Acesso e repartição de benefícios: Princípios, normas e práticas Uma Visão geral para o setor cosmético Resumo Executivo Diante da crescente demanda por produtos feitos a partir de ingredientes naturais obtidos de forma ética, as empresas de cosméticos precisam entender de forma clara como os princípios de acesso e a repartição de benefícios (cuja sigla em inglês é ABS) se aplicam para os produtos provenientes da biodiversidade. Esta visão geral descreve a situação atual da política e implementação de ABS e convida as empresas de cosméticos para uma participação ativa nos contínuos debates e negociações a respeito de ABS. A Convenção sobre Diversidade Biológica de 1992 (CDB) é o primeiro acordo global a cobrir todos os aspectos da conservação e uso sustentável da diversidade biológica. As suas disposições, em especial aquelas que tratam de ABS, representam uma virada na governança da biodiversidade. A CDB conferiu autoridade aos governos nacionais para determinar e regulamentar o acesso aos recursos genéticos. Em particular, ela estabeleceu que esse acesso, deve ser objeto de um consentimento prévio do país fornecedor, com base em termos mutuamente acordados, incluindo a repartição justa e equitativa de quaisquer benefícios resultantes. A CDB também desempenhou um papel importante na mudança da percepção pública dos produtos provenientes da bodiversidade. A conformidade com os princípios de ABS vem se tornando não somente uma exigência legal para um número crescente de produtos naturais do setor de cosméticos, mas também um passo necessário para o estabelecimento da responsabilidade social e ambiental das empresas, tornando-se um passo essencial para garantir a boa reputação dessas empresas. Evitar acusações de biopirataria, freqüentemente associadas a patentes de ingredientes naturais, é particularmente crucial. No entanto, as políticas de ABS continuam sendo um desafio difícil de ser implementado. A sensibilização do setor cosmético sobre a relevância de ABS é limitada. A falta de regimes jurídicos claros sobre ABS, em âmbito nacional aumenta a complexidade. Ao mesmo tempo, uma série de diretrizes e ferramentas, incluindo as Diretrizes de Bonn sobre ABS, dá um suporte valioso. O trabalho de empresas pioneiras de cosméticos também mostra a viabilidade e os benefícios de uma abordagem pró-ativa de ABS. No entanto, a participação mínima do setor de cosméticos nas frequentes negociações da CDB para um sistema internacional de ABS continua sendo um importante desafio. Essas negociações, que deverão ser finalizadas em 2010, estabelecerão regras pertinentes às atividades e produtos provenientes da biodiversidade. Regras práticas e transparentes podem facilitar o trabalho com ingredientes naturais no setor de cosméticos; regras imprecisas ou irreais, no entanto, tornariam este trabalho mais difícil. Se os fabricantes de cosméticos não participarem dessas negociações, há poucas chances que o regime internacional resultante atenda às necessidades e características específicas deste setor 1 Introdução Com o aumento da conscientização ambiental, aumenta também o interesse do consumidor em relação a produtos provenientes da biodiversidade. Isso é especialmente verdade no setor de cosméticos, onde ativos de base vegetal lideram o mercado de ingredientes e um público cada vez mais informado exige ingredientes naturais que sejam seguros, sustentáveis e eticamente gerenciados. Isso significa garantir que o acesso aos recursos genéticos seja baseado em termos mutuamente acordados e que todas as partes envolvidas ao longo da cadeia de abastecimento repartam os benefícios resultantes da sua utilização. Essa é uma tarefa difícil, considerando a falta de clareza das normas internacionais e a realidade complexa do abastecimento (sourcing) de ingredientes obtidos da biodiversidade de diversos países com diferentes regulamentos ou até mesmo falta desses. Para tratar dessas questões de forma pró-ativa, as empresas de cosméticos devem desenvolver uma compreensão clara dos princípios de acesso e repartição de benefícios (ABS) e da forma como esses princípios devem ser colocados em prática. Elas também devem participar das negociações atuais sobre o regime internacional de ABS para garantir que suas necessidades específicas sejam consideradas na política resultante. O valor da biodiversidade Biodiversidade refere-se a uma diversidade de formas de vida na terra - plantas, animais e microorganismos, bem como os genes que eles contêm e os ecossistemas por eles formados. O ser humano depende desses recursos biológicos para o seu sustento, saúde e bem-estar. A biodiversidade fornece insumos básicos para setores como o setor: agrícola, farmacêutico, cosméticos e de horticultura. Ela também tem funções ambientais essenciais, como a estabilização climática e o controle de enchentes. Por fim, a biodiversidade tem um valor intrínseco de resistência que ela confere aos sistemas