Uma Estrutura Formal Normativa para Sistemas
Computacionais∗
Antônio Carlos da Rocha Costa1
Graçaliz Pereira Dimuro1
1
ESIN/UCPel – Escola de Informática
Universidade Católica de Pelotas
{rocha,liz}@atlas.ucpel.tche.br
Resumo. A questão dos valores e das regras em sistemas computacionais tornase uma questão central quando se trata de sistemas com componentes (agentes)
cujo foco de interesse sejam as trocas entre os usuários do sistema. Isso porque,
em qualquer tipo de trocas entre pessoas, os valores e as regras são elementos constituintes essenciais das mesmas, sejam elas trocas diretas, face-a-face,
ou trocas intermediadas por tecnologias de informação e comunicação. Neste
artigo, apresenta-se uma proposta de estrutura formal normativa para sistemas
computacionais, que tem por base a análise estrutural de valores e regras feita
na sociologia de pequenos grupos que foi esboçada por Jean Piaget. Essa
estrutura formal normativa possibilita que os agentes do sistema analisem e
interpretem, em termos de valores e regras, as trocas que surgem entre seus
usuários. Igualmente, ele possibilita a articulação normativa desses agentes com
os usuários do sistema, dos agentes entre si, assim entre os próprios usuários,
quando intermediados pelo sistema.
Abstract. The question on values and rules in computing systems becomes a
central question when components (called agents) of such systems deal with
exchanges between users. This is so because values and rules are essential
constituents of any exchange between people. This paper introduces a normative
formal structure for computing systems, on the basis of the structural analysis
of values and rules given by Jean Piaget in his sociology of small groups. That
normative formal structure allows agents in a computing system to analyse and
interpret, in terms of values and rules, the exchanges that arise between the
system’s users. Also, it supports agents in their normative articulation both with
users and with other agents, as well as among users themselves, when their
exchanges are mediated by the system.
1. Introdução
Este artigo formula de modo abstrato uma estrutura normativa para sistemas computacionais. A estrutura aplica-se aos sistemas computacionais com múltiplos usuários interagindo entre si e com os componentes do sistema (chamados agentes).
∗
Este trabalho contou com apoio financeiro do CNPq e da FAPERGS.
A estrutura formal normativa, introduzida neste trabalho, está baseada na estrutura operatória de valores e regras com que Jean Piaget, em sua sociologia de pequenos
grupos, procurou formalizar os processos morais e jurı́dicos que se estabelecem entre
indivı́duos em interação.
Na estrutura introduzida no artigo, agregamos à estrutura operatória piagetiana um
conjunto de elementos essenciais para viabilizar sua utilização no contexto de sistemas
computacionais.
Esses elementos essenciais adicionados são os modelos operacionais clássicos de
trocas, dos tipos produtor-consumidor e cliente-servidor, pelas quais se costumam analisar as interações em sistemas computacionais.
A combinação da estrutura operatória piagetiana, com os modelos computacionais
de trocas, possibilita a utilização da estrutura formal normativa resultante em qualquer
contexto computacional.
Este artigo está organizado como segue: a seção 2. traz um resumo da sociologia
piagetiana. A seção 3. resume os dois modelos clássicos de processos de trocas em sistemas computacionais, quais sejam, o modelo de trocas produtor-consumidor e o clienteservidor.
A seção 4. define os conceitos de troca e de valor, os dois principais tipos de
valores, e as operações feitas sobre eles em uma troca. A seção 5. resume as duas regras
de equilı́brio normativo que constituem o cerne da teoria piagetiana das trocas, bem como
a regra que caracteriza a situação de pleno equilı́brio normativo.
A seção 6. apresenta simplificadamente as possibilidades de aplicação computacional da estrutura formal normativa introduzida no artigo.
2. A sociologia de pequenos grupos de Jean Piaget
A sociologia de pequenos grupos esboçada por Jean Piaget encontra-se desenvolvida de
modo fragmentado em seu livro Études Sociologiques [2], que tem tradução brasileira da
1a edição [1] e norte-americana da 2a edição [3].
O cerne dessa sociologia é uma teoria operatória de valores qualitativos, na qual
as regras sociais (normas e leis) servem à finalidade de determinar e manter o equilı́brio
moral (e econômico) das trocas que ocorrem no sistema o sistema.
