reestruturação da família e do mundo camponês (MARTINS, 2000). Paralelamente às ações nos assentamentos, têm-se a formação de acampamentos como denúncia das insuficiências da política em relação aos conflitos fundiários, pois os acampamentos apontam para um constante recriar da perversidade da pobreza, bem como revelam a privação da participação das famílias no cenário social e econômico do país. Além disso, denunciam o não cumprimento das políticas fundiárias de desapropriação de terras improdutivas. Identificamos no MST, portanto, um movimento social de identidade com princípios e valores políticos próprios através de processos fomentadores de agentes sociais militantes construtores desses ideais de luta política, traduzida no social e no econômico. Pois, os embates travados na esfera das ações políticas são uma investida para a melhoria das condições de vida das famílias camponesas em suas relações de sociabilidade ou para obter maior disponibilidade dos serviços públicos de educação, saúde e lazer, por exemplo, como os direitos conquistados nos projetos de viabilização da produção econômica dos agricultores organizados em assentamentos. Assim, no processo histórico brasileiro de luta no âmbito da questão agrária, com desdobramentos e consequências marcantes nos dias atuais, o papel do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra é entendido pelas suas lideranças como de esclarecimento/conscientização/organização dos seus componentes (famílias, militantes e novos integrantes) sobre a realidade social e local através da consolidação de sua identidade coletiva a partir da construção dos seus princípios e valores políticos. Por se tratar de dinâmicas de articulação das famílias, enquanto grupo social, compreendemos o processo de consolidação de identidade política como uma possibilidade de organização do homem e da mulher do campo na luta pela terra, pois nessa concepção de embates travados pelos trabalhadores rurais para efetivação da reforma agrária, constituiu-se a formação de novos pontos de produção de vida e de moradia a partir das suas reivindicações sociais e políticas na construção de assentamentos rurais. Dessa maneira, as ações políticas do MST reclamam o protagonismo das famílias do campo, sobretudo das famílias assentadas, convocando-as para reivindicações sociais, tendo em vista que somente na esfera política o homem pode ter a expectativa de promover uma ação e de gerar um novo início nos processos sociais da vida comunitária (ARENDT, 2005). Assim, a esfera pública, na qual se dá o espaço da política, constitui o lugar no qual os homens podem exercer as reivindicações daquilo que lhes é assegurado pelo regime político, como as prerrogativas expostas nos Artigos 184, 186 e 187 da Constituição Federal, ou pelo que eles entendem ser próprio de suas demandas sociais. Nessa perspectiva de participação dos homens na esfera política e na reflexão das dinâmicas dos movimentos sociais do campo, como os assentamentos na questão agrária, compreendemos que os militantes assentados ao atuarem no espaço reservado para a tomada das decisões políticas dão vazão à sua voz de participantes ativos numa sociedade democrática, pois, esses agentes, ao se articularem em conjunto, promovem maior ênfase em torno daquilo pelo qual estão lutando, de modo que uma maior quantidade de pessoas envolvidas na mesma causa promove maior pressão sobre uma situação partilhada em comum por várias famílias, [...] por isso, deve-se aproveitar ao máximo, para que, embora sejam ainda parciais e enfrentem muitas dificuldades, essas áreas de assentamento sejam um acúmulo de forças para a continuidade da luta pela reforma agrária mais ampla. Por isso é importante os assentados continuarem organizados no MST. E o governo justamente procura transformar os assentados em pequenos produtores agricultores autônomos para separá-los da organização, que significa forças para a reforma agrária (STÉDILE; FERNANDES, 1999, p.163). A expectativa de luta nos assentamentos se configura como espaço social onde o homem pode desencadear processos de mudanças no seu curso histórico e promover novos acontecimentos nos embates para suas reivindicações políticas, e, assim, terem a possibilidade de denunciar a violência sofrida e a expectativa de romperem com o monopólio da ordem vigente que os tornam submetidos aos homens nos cargos políticos, os quais muitas vezes optam por defender seus próprios interesses. Os agentes sociais em assentamentos tendem a procurar articulações a partir de uma demanda comum, a luta pela conquista da terra, e de uma necessidade partilhada por todos, de criar condições