UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI CENTRO DE EDUCAÇÃO SUPERIOR – CES VII CURSO DE DIREITO NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA COORDENAÇÃO DE MONOGRAFIA A APLICAÇÃO DAS MEDIDAS SÓCIO-EDUCATIVAS COMO UMA DAS DETERMINANTES DA CARREIRA CRIMINOSA DE ADOLESCENTES SELECIONADOS COMO INFRATORES Monografia apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de bacharel em Direito na Universidade do Vale do Itajaí. ACADÊMICA: DÉBORA MARIA DA SILVA GOMES São José (SC), junho de 2005. 2 UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI CENTRO DE EDUCAÇÃO SUPERIOR – CES VII CURSO DE DIREITO NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA COORDENAÇÃO DE MONOGRAFIA A APLICAÇÃO DAS MEDIDAS SÓCIO-EDUCATIVAS COMO UMA DAS DETERMINANTES DA CARREIRA CRIMINOSA DE ADOLESCENTES SELECIONADOS COMO INFRATORES Monografia apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de bacharel em Direito, sob orientação do Prof. MSc. Rogerio Dultra dos Santos. ACADÊMICA: DÉBORA MARIA DA SILVA GOMES São José (SC), junho de 2005. 3 UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI CENTRO DE EDUCAÇÃO SUPERIOR – CES VII CURSO DE DIREITO NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA COORDENAÇÃO DE MONOGRAFIA A APLICAÇÃO DAS MEDIDAS SÓCIO-EDUCATIVAS COMO UMA DAS DETERMINANTES DA CARREIRA CRIMINOSA DE ADOLESCENTES SELECIONADOS COMO INFRATORES DÉBORA MARIA DA SILVA GOMES A presente monografia foi aprovada como requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel em Direito no Curso de Direito da Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI. São José, junho de 2005. Banca Examinadora: _______________________________________________________ Prof. MSc. Rogerio Dultra dos Santos - Orientador _______________________________________________________ Prof. MSc. Camila Cardoso de Mello Prando - Membro _______________________________________________________ Prof. Esp. Giovani de Paula - Membro 4 Dedico este trabalho aos meus pais, Alfredo Ribeiro Gomes e Maria José da Silva Gomes, pelo amor, dedicação, apoio e por terem permitido a realização deste sonho; aos quais devo tudo o que sou. Aos meus avós, José Paulo da Silva e Maria Antônia da Silva, pela força, carinho e exemplo de vida. À memória de minha irmã, Helen Cristina Gomes Teixeira, que precocemente nos deixou para viver ao lado de Deus, acompanhado apenas o início da minha trajetória acadêmica. À minha irmã, Lara Regina da Silva Gomes e aos meus sobrinhos, Thaís Gomes Teixeira, Jersey Diniz e Pedro Diniz, por existirem em minha vida. 5 AGRADECIMENTOS A Deus, por estar ao meu lado, permitindo à superação dos obstáculos da vida e à realização de todos os meus sonhos; Ao meu orientador, professor MSc. Rogerio Dultra dos Santos, pela paciência, dedicação prestada desde a elaboração do projeto de monografia até a conclusão do presente trabalho e principalmente, pelas palavras de incentivo nos momentos de desespero; A todos aqueles que contribuíram para meu desenvolvimento acadêmico e pessoal e especialmente ao Dr. Henrique da Rosa Ziesemer, pelo auxílio na coleta de materiais para elaboração desta pesquisa, pelo incentivo no estágio e pelo exemplo de persistência; A todos os professores que tiveram fundamental importância nesta trajetória, principalmente ao professor Márcio Roberto Harger, à professora Solange L. H. Kool e ao professor Hélio Callado de Oliveira; A todos os meus amigos, em especial àqueles que estiveram ao meu lado nos últimos cinco anos: Catarina da Silva Matos Martins, Clarisse Wagner da Costa, Gustavo Correia Santa Ritta, Magali Agnes Silva, Michelli Mattos da Silva, Gisele Rebello Mitidiero, Francine Brügmann Wagner, Kédma de Souza e Jerusa Coelho. A todos, meu sincero agradecimento. DÉBORA 6 "Nunca perca a fé na humanidade, pois ela é como um oceano. Só porque existem algumas gotas de água suja nele, não quer dizer que ele esteja sujo por completo." Mahatma Ghandi 7 SUMÁRIO RESUMO ABSTRACT LISTA DE ABREVIATURAS INTRODUÇÃO ......................................................................................................................10 1 BREVE ANÁLISE DO SISTEMA PENAL ......................................................................12 1.1 A CONCEPÇÃO DAS ESCOLAS CLÁSSICA, POSITIVA E TÉCNICO-JURÍDICA ACERCA DO FENÔMENO CRIMINAL..........................................................................15 1.2 AS CARACTERÍSTICAS E FUNÇÕES DO SISTEMA PENAL E O PROCESSO DE CRIMINALIZAÇÃO..........................................................................................................19 2 O SISTEMA DE GARANTIAS DAS CRIANÇAS E DOS ADOLESCENTES E A ESTRUTURA REPRESSIVA DAS MEDIDAS SÓCIO-EDUCATIVAS.........................25 2.1 BREVE ANÁLISE DOS DECRETOS E LEIS DE PROTEÇÃO ÀS CRIANÇAS E AOS ADOLESCENTES..............................................................................................................25 2.2 MEDIDAS SÓCIO-EDUCATIVAS...................................................................................33 2.3 A APURAÇÃO DO ATO INFRACIONAL.......................................................................38 3 MEDIDAS SÓCIO-EDUCATIVAS: ESTÍMULO VELADO À CARREIRA CRIMINAL..............................................................................................................................44 3.1 A NÃO RESSOCIALIZAÇÃO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE INFRATOR....45 3.2 A REINCIDÊNCIA CRIMINAL........................................................................................50 3.3 A CONCRETIZAÇÃO DAS CARREIRAS CRIMINOSAS.............................................53 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................56 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................................58 8 RESUMO O presente trabalho tem por objetivo verificar a eficácia das medidas sócio-educativas, em especial, a de internação, frente às carreiras criminosas de adolescentes, por serem as crianças inimputáveis, não se sujeitando a aplicação dessas medidas, mas sim, das medidas protetivas. Para isso foi realizada pesquisa documental e bibliográfica, a fim de analisar as características do sistema penal, suas funções oficialmente declaradas pela dogmática jurídico-penal e as não declaradas, a influência dessas no atendimento aos infantes e análise dos principais documentos de proteção à criança e ao adolescente, desde o Código de Menores de “Mello Mattos” (Decreto n° 17.943-A) até o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n° 8.069/90). Posteriormente, abordou-se as medidas sócio-educativas previstas no ECA e ainda, o procedimento adotado pela respectiva legislação para apuração do ato infracional. Através disso, confirma-se a hipótese levantada de que a concretização da carreira criminosa de adolescentes é conseqüência da influência da atuação do sistema penal na execução das medidas sócio-educativas, salientando nesse contexto, a medida de internação ou institucionalização, por se caracterizar como a mais grave e a que menos atinge sua finalidade, qual seja: reeducar e ressocializar os adolescentes infratores. Palavras chave: Estatuto da Criança e do Adolescente. Adolescente infrator. Medidas sócioeducativas. Características do sistema penal. Reincidência. Carreiras Criminosas. 9 ABSTRACT The present work has for objective to verify the effectiveness of the partner-educative measures, in special, of internment, front the criminal careers of adolescents, for being the inimputáveis children, if not subjecting the application of these measures, but yes, of the protetivas measures. For this documentary research was carried through bibliographical and, in order to analyze the characteristics of the criminal system, its functions officially declared by the legal-criminal dogmática and the not declared ones, the influence of these in the attendance to the infants and analysis of main documents of protection to the child and the adolescent, since the Code of Minors of "Mello Mattos" (Decree n° 17.943-A) until the Statute of the Child and the Adolescent (Law n° 8,069/90). Later, one still approached the foreseen partner-educative measures in the ECA and, the procedure adopted for the respective legislation for verification of the infracional act. Through this, it is confirmed raised hypothesis of that the concretion of the criminal career of adolescents is consequence of the influence of the performance of the criminal system in the execution of the partner-educative measures, pointing out in this context, the measure of internment or institutionalization, for if characterizing as the most serious and the one that less its purpose reaches, which is: to reeducar and to ressocializar the adolescent infractors. Words key: Statute of the Child and the Adolescent. Adolescent infractor. Partner-educative measures. Characteristics of the criminal system. Relapse. Criminal Careers. 10 LISTA DE ABREVIATURAS CESL Centro Educacional São Lucas ECA Estatuto da Criança e do Adolescente FEBEN Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor FUNABEM Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor MP Ministério Público SAM Serviço de Assistência a Menores 11 INTRODUÇÃO A pesquisa pretende verificar as características do processo de institucionalização do adolescente infrator, através de uma breve análise do sistema penal e do Estado como legitimado para controlar a criminalidade. Abordará os procedimentos adotados pela legislação estatutária para apuração do ato infracional, com intuito de determinar a eficácia das medidas sócioeducativas como meio para reeducação e ressocialização dos adolescentes infratores. Visando um maior entendimento da realidade da infância e adolescência brasileira que cometem ato infracional, será utilizada a pesquisa documental e bibliográfica, a fim de identificar a eficácia da atuação do sistema penal na confirmação da carreira criminosa desses jovens. Assim, o presente trabalho objetivará certificar acerca da concretização da carreira criminosa de adolescentes selecionados como infratores e o papel do Estado como responsável pela aplicação das medidas sócio-educativas, que visa, ou deveria visar, a reeducação e ressocialização dos adolescentes. Esses adolescentes que violam a lei necessitam de uma política de atendimento mais eficaz, tendo em vista que a adotada pelo Estatuto da Criança do Adolescente (Lei n° 8.069/90) não tem alcançado a finalidade desejada. Desta forma, a operacionalização do sistema penal em face da criminalidade, caracteriza-se por estimular a construção de carreiras criminosas em adolescentes devido as suas formas de atuação, como a estigmatização, a seletividade, o etiquetamento, que acarretam a reprodução das relações de exclusão social aos mesmos. No primeiro capítulo, será analisado o sistema penal, que servirá de base para o entendimento da concretização da carreira criminosa de adolescentes, abrangendo as concepções das escolas clássicas, positiva e técnico-jurídica acerca do estudo do fenômeno criminal; as características, funções, estrutura organizacional e formas de atuação do sistema repressor, bem como, serão destacadas as funções declaradas pela ciência do direito penal, a sua inutilização e seus reflexos no processo de criminalização, produzindo a seletividade, estigmatização e o etiquetamento. O segundo capítulo, será destinado a análise dos principais documentos de proteção aos direitos das crianças e dos adolescentes, e ao estudo das medidas sócio-educativas previstas no artigo 112, bem como, o procedimento para apuração do ato infracional praticado por 12 adolescentes, previsto na legislação vigente, ou seja, no Estatuto da Criança e do Adolescente, destacando que a apuração do ato infracional deve respeitar os princípios constitucionais. E, finalmente, no terceiro capítulo, será tratado acerca da medida sócio-educativa como fator estimulante da carreira criminal, em virtude de não ressocializar o adolescente infrator, ocasionando a reincidência criminal e por conseguinte a concretização da carreira criminosa, tendo em vista a atuação do sistema repressor a ser estudado no primeiro capítulo. Salientar-se-ão as semelhanças entre as penas aplicadas aos adultos que transgridem a norma penal e as medidas sócio-educativas aplicados aos adolescentes. 