2.1. Valores e Trocas
Os dois conceitos operatórios centrais da teoria são o conceito de valor e o conceito de
troca.
Piaget dá uma dupla definição da noção de valor. Por um lado, valor é ”qualquer
coisa que dê lugar a uma troca”. Por outro lado, Piaget define como valores os construtos
mentais de caráter qualitativo, que se associam mentalmente, no momento de uma troca,
aos elementos que são valores no primeiro sentido, e que servem ao propósito de avaliar
esses elementos.
Os valores são caracterizados como elementos qualitativos porque deles não se
exige mais que uma estrutura extensiva de ordem total, sem caráter métrico, que satisfaça
a exigência mı́nima de permitir que seja definida uma relação assimétrica de maior ou
menor (ver os conceitos de quantidade, no livro de Piaget sobre a Lógica Operatória [4].
Quanto à noção de troca, para poder simplificar o problema e permitir uma formalização
operatória do mesmo, Piaget restringiu-se à questão (na verdade, bastante geral), da troca
de serviços entre sujeitos.
Assim, Piaget define troca como qualquer seqüência de ações entre dois sujeitos,
tal que um dos sujeitos, pela realização de suas ações, preste um serviço para o outro.
2.2. Regras e Normas
O terceiro conceito operatório fundamental na teoria piagetiana das trocas é o conceito de
regra ou norma.
As regras sociais são pensadas como tendo duas formas possı́veis:
i) equações que devem se verificar entre os valores envolvidos nas trocas entre
agentes, determinando condições de equilı́brio de valores de troca, no sistema;
ii) operações de negação (punições) ou reciprocidade (reparações), que podem ser
realizadas para que o equilı́brio seja restabelecido, quando ele é quebrado.
Quer dizer, a teoria sociológica piagetiana é uma teoria de trocas, onde a função
reguladora das regras e das normas é estabelecida a partir de um cálculo de valores qualitativos, em que cada troca deve implicar a validade de certas equações entre os valores
envolvidos nessa troca, assim como pode implicar a realização de operações reguladoras,
no caso de desequilı́brios.
3. Modelos computacionais básicos de processos de trocas
Os dois modelos computacionais básicos para processos de trocas são respectivamente
denominados modelo de troca produtor-consumidor e modelo de troca cliente-servidor.
Eles são modelos clássicos, tradicionalmente usados em várias áreas da computação,
como sistemas operacionais, bancos de dados e redes de computadores, para modelar processos interativos.
Esses dois modelos de troca tem papel importante na estrutura formal normativa
que estamos definindo. Nesta seção, descrevemos esses modelos em seu conjunto, mas
deixamos para a próxima seção a definição precisa do nosso modelo computacional da
noção de troca, porque nos apoiaremos para isso na combinação da conceituação piagetiana com os modelos computacionais resumidos aqui.
Uma troca que se dá entre dois agentes (ou usuários, ou agente e usuário) em
um sistema computacional, seguindo o modelo produtor-consumidor, ocorre conforme
mostrado no diagrama de seqüência do tipo Prd-Cns, na figura 1.
Nesse modelo, Prd é o agente produtor, Cns é o agente consumidor, prod é a ação
de produção realizada por Prd, cons é a ação de consumo realizada por Cns, e o processo
de troca é essa seqüência de operações. Trata-se de um modelo muito simples, mas por
isso mesmo de ampla utilização.
Prd
Cl
Cns
prod
Srv
req
cons
serv
util
Figura 1: Modelos computacionais básicos de processos de troca
Uma troca que se dá entre dois agentes (ou usuários, ou agente e usuário) em um
sistema computacional, seguindo o modelo cliente-servidor, ocorre conforme mostrado
no diagrama de seqüência do tipo Cl-Srv, na figura 1.
Nesse modelo, Cl é o agente cliente, Srv é o agente servidor, req é a ação de
requisição de serviço que Cl faz a Srv, serv é a execução do serviço por parte de Srv, util é
a ação de Cl de utilizar os resultados do serviço prestado por Srv, e o processo de troca é
essa seqüência de operações. Também se trata de um modelo simples, mas com utilização
mais especı́fica em função de seu detalhamento um pouco maior.