propícias de construção digna de vida no campo, pois é necessária, além da distribuição de terras, a criação de condições tanto de produção quanto do seu escoamento para os pequenos proprietários rurais com autonomia frente ao monopólio capitalista (VEIGA, 1986). Dessa forma, a voz levantada pelos movimentos sociais, como o MST, por exemplo, reivindicam a reforma agrária em denúncia do modelo capitalista, conquistando, de certa maneira, a adesão de parte da população, pressionando os grupos de parlamentares e interferindo nos espaços de decisões políticas, sobretudo por que “as novas unidades produtivas criadas a partir de uma reforma agrária podem se organizar de várias maneiras” (VEIGA, 1986, p. 22), na construção da ideia de que a terra deve pertencer a quem nela trabalha. Com esse pensamento, a população, por um lado, tende a reconhecer na luta pela reforma agrária outras demandas sociais e políticas para desmascaramento do sistema de exploração imposto pelo regime atual. Por outro, os políticos eleitos ficam de certa forma pressionados a responderem satisfatoriamente às demandas da população sempre alheia aos processos históricos reguladores do andamento do cenário político e social nacional. De acampados à peleja de assentados: uma Nova Esperança em Ceará-Mirim/RN O Assentamento Rosário, localizado no município de Ceará Mirim/RN, teve início em junho de 1997, com a ocupação da fazenda Santa Maria, na formação de um acampamento composto por famílias de agricultores (homens, mulheres e crianças), originárias de Dom Marcolino (distrito do município de Barra de Maxaranguape), Punaú (distrito de Rio do Fogo) e de Ceará Mirim. A mobilização das famílias para a realização da ocupação foi feita pelo MST, além de outros atores como o Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Ceará Mirim (STTRCM). Durante o período do acampamento, cuja duração foi cerca de um ano, as famílias participaram de ações do MST, como bloqueios de rodovias, reivindicações em órgãos públicos (prefeituras, sedes do governo estadual e Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária-INCRA), além de receberem sete ordens de despejo6 executadas pela Polícia Militar exigindo que as famílias desmontassem as barracas e se retirassem do local. Segundo as falas dos assentados, os momentos de despejos foram marcados por intensos conflitos entre os policiais e as famílias acampadas, pois, de um lado, estava a força policial com a obrigação de fazer cumprir uma ordem judicial, promovendo a manutenção da propriedade privada da fazenda, vista pelos acampados como uma expressão da concentração de terras e das desigualdades sociais no campo, e, de outro, as famílias acampadas, encarando a obrigação de deixarem o local como mais uma forma de marginalização do acesso à propriedade da terra. Após a execução de cada despejo, as famílias se organizavam novamente, retornando à área para montarem novo acampamento, sempre com um número maior de pessoas, chegando até cerca de 250 famílias acampadas. As condições de vida no acampamento eram precárias, as moradias feitas de barracas de lona preta ou de palhas de coqueiros, sem estrutura de escola ou de sistema de saúde públicos, entre outros serviços. Portanto, diante do quadro de dificuldades, as famílias acampadas se mobilizavam para realização de ocupações em órgãos governamentais, como o INCRA, através dos quais reivindicavam agilidade nos 6 Ordens de despejo são mandatos judiciais de reintegração de posse que exigem a retirada das famílias do local de acampamento onde estão instaladas e a reintegração de posse da área ocupada ao proprietário. processos de desapropriação das terras, e a prefeitura de Ceará Mirim, da qual cobravam melhores condições de infraestrutura para o acampamento, como serviços de saúde, abastecimento de água, estruturação de escola, etc.. Em suas falas, os assentados relatam a importância do apoio de educadores que dialogam com a causa das famílias, aliando o ensino formal com a formação política das famílias já durante o acampamento. Logo no período do acampamento, as famílias tiveram acesso a estudos sobre formas de organização coletiva a partir de debates sobre a luta pela terra e de como garantir a subsistência no campo e nos assentamentos através da produção na agricultura familiar. Assim, quanto mais envolvidas no processo de luta pelo desenvolvimento do homem do campo, mais as famílias se sentiam motivadas a reivindicarem a desapropriação de grandes fazendas para a formação dos assentamentos de reforma agrária, uma vez que luta é uma palavra central nas narrativas desses conflitos, e aponta para enfrentamentos