ecológicos e aos organismos permitindo que eles respondam a mudanças e se adaptem a elas. O valor da biodiversidade é simultâneamente ambiental, econômico, social e cultural, por este motivo os esforços internacionais para sua proteção devem ir além da preservação. Na Convenção sobre Diversidade Biológica de 1992 (CDB), o acordo internacional mais abrangente sobre biodiversidade (vide Quadro 1), a conservação da biodiversidade está intimamente associada ao seu uso sustentável, o que se traduz por um incentivo econômico para proteger os recursos biológicos. Mais recentemente, a CDB também reconheceu a necessidade de envolver os mercados e as indústrias, que se abastecem e afetam diretamente a biodiversidade, de modo a incentivá-los a adotar e promover boas práticas. 2 Quadro 1. Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB) A CDB é o primeiro acordo global a abranger todos os aspectos da conservação e do uso sustentável da diversidade biológica. Ela representa um marco histórico do direito internacional, reconhecendo pela primeira vez que a conservação da diversidade biológica é uma preocupação comum da humanidade e é parte integrante do processo de desenvolvimento. Aberta para assinaturas durante a Cúpula da Terra (Earth Summit) de 1992 entrou em vigor no ano seguinte. Atualmente conta com 191 Signatários. Os principais objetivos da CDB são a conservação e o uso sustentável da diversidade biológica e a repartição justa e equitativa dos benefícios decorrentes da sua utilização. A CDB converte os seus objetivos em compromissos obrigatórios nos Artigos 6 a 20 que prevêem disposições substantivas sobre medidas para a conservação da biodiversidade, incentivos para o uso sustentável da biodiversidade, sensibilização pública e educação, estudos de avaliação de impactos, regulamentação de acesso aos recursos genéticos e acesso e transferência de tecnologia. Os países são individualmente responsáveis pela implementação da CDB, devendo desenvolver uma série de medidas e atividades, em nível nacional, a fim de colocar em prática as suas obrigações assumidas na CDB. Além disso, a CDB implementa um quadro institucional cujo objetivo é assegurar o desenvolvimento da própria Convenção e monitorar a sua implementação. A autoridade máxima da CDB é a Conferência das Partes (COP), que é formada por todos os governos que ratificaram o tratado. A COP se reúne a cada dois anos para verificar se houve progresso em relação à aplicação da Convenção, identificar novas prioridades e estabelecer planos de trabalho. Ela se apóia na competência e no suporte de diversos outros órgãos, incluindo o seu Secretariado e o Corpo Subsidiário encarregado de fornecer laudos científicos, técnicos e tecnológicos. Dessa forma, a CDB constitui um fórum mundial cobrindo uma série de conferências, no qual as partes interessadas compartilham idéias e comparam suas estratégias. Adaptado de: CDB, Manual da Convenção sobre Diversidade Biológica, incluindo o seu Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança, 3a Edição. Uma estrutura jurídica e política para a biodiversidade Para atingir os seus objetivos, a CDB estabelece uma série de princípios e obrigações que determinam um quadro de política global para a biodiversidade e regem todas as normas e programas relacionados em escala nacional. Esses princípios e obrigações representam uma virada na governança da biodiversidade; particularmente em relação à repartição justa e equitativa dos benefícios provenientes do uso de recursos genéticos, um dos objetivos centrais da CDB. 3 Antes da CDB, os recursos genéticos eram vistos como um patrimônio da humanidade, ou seja, não havia restrição no acesso. Bioprospecção, coleta de plantas e missões etnobotânicas não estavam sujeitas a qualquer regulamentação específica. Os países em desenvolvimento, que detêm grande parte da biodiversidade mundial, preocupavam-se cada vez com a evolução tecnológica e jurídica que permitiam a apropriação e a exploração de recursos genéticos sem quaisquer benefícios para os tradicionais detentores e guardiões desse patrimônio. A CDB, em resposta a essa preocupação e reconhecendo os direitos soberanos dos Estados sobre os seus recursos naturais, confere aos governos nacionais a autoridade para determinar e regular o acesso aos recursos genéticos. Ao mesmo tempo, ela exige que os países fornecedores facilitem o acesso aos seus recursos genéticos para usos ambientalmente corretos. O Artigo 15 da CDB estabelece que o acesso aos recursos genéticos seja submetido ao consentimento prévio informado do país fornecedor. Quando concedido, o acesso ficará sujeito a termos mutuamente acordados, com a repartição justa e equitativa dos benefícios decorrentes dos usos comerciais e outros usos dos recursos genéticos. O artigo 8(j) prevê também que o acesso aos conhecimentos, às inovações e às práticas tradicionais resulte em um interesse relevante para a conservação e o uso