13 1 BREVE ANÁLISE DO SISTEMA PENAL A Lei n° 7.209 de 11 de julho de 1984, que reformou a Parte Geral do Código Penal tentou relegitimar o sistema. A necessidade da reforma surgiu em decorrência de que a legislação penal era inadequada às exigências da sociedade. Os altos índices de criminalidade, a medida repressiva como resposta básica ao delito, a reincidência, a sofisticação tecnológica, foram os fatores que exigiram o aprimoramento dos instrumentos de contenção do crime1. No entanto, não conseguindo atingir os objetivos desejados, essa modificação foi pouco relevante, tendo em vista a expansão alarmante da mesma. Assim, a legislação penal continua inadequada para a sociedade. Essa criminalidade possui como mecanismo repressor o sistema penal, sendo definido por ZAFFARONI e PIERANGELI como sendo: controle social punitivo institucionalidado, que na prática abarca a partir de quando se detecta ou supõe detectar-se uma suspeita de delito até que se impõe e executa uma pena, pressupondo uma atividade normativa que cria a lei que institucionaliza o procedimento, a atuação dos funcionários e define os casos e condições para esta atuação. Está é a idéia geral de “sistema penal” em um sentido limitado, englobando a atividade do legislador, do público, da polícia, dos juízes, promotores e funcionários e da execução penal (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2002, p. 71). Com base nesta definição, tem-se que esse sistema repressor é formado por diversos segmentos, e acerca desta estrutura, comenta BISSOLI FILHO, que o sistema penal é composto pelo aparato total de normas, instituições, saberes, ações e decisões diretas e indiretamente ligadas ao fenômeno criminal. Abrangendo não somente as agências legislativas (responsáveis pela criação das normas), as instituições policiais, o Ministério Público, o Poder Judiciário e o Sistema Prisional (responsáveis pela imposição ou aplicação das normas), como também, as inúmeras outras agências que concorrem para a aplicação das leis penais, dentre elas, os órgãos públicos e os agentes financeiros e econômicos, que têm o dever de noticiar a prática de crimes e ainda, àqueles responsáveis pela produção e reprodução dos saberes que envolvem o sistema penal (Cf. BISSOLI FILHO, 1998, p. 55). Neste sentido, SANTOS pondera que: 1 Exposição de motivos da Nova Parte Geral do Código Penal. 14 Os aparelhos de repressão criminal são a polícia, a justiça e a prisão, cuja conjugação constitui o sistema punitivo, nos seus aspectos investigatório – detentivo (polícia), a analítico – condenatório (justiça) e repressivo – punitivo (prisão). O estudo da violência institucional produzida pelos aparelhos de repressão criminal, no processo geral de criminalização deve destacar, na análise desses aparelhos, os seus objetivos aparentes, explicitados nas formas legais que os constituem e regulam, e os seus objetivos ocultos, disfarçados sob a aparência formalizada na lei. ( SANTOS 1984, p. 115) Dessa forma, o funcionamento do sistema penal utiliza três mecanismos básicos: a produção das normas (criminalização primária), a aplicação destas, que compreende a ação integrada dos órgãos de investigação e jurisdicionais (criminalização secundária) e a execução penal. Logo, a operacionalização se concretiza através da Polícia, da Justiça e do Sistema de Execução da Pena (Cf. AZEVÊDO, 1999, p. 32), onde a prisão é utilizada principalmente como meio de repressão à criminalidade, visando a ressocialização do apenado, por intermédio da pena privativa de liberdade. O Estado é o legitimado ativo para reprimir a criminalidade, pois por intermédio do Direito Penal, dá início à operacionalização do sistema. No entanto, não pode deixar de atuar, caracterizando sua atuação como repressiva, por ser um poder-dever de aplicar a sanção àqueles que transgridem a norma penal. Com relação ao poder-dever do Estado, REALE JÚNIOR comenta que: O Estado não tem a liberdade de exercer ou não a aplicação e execução da lei penal. Tem o Estado, por meio de seus órgãos dotados de autoridade, Ministério Público e Judiciário, o poder e um dever público de agir contra aquele que deixou de se motivar pela ameaça contida na lei penal. Não há um direito de executar o direito frente ao infrator, mas um dever de exercitar o poder de punir (REALE JÚNIOR, 2002, p. 15). No entanto, esse poder de punir que tem o Estado não é ilimitado. Primeiramente, é necessária a consagração em lei daqueles fatos que se considera crime. Assim, cabe ao legislador determinar quais fatos que devam ser considerados penalmente ilícitos e a respectiva cominação da sanção penal (Cf. MARQUES, 1997, p. 20). Dessa forma, MARQUES define o delito como sendo: A violação de um bem jurídico penalmente tutelado. Essa violação, por outro lado, só realiza através de condutas humanas que vêm definidas e configuradas no conceito primário da norma penal, uma vez que o princípio da legalidade dos crimes e das penas impede que existam ações ou comportamentos do homem, relevantes para o Direito Penal, sem descrição legal (MARQUES, 1997, p. 25). 15 Da análise deste conceito, tem-se que nem todas as condutas humanas são consideradas delito, apenas aquelas que o legislador resolveu tutelar, dispostas na parte Especial do Código Penal e legislações especiais, onde estão descritas as condutas proibidas e a associação de uma pena como sua conseqüência (Cf. ZAFFARONI; PIERANGELI, 2001, p. 388). Assim, “quando uma conduta se ajusta a algum dos tipos legais, dizemos que se trata de uma conduta típica ou, o que é o mesmo, que a conduta apresenta características de tipicidade” (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2001, p. 388). Porém, nem toda conduta típica é um delito, uma vez que o Código Penal permite a realização de condutas típicas, excluindo o caráter de delito, como nas hipóteses de estado de necessidade, legitima defesa e estrito cumprimento do dever legal ou exercício regular do direito (Cf. ZAFFARONI; PIERANGELLI, 2001, p. 389). No entanto, para que se considere um fato como punível, não basta a existência de vínculo causal entre a ação e o resultado, nem que seu comportamento se enquadre num dos artigos da lei penal. É necessário, a presença da culpabilidade do agente, ou seja, que tenha havido a vontade livre e consciente para o cometimento do delito (Cf. HUNGRIA, 1983, p. 88). Deste modo, tem-se que os elementos que caracterizam o delito são: o fato típico, que compreende a conduta humana e o respectivo resultado, que a lei prevê como ato punível; a antijuridicidade, que é a relação entre o fato típico e a ordem jurídica, lembrando que nem todo fato típico é antijurídico, tendo em vista as excludentes de ilicitude; e, a culpabilidade, ou seja, reprovabilidade do ato, agindo o autor livre e consciente (Cf. MARQUES, 1997, p. 28). O juízo de culpabilidade indica a presença da responsabilidade, que pressupõe a capacidade do agente de entender o caráter criminoso do fato e a capacidade de determinar-se de acordo com esse entendimento (Cf. HUNGRIA, 1983, pp. 257/258). Assim, a responsabilidade pode ser definida como a existência dos pressupostos psíquicos pelos quais alguém é chamado a responder penalmente pelo crime que cometeu, levando-se em consideração que nos casos das excludentes de culpabilidade (erro, coação, obediência hierárquica), não há responsabilização devido a inexistência do crime ou isenção de pena (Cf. HUNGRIA, 1983, pp. 257/258). A responsabilidade só deixa de existir quando o agente no tempo da ação ou omissão, não tem a capacidade de entendimento ético-jurídico, como nos casos de doença mental, desenvolvimento mental incompleto ou retardado e embriaguez fortuita e completa. E ainda, 16 quando menores de 18 anos, pois nesta hipótese a causa biológica (imaturidade) basta para excluir a responsabilidade penal (Cf. HUNGRIA, 1983, pp. 259/260). Desta forma, “o resultado do fato típico, antijurídico e culposo, que é o delito surge a punibilidade, ou direito de punir do Estado, que não constitui elemento integrante do delito, mas tão-só conseqüência ou resultado deste” (MARQUES, 1997, p. 28). Assim, as normas que compõem o Direito Penal delimitam o processo de criminalização. A criminalização primária, no surgimento da norma, fixa limites máximos e mínimos para cada conduta delituosa e se concretiza com a criminalização secundária, que abarca todas as agências responsáveis pelo controle social, bem como as conseqüências desta concretização (seletividade, estigmatização e etiquetamento). A atividade do sistema penal surge a partir da atuação do controle social que define as condutas desviantes das não desviantes. Estas condutas desviantes denominam-se delito, aos quais se impõe uma punição e diante disto, nasce a necessidade do estudo acerca do crime, do criminoso e da pena. Estes estudos foram marcados pelas Escolas Penais Clássica, Positiva e Neoclássica ou Técnico–Jurídica. Cada uma delas com características diversas serão analisadas no próximo subcapítulo. Esse capítulo tratará ainda sobre as características e funções do sistema penal e o processo de criminalização devido as funções não declaradas do sistema penal, a fim de que posteriormente, vincule-se essas funções com os adolescentes selecionados como infratores, analisando-se, por conseguinte, os primeiros documentos de proteção às crianças e aos adolescentes. 1.1 A CONCEPÇÃO DAS ESCOLAS CLÁSSICA, POSITIVA E TÉCNICO-JURÍDICA ACERCA DO FENÔMENO CRIMINAL O saber penal contemporâneo foi influenciado pelo estudo acerca do fenômeno criminal. Este foi marcado pelas Escolas Clássica, Positiva e Técnico-Jurídica, que tiveram fundamental importância para a ideologia da defesa social. 17 Para Escola Clássica, o crime é uma violação “consciente e voluntária” da norma penal, ou seja, o crime é a infração da lei penal (Cf. ANDRADE, 2003, p. 55). A infração à lei é decorrente do princípio da legalidade, ou seja, só é crime o fato que transgride a lei (Cf. BISSOLI FILHO, 1998, p. 30). O criminoso é aquele que, na posse do livre arbítrio, viola livre e conscientemente a norma penal. (Cf. BISSOLI FILHO, 1998, p. 33). Com relação à concepção da pena pela Escola Clássica, NORONHA explica que: Esta é o meio de tutela jurídica. O crime é a violação de um direito e, portanto, a defesa contra ele deve encontrar-se no próprio direito, sem o que ele não seria tal. Conseqüentemente, ela não pode ser arbitrária, mas há de regular-se pelo dano sofrido pelo direito. É retribuitiva. Deve importar também em coação moral que detenha os possíveis violadores do direito. (NORONHA, 1998, p. 32) Assim, de acordo com os postulados fundamentais desta escola, o delito consiste na violação de um direito, sendo o criminoso considerado uma pessoa normal que apenas violou a norma penal e, portanto, não era objeto de estudo desta escola. Para o classicismo, a pena apresentava-se com características retribuitiva e utilitarista. Esta função da pena, denomina-se de teoria relativa, que prevê na pena a prevenção do delito. Já, a função retribuitiva da pena, denominada de teoria absoluta, compreende a pena como um castigo imposto a quem conscientemente cometeu um ilícito penal (Cf. BISSOLI FILHO, 1998, p. 33). Com relação a prevenção do delito, sustentam ZAFFARONI e PIERANGELI, que a pena é a conseqüência penal para um delito. Ela visa a segurança jurídica, pois seu objetivo deve ser a prevenção de futuras condutas delitivas. Essa prevenção pode ser alcançada através da prevenção geral e da prevenção especial (Cf. ZAFFARONI e PIERANGELI, 2002, pp. 103/104). A prevenção geral é aplicada através da retribuição que se dirige a todos os integrantes da comunidade jurídica. Esta prevenção se inicia por meio da repressão intimidatória, chegando à vingança. Para moderar o conteúdo vingativo, sustenta-se que a pena “justa” é a “retribuitiva” e por isto deve obedecer a lei de talião, ou seja, a pena deve importar a mesma quantidade do mal causado pelo delito. (Cf. ZAFFARONI e PIERANGELLI, 2002, p. 104). Desta forma, a segurança jurídica é alcançada através da prevenção geral, por meio da sanção reparadora (retributiva) (Cf. ZAFFARONI e PIERANGELLI, 2002, p. 107). A prevenção penal especial que incide naqueles que transgrediram a norma, visa a “reforma e a readaptação social do condenado”. Desta forma, a pena tem uma proporção com o grau de afetação ao bem jurídico e o grau de culpabilidade, ou seja, de reprovabilidade que cabe 18 ao autor da conduta, em razão da maior ou menor possibilidade de ter agido de outra maneira (Cf. ZAFFARONI e PIERANGELLI, 2002, pp.109 e 112). A lei de talião estabelece “que a medida da pena, é aquela necessária para reparar o mal causado pelo delito” (ZAFFARONI e PIERANGELLI, 2002, 263). Para o filósofo alemão Emmanuel Kant, a pena é o meio correto para castigar quem praticou o delito, que para ser justa tem sua medida na lex talionis, a única que pode indicar a quantidade e a qualidade do castigo (Cf. REALE JÚNIOR, 2002, p. 47). Segundo o também filósofo alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel, a pena era uma necessidade lógica e também tinha caráter retribuitivo talional, por ser a sanção correspondente à violação da norma. Porém, quando a pena era aplicada para aqueles que estavam excluídos da comunidade jurídica, como os marginalizados, já não tinha sentido, uma vez que ela apenas neutralizaria o seu perigo (Cf. ZAFFARONI e PIERANGELLI, 2002, p. 284). O programa da Escola Clássica de combate à criminalidade se encontrava em crise, “sendo acusado de não ter cumprido com suas promessas e de apenas ter diminuído as penas” (ANDRADE, 2003, p. 60), surgindo então, a Escola Positiva que buscou o seu fundamento nas razões que levaram a Escola Clássica ao declínio. Acerca da percepção desta escola, comenta ANDRADE, que o crime é a concretização de uma conduta legalmente definida