concretos e prolongados, com múltiplos episódios, alguns dos quais envolvendo violência física (COMERFORD, 1999, p. 19). A desapropriação da fazenda Santa Maria ocorreu no dia 18 de março de 1998, ano no qual, ao dia 10 de junho, foi dada a emissão de posse para as famílias acampadas. O Projeto de Assentamento Rosário tem área de 994,1468 hectares disponível para o uso assentados, excluída as áreas de reservas, ao passo que o tamanho médio disponível para cultivo por família é de 8,28 hectares. As 120 famílias ali assentadas são em grande parte de origem camponesa, e a maioria permanece desde o início do acampamento. O Assentamento é formado por duas agrovilas e conta com um número de cinco associações, entre as quais está a Associação Nova Esperança, tomada como espaço coletivo para as reflexões aqui descritas, e cuja fundação data no dia 03 de agosto de 2009. Desde então, seus associados vêm construindo o hábito de reuniões mensais, as quais, atualmente, são realizadas no dia 5 de cada mês, sempre no início da noite na casa de uma das famílias associadas. Caso esse dia seja em um fim de semana ou feriado, a reunião é transferida sistematicamente para o próximo dia útil, de maneira que essa dinâmica de reuniões, segundo os componentes da associação, já é parte da rotina de responsabilidades dos associados. À medida que os participantes chegam ao local de reuniões, logo vão se acomodando entre os pilares e paredes do espaço, de forma que todos ficam em condições de verem uns aos outros sem que qualquer pessoa fique escondida. As conversas que antecedem esses momentos giram em torno das notícias do município, como a expansão do comercio local com a chegada de lojas de eletrodomésticos e a multiplicação das construções de casas populares nos projetos do governo federal. As prosas tratam, ainda, de assuntos do dia-a-dia do assentamento, como as dinâmicas realizadas no trabalho de organização produtiva, com as atividades que tiveram êxito e as que não apresentaram bons resultados, como perdas de algumas partes do roçado; a situação dos pagamentos dos agricultores envolvidos nos projetos de escoamento da produção; as formas de utilização dos recursos financeiros e a organização dos calendários de ações políticas dos movimentos sociais, estes últimos temas sendo sempre aprofundados nas discussões da própria reunião. Compreendemos, portanto, as dinâmicas de reuniões [...] para além de sua dimensão instrumental de simples meios de tomar decisões ou discutir assuntos do interesse dos membros das organizações, as reuniões podem ser vistas como um elemento importante na construção desse universo social, na medida em que criam um espaço de sociabilidade que contribui para a consolidação de relações que atravessam a estrutura formal das organizações, estabelecem alguns dos parâmetros e mecanismos para disputas pelo poder no seio dessas organizações, possuem uma dimensão de construção ritualizada de símbolos coletivos e colocam em ação múltiplas concepções ou representações relativas à natureza das organizações dos trabalhadores e o papel de seus dirigentes e membros, bem como sobre a natureza da própria categoria que essas organizações se propõem a representar (COMERFORD, 1999, p. 47.) Atualmente, a Associação conta com um número de quarenta famílias associadas e dispõe de projetos vinculados ao Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), do qual participa desde o ano 2009, e ao Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). Esses programas de escoamento da produção fazem parte do pacote de políticas do governo federal implantado no Programa Fome Zero. Enquanto no PNAE os produtos utilizados são comercializados com a prefeitura de Ceará Mirim e de São Gonçalo do Amarante para atender as escolas desses municípios como complemento da merenda escolar, pois esse programa prevê que 30% da alimentação das escolas municipais sejam oriundos da produção da agricultura familiar, o PAA garante a comercialização dos produtos com a Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB), a qual os destina para instituições sociais para atenderem a setores da população local vivendo em situações precárias ou de vulnerabilidade, como hospitais, grupos religiosos e movimentos sociais, entre outros. Os produtos cultivados pelas famílias da Associação Nova Esperança para comercialização são principalmente banana, batata, cebolinha, feijão, goiaba, jerimum, melancia, mamão e macaxeira, ao passo que a participação dos assentados na Associação se dá mediante os projetos nos quais estão inseridos. Por exemplo, nos projetos do PAA, em que são comercializados