sustentável da diversidade biológica. Este acesso deverá ser efetuado com a aprovação e a participação dos detentores desses conhecimentos tradicionais, devendo haver uma repartição equitativa dos benefícios gerados a partir do uso desse conhecimento. Trabalhar com a biodiversidade. Oportunidade e desafios As disposições da CDB, em especial aquelas referentes ao ABS, desempenharam um papel importante na mudança de percepção do público em relação aos produtos provenientes da biodiversidade. A maior consciência dos consumidores em relação à necessidade de conservar o meio ambiente, associada à preferência por produtos naturais, levou, especialmente no setor cosmético, a uma procura crescente por produtos que fazem uso sustentável de recursos biológicos. O interesse dos consumidores vai além da composição do produto, estendendo a sua contribuição para o desenvolvimento econômico, ambiental e social, conforme testemunha o número crescente de selos de comércio justo e ecológicos. A conformidade com os princípios de ABS está, aos poucos, se tornando incontornável. Embora seja verdade que muitos países ainda não tenham implementado o ABS em suas legislações nacionais, o acesso aos recursos genéticos sem prévio consentimento ou sem acordo de repartição de benefícios pode ser considerado uma violação mesmo que de referências gerais aos princípios de ABS. Além disso, as empresas têm que considerar que ignorar os princípios deABS pode acarretar outros riscos como perda de eficiência de suas cadeias de abastecimento ou comprometer a reputação de suas marcas. As empresas privadas, incluindo as do setor cosmético, vêm sendo alvo de acusações de biopirataria (vide Quadro 2). Na verdade, há um risco maior de empresas de cosméticos serem acusadas de biopirataria, uma vez que muitos ingredientes naturais estão relacionados ao conhecimento e práticas tradicionais. O desenvolvimento de políticas de ABS é claramente uma prioridade para as empresas que desejam ser pioneiras no abastecimento (sourcing) ético de produtos provenientes da biodiversidade. Diversas diretrizes, projetos e iniciativas já vêm promovendo as boas práticas em relação ao ABS e desse modo vem contribuindo com os objetivos da CDB. 4 Quadro 2. Patentes e biopirataria “Biopirataria” é o poderoso embora impreciso termo utilizado para expressar uma série de preocupações acerca da apropriação não autorizada ou uso não remunerado de recursos genéticos e conhecimentos tradicionais associados. A CDB estabelece uma série de princípios para o acesso a esses recursos e para a repartição dos benefícios derivados do uso dos mesmos, conferindo autoridade aos governos nacionais para determinar e regulamentar o ABS. Na prática, entretanto, a suposta biopirataria não está necessariamente vinculada ao não cumprimento das normas ou princípios de ABS - tornando muito difícil traçar a linha que separa os atos de biopirataria das práticas legítimas. Os direitos de propriedade intelectual, especialmente aqueles que envolvem as patentes, tornaram-se o ponto central dos debates acerca da biopirataria. Isso se deve em larga escala aos desenvolvimentos ocorridos não na CDB, mas no Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados ao comércio (Acordo TRIPS) da Organização Mundial do Comércio (OMC). O Acordo TRIPS permite, mas não exige que os membros da OMC excluam plantas e animais das formas patenteáveis, ao mesmo tempo em que os obriga especificamente a proteger os microorganismos e certos processos biotecnológicos. Para muitos países em desenvolvimento, o fato que as reivindicações de patente de diversos países possam incluir materiais genéticos e biológicos, incluindo formas de vida, não somente apresenta problemas éticos, mas também permite que as empresas adquiram propriedade sobre recursos genéticos e conhecimento tradicional associado. As ONGs vêm relatando “a crescente oposição mundial à concessão de patentes para materiais biológicos” e apontam a indignação com “os enormes lucros de grandes empresas valendo-se do conhecimento e de recursos biológicos de comunidades do Terceiro Mundo”. As acusações de biopirataria concentram-se em uma gama de patentes que vai desde aquelas que abrangem recursos genéticos ou conhecimento tradicional até aquelas que lidam diretamente com versões purificadas dos recursos, produtos derivados de recursos biológicos ou invenções com base no conhecimento tradicional. Essas acusações, publicadas em relatórios de ONGs e pela mídia especializada - e cada vez mais através dos meios de comunicação mais disseminados, cobrem uma série de situações distintas. Algumas patentes pecam por não atender critérios básicos de patenteabilidade, tais como o critério de inovação. Exemplo a patente sobre a propriedade fungicida do óleo de neem, propriedade esta que é conhecida na Índia há séculos. Outras patentes são criticadas porque abrangem genes, proteínas ou outras formas de vida que muitos consideram que não deveriam ser objeto de propriedade intelectual, seja porque ofende a sensibilidade moral das pessoas seja pelos impactos negativos que isso poderia representar em pesquisas e inovações futuras. Por exemplo, os cientistas notam com preocupação que aproximadamente 74 por cento do genoma do arroz são citados nas reivindicações dos pedidos de patente norte-americana. Outras situações levantam questões sobre o acesso a recursos ou conhecimento sem autorização ou informações suficientes e sem a subseqüente repartição dos benefícios resultantes, conforme se alega ser o caso da pervinca-rosa de Madagascar e dos fármacos relacionados desenvolvidos pela Eli Lilly. 