como tal, não é decorrente do livre arbítrio humano, mas sim do resultado previsível determinado por múltiplos fatores (biológicos, psicológicos, físicos e sociais) que confirmam a personalidade de uma minoria de indivíduos como “socialmente perigosa” (Cf. ANDRADE, 2003, p. 66). Relacionando as Escolas Clássica e Positivista, analisa-se que o criminoso era deixado de lado pelo classicismo, todavia, constituía o objeto de estudo do positivismo, que ao invés da Escola Clássica estudava o criminoso. O positivismo, que teve como figura proeminente o psiquiatra italiano Cesare Lombroso, considerava o criminoso, psicologicamente, um ser anormal e dividiu o delinqüente em cinco categorias características: o nato, que é aquele que apresenta características físicas e morfológicas específicas, como por exemplo, assimetria craniana, face ampla e larga, barba escassa etc; o louco, o portador de doença mental; o habitual, que é produto do meio social; o ocasional, o indivíduo sem firmeza de caráter e versátil na prática do crime; e, o passional, 19 caracterizado como homem honesto, mas de temperamento nervoso e de sensibilidade exagerada (Cf. MIRABETE, 2001, pp. 40/42). Assim, enquanto a Escola Clássica desenvolveu uma dupla concepção acerca da pena, atribuindo-lhe um papel retribucionista e outro utilitarista, a Escola Positiva concentrou-se neste papel, considerando a pena, apenas como “meio de defesa social em face da periculosidade criminal do criminoso”, o que levou a refutar o princípio da proporcionalidade penal e admitir as medidas de segurança, inclusive por tempo indeterminado. Neste contexto, sustentou-se necessária a individualização da pena, baseada na periculosidade do homem criminoso. Este princípio da individualização da pena operou tanto na cominação, como na aplicação e na execução da pena (Cf. BISSOLI FILHO, 1998, p. 42). Ainda a respeito da escola mencionada, comenta BISSOLI FILHO que, ao contrário do classicismo, o positivismo viu no homem criminoso o personagem de suas investigações, tendo-o como um ser anômalo, do qual despreendeu os estigmas da criminalidade. Até então, o indivíduo era tido apenas como detentor do livre arbítrio, sem ter merecido a devida atenção das Ciências Criminais. Assim, o positivismo criminológico se deteve mais nos estudos acerca do homem criminoso, precisamente nas teorias da tipologia e da periculosidade criminal, ou seja, no estudo dos indivíduos mais propensos ao delito, bem como na possibilidade do cometimento do delito (BISSOLI FILHO, 1998, p. 42). O conflito entre as Escolas Clássica e Positiva mostrou o surgimento de uma terceira escola. Esta, denominou-se Escola Técnico–jurídica ou Neoclássica, que adotou da Escola Positiva as premissas acerca da gênese natural da criminalidade, com o propósito de utilizar os dados da Antropologia e da Sociologia Criminal, colocando em maior relevo, o delinqüente perante o crime, conservando, todavia, da Escola Clássica, o princípio da responsabilidade moral, ou seja, da distinção entre delinqüentes “imputáveis” e “não imputáveis”, admitindo que a estes se deve imputar a lei penal, porém com medidas que consistem em providências de segurança e por isso mesmo, substancialmente diversas das penas, que representam o castigo proporcional à culpa do ato praticado (Cf. BISSOLI FILHO, 1998, p. 42). Um dos principais representantes desta Escola Penal é o jurista italiano Arturo Rocco, destacando que a Ciência Penal tem por tarefa o estudo da disciplina jurídica daquele fato humano e social que se chama “delito” e daquele fato social e político que se chama “pena”, ou seja, o estudo das normas jurídicas que proíbem as ações humanas imputáveis, injustas e nocivas, 20 indiretamente geradoras e reveladoras de um perigo para existência da sociedade juridicamente organizada, e, portanto, o estudo do direito e do dever jurídico e subjetivo, isto é, da relação jurídica penal que nasce em virtude de tais normas. (BISSOLI FILHO, 1998, p. 43). Os juristas Luiz Régis Prado e Cezar Roberto Bitencourt, citados por BISSOLI FILHO, sintetizaram da seguinte forma as características da Escola Técnico-jurídica: o delito é pura relação jurídica, de conteúdo individual e social; a pena constitui uma reação e uma conseqüência do crime (tutela jurídica), com função preventiva geral e especial, aplicável aos imputáveis; a medida de segurança–preventiva, aplicável aos inimputáveis; responsabilidade moral (vontade livre); método técnico-jurídico; e, refuta o emprego da filosofia no campo penal (Cf. BISSOLI FILHO, 1998, pp. 43/44). Desta forma, estas escolas desenvolveram percepções sobre a criminalidade e a pena, contribuindo ao mecanismo do “controle social punitivo institucionalizado” a ideologia atual, de que a aplicação da pena ao agente que praticou ato desviante não possui caráter coibidor da criminalidade, e sim, a repressão constitui um fim protetivo ao apenado com intuito de ressocializá-lo à ordem social vigente. É acerca do processo de criminalização que impõe uma sanção e as conseqüências da atuação do sistema penal diante do delito que será estudado a seguir. 1.2 AS CARACTERÍSTICAS E FUNÇÕES DO SISTEMA PENAL E O PROCESSO DE CRIMINALIZAÇÃO Como foi mencionado anteriormente, o Sistema Penal é composto por diversas agências reguladoras que compreendem desde a atividade do legislador na elaboração da legislação penal até a execução da pena. Desta forma, o Poder Judiciário, apoiado pelo Ministério Público, é o encarregado da aplicação da pena. Os estudos da pena e suas finalidades foram realizados pelas Escolas Clássica e Positivista, até chegar a percepção dominante do moderno sistema repressor, elaborado pela Escola Neoclássica ou Técnico-Jurídica. Esta ideologia da finalidade da pena é delimitada por 21 pretender ser protetiva ao apenado e objetivar, em princípio, a sua reabilitação ao convívio com a comunidade. A aplicação da pena como conseqüência da atuação do “controle social punitivo institucionalizado”, deve, no entanto, obedecer as funções declaradas pela ciência do sistema penal, mais conhecida como dogmática penal. As funções são a racionalização do poder punitivo estatal e a segurança jurídica na administração da justiça penal. É com base nessas promessas que funciona, ou que deveria funcionar, o mecanismo penal. É acerca das formas e dinâmicas do exercício do controle repressor face à criminalidade, que se fará a abordagem. As funções declaradas pelo Sistema Penal estabeleceram, com base no princípio da legalidade penal, que ninguém poderá ser incriminado se não houver previsão legal do fato delituoso, devendo para tanto, estar presente em tal conduta, a tipicidade, a antijuridicidade e a culpabilidade. Com base neste preceito, o Direito Penal deverá ser aplicado de maneira igualitária aos que não respeitarem a programação normativa, ocorrendo em conseqüência, o processamento penal, o qual culminará numa sanção penal que tem por fim, além da punição, a prevenção (geral e especial) e a recuperação daquele que foi considerado desviado. Objetiva-se com isto, através da pena, excluir-se o “mal” da sociedade, ou seja, o crime. O criminoso deverá ser devolvido à sociedade ressocializado (se possível), o que constitui a concretização do combate à criminalidade (Cf. ANDRADE, 2002, p. 186). As formas de atuação do sistema (seletividade, etiquetamento e estigmatização) apresentam algumas conseqüências no tocante à eficácia do mecanismo repressor, pois nem todas as pessoas que cometem um delito são criminalizadas, não podendo se ter certeza que certo indivíduo realmente cometeu o crime. Isto consiste em uma falha do Sistema Penal. A respeito do processo de criminalização, comenta CASTRO: O processo de criminalização pode ser dar em três diferentes direções: 1) A criminalização de condutas, que seria o ato ou o conjunto de atos dirigidos no sentido de converter uma conduta que antes era ilícita mediante a criação de uma lei penal. 2) A criminalização de indivíduos, que consiste nos procedimentos, situações, ritos ou cerimônias que levam a marcar como delinqüentes, determinadas pessoas em vez de outras, embora todas tenham praticado atos semelhantes, mediante um sistema de seleção que não é sempre fácil de determinar em detalhe, mas que tem sido tentado em vão por autores como Turk. 3) A criminalização do desviante que compreenderia o processo psicológico e social mediante o qual quem não é mais do que um simples desviante, se transforma em criminoso, quer dizer, o processo de formação de carreiras criminosas. ( CASTRO, 1983, p. 103) 22 A criminalização primária é realizada pelo próprio ordenamento penal, sendo a secundária, realizada pelos órgãos policiais, pelo Ministério Público e pelo Poder Judiciário, no momento da deflagração da ação penal ou arquivamento de peças que informam delitos e ao proferir sentenças condenatórias ou absolutórias, e ainda, no momento da execução da pena, haja vista nem todas serem executadas. De acordo com ANDRADE, a seleção que se opera no interior do processo de criminalização pode ser classificada como quantitativa e qualitativa. Aquela caracteriza-se pelo fato de que a criminalidade é um comportamento que atinge a maioria dos indivíduos, diferentemente do que prega a Criminologia Positiva, estudada anteriormente, que afirma que a conduta criminosa pertence a apenas alguns membros da sociedade, àqueles que apresentam anomalias físicas ou devido a fatores ambientais e sociais (Cf. ANDRADE, 2003, pp. 263/269). A seletividade ocorre qualitativamente, quando não se leva em consideração a operação do sistema penal, mas sim, as infrações dos autores de conduta e das pessoas envolvidas. Para BISSOLI FILHO, esta criminalização se opera tanto no campo das condutas como das pessoas. A primeira privilegia as condutas mais comuns praticadas pelas classes baixas, imunizando as da classe alta, como por exemplo, os crimes de colarinho branco. A última se opera sobre pessoas estereotipadas e estigmatizadas, mais vulneráveis à ação do Sistema Penal (Cf. BISSOLI FILHO, 1998, p. 183). No entanto, observa-se que nem todos que praticam condutas criminosas são passíveis da aplicação de sanção penal. Uma das formas de atuação do sistema repressor é a de selecionar aqueles indivíduos que responderão pelo ilícito penal praticado, notando, todavia, que geralmente esses seres são os que compõem os setores mais vulneráveis da sociedade. Esta maneira de funcionamento constitui uma das funções não declaradas pelo Sistema Penal, compreendendo, portanto, nas quebras das promessas anteriormente declaradas. Esta seleção se dá através de duas maneiras: a seleção de bens jurídicos a serem tutelados e a seleção de pessoas a serem consideradas criminosas. A respeito disto, sustenta ANDRADE, que o processo de criminalização opera-se “segundo a seleção dos bens jurídicos penalmente protegidos e dos comportamentos ofensivos a estes bens, descritos nos tipos penais e na seleção dos indivíduos estigmatizados entre todos aqueles que praticam tais comportamentos” (ANDRADE, 2003, p. 218). No dizer de BISSOLI FILHO, a respeito da seletividade, tem-se que: 23 A seleção ocorre, porque nem todas as condutas são passíveis de ser abstratamente previstas e nem todas os infratores podem ser individualmente criminalizados. Além disso, no que concerne ao processo de “criminalização primária”, pode -se dizer que não há um consenso prévio em torno dos bens jurídicos que devam ser tutelados, nem quais as condutas que merecem ser tipificadas. Por isso, o processo de criminalização, que à luz do paradigma tradicional deveria tratar de todos os interesses e pessoas com igualdade, acaba sendo desigual e seletivo. (BISSOLI FILHO, 1998, p. 180) Umas das conseqüências da seletividade como forma de atuação do “controle social punitivo institucionalizado” é a denomin ada Teoria da Rotulação ou do Etiquetamento. Conforme CASTRO, o desvio é produzido pela própria sociedade, sendo que suas causas encontram-se na situação social dos agentes desviantes ou em fatores sociais que impulsionam a prática de sua ação. Sob essa égide, os grupos sociais produzem os desvios ao criarem regras cuja infração constitui o desvio. O desvio não é uma qualidade ou um ato que a pessoa realiza, mas sim, uma conseqüência de que os outros apliquem regras e sanções a um transgressor. Assim, o desviante é alguém a quem foi aplicado esse rótulo, ou seja, etiqueta (Cf. CASTRO, 1983, p. 99). As etiquetas são rótulos colocados sobre o individuo. Elas podem ser tantos positivas quanto negativas, como por exemplo inteligente, trabalhador, ex-presidiário, homossexual, etc. O etiquetamento, também conhecido como labelling approach, consiste no processo em que a etiqueta/rótulo é englobada pelo indivíduo. Diferentemente do processo de estigmatização, em que a sociedade caracteriza a pessoa como ser criminoso, o etiquetamento é movido pelo próprio estigmatizado, ao ponto do mesmo passar a se conhecer e se aceitar como um delinqüente. Assim, as etiquetas escondem todas as outras características do indivíduo, além de criar as autoetiquetas. No entanto, a conseqüência disto, é que a própria pessoa se vê naquela característica que a ela é atribuída, dificultando, portanto, a sua reabilitação. A respeito disto comenta BISSOLI FILHO: A etiqueta de desviado cria na mente da sociedade uma certa identidade para o indivíduo, o qual a aceita (auto-etiqueta), pois a maioria das pessoas se apóia nos antecedentes de sua própria audiência social para o conhecimento de sua autoidentidade. Há um laço indissolúvel entre a reputação que se adquiriu e a sua autoimagem. A pessoa se converte no que está representando, ou seja, percebe a si mesma como os demais a vêem. A autopercepção encontra-se, assim, compelida a situar-se no molde da percepção dos outros. Através de um processo de resignação, de vergonha ou de sentimento de estranhamento, o indivíduo começa a percorrer o corredor que vai conduzi-lo a um novo papel (BISSOLI FILHO, 1998, p.184). 