banana, batata, jerimum, melancia e macaxeira, entre outros, participam os associados que produzem esses tipos de culturas; já nos projetos do PNAE, participam aqueles produtores das culturas nele comercializadas. Caso haja a exigência do mesmo produto em diferentes projetos, os agricultores procuram garantir a entrega da produção aumentando sua plantação ou em cooperação entre os produtores, de acordo com a quantidade exigida para cada cultura, visto que os editais públicos, lançados para concorrência das associações que serão contratadas, trazem as demandas das quantidades e qualidade dos produtos exigidos nos programas. Para o trabalho da produção na Nova Esperança, alguns associados se organizam por unidade de família, a qual cultiva de maneira individual o seu lote, com o trabalho sendo realizado pelo homem da família com a participação de alguns agregados como filhos e sobrinhos, ao passo que as famílias compostas por mulheres e filhos desenvolvem a produção através da contratação de trabalhadores oriundos da vizinhança. Além disso, identificamos núcleos de associados que se organizam em grupos, seja por laços familiares seja por afinidades de amizades, de modo que essa forma de realização do trabalho permite aos produtores de um mesmo grupo juntarem as áreas de plantação de três ou quatro, às vezes até de cinco famílias, as quais se revezam no cultivo da terra, desde as primeiras atividades de preparação do terreno até a colheita da produção, rendendo, dessa maneira, maior produtividade para as famílias participantes dos grupos. Entendemos, a partir dessas dinâmicas de trabalho de organização individual ou em núcleos, que as famílias cujo tempo de investimento no cultivo da terra é maior são aquelas que conseguem obter maiores quantidades de produtos, e, consequentemente, maiores subsídios para assegurarem suas entregas nos projetos de escoamento da produção, uma vez que o fato de ser associado não garante a participação nessas ações, e mesmo com o objetivo de fazer com que todos participem do PAA ou PNAE, por exemplo, apenas quem produz as quantidades dos produtos exigidos consegue garantir a sua participação assim como a participação da associação nesses projetos. Entre os núcleos de associados organizados em grupos, identificamos dois blocos: um primeiro, cujos associados não mantêm vínculos diretos com movimentos sociais, seja participando das suas reuniões, ações de reivindicações e mobilizações, e um segundo que tem entre os seus associados militantes do MST, os quais são vistos como lideranças tanto no espaço da Associação quanto no assentamento, pois na medida em que estão inseridos nas ações do MST, como reuniões com outros movimentos sociais, mobilizações e audiências com os órgãos governamentais (prefeituras, governo estadual, INCRA, etc.) conseguem ter acesso em primeira mão das informações sobre os programas a serem lançados para os assentamentos, seja de projetos ligados à produção econômica seja de projetos de reformas das casas, de educação, etc.. A participação nesses espaços de discussões fora do assentamento proporciona aos seus interlocutores maiores articulações com outros grupos de agricultores ou pertencentes a outras atividades trabalhistas, políticas e sociais, tanto do ponto de vista institucional, como no conhecimento dos editais lançados para os projetos de escoamento da produção ou de outra natureza, quanto do ponto de vista informal, conhecendo experiências de outros assentamentos da região e de fora do estado do Rio Grande do Norte. A constituição dessas relações de redes no campo (SCHMITT, 2011) proporcionam trocas de experiências nas ações de organização na luta pela terra entre movimentos sociais, fortalecem as dinâmicas cotidianas, sobretudo do ponto de vista institucional nas reivindicações do cumprimento das políticas agrícolas previstas nas leis constitucionais, e favorecem a estruturação de vínculos de confiança a partir das ações já consolidadas nos rearranjos sociais para produção de alimentos. Identificamos que os associados da Nova Esperança com maior produtividade são aqueles cujas redes de relações, tanto no assentamento entre as famílias assentadas, quanto fora dele, como no contato com movimentos sociais, permitem maior participação política nas reuniões e discussões da associação, pela “busca de novos padrões sociais na organização do processo de produção agrícola" (BERGAMASCO; NORDER, 1996, pg. 7). As negociações via programas governamentais de escoamento da produção podem viabilizar uma melhoria na renda dos agricultores, visto que um dos principais pontos das discussões entre a Associação e a Prefeitura, por