5 No entanto, há outros casos em que o único ponto de discórdia parece ser a ligação entre uma inovação e um recurso biológico nativo de um país em desenvolvimento, conforme ocorreu no caso de uma recente patente para o uso cosmético da quinoa, uma planta nativa do Peru. Adaptado parcialmente de: Dutfield, G. 2004. “What is Biopiracy?” apresentado no Workshop Internacional de especialistas sobre Acesso a Recursos Genéticos e Repartição de Benefícios em Cuernavaca, México, em outubro de 2004. Apesar da importância do ABS e do crescente número de medidas positivas tomadas no setor privado, o desenvolvimento e a implementação de políticas continuam sendo um desafio significativo. Por exemplo, um relatório da CDB revelou que há pouca consciência no setor de cosméticos quanto à relevância das normas de ABS aplicáveis ao setor, ainda que sejam feitos esforços no sentido de contribuir com o desenvolvimento econômico, social e ambiental de parceiros locais (vide Quadro 3). Outro desafio é a incerteza provocada pela implementação limitada do ABS por governos nacionais, conforme visto abaixo. Freqüentemente esses governos se mostram incertos quanto ao que devem fazer a respeito de ABS. Isso é uma verdade especialmente em relação às empresas de cosméticos, cujos modelos de negócios, uso de recursos genéticos e relacionamento com as comunidades locais difere de forma significativa no setor farmacêutico, que em geral vem formando a base dos quadros jurídicos relevantes e de elevadas expectativas econômicas. Quadro 3. O Setor de cosméticos e cuidados pessoais segundo um estudo de ABS da CDB O Secretariado da CDB encomendou um relatório pelo sobre acordos e práticas de ABS em diversos setores da indústria. Constatou-se que, com exceção de algumas empresas, a maioria das indústrias que trabalha com biodiversidade incorporou poucas, se é que incorporou alguma, das lições e exigências da CDB em suas práticas, além de apresentarem um baixo nível de conscientização a respeito de questões de ABS e de continuarem mal organizadas e representadas nas reuniões da CDB. Em particular, o relatório faz menção a um especialista no setor de cosméticos que declara o seguinte: “… empresas de fragrâncias e aromas buscam ativamente novos ingredientes inovadores na natureza, especialmente as empresas fornecedoras de ingredientes, sendo que - como ocorre com muitas empresas do setor de ingredientes - elas não sentem qualquer necessidade de firmar acordos, pagar royalties ou propiciar quaisquer outros benefícios. A maioria jamais sequer ouviu falar da CDB” (Laird e Wynberg, p. 23). Fonte: Laird, S. and Wynberg R. 2008. “Study on Access and Benefit-sharing Arrangements”. CDB. www.cbd.int/doc/publications/cbd-ts-38-en.pdf 6 Implementação nacional de acesso e de repartição de benefícios Mesmo se graças à CDB, os princípios básicos e os elementos de ABS tenham sido reconhecidos internacionalmente, eles permanecem pouco implementados em nível nacional. Poucos países adotaram as disposições legislativas necessárias. O banco de dados da CDB identifica medidas de ABS em apenas 39 dos 191 Signatários da Convenção. Além disso, nem todas essas medidas observaram de forma efetiva as exigências de ABS, uma vez que a natureza, o escopo e a aplicação das mesmas variam de forma significativa. O banco de dados inclui a legislação geral sobre questões ambientais ou de biodiversidade referentes ao ABS, por exemplo, mas não prevê nenhum regulamento ou diretriz para colocar o processo em funcionamento. Mesmo em países que tenham feito legislações bastante detalhadas a respeito de ABS, pode-se dizer que poucos deles apresentam um regime claro e eficiente. Especialistas identificaram problemas tais como processos extremamente complexos, falta de capacidade das agências governamentais competentes e até mesmo falta de entendimento dos conceitos essenciais de ABS. Muitas vezes o âmbito de aplicação das regras de ABS, é pouco claro nas legislações nacionais. As empresas de cosméticos constatam que os ingredientes naturais são por vezes definidos como recursos genéticos (estando desse modo sujeitos às normas de ABS) e outras vezes considerados recursos biológicos e neste caso estariam sujeitos a outro quadro jurídico. A atual negociação na CDB para