24 Com base na citação acima, extrai-se, que o etiquetameno encontra estrita ligação com a vida pregressa do estigmatizado pelo controle social. O indivíduo, portanto, se auto-etiqueta, pois não consegue se ressocializar na comunidade onde vive, logo raciocina que, se dizem que “eu sou um ser delinqüente, ao contrário dos demais e estes já criam um preconceito à minha personalidade, o porque não ser o que eles afirmam que eu sou?” No tocante a este processo de auto-rotulação, explica BISSOLI FILHO: A criação de uma auto-imagem realiza-se através do seguinte processo: 1) reação social em relação ao indivíduo (etiquetamento); 2) o indivíduo toma consciência e interpreta a reação social, fazendo um exame introspectivo da auto-etiqueta para conformá-la às percepções da etiqueta social. Assim consideradas, as etiquetas acabam por levar o indivíduo etiquetado a se diferenciar mais ainda dos não etiquetados e a considerar-se como alguém sem mérito, inferior e incompleto, fazendo com que na sua mente se criem corredores ou passagens, que, em última instância, levam-no à perda da auto confiança, diminuindo a possibilidade de reabilitação. (BISSOLI FILHO, 1998, p. 184). Conclui-se, portanto, que o mecanismo da criminalização e da coibição da criminalidade, que por ora se mostra com base nas funções declaradas pela dogmática penal, encontra-se ineficaz. Esta ineficácia é resultado da atividade exercida pelos diversos segmentos de atuação do sistema penal, contando também para isso, com a colaboração da sociedade em geral. A ineficácia foi gerada pela não utilização das promessas do sistema penal, o que acabou acarretando em outras formas de atuação do sistema repressor. Logo, a seletividade, a estigmatização e o etiquetamento, são marcos deste novo “controle social punitivo institucionalizado”. Este controle social abarca todos os seres humanos que se encontram sujeitos à prática do delito, incluindo a incidência às crianças e aos adolescentes autores de ato infracional. Como estes não cometem crimes, gozam de prerrogativa e proteções especiais prevista no ordenamento jurídico, tanto nacional como internacional. E, é a respeito destas normas e o enfoque histórico das mesmas, que se atém o próximo capítulo. Nesse capítulo, pudemos então conhecer as concepções das escolas Clássica, Positiva e Técnico-jurídica acerca do crime, criminoso e da pena. Chegou-se a ideologia da finalidade da pena, que deve obedecer as promessas declaradas pela dogmática penal. Analisou-se também, as características do sistema penal, bem como suas funções declaradas e não declaradas. 25 O objetivo dessa abordagem é demonstrar a atuação do sistema penal sobre aqueles que serão selecionados pelo mesmo para “responder” pelo delito praticado, em razão de que também, os adolescentes autores de ato infracional estão sujeitos a esta atuação, tendo em vista que a pena apresenta grande semelhança com as medidas sócio-educativas, estudadas a seguir. 26 2 O SISTEMA DE GARANTIAS DAS CRIANÇAS E DOS ADOLESCENTES E A ESTRUTURA REPRESSIVA DAS MEDIDAS SÓCIO-EDUCATIVAS Como fora abordado anteriormente, o sistema penal atua também na esfera que envolve os infantes, todavia de maneira diferenciada por possuírem características de seres em peculiar desenvolvimento, tornando necessário que existam leis protetivas especiais. Assim, este capítulo traz um breve histórico acerca destas normas. O processo de criminalização que se opera através da seletividade, rotulação e estigmatização, tendo em vista que estas são as reais formas de atuação do sistema penal, também é aplicado aos adolescentes infratores, principalmente àqueles que cumprem medida privativa de liberdade, como a institucionalização, por exemplo, que já era prevista no Código de Menores de 1927 (conforme será analisado neste capítulo) continuando em vigência com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente. Desta forma, serão estudadas também, nesse capítulo, as medidas sócio-educativas previstas no ECA, dando maior ênfase à medida de internação, por ser ela a mais grave das medidas e a que representa menor possibilidade de ressocialização do jovem infrator, devido a sua semelhança com a prisão destinadas aos adultos. Será tratado também, acerca do procedimento para apuração do ato infracional cometido por adolescentes, uma vez que as crianças não são responsabilizadas. 2.1 BREVE ANÁLISE DOS DECRETOS E LEIS DE PROTEÇÃO ÀS CRIANÇAS E AOS ADOLESCENTES 27 No ano de 1927 foi instituído o Decreto n° 17.943 –A, que consolidou as leis de assistência e proteção à crianças e aos adolescentes, também conhecido por Código de Menores “Mello Mattos 2”. Com relação à infância e à juventude, este Código distinguia o indivíduo infrator, entre a faixa etária maior ou menor de 14 anos de idade, instituindo medidas a serem aplicadas frente à ocorrência de delito de natureza punitiva. Se o infrator era menor de 14 anos de idade, não poderia ser submetido a processo penal. Porém, se seus pais, tutores ou responsáveis pela sua guarda, não tivessem condições de assisti-lo, o Juiz poderia determinar a aplicação de medidas, como internação em casa de educação até que ele completasse 18 anos de idade. Se fosse maior de 14 anos, o delinqüente seria submetido a processo especial, todavia, não sendo submetido à prisão em estabelecimento comum. A esta regra, há uma exceção, como no caso de intensa gravidade ou de impossibilidade de interná-lo em instituições adequadas a sua faixa etária, podendo desta forma, serem levados à prisão destinada a adultos (Cf. LIBERATI, 2003, p. 55). No tocante a esta situação comenta LIBERATI: Mas grave, porém, era a situação do menor infrator que estivesse com idade entre 16 e 18 anos. Se o crime que ele praticara fosse considerado grave pelas circunstâncias do fato e condições pessoais do agente, além de ficar provado que se tratava de indivíduo perigoso pelo seu estado de perversão moral, o Juiz lhe aplicaria o art. 65 do Código Penal e o remeteria a um estabelecimento para condenados de menoridade; ou, em falta desse, a uma prisão comum, com separação dos condenados adultos, onde permaneceria, até que se verificasse sua regeneração, sem que a duração da pena pudesse exceder o seu máximo legal (art. 71). (LIBERATI, 2003, p. 55) Nesta época, além da internação ao adolescente infrator, também se aplicava a medida de liberdade vigiada, que consistia em permanecer o infante em companhia e sob a responsabilidade dos pais, tutores, guardiões ou aos cuidados de um patronato e sob a vigilância do Juiz. Esta medida poderia ser aplicada também como forma de “progressão 3”, como previsto no Código de Menores de 1979 e persistindo no Estatuto da Criança e do Adolescente. 2 O Juiz de menores, José Cândido de Albuquerque Mello Mattos, apresentou ao Senado um projeto de sua autoria que codificava as leis referente aos infantes, que foi aprovado e promulgado, o qual instituiu um sistema de proteção e assistência à infância e adolescência, divididos estes em dois grupos: os abandonados e os delinqüentes. (Cf. Leal, 2001, p. 186) 3 De acordo com a Lei de Execução Penal (Lei n° 7.210/84), a progressão é a transferência para o regime menos rigoroso. 28 Já naquela fase se notava o caráter punitivo nas medidas de liberdade vigiada e de internação, uma vez que, desde o Código de Menores de 1927 até a vigência da Lei n. 8.069/90, as medidas aplicadas aos infantes abandonados ou delinqüentes tinham caráter de castigo ou de retribuição pelo mal causado à sociedade, sendo os mesmos colocados em entidades “protetoras 4”, por períodos hoje, considerados inconstitucionais (mínimo de três anos e no máximo sete anos). Estas medidas eram desprovidas das garantias prescritas na Carta Magna, como o direito ao devido processo legal e à ampla defesa (Cf. LIBERATI, 2003, pp. 58/59). Ainda na vigência do Código de Menores de 1927, foi criado o Serviço de Assistência a Menores – SAM, por meio do Decreto-Lei n° 3.799/41. O SAM tinha como objetivo a assistência de crianças e adolescentes com até 18 anos de idade, abandonados ou delinqüentes e funcionava como uma espécie de sistema penitenciário, ou seja, de internação total, convertendo as disfarçadas “internações” em verdadeiras penas de prisão (Cf. LIBERATI, 2003, p. 62). Com o advento do Decreto-Lei n°. 3.914/41 – Lei de Introdução ao Código Penal, alterou-se o artigo 715 do Código de Menores de 1927, introduzindo prazo limitado e definido para a internação de infratores. O tempo estabelecido era de no mínimo três anos e ao completar 21 anos de idade, sem que tenha sido revogada a medida de internação, o adolescente seria transferido para uma colônia agrícola, instituto de trabalho, reeducação ou de ensino profissional, e ainda, seção especial de outro estabelecimento à disposição do Juiz criminal (Art. 7°, §§ 2° e 3° do Decreto-Lei n° 3.914/41). O juiz só poderia liberar o infante quando cessasse sua periculosidade, constatada através de perícia técnica. Posteriormente, ainda na vigência do Código de Menores Mello Mattos, foi instituída a Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor – FUNABEM ou FNBEM, pela Lei n. 4.513, de 1° de dezembro de 1964. Foi criada, para substituir o SAM – Serviço de Assistência a Menores, que não mais estava respondendo às necessidades de atendimento, passando a ser conhecido pela sua metodologia como “universidade do crime” e “sucursal do inferno” (Cf. LIBERATI, 2003, p. 68). 4 As entidades protetoras eram os hospitais, asilos, orfanatos e outros lugares onde era prestado assistência ao infante. 5 Decreto nº 17.943-A/1927: “Art. 71. Se for imputado crime, considerado grave pelas circunstâncias do fato e condições pessoais do agente, a um menor que contar mais de 16 e menos de 18 anos de idade ao tempo da perpetração, e ficar provado que se trata de indivíduo perigoso pelo seu estado e pervesão moral, o juiz lhe aplicará o art. 65 do Código Penal e o remeterá a um estabelecimento para condenados de menoridade, ou, em falta desse, a uma prisão comum, com separação dos condenados adultos, onde permanecerá, até que se verifique sua regeneração, sem que, todavia, a duração da pena possa exceder o seu máximo legal.” 29 A medida de internação ou institucionalização, aplicada pela FUNABEM, era destinada a todo comportamento desviado da criança e do adolescente, seja por “medida de segurança” ou para “curar” o infante portador de uma patologia social 6, porém seu ideal de proteção e assecuratório de seus interesses não foi alcançado. Em 10 de outubro de 1979, foi promulgada a Lei n° 6.697 – o Código de Menores. Esse Código implantou a doutrina da “situação irregular”, que foi definida sucintamente por SARAIVA como “sendo aquela em que os menores passam a ser objeto da norma quando se encontrarem em estado de patologia social”, ou seja, quando não se ajustarem aos padrões sociais estabelecidos em determinada comunidade (SARAIVA, 2003, p. 44). Este mesmo doutrinador afirma ainda, que a declaração da situação irregular tanto pode derivar de sua conduta pessoal (caso de infrações por ele praticadas) ou de “desvio de conduta”, como da família (maus-tratos) ou da própria sociedade (abandono) (SARAIVA, 2003, p. 44). O artigo 2° deste Código previa as hipóteses em que o menor encontrava-se em situação irregular: Para efeito deste Código, considera-se, em situação irregular, o menor: I – privado de condições essenciais à sua subsistência, saúde e instrução obrigatória, ainda que eventualmente, em razão de: a) falta, ação ou omissão dos pais; b) manifesta impossibilidade dos pais ou responsável, para provê-las; II – vítima de maus-tratos ou castigos imoderados, impostos pelos pais ou responsável; III – em perigo moral, devido a: a) encontrar-se, de modo habitual, em ambiente contrário aos bons costumes; b) exploração em atividade contrária aos bons costumes; IV – privado de representação ou assistência legal, pela falta eventual dos pais ou responsável; V – com desvio de conduta, em virtude de grave inadaptação familiar ou comunitária; VI – autor de infração penal. No artigo 147 da Lei supramencionada estavam disciplinadas as medidas aplicadas às crianças e adolescentes em situação irregular, todavia, estas tinham caráter retribuitivo com a intenção de proteger o infante e integrá-lo na sociedade e na família. Estas medidas não eram diferenciadas, isto é, eram aplicadas a todos os que se encontravam em situação irregular, misturando-se infratores, abandonados, vitimizados, etc. 6 Pobreza extrema, incapacidade familiar, etc (Cf. LIBERATI, 2003, p. 68). “Art. 14. São medidas aplicáveis ao menor pela autoridade judiciária: I – advertência; II – entrega aos pais ou responsável, ou a pessoa idônea, mediante termo de responsabilidade; II – colocação em lar substituto; IV – imposição do regime de liberdade assistida; V – colocação em casa de semiliberdade; VI – internação em estabelecimento educacional, ocupacional, psicopedagógico, hospitalar, psiquiátrico ou outro adequado”. 