4. Um modelo computacional para valores de troca
A partir da descrição verbal dos tipos de trocas analisadas por Piaget [1], sejam descrições
abstratas, sejam exemplos concretos, é possı́vel definir um modelo computacional para
sua noção de troca, e mesmo estendê-la para dar conta de casos importantes que Piaget
não considerou explicitamente.
Para tanto, fazemos uma combinação dos conceitos presentes nos modelos básicos
de troca computacional, definidos na seção 3., com os conceitos que extraı́mos da análise
dos processos de trocas em pequenos grupos, feitas por Piaget em [1].
Assim, definimos troca como qualquer seqüência de operações realizada por dois
agentes, que tenha uma das formas básicas mostradas nos diagramas de seqüências da
figura 2.
Denominamos de troca do tipo produtor-consumidor qualquer troca que siga o
padrão PC da figura 2, porque a seguinte interpretação é possı́vel para a sua seqüência de
operações:
Prd = Agente Produtor
Cns = Agente Consumidor
r = Valor de investimento para P da ação realizada por P
s = Valor de satisfação para C da ação realizada por P
Prd
Cl
Cns
r
Srv
v'
s
t'
t
r'
v
s'
Figura 2: Formas básicas de interação
t = Valor de reconhecimento por parte de C da satisfação causada pela ação de P
v = Valor de acumulação de crédito por P em função do reconhecimento de C
Denominamos de troca do tipo cliente-servidor qualquer troca que siga o padrão
CS da figura 2, porque a seguinte interpretação é possı́vel para a sua seqüência de operações:
Cns = Agente Cliente
Srv = Agente Sevidor
v’ = Valor de crédito de C frente a S devido a ações anteriores realizadas por C
t’ = Valor de reconhecimento de S do crédito pretendido por C
r’ = Valor de investimento de S em ação para C
s’ = Valor de realização de crédito de C em função do investimento de S
Os valores correspondentes a ações efetivas dos agentes (valores r, r0 , s e s0 ),
Piaget chamou de valores reais, porque dizem respeito à valoração de ações concretas
dos agentes.
Os valores correspondentes a créditos ou débitos adquiridos ou reconhecidos (valores v, v 0 , t e t0 ), ele chamou de valores virtuais, porque se referem a representações
mentais que os agentes criam das situações de troca que se estabeleceram entre eles.
5. As regras do equilı́brio normativo
As regras sociais (normas, leis) da teoria sociológica de Piaget são regras operatórias, que
tem por função garantir o equilı́brio dos valores trocados entre os agentes em interação.
Piaget considera que toda troca se realiza em duas etapas: a etapa da acumulação
de valores virtuais e a etapa da realização de valores virtuais. Cada etapa fica definida
por uma regra de equilı́brio especı́fica, que Piaget formula em termos de variação dos
valores r, s, t, v, etc.
Piaget descreveu a etapa de acumulação de valores virtuais em termos que, relacionados à figura 2, são os de trocas do tipo produtor-consumidor. Ele denominou de
regra de tipo I esse tipo de regra.
Já a etapa de realização de valores virtuais ele descreveu em termos de trocas do
tipo cliente-servidor. Ele denominou de regra de tipo II esse segundo tipo de regra.
Essas regras podem ser expressas como:
i) Regra de Acumulação de Valores Virtuais:
↓ (r) + ↑ (s) + ↓ (t) + ↑ (v) = 0
ii) Regra de Realização de Valores Virtuais:
↓ (v 0 ) + ↑ (t0 ) + ↓ (r0 ) + ↑ (s0 ) = 0
As setas indicam variações qualitativas positivas (↑) e negativas (↓) dos valores
em jogo.
A regra de acumulação de valores virtuais resume a idéia de que se o agente Prd
realizou uma ação com investimento r de recursos e seu parceiro Cns deu-lhe o crédito
devido por isso, então v = r é o crédito que Prd adquiriu frente a Cns, por ter realizado
essa ação para ele, e a igualdade representa que o crédito acumulado é equivalente ao
investimento que ele realizou.
A regra de realização de valores virtuais resume a idéia de que se o agente Cl tem
um crédito v 0 por ter realizado uma ação para o agente Srv, que o agente Srv reconhece
esse débito e compensa com uma ação r0 , então s0 = v 0 é a satisfação recebida por Cl em
função da realização de seu crédito, e a igualdade representa a realização completa desse
crédito.