um regime internacional de ABS pretende remediar a estas deficiências que dificultam implementações em escalas nacionais. Enquanto isso, uma série de iniciativas governamentais, privadas e não governamentais objetivam promover e fornecer orientação para a implementação das normas e princípios de ABS. Nenhum desses instrumentos é juridicamente vinculante, mas, no entanto, fornecem informações úteis e constituem importantes pontos de referência. Quadro 4. Natura: Uma abordagem pró-ativa de ABS A Natura é uma empresa brasileira pautada no princípio de desenvolvimento sustentável que permeia todas as suas estratégias e práticas comerciais. Dentre suas estratégias, notase a linha Ekos, lançada em 2000, que tem como foco o uso sustentável de ingredientes da biodiversidade brasileira, incluindo a castanha do Brasil, o breu branco e o murumuru. Essa linha de produtos já representa 10 por cento das vendas da empresa. Ela também representa uma iniciativa pioneira no sentido de repartir os benefícios decorrentes da utilização de recursosgenéticos e conhecimento tradicional, em sintonia com as exigências da CDB mesmo antes de serem consideradas pela legislação brasileira. 7 A aplicação de princípios de ABS constituiu um dos mais complexos desafios colocados pela linha Ekos e exigiu uma cuidadosa elaboração de estratégias e parcerias. O relacionamento com as diversas comunidades foi desenvolvido levando-se principalmente em consideração as questões de repartição de benefícios, direitos de uso de imagens e dos saberes, certificação e planos de desenvolvimento sustentável local. Atualmente, uma equipe multidisciplinar garante que o vínculo estabelecido com as comunidades atenda a todos os critérios necessários com base em um sistema de controle de qualidade especialmente desenvolvido. Até o presente momento, a Natura possui 56 contratos de fornecimento de recursos naturais que foram negociados com empresas, fazendas e comunidades do Brasil e da América Latina. Dentre eles, diversos são acordos de ABS firmados com comunidades locais que fornecem recursos genéticos ou conhecimento tradicional associado em conformidade com as atuais normas brasileiras de ABS. O Brasil ainda está debatendo sua legislação sobre ABS, que nesse meio tempo vem sendo regulada pela medida provisória de 2001. A falta de regulamentação e a complexidade do regime jurídico atraíram muitas críticas de todos os setores. Para o setor privado, a falta de clareza das exigências de ABS é especialmente preocupante. A Natura vem participando ativamente das discussões acerca de um projeto de lei sobre ABS e, nesse ínterim, continua a investir no uso sustentável de biodiversidade, mantendo suas práticas de transparência, bem como o diálogo com todas as partes interessadas. Adaptado de: Arnt, R. “Natura and access to genetic resources and traditional knowledge” [“Natura e acesso a recursos genéticos e conhecimento tradicional”] Natura. www.natura.net. Diretrizes de Bonn sobre ABS O objetivo das Diretrizes de Bonn, adotadas pela CDB em 2002, é auxiliar os governos e outras partes interessadas a desenvolver uma estratégia global de ABS e definir as medidas a implementar em relação aos temas acesso a recursos genéticos e repartição de benefícios. As Diretrizes ampliam significativamente a CDB nesse sentido, definindo os principais papéis e responsabilidades dos diversos atores e as fases do processo de ABS. Elas enfatizam a necessidade de um sistema de consentimento prévio e termos mutuamente acordados além de termos contratuais para conferir clareza e certeza jurídica e minimizar os custos da transação. Entre outros elementos sugeridos para definição dos termos mutuamente acordados, encontram-se as disposições sobre o consenso quanto ao uso tradicional dos recursos genéticos e do conhecimento associado, bem como o uso de direitos de propriedade intelectual, incluindo, de acordo com o grau de contribuição, a possibilidade de detenção conjunta destes direitos. As Diretrizes também enumeram elementos a serem considerados para inclusão nos acordos de transferência de material e fornecem uma lista indicativa dos benefícios monetários e não-monetários. Dado que 180 países apoiaram a sua adoção, as Diretrizes de Bonn possuem considerável autoridade para servir de base para as medidas e práticas de ABS. Os Signatários da CDB reconheceram a contribuição das Diretrizes para o implementação de regimes nacionais e de acordos contratuais de ABS. No entanto, sua implementação permanece limitada: alguns países em desenvolvimento apresentam certa incapacidade, problemas com definições persistem tal como a necessidade de orientação mais específica sobre o processo de ABS para alguns grupos de usuários. Nesse sentido, as Diretrizes de Bonn vêm sendo consideradas como um primeiro passo útil para a implementação de ABS, e não como respostas definitivas. 