7 30 Cabe ressaltar, que nesta norma já estava previsto a medida de institucionalização do adolescente infrator de forma excepcional, devendo somente ser imposta pela autoridade judiciária, mediante sentença e após o devido processo legal. No Código de Menores, a internação era considerada como meio educativo e curativo. Educativo em virtude do estabelecimento escolhido ter como finalidade proporcionar a educação, a profissionalização e a cultura ao adolescente. Curativo, quando o objetivo era curar o infante de um desvio de sua conduta, sendo esta originada de alguma patologia. Este Código determinava que o autor de infração penal poderia ser internado em estabelecimento adequado até que a autoridade judiciária, em despacho fundamentado determinasse o seu desligamento da instituição. Na falta de estabelecimento adequado, a internação do menor poderia ser feita, excepcionalmente, em seção de estabelecimento destinados a maiores, desde que isolada destes e com instalações apropriadas, de modo a garantir absoluta incomunicabilidade. No caso do adolescente que completasse 21 anos de idade, sem que tenha sido declarada a cessão da medida, a competência da jurisdição passaria ao Juízo incumbido das Execuções Penais. Desta forma, o infante seria removido para estabelecimento adequado, até que o juízo da Execução Penal julgasse extinta a sua medida. (Artigo 41) Percebe-se que, o Código de Menores de 1979 não determinava o tempo máximo para cumprimento da medida, todavia, a lei previa o reexame do caso a cada dois anos para verificar a necessidade de manutenção da medida. Esta estava condicionada à recuperação do autor da infração, que seria avaliada pelo Juiz e pelo Ministério Público. Com o advento da Lei n° 7.209/848, este preceito foi modificado, estabelecendo que no caso em que a medida de internação ainda não estivesse sido declarada cessada ao infrator com 21 anos de idade, não poderia encaminhar mais o mesmo ao Juízo de Execução Penal, devendo ser colocado em liberdade. Para esta regra, havia uma exceção, que era para o caso de ele ser considerado inimputável ou semi-imputável, de acordo com o artigo 269 do Código Penal. Neste caso, ele ficaria sujeito as determinações do Juízo das Execuções Penais. 8 Lei que altera dispositivos do Decreto-lei n° 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, e dá outras providências. 9 Art. 26 – É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. 31 Enquanto no Brasil, em 1979, editava-se o Código de Menores, expressão máxima da “Doutrina da Situação Irregular”, a ONU (Organização das Nações Unidas) estabelecia aquele, como o Ano Internacional da Criança. Diante disto, foi proposta a elaboração de uma Convenção sobre os Direitos da Criança, a qual calcada na Declaração de Genebra de 1924, na Declaração dos Direitos Humanos de 1948 e na Declaração dos Direitos da Criança em 1954, foi promulgada em 1989 (SARAIVA, 2003, p. 51). Esta convenção consagrou a “Doutrina da Proteção Integral” que foi adotada pelo Brasil através da Constituição Federal de 1988, em seu artigo 227. Até então, presidia no Brasil o velho Código de Menores, com a “doutrina da situação irregular”. (Cf. SARAIVA, 2003, p. 53) Os dispositivos constitucionais foram regulamentados posteriormente por ordenamento especial, através da Lei n° 8.069/90 que instituiu o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, legislação em vigência até os dias atuais. O Estatuto estabeleceu as medidas protetivas aplicadas às crianças, bem como as sócioeducativas aplicadas aos adolescentes autores de ato infracional, disciplinando, ainda, sobre apuração do ato infracional, de acordo com as garantias constitucionais. A Lei n° 8.069/90, de 13 de julho de 1990, visava regulamentar o artigo 227 da Constituição Federal de 1988, que em seu caput, com base na “Doutrina de Proteção Integral”, reconheceu a criança e o adolescente como titulares de interesse juridicamente protegidos, podendo se subordinar à família, à sociedade e ao Estado. (Cf. GARRIDO, 2002, p. 20). A partir daí, fundamentado na Declaração dos Direitos da Criança, deu origem a elaboração de uma nova lei, o Estatuto da Criança e do Adolescente. A Lei n° 8.069/90 – Estatuto da Criança e do Adolescente – revogou o Código de Menores, que vigeu até 1989. A base do Estatuto é a “Doutrina de Proteção Integral”, reflexo da Constituição Federal de 1988. Desta forma, a proteção integral está prevista no artigo 1° da lei: “esta lei dispõe sobre a proteção integral a crianças e adolescentes.” CURY, GARRIDO e MARÇURA, ao comentarem sobre a proteção integral dizem que a proteção integral tem como fundamento a concepção de que crianças e adolescentes são sujeitos de direitos, frente à família, à sociedade e ao Estado. Rompe com a idéia de que sejam simples objetos comuns a toda e qualquer pessoa, bem como de direitos Parágrafo único. A pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, em virtude de perturbação de saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado não era inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. 32 especiais decorrentes da condição peculiar de pessoas em processo de desenvolvimento (CURY, GARRIDO e MARÇURA, 2002, p. 21). Assim, elevados a condição de sujeitos de direito, crianças e adolescentes receberam inúmeros novos direitos, como também deveres, que passaram a garantir-lhes um tratamento diferenciado daquele dado até então (MARTINS, 2003, p. 35). A prioridade absoluta prevista no artigo 4° do Estatuto, entende que a criança e o adolescente devem estar em primeiro lugar nas prioridades da família, da comunidade, da sociedade em geral e principalmente, do Poder Público. Primeiramente, em relação ao ato infracional, o Estatuto trouxe a responsabilização do adolescente pelas normas estatutárias, distinguindo em seu artigo 2°, a criança como sendo “a pessoa até doze anos de idade incompletos” e adolescente “aquela entre doze e dezoito anos”, no entanto, definiu a aplicação excepcional da norma às pessoas entre dezoito e vinte e um anos de idade, como no caso da internação, estabelecendo a liberação compulsória. Em relação à conduta ilícita, o artigo 103 do Estatuto considera ato infracional a conduta descrita como crime ou contravenção penal. Assim, mesmo diante da prática de ato infracional, o Estatuto traz a responsabilização do adolescente pelo ato praticado, através da aplicação das “medidas sócio -educativas”, tendo em vista a inimputabilidade dos menores de 18 anos, de acordo com o que preceitua o artigo 104 do Estatuto, artigo 228 da Constituição Federal e artigo 26 do Código Penal, podendo apenas ser responsabilizado pelas normas estatutárias. Desta forma, diante de um ato infracional, por ser o adolescente inimputável, as medidas aplicadas ao mesmo são aquelas previstas no artigo 112 do Estatuto, cuja competência para aplicação é exclusiva do Juiz, mediante representação do Ministério Público. No caso de ato infracional praticado por criança serão aplicadas medidas de natureza protetiva, previstas no artigo 101 do Estatuto, que são as seguintes: encaminhamento aos pais ou responsável, mediante termo de responsabilidade; orientação, apoio e acompanhamento temporário; matrícula e freqüência obrigatória em estabelecimento de ensino fundamental; inclusão em programa comunitário ou oficial de auxílio à família, a criança e ao adolescente; requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatorial; inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos; abrigo em entidade; colocação em família substituta. 33 Essas medidas serão aplicadas pelo Conselho Tutelar (artigo 136, inciso I) e no caso de colocação em família substituta, pela autoridade judiciária (artigo 148, inciso III e parágrafo único, alínea “a”). Nesta trilha, as crianças não são imunes da autoria de ato infracional, apenas não serão responsabilizadas pela infração, conforme pondera LIBERATI: É compreensível, nos dias de hoje, que a criança possa, perfeitamente, praticar um ato infracional, inclusive utilizando-se de armas de fogo ou outros meios tecnológicos. Mesmo nessas circunstâncias, é vedado conduzi-la à delegacia de polícia. A função da autoridade policial, nesse caso, resume-se em apurar o fato criminoso e encaminhar os documentos ao Conselho Tutelar ou à autoridade judiciária. A arma utilizada e o produto do crime serão encaminhados à autoridade judiciária ou ao departamento de segurança pública, para depósito. Todavia, em hipótese alguma, a criança poderá ser conduzida à autoridade policial ou permanecer no recinto da delegacia de polícia ou ser submetida a situações de enfrentamento com vítimas e testemunhas. (LIBERATI, 2003, p. 97). Disto deflui que, ao cometer um ato infracional, a criança não poderá ser conduzida à delegacia, devendo ser encaminhada ao Conselho Tutelar que aplicará a medida de proteção adequada, devendo a execução da medida ser acompanhada pelo Juiz da infância e juventude. No entanto, com relação ao adolescente infrator, o artigo 112 do ECA determina que a autoridade competente poderá aplicar as seguintes medidas: advertência; obrigação de reparar o dano; prestação de serviço à comunidade; liberdade assistida; inserção em regime de semiliberdade; internação em estabelecimento educacional; e outras medidas aplicadas às crianças como protetivas10. Quando a medida protetiva é aplicada ao adolescente em conflito com a lei, não visa a responsabilização do mesmo, conforme assinalaram VERONESE, PALMA SOUZA e MIOTO: As medidas de proteção não servem para responsabilizar o adolescente por seus atos, mesmo se aplicadas ao fim da apuração de um ato infracional. Elas não trazem ônus ao adolescente, algo que ele faça ou a quem se submeta para ser educado. Estão entre as medidas sócio-educativas para que o Juiz possa, na sentença ou na remissão, subtrair o adolescente do meio em que supostamente se “corrompeu”. (VERONESE, PALMA SOUZA, MIOTO, 2001, p. 50) 10 Encaminhamento aos pais ou responsável, mediante termo de responsabilidade; orientação, apoio e acompanhamento temporário; matrícula e freqüência obrigatórias em estabelecimento oficial de estudo fundamental; inclusão em programa comunitário ou oficial de auxílio à família, à criança e ao adolescente; requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatorial; e inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos. 34 Tem-se, entretanto, que a medida sócio-educativa aplicada ao adolescente autor de ilícito penal, traz uma responsabilização ao mesmo pelo ato praticado, caracterizando assim, uma pena imposta a ele, ao contrário da medida protetiva aplicada à criança, também autora de ato infracional. No dizer de REALE, “a pena constitui uma privação de direito s cominada pela lei penal e aplicada pelo juiz ao condenado, que a ela deve-se submeter” (REALE JÚNIOR, 2002, p. 43). No tocante a medida sócio-educativa, esta sanção estatutária tem uma carga retributiva, constituindo um elemento pedagógico imprescindível para a “recuperação” do adolescente em conflito com a lei (SARAIVA, 2003, p. 76). No entanto, a diferença básica entre o sistema penal e o sócio-educativo é a competência jurisdicional e neste último, ao contrário do Sistema Penal, não há uma delimitação legal da medida correspondente ao fato praticado, ou seja, não há uma prévia correlação entre o fato e a pena ou medida, o que fica a cargo do Juiz, de acordo com critérios um pouco mais flexíveis, estabelecidos na Lei específica (ECA). (Cf. VIANNA, 2004, p. 331). Desta forma, observa-se claramente a ligação da medida sócio-educativa, com o sistema penal, tendo em vista até a natureza retribuitiva da medida, que para o Sistema Penal, conforme análise no primeiro capítulo, a pena consiste em um castigo a quem cometeu um ilícito penal. A norma infanto-juvenil estabelece a aplicação das medidas, aos adolescentes autores de ato infracional, examinadas a seguir. 