Quando cada uma dessas regras é respeitada, diz-se que os valores são conservados, nas etapas respectivas.
Um ciclo completo de interação, com o andamento das duas etapas em seqüência,
realizado nas seguintes condições:
• cada agente só cobra o crédito que ele efetivamente tem, isto é, v 0 = v
• cada etapa garante a conservação dos valores envolvidos, isto é, as duas regras são
respeitadas
tem como conseqüência o conjunto de igualdades s0 = v 0 , v 0 = v, v = r, que implica
s0 = r0 , isto é, o agente que realizou a primeira ação tem como resultado final um valor
de satisfação equivalente ao seu valor de investimento inicial. Essa conservação geral
dos valores, no nı́vel em que engloba as duas etapas seqüencias, caracteriza o equilı́brio
normativo do sistema.
Essa situação favorável de equilı́brio normativo pode ser representada mais diretamente e significativamente fazendo-se a adição termo a termo das duas regras de
conservação de valores (a de acumulação e a de realização), combinado-as em uma única
regra.
Fazendo isso, cancelando os valores virtuais complementares (↑ (v) com ↓ (v 0 ), e
↓ (t) com ↑ (t0 )) obtemos a regra:
↓ (r) + ↑ (s) + ↓ (t) + ↑ (v) = 0
↓ (v 0 ) + ↑ (t0 ) + ↓ (r0 ) + ↑ (s0 ) = 0
↓ (r) + ↑ (s) + ↓ (r0 ) + ↑ (s0 ) = 0
a qual expressa uma lei de equilı́brio que deixa de lado os valores virtuais e só envolve
valores reais.
Leis de equilı́brio que envolvem valores virtuais são chamadas de leis de equilı́brio
moral e leis que envolvem só valores reais são chamadas de leis de equilı́brio econômico.
O equilı́brio econômico pressupõe, portanto, o equilı́brio moral.
6. A articulação normativa em sistemas computacionais
A estrutura formal normativa definida neste artigo pode ser aplicada a qualquer situação
de interação em que seja possı́vel identificar os papéis de cliente e servidor, ou de produtor
e consumidor.
Como cada um desses papéis podem ser identificados em praticamente todo tipo
de sistema computacional onde haja interações (seja do sistema com seus usuários, seja
de agentes do sistema entre si, seja dos usuários entre si), essa estrutura normativa tem
praticamente aplicabilidade universal ao sistemas de computação. Ela se constitui num
fundamento possı́vel para a articulação normativa dos agentes internos e externos dos
sistemas computacionais.
No caso de agentes autônomos em sistemas multiagentes, ela pode possibilitar
toda uma articulação do comportamento desses agentes através de regras normativas de
caráter geral (regras sociais válidas para todos os agentes), ou através de regas normativas de caráter particular (acordos locais entre agentes em interação, estabelecidas por
negociações entre eles).
No caso de ambientes cooperativos com múltiplos usuários, ela possibilita regular
o grau de cooperação e de competição estabelecido entre os usuários do sistema, pela
definição dos valores que eles respectivamente atribuem às suas operações de troca, assim como das leis de equilı́brio e das operações de regulação que eles estabelecem entre
si. Igualmente, essa estrutura formal normativa possibilita a monitoração e a avaliação
normativa das ações dos usuários de um modo efetivo.
7. Conclusão
Este trabalho definiu de modo sumário uma estrutura formal normativa para modelagem
de trocas em ambientes computacionais cooperativos ou baseados em agentes autônomos.
Tal estrutura explicita e estende aspectos computacionalmente essenciais do modelo de trocas de valores desenvolvido por Jean Piaget em sua sociologia de pequenos
grupos.
A articulação dos conceitos piagetianos de valor e regra normativa, com os conceitos arquitetônicos de sistemas cliente-servidor e produtor-consumidor, são a chave para
a aplicação prática dessa estrutura em sistemas computacionais.
Referências
[1] Piaget, J. Estudos Sociológicos. Forense, Rio de Janeiro, 1973.
[2] Piaget, J. Études Sociologiques. Droz, Paris, 1965. (2a. ed.: 1977).
[3] Piaget, J. Sociological Studies. Routlege, London, 1995.
[4] Piaget, J. Lógica Operatória. Ed. Globo, Porto Alegre, 1973.
Download

Uma Estrutura Formal Normativa para Sistemas