exemplo, é para que os preços de compra do PAA e do PNAE sejam maiores que os valores pagos pelos atravessadores, os quais compram a baixos preços os produtos alimentícios7. Esses dois programas possibilitam aos agricultores a comercialização dos seus produtos sem precisarem de terceiros ou atravessadores, resultando para as famílias envolvidas um maior rendimento dos lucros econômicos, consequentemente, maior aproveitamento do seu trabalho nos lotes de produção, além da possibilidade de os assentados cogitarem a ampliação da participação em projetos desse porte em outras prefeituras, assim como de pleitearem a conquista de outros benefícios, como projetos de irrigação, de reformas de casas, de apoio às mulheres. O fortalecimento da participação dos assentados em associações vem proporcionando a mobilização de outros segmentos sociais na produção de suas próprias atividades políticas e econômicas, como a organização de jovens e mulheres para a formação de grupos que busquem a participação em programas com vistas ao desenvolvimento de ações em projetos de educação e formação profissional, como o ProJovem Campo Saberes da Terra8, no qual alguns jovens do assentamento estão inseridos. Esses cursos discutem a importância de estudos que contemplam os conteúdos necessários para atuação no desenvolvimento da agricultura familiar, como a construção de um mercado popular pelas famílias camponesas a partir da coletividade da autonomia da organização e representação frente à politica econômica instaurada pelos atravessadores que comercializam com as famílias assentadas. Entendemos, com isso, que a primeira forma de organização ainda na formação do acampamento gera um tipo de experiência política voltada para reivindicação da 7 8 Ora, não participando dos Programas dessa natureza, e para não perder sua produção de alimentos perecíveis, os agricultores muitas vezes são obrigados a vendê-los com os preços cobrados pelos atravessadores, mesmo sendo preços muito baixos, acarretando baixa lucratividade para as famílias. O Projeto Piloto Saberes da Terra foi montado em 2005/2006 e está relacionado com a mobilização dos movimentos sociais do campo em prol da garantia da construção de novas propostas de desenvolvimento do meio rural, assim como para os povos ali residentes. O Projeto traz o desafio político-pedagógico de promover a escolarização para qualificação social e profissional dos educandos. Sua inovação aponta para o sentido de adotar a pedagogia com a vinculação entre educação, trabalho e sociedade, encarando a agricultura familiar como eixo central das aulas. desapropriação da fazenda e constituição do assentamento, resultando na necessidade de novas articulações internas para o desenvolvimento do trabalho na agricultura, o qual torna essencial outras maneiras de articulações para efetivação e participação nos projetos de escoamento da produção. Dessa maneira, no processo de articulação e dinamização das famílias sem-terra, configura-se um desencadeamento de ações organizativas ora mais internas ao assentamento ora caracterizadas pela relação com grupos externos. Considerações Identificamos que a participação efetiva nas lutas e organização de assentamentos dos movimentos sociais, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, vem proporcionando a construção de espaços políticos estratégicos na produção, reprodução e transformação da realidade, mediante a clareza do papel dos agentes sociais do campo em suas ressignificações políticas na luta pela terra. Constatamos, ainda, que as famílias assentadas organizadas em grupos associativos e que tem entre seus membros militantes do MST tendem a ter maior participação nas discussões, emitindo suas opiniões, concordâncias e contraposições em relação aos assuntos debatidos nesse espaço. Os associados vistos como lideranças, tanto social quanto política, conseguem estabelecer maior dinamização nos grupos dos quais participam, incentivando-os a uma maior participação nas reuniões e discussões relacionadas a melhorias da estrutura da associação. Compreendemos, assim, que os assentados mais participativos nas reuniões da associação e nas discussões de quais projetos concorrerem, bem como nos debates sobre como podem melhorar seu potencial produtivo e de como se organizar para reivindicações junto à prefeitura municipal para efetivação das políticas voltadas para o campo, por exemplo, são os associados que conseguem atingir a meta estipulada para cada produção, pois, uma vez garantindo a produção nos seus lotes, a próxima necessidade é lutar pelo escoamento da mesma. Entendemos, portanto, que a associação nos