2.2 MEDIDAS SÓCIO-EDUCATIVAS Verificada a prática de ato infracional poderão ser aplicadas aos adolescentes as seguintes medidas: advertência; obrigação de reparar o dano; prestação de serviço à comunidade; liberdade assistida; inserção em regime de semiliberdade; internação em estabelecimento educacional, ou qualquer outra medida de proteção prevista no artigo 101, com exceção do abrigo em entidade e colocação em família substituta (art. 112 do ECA). Compete à autoridade judiciária a aplicação dessas medidas, após representação do Órgão Ministerial, garantindo ao 35 adolescente os princípios contemplados pela Constituição, depois da apuração da infração através do devido processo legal. A advertência, primeira das medidas prevista no artigo 11511, é a mais branda das medidas sócio-educativas. É aplicada para adolescentes que cometem ato infracional considerados leves desde, que não tenham histórico criminal. Ela consiste na admoestação verbal, reduzida a termo e assinada, onde estarão presentes a autoridade judiciária, o representante do Ministério Público, o adolescente e seu pai ou responsável. Desta forma, o artigo 114, parágrafo único, preceitua que “a advertência poderá ser aplicada sempre que houver prova da materialidade e indícios suficientes da autoria”. Atenta -se que, para aplicação das demais medidas, é necessário à existência de provas suficientes da autoria e materialidade, conforme estabelece o caput do mesmo artigo. A medida de obrigação de reparar o dano veio estabelecida no artigo 11612 do Estatuto. No dizer de LEAL, “de conteúdo punitivo e pedagógico, a medida, substituível por outra adequada se manifestamente impossível, pode ser aplicada pela autoridade quando o ato infracional tiver reflexos patrimoniais. O adolescente poderá ser obrigado, se for o caso, a restituir a coisa, promover o ressarcimento do dano ou, de outro modo, compensar o prejuízo da vítima”. (LEAL, 2001, p. 193) A esse respeito, ressaltar-se que o artigo 3° do novo Código Civil, estabelece a incapacidade dos menores de 16 anos de idade para responderem pelos atos da vida civil. Assim, caberia aos pais ou responsáveis a reparação do dano. Disto deflui, que se o infrator for maior de 16 anos de idade e menor de 18 de idade, responde solidariamente com os pais ou responsáveis, de acordo com o artigo 4° do Código Civil, em relação ao ressarcimento dos danos causados, em virtude da prática de atos ilícitos. Razão assiste, portanto, a LIBERATI, quando assinala que o Estatuto da Criança e do Adolescente, ao fixar a idade de 12 anos para o início da responsabilidade do adolescente pelos atos ilícitos que praticar e suas conseqüências, interfere na extensão do artigo 3° do novo Código 11 Art. 115. A advertência consistirá em admoestação verbal, que será reduzida a termo e assinada. Art. 116. Em se tratando de ato infracional com reflexos patrimoniais, a autoridade poderá determinar, se for o caso, que o adolescente restitua a coisa, promova o ressarcimento do dano, ou, por outra forma, compense o prejuízo da vítima. Parágrafo único. Havendo manifesta impossibilidade, a medida poderá ser substituída por outra adequada. 12 36 Civil. Se a intenção do Estatuto era promover a responsabilização do adolescente infrator pelos danos que causou a terceiro, obrigando-o a reparar o dano como medida sócio-educativa, com seus próprios recursos, essa determinação ou fere o dispositivo acima ou revoga-o, pois pelos atos que praticar e pelas conseqüências geradas por eles, o adolescente de 12 anos já é responsável (LIBERATI, 2003, p. 105). O citado autor continua ainda, dizendo que tendo natureza sancionatório-punitiva, mas com conteúdo educativo, a medida sócioeducativa de reparação do dano visa impor ao adolescente infrator uma conduta pessoal e intransferível, que deve ser, se possível, cumprida exclusivamente por ele. O próprio Estatuto sugere, no parágrafo único do art. 116, a alternativa de cumprimento da medida, quando houver manifesta impossibilidade de ser cumprida; a própria lei autoriza sua substituição. O Estatuto foi firme neste aspecto, para expressar que o objetivo da medida é a retribuição pessoal, de caráter punitivo e, ao mesmo tempo, educativo ao adolescente que praticou um ilícito penal. (LIBERATI, 2003, p. 105-106) Daí decorre que, não sendo possível o próprio adolescente reparar o dano, a medida deverá ser substituída por outra que se mostrar mais adequada. Percebe-se aí, a natureza sancionatória-punitiva das medidas, uma vez que busca conscientizar o infrator da ilicitude de seu ato através de uma sanção-punição. A prestação de serviço à comunidade, estabelecida no artigo 117 do Estatuto, consiste “na realização de tarefas gratuitas de interesse geral, por período não excedente à seis meses, junto a entidades assistenciais, hospitais, escolas e outros estabelecimentos congêneres, bem como em programas comunitários e governamentais. As tarefas serão atribuídas conforme as aptidões do adolescente, devendo ser cumpridas durante jornada máxima de oito horas semanais, aos sábados, domingos e feriados ou em dias úteis, de modo a não prejudicar a freqüência à escola ou a jornada normal de trabalho.” Novamente, nota-se o caráter punitivo da medida, uma vez que impõe obrigações ao infrator, que para LIBERATI tendo natureza sancionatório-punitiva e, também, com grande apelo comunitário e educativo, a medida sócio-educativa de prestação de serviços à comunidade constitui medida de excelência tanto para o jovem infrator quanto para a comunidade. Esta poderá responsabilizar-se pelo desenvolvimento integral do adolescente. Ao jovem valerá como experiência de vida comunitária, de aprendizado de valores e compromissos sociais (LIBERATI, 2003, pp. 107/108). 37 No entanto, a medida deve ser aplicada com a anuência do adolescente, pois caso contrário constituirá trabalho forçado, o que é proibido. O objetivo da medida é desenvolver a cidadania do infrator através da realização de trabalho na comunidade. A execução desta medida será acompanhada através de relatório periódico da entidade beneficiada, pela autoridade judiciária, levando-se em consideração a capacidade do adolescente para cumprir as mesmas (Cf. VERONESE, QUANT, OLIVEIRA, 2001, p. 60). A medida de liberdade assistida vem determinada no artigo 118 do ECA. No dizer de LEAL, essa medida é “de grande valor educativo e preventivo, sua aplicação é sugerida a reincidentes, a habituais em atos delituosos, e deve ser fixada pelo prazo máximo de seis meses, sujeita a sofrer prorrogação e substituída por outra medida” (LEAL, 2001, p. 194). Essa Medida conserva a característica de restrição de liberdade, no sentido em que impõe condições ao estilo de vida do adolescente, redimensionando suas atividades, os seus valores e sua convivência familiar (VIANNA, 2004, p. 385). Para a execução da medida, o Juiz designará um orientador, que deverá acompanhar o adolescente cabendo os encargos previsto no artigo 119 do Estatuto. A liberdade assistida poderá ser desenvolvida por grupos comunitários, com orientadores designados pela comunidade, porém o orientador deverá preencher os mesmos requisitos do artigo 119. Essa modalidade de execução da medida de liberdade assistida é conhecida por LAC – Liberdade Assistida Comunitária (Cf. LIBERATI, 2003, p. 111). Disciplinada no artigo 120 do Estatuto, a medida de semiliberdade pode ser aplicada desde o início, depois da apuração do ato infracional, observado o devido processo legal ou poderá ser aplicada como forma de “progressão” do regime de internação para o de semiliberdade. São obrigatórias a escolarização e a profissionalização, devendo sempre que possível, ser utilizados recursos existentes na comunidade (art. 120, § 1°). A medida não tem prazo determinado, autorizando a lei que se apliquem, no que couber, as disposições referente a internação, ou seja, a reavaliação periódica, o prazo máximo de três anos, a liberação compulsória aos 21 anos de idade. O regime de semiliberdade consiste na privação parcial da liberdade do adolescente, uma vez que eles exercem atividades externas durante o dia (trabalho/ escola) recolhendo-se à noite para uma entidade de atendimento. Sustenta LIBERATI que: 38 A privação parcial da liberdade do adolescente infrator decorre do objetivo da medida em estudo: sua função é punir o adolescente que praticou um ato infracional. É verdade, porém, que todas as medidas sócio-educativas – incluindo a inserção em regime de semiliberdade – têm natureza sancionatório-punitiva, com verdadeiro sintoma de retribuição ao ato praticado, executada com finalidade pedagógica. (LIBERATI, 2003, p. 112) Consiste, pois, numa medida restritiva de liberdade que visa a punição do adolescente, mostrando-se novamente a natureza sancionatório-punitivo, assim, como as demais medidas previstas na norma estatutária. No momento em que o adolescente for recolhido à entidade de atendimento, os orientadores o acompanharão, informando ao Juiz a evolução da medida e as dificuldades durante a execução, a fim de que a autoridade judiciária avalie a necessidade da continuação da medida e a eficácia da mesma. A última medida prevista no Estatuto, a medida de internação, preceituada nos artigos 121 e seguintes, consiste numa medida privativa de liberdade, aplicada pelo Juiz em decisão fundamentada, devendo respeitar três princípios básicos: 1 – brevidade - sem tempo determinado, sua manutenção é reavaliada no máximo a cada seis meses e jamais excederá a três anos. 2 – excepcionalidade – a internação utilizada em última hipótese, se forem inviáveis as demais medidas. Admite-se somente em três hipóteses: ato infracional cometido mediante grave ameaça ou violência à pessoa; reiteração no cometimento de outras infrações graves; descumprimento reiterado e injustificável da medida anteriormente imposta. Alcançado o limite máximo de três anos, deverá o adolescente ser liberado, posto em regime de semiliberdade ou de liberdade assistida, sendo compulsória sua liberação aos 21 anos de idade. 3 – respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento – ao Estado compete zelar por sua integridade física e moral, para isso adotando medidas apropriadas de contenção e segurança13 (Cf. LEAL, 2001, pp. 195/196). Essa medida não pode ultrapassar o prazo de três anos por ato infracional, devendo ser reavaliada a cada seis meses. Ao completar 21 anos de idade, o adolescente será liberado compulsoriamente. Deve ser aplicada a casos específicos, como crimes contra a pessoa, reincidência e descumprimento da medida anterior (Cf. VIANNA, 2004, p. 386). 13 Esse princípio não é característica da medida de internação, mais sim de todo o Estatuto. 39 Como já mencionado, para a aplicação de qualquer das medidas sócio-educativas é necessária a apuração do ato infracional, devendo existir prova da materialidade e indícios suficientes da autoria para a aplicação da medida de advertência e provas suficientes da autoria e materialidade para a aplicação das demais. O procedimento para a apuração do ato infracional, que é de natureza processual penal, será estudado no item abaixo. 2.3 A APURAÇÃO DO ATO INFRACIONAL O Estatuto da Criança e do Adolescente não estabeleceu o procedimento específico para a apuração do ato infracional cometido por crianças. Disse apenas, que a criança autora de ato infracional será aplicada medidas protetivas, prevista no artigo 101, que são as mesmas medidas aplicadas para crianças não infratoras (Cf. VIANNA, 2004, pp. 363/364). A competência para aplicação dessas medidas é do Conselho Tutelar (art. 136, inc. I), porém, a execução da medida pode ser acompanhada pelo Juiz da infância e juventude. As medidas aplicadas pelo Conselho Tutelar tem natureza administrativa, podendo ser revistas judicialmente, no entanto a execução é judicial, não podendo, no entanto, a criança ser transferida de abrigo sem autorização judicial (Cf. VIANNA, 2004, p. 364). Destarte, com relação à apuração do ato infracional atribuído a adolescente, o Estatuto trouxe um procedimento baseado nos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa, dentre outros assegurados no artigo 5° da Carta Política de 1988. Como já referido anteriormente, o Estatuto tratou apenas da forma de apuração do ato infracional atribuído ao adolescente. No que se refere à criança, a competência é do Conselho Tutelar e na falta deste, da autoridade judiciária (LEAL, 2001, p. 196). Em relação ao adolescente, na justiça da infância e juventude foram introduzidos o contraditório e a ampla defesa, fazendo com que o adolescente seja considerado sujeito de direito, em vez de objeto de apuração do Estado. Ele tem todos os direitos e prerrogativas inerentes a esta condição: defesa técnica, inquirição de testemunhas, alegações finais, etc (Cf. VIANNA, 2004, p. 366) As medidas sócio-educativas são destinadas a adolescentes em conflito com a lei, depois de apurado o ato infracional, ouvido o Ministério Público, será aplicada pelo Juiz, a medida mais 40 adequada, que vise a ressocialização e a reintegração do adolescente. Porém, não se pode negar o seu caráter punitivo. Nesta trilha, ressalta VIANNA: Incorporando a compreensão de que crianças e adolescentes são sujeitos de direitos e em condições peculiares de desenvolvimento, o Estatuto da Criança e do Adolescente, no que diz respeito ao adolescente em conflito com a lei, traz um conjunto de princípios por meio dos quais todo o Sistema de Garantia de Direitos deverá desenvolver ações de ressocialização, de aplicar-lhe medidas sócio-educativas como forma em primeiro lugar de não deixar impune o ato praticado e ao mesmo tempo entendê-lo diferentemente de um adulto criminoso. Aliás, as medidas socioeducativas têm caráter punitivo, como inclusive afirma o Ministro Ficher do STJ, no Hábeas-Corpus 2.642 (RESP 241477-SP) absorvendo o escólio do Desembargador Amaral e Silva, de Santa Catarina: “a medida socioeducativa já se disse tem seu aspecto de pena. Queira-se ou não denominá-la assim; trata-se de uma solução, uma ordem imposta ao adolescente”. (VIANNA, 2004, p. 328) Dessa forma, para ser aplicada a medida sócio-educativa será observado todo o procedimento legal, frisando-se novamente, que este é de natureza processual penal. Para VIANNA, a estrutura básica para apuração do ato infracional estabelece três fases: a policial (arts. 172/178), a fase de apresentação ao Ministério Público (arts. 179/182) e a fase judicial (arts. 183/190) (Cf. VIANNA, 2004, p. 366). Em relação à fase policial, o adolescente só poderá ser privado de sua liberdade se for preso em flagrante14, por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente ou ainda, não se tratando de delito grave, se um dos pais ou responsáveis não comparecer à delegacia. Se ele for preso por ordem do juiz, o período máximo de internação é de 45 dias. No caso da prisão flagrancial, o adolescente será conduzido à autoridade policial, devendo ser mantido em lugar separado daquele destinado a maiores, pelo prazo máximo de 24 horas. Se o ato infracional é cometido mediante grave ameaça à pessoa (ex: roubo, estupro), a autoridade policial deverá lavar o auto de apreensão (ouvindo as testemunhas e o adolescente), apreender os produtos e instrumentos da infração, requisitar os exames de perícias necessárias à comprovação da materialidade e autoria da infração. Tratando-se de ato infracional de menor gravidade15, o boletim de ocorrência circunstanciado poderá substituir a lavratura do auto (Cf. LEAL, 2001, p. 197). 