8 Outras diretrizes e ferramentas de ABS Entre os diversos esforços no sentido de apoiar partes negociantes de um acordo ABS, um dos mais ambiciosos é a Ferramenta de Gerenciamento de ABS (ABS-MT), desenvolvida por um grupo de especialistas que coordenava o Instituto Internacional de Desenvolvimento Sustentável (IIDD). A ABS-MT pretende ajudar as partes interessadas a cumprir com as Diretrizes de Bonn e com as exigências de ABS da CDB. Este padrão de melhores práticas se apóia em três princípios fundamentais - consentimento prévio informado segundo acordo mútuo e repartição de benefícios - fornece um processo estruturado orientando a participação e a tomada de decisões referentes ao ABS. Sua aplicação prática, no entanto, ainda não foi testada além de alguns estudos de caso realizados durante o seu desenvolvimento. Outras iniciativas enfocam as necessidades específicas e características particulares de alguns usuários de recursos genéticos. Elas reconhecem e tentam considerar as diferenças entre os tipos de recursos genéticos, usuários e finalidades de acesso; elas incluir princípios de ABS para jardins botânicos, um código de conduta para acesso a microorganismos e um conjunto de princípios e práticas gerais de bioprospecção considerados apropriados pela Associação das Indústrias de Biotecnologia. Não foi desenvolvida nenhuma diretriz específica para o setor de cosméticos, embora diversas empresas tenham identificado políticas e melhores práticas de ABS para as suas próprias atividades com base em outros instrumentos e em experiências anteriores, inclusive em relação ao uso de direitos de propriedade intelectual. Quadro 5. ABS no Quadro de Verificação de Ingredientes Naturais Nativos na União para um BioComércio Ético (UEBT) O quadro de verificação da União para um BioComércio Ético é configurado para ajudar os membros a atenderem os Princípios e Critérios de BioComércio Ético. O Quadro de Verificação de Ingredientes Naturais Nativos da União tem suas origens nos Princípios e Critérios de BioComércio desenvolvidos pela Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento. Ele foi elaborado após um processo inclusivo e participativo atendendo às exigências internacionais. Ele está disponível para qualquer organização de uma cadeia de abastecimento preocupada em garantir, preservar e melhorar a sua conformidade diante dos Princípios e Critérios do BioComércio. O Quadro de Verificação atende claramente o ABS, exigindo e verificando o cumprimento à toda legislação nacional aplicável, bem como definido as boas práticas em casos onde não há nenhuma implementação nacional do ABS. Além disso, o sistema incorpora princípios de repartição de benefícios mais amplos que derivam da CDB e das práticas de comércio justo. Esses benefícios incluem uma interação consciente e transparente, alicerçada na inclusão ao longo da cadeia de abastecimento, aplicação de preço justo para ingredientes naturais, compromisso com o desenvolvimento sustentável local e o reconhecimento e remuneração justa para uso do conhecimento tradicional. 9 Regime internacional de ABS Em 2004 iniciam-se negociações para a elaboração de um sistema internacional de ABS destinado a implementar de forma efetiva as disposições relevantes da CDB. Conforme mencionado, mostrou-se limitado o desenvolvimento e a implementação dos sistemas de ABS em nível nacional, em grande parte devido às dificuldades em aplicar as disposições abrangentes e por vezes pouco claras da CDB. Além disso, do ponto de vista de muitos países em desenvolvimento ricos em biodiversidade, as leis nacionais jamais conseguirão implementar com sucesso as normas de ABS da CDB, enquanto os recursos genéticos puderem ser acessados, desenvolvidos, patenteados e comercializados em jurisdições nas quais as referidas normas não são respeitadas. Esses países que compartilham dos mesmos objetivos, se organizaram, formaram o grupo dos Países Megadiversos Afins e estimularam o desenvolvimento de um regime internacional. As negociações sobre o regime internacional estão ocorrendo no Grupo de Trabalho Aberto Ad Hoc sobre ABS, um corpo subsidiário da CDB. Apesar do prazo final de 2010 para finalizar os seus trabalhos, este grupo vem se debatendo com as divergências de opiniões entre as partes envolvidas sobre a natureza, o escopo e o conteúdo desse regime. Os Países Megadiversos Afins continuam a ser a força motriz das discussões, apelando para a criação de normas internacionais que sejam juridicamente vinculantes, de amplo alcance e que estabeleçam critérios mínimos para o consentimento prévio informado e para a repartição de benefícios a serem incorporados nas legislações nacionais. Do ponto de vista de diversos países desenvolvidos, como Austrália, Canadá e Suíça, que utilizam tradicionalmente recursos genéticos, o regime internacional deveria manter a atual abordagem do ABS, por lhe conferir uma flexibilidade essencial para que as leis nacionais acomodem as características e exigências próprias dos países