assentamentos pode ser considerada como um espaço promotor da reorganização dos assentados para reivindicarem políticas governamentais com vistas ao uso reordenado da terra e através da vida comunitária organizada por agricultores marcados por processos de marginalização no campo (BERGAMASCO; NORDER, 1996). Essa dinâmica produtiva entre os assentados promove a reaproximação do homem do campo à terra sem a mediação de um terceiro agente, como um proprietário rural, como outrora era permeada a vida das famílias que não tinham acesso à propriedade da terra e estavam a mercê dos seus patrões ou dos grandes latifundiários, no sentido da separação entre o homem e a suas fontes vitais de subsistência, descrito por Kautsky (1998). Assim, diante do fato de que a cultura permite ao homem o domínio sobre a natureza através do emprego de atividades para adaptar o meio às suas necessidades, o tipo e o grau de desenvolvimento do domínio da natureza consistem no modo de produção empregado pelo homem para tal atividade. Desse modo, concordamos com Bergamasco e Norder (1996) ao compreendermos o trabalho produtivo nessa associação como uma possibilidade de geração de emprego e renda para os trabalhadores ali atuantes, a partir de uma lógica de estruturação de processos sociais desencadeadores de bases mais igualitárias para a organização da vida das famílias residentes no assentamento e no entorno dele, assim como para a construção de uma identidade de representação política a partir dos próprios interesses dos assentados. Configura-se, portanto, uma forma de oportunizar as famílias campesinas sua permanência no meio rural, visto que esse modelo associativo de produção agrícola nos assentamentos rurais contribui para o aumento da oferta de alimentos, tanto para os moradores do campo quanto para os moradores da cidade através da venda dos produtos mediante a transformação da produção de subsistência em meio de comercialização dos produtos extraídos da agricultura nesse Assentamento, onde, entre os associados entrevistados da Nova Esperança, cerca de 80% mantem seu trabalho somente com atividades agrícolas no próprio assentamento. Esse tipo de produtividade vem contribuindo para o melhor aproveitamento do trabalho coletivo no meio rural, formalizado em uma estrutura de organização associativa nos assentamentos. Assim, identificamos que essa lógica de produção rural é uma possibilidade de geração de emprego, renda e serviço para as famílias assentadas, e, portanto, aponta indícios de oportunidades de permanência das famílias no campo, mediante a sua participação no processo de escoamento da produção por elas realizadas, sobretudo, através da participação em reivindicações para cumprimentos das políticas agrícolas. REFERÊNCIAS ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005. BERGAMASCO, S. M. P. P.; NORDER, L. A. C. O que são assentamentos rurais. São Paulo, Editora Brasiliense, Coleção Primeiros Passos, 1996. BOGO, Ademar. Lições da luta pela terra. Salvador, Memorial das Letras, 1999. _____. O MST e a cultura. São Paulo, Editora Expressão Popular, 2009, 3a edição. BRASIL. Constituição Federal do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988. COMERFORD, Jonh Cunha. Fazendo a luta: sociabilidade, falas e rituais na construção de organizações camponesas. Rio de Janeiro, Editora Volume Dumará: Núcleo de Antropologia Política, 1999. KAUTSKY, Karl. A Questão Agrária. Brasília: Linha Gráfica Instituto Teotônio Vilela, 1998. MARTINS, José de Souza. A militarização da Questão Agrária no Brasil. Rio de Janeiro, Editora Vozes, 1984. _____. Caminhada no chão da noite – Emancipação política e Libertação nos Movimentos Sociais no Campo. São Paulo, Editora Hucitec, 1989. _____. Reforma Agrária: o impossível diálogo sobre a história possível. Ministério do Desenvolvimento Agrário-Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, Editora da Universidade de São Paulo, 2000. MEDEIROS, Leonilde Sérvolo de. História dos movimentos sociais no campo. Rio de Janeiro: Fase, 1989. PAIVA, Irene Alves de. Aprendizados da prática coletiva: assentados e militantes do MST. Tese de Doutorado não publicada, USP, São Paulo, 2003. SCHMITT, Claudia Job. Redes, atores e desenvolvimento rural: perspectivas na construção de uma abordagem relacional. Sociologias (UFRGS. Impresso), 2011, v. 13. STÉDILE, João Pedro; FERNANDES, Bernardo Mançano. Brava Gente: a trajetória do MST e a luta pela terra no Brasil. São Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo, 1999, 1a edição. VEIGA, José Eli. O que é Reforma Agrária. 11. ed. São Paulo, Editora Brasiliense, Coleção Primeiros Passos, 1986.