14 15 A prisão em flagrante vem disciplinada nos artigos 301 e seguintes do Código de Processo Penal. O ato infracional considerado grave é aquele que na lei penal é punível com pena de reclusão. 41 Não sendo o ato infracional considerado grave e comparecer os pais ou responsáveis, o adolescente deverá ser liberado provisoriamente, mediante termo de compromisso e responsabilidade de apresentação ao representante do Ministério Público, no mesmo dia ou sendo impossível, no primeiro dia imediato (VIANNA, 2004, pp. 367/368). Permanecendo internado, a autoridade policial deverá encaminhá-lo ao representante do Ministério Público, juntamente com a cópia do auto de apreensão ou boletim de ocorrência. Não sendo possível a imediata apresentação do adolescente ao Órgão Ministerial, a autoridade policial o encaminhará à entidade de atendimento16, sendo vedado a sua condução nos chamados “camburões”, devendo o diretor da instituição apresentá -lo ao Parquet em 24 horas (Cf. LEAL, 2001, p. 198). Não tendo sido o adolescente flagranciado na prática de ato infracional, a autoridade policial fará chegar as mãos do representante do Ministério Público, o relatório das investigações e os demais documentos (LEAL, 2001, p. 198). Pondera VIANNA, que a apreensão por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, pode ser de quatro espécies: 1 - internação provisória – está internação ocorre antes da sentença, com prazo máximo de 45 dias, que é o tempo previsto para o término do procedimento. Para essa internação, além do fumus boni iuris e periculum in mora17, é necessário que estejam presentes os demais requisitos para a internação imposta pela sentença a ser proferida no final do procedimento; 2 - busca e apreensão do adolescente – quando este não for localizado para comparecimento à audiência de apresentação; 3 - na condução coercitiva do adolescente – quando devidamente certificado e notificado, não comparecer injustificadamente à audiência de apresentação; e, 4 - pela sentença – quando da aplicação da medida sócio-educativa (Cf. VIANNA, 2004, pp. 370/371). Na fase de apresentação do adolescente ao Ministério Público, o Promotor de Justiça procederá imediatamente a oitiva do adolescente e se possível, de seus pais ou responsáveis, vítimas e testemunhas. À vista do auto de apreensão, boletim de ocorrência ou relatório policial e 16 Não havendo entidade de atendimento a apresentação será feita pela própria autoridade policial, devendo os adolescentes ficarem em lugar separado dos destinados a adultos. 17 Requisitos necessários para a medida cautelar. 42 com informações sobre os antecedentes do adolescente, o representante do Órgão Ministerial18 poderá promover o arquivamento dos autos, conceder a remissão ou ainda, representar à autoridade judiciária para a aplicação da medida sócio-educativa (Cf. LEAL, 2001, pp. 198/199). Com efeito, nem sempre diante de um ato infracional será aplicada a “medida sócio educativa”, tendo em vista qu e o artigo 126 e seguintes do Estatuto traz a possibilidade da remissão, levando em consideração a gravidade da infração, ou seja, a exclusão, suspensão ou extinção do processo sem exame do mérito, podendo esse perdão, ser concedido pelo Ministério Público, acompanhado ou não da medida sócio-educativa, que não impliquem em restrição à liberdade. (Cf. CURY, GARRIDO e MARÇURA, 2002, p. 117-118). Colhe-se da Jurisprudência: ECA - Lei n° 8.069/90 – Instituto da remissão – Será concedida a remissão pelo representante do Ministério público, como forma de exclusão do processo, antes da instauração do procedimento judicial, desde que sopesadas as circunstancias e conseqüências dos fatos, o contexto social em que vive o menor, a personalidade e a maior ou menor participação no ato infracional – Inteligência do art. 126, do ECA – Tal decisão deve ser submetida à homologação da autoridade judiciária que, discordando, conforme estabelecido no art. 181, § 2°, do Estatuto, deverá fazer a remessa ao Procurador-Geral de Justiça para que tome as medidas cabíveis – Se iniciado o procedimento judicial, a remissão também poderá ser concedida pelo magistrado, como forma de suspensão ou extinção do processo, ouvido previamente o representante do MP (arts. 188 e 186, § 1°, do ECA). Deverá, na presente hipótese, ser observado pela autoridade judiciária se o procedimento já atendeu a finalidade da lei, a reeducação do menor – Remissão que, in casu, revelou-se como medida mais apropriada - Recurso desprovido. (Apelação Criminal n° 98.007105-4 – Timbó – acórdão ago/98) A remissão poderá ser concedida antes da instauração do processo judicial, pelo Promotor de Justiça, devendo ser homologada pela autoridade judiciária, se esta assim entender como procedimento mais indicado. Também poderá ser concedida pelo Juiz, depois de ouvido o representante do Ministério Público, em qualquer momento do processo, antes da sentença. O arquivamento será realizado quando inexistir o fato, não constituir ele ato infracional ou não for o adolescente seu autor. No caso da remissão, será concedida como forma de exclusão do processo, ou seja, não pode aplicar a medida. O que a lei permite é que a inclua como condição do não-processar, como contrapartida da disponibilidade da ação sócio-educativa, exceto em regime de semiliberdade e de internação (art.127 do ECA). Quando o representante do Ministério Público inclui medida como condição para a disposição da ação sócio-educativa, não está aplicando qualquer sanção. (Cf. CURY, GARRIDO e MARÇURA, 2002, pp.179/180) 18 O procedimento de apuração de ato infracional é sempre de iniciativa do Ministério Público 43 O arquivamento ou a remissão será homologado pelo Juiz, que caso não entenda conveniente, remeterá ao Procurador-Geral de Justiça, que se entender que o procedimento adotado (arquivamento ou remissão) não foi o adequado, oferecerá representação ou designará outro membro do Ministério Público para fazê-lo. No momento da remissão, quando esta é concedida na apresentação ao Promotor de Justiça, pode-se observar que não é garantido ao adolescente a presença de seu defensor. Leciona VIANNA, que a “ausência do me smo, no ato da apresentação do adolescente ao MP, retirar-lhe-á na prática, com certeza, o seu direito de questionar a erronia ou injustiça da medida aplicada por força de remissão” (VIANNA, 2004, p. 372). Caso o procedimento não seja arquivado ou não seja concedida a remissão, o representante do Ministério Público oferecerá a representação à autoridade judiciária, através do qual inicia-se a ação sócio-educativa19. A representação ministerial, independe de prova pré-constituída da autoria e materialidade, proporá a instauração de procedimento para a aplicação da medida sócio-educativa mais conveniente para o caso e será oferecida por petição, com breve resumo dos fatos e da classificação do ato infracional e rol de testemunha. Na representação não será especificada a medida sócio-educativa que será aplicada (Cf. LEAL, 2001, p. 199). Após o recebimento da representação, o Juiz designará a audiência para apresentação do adolescente, decidindo sobre a decretação ou manutenção da internação provisória, que como já foi salientado, não pode exceder 45 dias, prazo máximo e improrrogável que se admite, nesse caso, a conclusão do procedimento (Cf. LEAL, 2001, p. 200). Na audiência em continuação, depois de ouvidas as testemunhas arroladas na representação e na defesa prévia, será dada a palavra ao representante do MP e ao defensor e em seguida, será proferida a decisão. Ficando provado a autoria, materialidade e se o fato constitui ato infracional, será aplicada a medida sócio-educativa (Cf. LEAL, 2001, p. 202). No entanto, se houver irresignação, quer por parte do Órgão Ministerial, quer por parte do adolescente e de seu defensor, cabe recurso de apelação (art. 198 do ECA), sendo que o 19 Entende VIANNA, que apesar de não constar de forma explicita, o reconhecimento da existência de causas justificantes que excluam o ato infracional – legitima defesa, estado de necessidade ou qualquer outra que isente a pena, conforme consta no art. 386, V do CPP – também impede a cominação de medida sócio educativa, porém, nada impede que a autoridade judiciária aplique uma das medidas especificas de proteção (art. 101), se vislumbrar a existência de algumas das hipóteses previstas no art. 98 da mesma lei (VIANNA, 2004, p. 375). 44 sistema recursal adotado, mesmo para as decisões proferidas em sede infracional (ou criminal) no ECA é o do Código de Processo Civil (Cf. VIANNA, 2004, pp. 373/374). Neste momento, encerra-se a fase de apuração do ato infracional, dando início a execução da medida sócio-educativa, com as mesmas características das penas previstas na legislação penal, inclusive com as mesmas tipicidades do processo de criminalização (seletividade, estigmatização e etiquetamento) aplicados aos imputáveis, assim considerados pela Constituição Federal e também pelo Código Penal. Após o estudo da operacionalização do sistema penal, suas funções declaradas e as funções reais, bem como da análise dos documentos de proteção as crianças e adolescentes, chegou-se ao estudo da doutrina da proteção integral consagrada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. O Estatuto trouxe as medidas aplicadas aos adolescentes autores de ato infracional, uma vez que as crianças não são responsabilizadas pelo ilícito cometido, determinando o procedimento para apuração do ato, através do devido processo legal. Concluiu-se que a medida de internação é a mais grave das medidas. Assim sendo, será analisada no próximo capítulo a atuação do sistema penal nas medidas sócio-educativas, em especial a internação, por causar conseqüências mais drásticas aos adolescentes em peculiar condição de desenvolvimento. 45 3 MEDIDAS SÓCIO-EDUCATIVAS: ESTÍMULO VELADO À CARREIRA CRIMINAL Esse capítulo visa mostrar a trajetória da infância desassistida sendo, o Estado como principal responsável por esta trajetória de adolescentes institucionalizados, que desembocam numa permanente reincidência institucional, passando o mundo do crime e indo dos estabelecimentos de institucionalização à prisão (Cf. MARTINS, 2003, p. 38). Conforme abordado no primeiro capítulo, o processo de criminalização é realizado no momento da criação da norma, definindo aquelas condutas que caracterizarão o delito na aplicação da pena correspondente ao crime e posteriormente, na execução da pena. No entanto, o Sistema Penal não cumpre as suas funções declaradas, ocasionando a seletividade, a estigmatização e o etiquetamento, também características da medida sócioeducativa, uma vez que a sanção estatutária tem uma grande ligação com àquela prevista na legislação penal. De acordo com o preceituado no Estatuto da Criança e do Adolescente, o ato infracional é a conduta que para o Direito Penal constitui crime ou contravenção penal. Adolescente infrator é aquela pessoa entre 12 e 18 anos de idade que comete um ato infracional. Para SANTOS, a qualidade de infrator não constitui característica de adolescentes específicos, mas rótulos atribuídos pelo sistema de controle social a determinados adolescentes. Sustenta ainda, que a seleção desigual de adolescentes no processo de criminalização pode ser explicada pela ação psíquica de esterótipos, preconceitos e outras formas de reações pessoais dos agentes de controle social. A prisionalização do adolescente rotulado como infrator produz reincidência e no curso do tempo, carreiras criminosas (SANTOS, 2002, p. 120). Esta carreira será analisada a seguir. 