por elas regidas. Para eles, o regime deveria compreender medidas legalmente vinculantes e não vinculantes (legally and non-legally binding measures), incluindo referências às Diretrizes de Bonn e contratos-padrão. Dadas essas divergências fundamentais, há somente uma estrutura rudimentar como base para as negociações sobre o regime. O documento possui quatro seções, cobrindo o objetivo, o escopo, os principais componentes e a natureza do regime. Cada seção apresenta diversas opções ou paresenta textos entre parênteses/colchetes (onde esses parênteses/colchetes representam texto onde há divergência - vide Quadro 6). O texto sobre os componentes principais do regime internacional - repartição de benefícios, acesso, conformidade, conhecimento tradicional e capacitação - também reflete a grande divergência de opiniões entre os países. Conseqüentemente, ainda é difícil definir o resultado das negociações e o tipo de impacto esperado sobre o quadro jurídico e político para a biodiversidade. 10 Quadro 6. Texto operacional do regime internacional: Linguagem proposta sobre a natureza do regime Opção 1 O sistema internacional deve ser juridicamente vinculante (legally binding). Além disso, ele deveria favorecer uma aplicação alicerçada na colaboração entre as partes e não levar a conflitos principalmente no âmbito do direito internacional, que não somente é caro, mas também esgota os recursos de países pobres. Opção 2 1. Um instrumento legalmente vinculante 2. Uma combinação entre instrumentos legalmente vinculantes e/ou não vinculantes 3. Um instrumento não vinculante Opção 3 O regime internacional deverá ser composto de um único instrumento legalmente vinculante contendo um conjunto de princípios, normas, regras e medidas de cumprimento e aplicação. Opção 4 A natureza deve ser discutida após a conclusão das deliberações sobre a essência de um regime internacional. Por enquanto, o Japão sugere o seguinte: o regime internacional poderia ser composto de um ou mais instrumentos não vinculantes dentro de um conjunto de princípios, normas, regras e processos de tomadas de decisões. Opção 5 O sistema internacional deve ser composto de um ou mais instrumentos legalmente vinculantes e/ou não vinculantes dentro de um conjunto de princípios, normas, regras e procedimentos, legalmente vinculantes e não vinculantes. Fonte: Decisão IX/12 da CDB, COP 9, Bonn, 19 - 30 de maio de 2008. 11 O regime internacional e o setor de cosméticos Qualquer que seja o resultado específico das negociações, o regime internacional de ABS irá basear-se significativamente nas disposições vigentes da CDB, e terá portanto um impacto sobre os produtos e atividades que recorrem à biodiversidade. A Câmara Internacional de Comércio (ICC) deseja contribuir construtivamente nas discussões substantivas sobre ABS e coordena a delegação comercial para as negociações do sistema internacional. Ela chama a atenção para o fato de que o setor privado opera com base em uma contínua avaliação de risco e retorno sobre capital investido. O regime internacional poderá, nesse sentido, estabelecer leis que sejam transparentes e práticas e que possam facilitar as atividades dos diferentes setores. Dado o papel essencial dos mercados na geração de benefícios econômicos a partir de recursos genéticos, também se comenta que uma abordagem desse tipo seria crucial para o avanço dos objetivos da CDB. Por outro lado, a ICC expressou suaspreocupações de que uma estrutura burocrática, imprecisa ou irrealista vai sufocar a criação de valor a partir de recursos genéticos, bem como a sua comercialização e uso sustentável. Para o setor de cosméticos, vários problemas no desenvolvimento do regime internacional são de particular interesse. O âmbito de aplicação do regime, por exemplo, determinará quais novas normas internacionais são aplicáveis ao desenvolvimento e uso de ingredientes naturais em cosméticos. As opções que estão sendo atualmente discutidas variam desde a abordagem de recursos genéticos e conhecimento tradicional associado, até a inclusão de recursos biológicos e derivados. Alguns grupos de indústria estão preocupados com que uma ampla abordagem incorpore, de forma involuntária, todos os tipos de produtos e mercadorias. Para o setor de cosméticos, a preocupação é mais quanto a uma definição exata. As novas normas poderão propiciar a certeza jurídica necessária somente se o sistema identificar claramente o que está “dentro” e o que está “fora”. Outra questão relevante para o setor de cosméticos são os padrões mínimos internacionais propostos. Tais normas poderiam contribuir para a criação de um campo de jogo mais nivelado para as empresas que atuam na área de biodiversidade. No entanto, normas mínimas precisam levar em consideração as diferenças em relação aos tipos de recursos que são acessados, aos usos que são dados a esses recursos e à estratégia e estrutura comercial de diversos setores, sem mencionar as diferentes circunstâncias e necessidades nacionais. Esta questão está relacionada ao que deveria ser a maior preocupação do setor de cosméticos: a conscientização limitada das empresas de cosméticos em relação à relevância do ABS e a participação mínima delas nas negociações em curso para a construção de um regime internacional. A ICC manifestou sua apreensão quanto a uma abordagem do tipo “tamanho único” (one size fits all) e preconizou normas que consideram os aspectos exclusivos de como os recursos genéticos são acessados e gerenciados em diferentes setores. No entanto, se o setor de cosméticos não estiver engajado nas negociações, são poucas as chances de que o regime internacional resultante possa atender às suas características e necessidades específicas. 12 Desafios futuros: A relação do setor de cosméticos com o ABS tem sido uma espécie de paradoxo. Muitas empresas de cosméticos, mesmo aquelas que trabalham com ingredientes naturais, nunca ouviram falar de ABS ou não conseguem ver a relevância do ABS para as suas atividades. Por outro lado, as empresas pioneiras no setor adotaram uma abordagem pró-ativa de ABS e vêm desenvolvendo mecanismos inovadores para garantir a conformidade com suas normas e princípios. Com o aumento da conscientização do público e dos consumidores em relação à biodiversidade - e, mais uma opção, mas sim uma necessidade do setor de cosméticos. Compreender as normas e princípios de ABS é o primeiro passo indispensável nessa direção. O passo seguinte será desenvolver e a implementar políticas efetivas de ABS. Esta processo não é um processo fácil, mas a experiência até o presente momento revela que ele pode ser feito, e existem diversas ferramentas e diretrizes que dão um suporte valioso nesse sentido. Assessorar os seus Membros a respeito das políticas e práticas sobre ABS e direitos de propriedade intelectual é um dos principais objetivos do trabalho da União para um BioComércio Ético. Além disso, as empresas de cosméticos precisarão considerar formas de participar e influenciar nas negociações do regime internacional, que abordam questões que terão um impacto significativo em suas atividades. Juntar-se à Força-Tarefa de Biodiversidade da ICC, que já vem contribuindo ativamente para essas negociações, poderia ser uma oportunidade interessante. Endereçar o ABS - através de uma maior consciência, novas estratégias e um maior engajamento na CDB - é essencial para reduzir os riscos do negócio por desconhecimento, não compreenção e/ou não cumprimento das normas e princípios de ABS. Cada vez mais a tomada de ações decisivas na abordagem de questões de ABS também representa uma oportunidade de mercado, proporcionando uma base fundamental para diferenciar os produtos que utilizam ingredientes naturais. Por fim, o compromisso com o ABS também permitirá ao setor de cosméticos contribuir de forma real e visível para que se alcancem as metas internacionais de uso sustentável de biodiversidade. 13 Agradecimentos Este resumo geral foi elaborado por Maria Julia Oliva como um documento de trabalho. Comentários e feedbacks são bem-vindos. Para maiores informações Maiores informações sobre ABS e trabalho relacionado produzido pela União para um BioComércio Ético e recursos adicionais sobre ABS encontram-se disponíveis no site www.ethicalbiotrade.org. Contato: Maria Julia Oliva Assessora Sênior - Acesso e Repartição de Benefícios União para BioComércio Ético (Union for Ethical BioTrade) 32, Rue de Berne, 1201, Genebra, Suíça Fone: + 41 22 5661585 Fax: + 41 22 7310340 [email protected] Sobre a União para BioComércio Ético (UEBT) A União para Biocomércio Ético é uma associação que promove o “Abastecimento com Respeito” (“sourcing with respect”) de ingredientes provenientes da biodiversidade nativa. Os Membros da União para um Biocomércio Ético têm o compromisso de promover, dentro de um prazo estabelecido, práticas de abastecimento, que promovam a conservação da biodiversidade, o respeito ao conhecimento tradicional, e a repartição equitativa de benefícios ao longo da cadeia produtiva, desde os produtores até os fabricantes de produto final. Direitos Autorais Publicado em abril de 2009 pela União para Biocomércio Ético, (Genebra, Suíça). Qualquer reprodução total ou parcial desta publicação deverá conter o título e informar que a editora supracitada é a proprietária dos direitos autorais sobre a mesma. © Union for Ethical BioTrade (2009). Todos os direitos reservados. TB01 Access and benefit sharing: principles, rules and practices [Acesso e compartilhamento de benefícios: princípios, normas e práticas] - 2009-0408 Primeira edição: 8 de abril de 2009 ® Union of Ethical BioTrade Registered Trademark Owner ™ Union of Ethical BioTrade Trademark Owner [Proprietária da Marca Registrada Union of Ethical BioTrade] © Union for Ethical BioTrade (2010): reprodução proibida sem a prévia autorização por escrito da União para BioComércio Ético 14