46 3.1 A NÃO RESSOCIALIZAÇÃO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE INFRATOR A política de proteção integral trazida pelo Estatuto responsabilizou, entre outros, o Estado, no atendimento à crianças e aos adolescentes, com absoluta prioridade, através das políticas para defesa de seus direitos. Ao Estado, com poder para legislar e aplicar o Direito, não lhe cabe deixar de atuar, devendo punir, em síntese, aquele que transgride a norma. Para REALE JÚNIOR, “o poder -dever de punir apresenta-se em três momentos: na edição da norma penal incriminadora, na aplicação da norma por meio do processo e na execução da pena concretizada na sentença condenatória” (REALE JÚNIOR, 2002, pp. 15/16). Com relação ao direito infanto-juvenil, este processo se apresenta da mesma forma: na criação da lei específica, no processo para apuração do ato infracional e na execução da medida sócio-educativa depois da sentença que atribuiu a autoria do ato infracional a um adolescente. Observa-se assim, que as diferenças entre o sistema penal e o sócio-educativo são muito pequenas, sendo a diferença básica, como já foi explanado, que no direito infanto-juvenil não existe uma correlação entre o delito (ou ato infracional) e a pena aplicada (ou medida sócioeducativa), ficando esta, a cargo do Juiz. VIANNA assinala que “a aplicação da medida sócio -educativa na forma prevista, sem dúvida é um eficaz instrumento de responsabilização dos adolescentes em conflito com a lei e todos que o cercam” (VIANNA, 2004, p. 331). Porém, destaca que “o sistema sóc io educativo precisa ser funcional, eficiente e capaz de ressocializar. As medidas têm que ter um alto percentual de eficiência, uma vez que não sendo eficiente, será inútil sua aplicação” (VIANNA, 2004, p. 335). Assim, VIANNA conclui: A responsabilização e ressocialização das crianças e dos adolescentes infratores, é nesse sentido, não um direito dos adultos e do Estado, mas um dever. Um dever em relação aos próprios infratores. Como dever, está limitado pelo direito da criança e do adolescente ao pleno desenvolvimento da sua personalidade. Assim, a responsabilização legal se torna um dever do Estado de buscar, por intermédio da aplicação da lei, possibilitar à criança o desenvolvimento de um superego capaz de reprimir os impulsos de destruição e inseri-la num convívio pacífico. É a possibilidade que o Estado e os adultos têm de suprir o corrigir suas próprias falhas e omissões que impedem um adequado desenvolvimento da personalidade da criança e do adolescente, levando-o a cometer atos infracionais. Portanto, não parecer haver outra forma conseqüente de controle da violência e do envolvimento de jovens com o crime, que 47 não o modelo da proteção integral, que agrega educação e responsabilidade, conforme estabelecido pelo ECA (VIANNA, 2004, p. 336). Conforme estudado anteriormente, a responsabilização do agente surge quando este tem capacidade de entender o caráter antijurídico de sua conduta. Assim, o Código Penal prevê que os menores de 18 anos de idade não serão responsabilizados penalmente, porém os adolescentes serão responsabilizados estatutariamente. Neste contexto, quanto à responsabilização da criança e do adolescente, observa-se que no que se refere à criança (até 12 anos de idade), o Estatuto não os responsabiliza pelo ato cometido, pois as medidas aplicadas são mais flexíveis que àquelas aplicadas aos adolescentes. Pode-se dizer, portanto, que os adolescentes são sim responsabilizados pelos ilícitos cometidos, através da apuração do ato infracional, com o devido processo legal e posteriormente com a aplicação da medida sócio-educativa, visando à retribuição, à prevenção e à reeducação do adolescente. Esta é a linha de VIANNA, como se transcreve infra: Destarte, a imputabilidade infracional, que começa aos doze anos sujeita-se a uma finalidade retribuitiva (pois impõe um mal – privação de um bem jurídico), preventiva (porque visa evitar a prática de crimes, seja intimidando a todos pelo exemplo, seja privando da liberdade o autor obstando a reincidência) e reeducativa – aqui o principal aspecto diferenciador das penas criminais, pois interferem no processo de desenvolvimento objetivando melhor compreensão da realidade e efetiva integração social (VIANNA, 2004, 340). A retribuição, conforme análise no primeiro capítulo, é um castigo para quem cometeu uma infração penal. A prevenção é o meio pelo qual o sistema penal se utiliza para prevenir novas condutas delitivas e a reeducação, objetiva a integração social do adolescente que cumpre medida sócio-educativa. No entanto, as medidas sócio-educativas, pouco contribuem para a finalidade de sócioeducar. As medidas não privativas de liberdade, como a advertência, a reparação do dano, a prestação de serviço à comunidade, a liberdade assistida, mostram pouco eficiência em virtude da falta de condições para a execução das mesmas, como por exemplo, orientadores despreparados. As privativas de liberdade também apresentam pouco potencial ressocializador ou educador, tendo em vista a atuação do sistema repressor, a precariedade das instituições, super lotação, etc. Neste prisma, SANTOS pondera: 48 As medidas privativas de liberdade (arts. 120 e 121), podem ser qualquer coisa menos sócio-educativas: a medida de semiliberdade seria um mal menor, ou, pelo menos, evitaria o mal maior, mas não é aplicada porque não existem entidades suficientes e as entidades não têm vagas ou são distantes da família, do trabalho e da escola (...) – mesmo assim, a semiliberdade deve ser aplicada, porque é melhor do que a privação de liberdade, e o poder público que crie as entidades e as vagas necessárias; por último, a medida de internação representa a instituição da prisão para a juventude por força da qual milhares de adolescentes entre 12 e 18 anos (podendo ir até 21) são encerrados em instituições totais até 3 anos, com todas as conseqüências das prisionalizações das penitenciárias comuns (SANTOS, 2002, p. 121). Desta forma, as medidas sócio-educativas aplicadas aos adolescentes autores de ato infracional tem pouca eficácia para prevenção de novos delitos. A falta de investimento do Estado é um dos motivos para que a medida não atinja os fins desejados. Nota-se claramente, no caso da internação, as condições precárias das poucos instituições destinadas ao internamento de adolescentes. Para a institucionalização do adolescente, o Estado de Santa Catarina conta com três Centros Educacionais, entre eles o Centro Educacional São Lucas, localizado na BR 101, Km 202, Barreiros, São José/SC. O Centro tem capacidade para 46 adolescentes do sexo masculino e 8 do sexo feminino (Cf. VIEIRA, 1999, p. 75). Em pesquisa realizada pelo Ministério Público sobre o perfil do adolescente infrator no Estado, constatou-se que a maioria dos adolescentes infratores perseguidos para a apuração dos atos infracionais são do sexo masculino (92,34%); quase todos estudavam em escolas públicas estaduais (22,96%) ou municipais (9,69%), sendo nenhum afirmou estudar em escola particular, porém quando praticaram o ato infracional não mais freqüentavam a escola. Ainda, 60,71% afirmaram não estudar (Cf. VIEIRA, 1999, pp. 23/30). Verificou-se que o ato infracional tem uma grande ligação com o envolvimento do adolescente com drogas, que geralmente começam com pequenos furtos como meio de conseguir a droga, partindo depois para ações mais ousadas e atos infracionais violentos, cruéis e bárbaros cometido sob efeito de substâncias entorpecentes, sendo a maconha a preferida dos adolescentes. No entanto, apesar de quase todas as infrações serem cometidas devido ao consumo de drogas, poucos foram os internados para tratamento para dependência química (Cf. VIEIRA, 1999, pp. 30/34). O problema das drogas vivido no São Lucas foi muito bem explanado por Maximiliano Simas de Freitas Noronha, quando realizou pesquisa no CESL constatando que: 49 Outro grande problema vivido pelos centros de internações é a dependência química dos adolescentes. Em dados fornecidos pela própria gerência do Centro Educacional São Lucas, 82,69% (oitenta e dois vírgula sessenta e nove por cento) dos adolescentes internados naquele centro se declaram usuários de drogas. Fato este que interfere diretamente em todo o processo de internação. (NORONHA, 2004, p. 54) Desta forma, não combatendo o motivo que conduziu o adolescente a transgredir a lei penal, dificilmente se chegará a um resultado útil da aplicação da medida sócio-educativa de internação, uma vez que ao saírem do estabelecimento retornarão ao mesmo ambiente que o levou a cometer o ato infracional. Nota-se que o Estatuto não vem sendo respeitado. Quando o adolescente foi apreendido pela polícia, ao questionar-se sobre o local em que ficou preso, verifica-se que a grande maioria disse ter permanecido em cela especial, embora um número razoável tenha respondido centro de internação provisória e cadeia pública. Contudo, chega a ser preocupante o número de adolescentes que afirmaram ter permanecido em cela comum, eis que, embora não seja uma parcela muito grande, sabe-se que tal fato é extremamente prejudicial e viola os direitos e garantias previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente (VIEIRA, 1999, p. 41). Ainda em relação à apreensão, o furto e envolvimento com drogas (uso, porte e tráfico) foram as razões mais destacadas, seguidas de assaltos e brigas (lesão corporal). Também não se pode desconsiderar o homicídio e tentativa de homicídio, estupro, desordem, direção de veículo motorizado sem habilitação, porte de arma, descumprimento de medida sócio-educativa e estar acompanhado de quem efetivamente cometeu o ato infracional. Preocupante também é o número de adolescentes que relatam ter sofrido violência por parte de policiais (43,37%) (Cf. VIEIRA, 1999, p. 41). A pesquisa mostrou ainda, que dentre as medidas sócio-educativas a mais aplicada é a liberdade assistida (43,72%), seguida pela prestação de serviço à comunidade (39,35%), internação (14,2%) e advertência (2,19%) (VIEIRA, 1999, p. 46). Conclui-se, porém, que o problema de criminalidade infanto-juvenil começa pelo sistema penal. A pesquisa aponta que praticamente todos os adolescentes são de famílias de baixa renda. Não que só os socialmente desfavorecidos é que cometem ato infracional, mas somente eles serão responsabilizados pelos atos cometidos ou pelo menos receberão a medida de internação, caracterizando assim, aqueles que serão selecionados pelo sistema. Quando um integrante de uma classe mais favorecida comete um ato infracional, não é reconhecido como um “marginal”. Dizem os pais, os advogados e até mesmo os Juízes: mas esse 50 adolescente, que matou, não é um marginal. Ele tem família, estuda, trabalha. O tráfico de drogas na vida dele é um ato isolado, afinal agora os pais vão tomar conta da vida dele (Cf. VIANNA, 2004, p. 333). Conforme assinalou SANTOS, surge aí o problema da cifra negra da criminalidade: O conhecimento de que atos infracionais próprios do adolescente representam fenômeno normal do desenvolvimento psicossocial se completa com a noção de sua ubiqüidade: pesquisas mostram que todo jovem comete pelo menos 1 ato infracional, e que a maioria comete várias infrações – explicando-se a ausência de uma criminalização em massa da juventude exclusivamente pela variação das malhas da rede de controles de acordo com a posição social do adolescente, o que coloca em linha de discurssão o problema da cifra negra da criminalidade. A pesquisa da cifra negra não buscou corrigir distorções dos registros oficiais, que possuem realidade própria – representam o desvio digerido pelo controle social como criminalidade -,mas revela o processo de criminalização seletiva do comportamento desviante, porque o crime é fenômeno social geral, mais a criminalização e fenômeno de minoria (SANTOS, 2002, p. 122). Continua SANTOS, que a cifra negra é um problema de aplicação da lei. Se todo adolescente pratica ações criminosas (ou infrações), então por que somente algumas são registradas e apenas alguns adolescentes são processados? Independente dos critérios que determinam a filtragem da minoria criminalizada e não se tratam de exigir processos contra a maioria não-criminalizada, mas de demonstrar o absurdo da seleção da minoria criminalizada, parece óbvio que o processo seletivo de criminalização constitui injustiça institucionalizada que infringe outro direito fundamental do ser humano: o direito constitucional da igualdade (SANTOS, 2002, p. 123). Conforme assinalou VIANNA, o Estado através dos mecanismos de controle social, passa a reproduzir as categorias que serão criminalisadoras: Desta forma, o Estado, que deveria ser responsável pela aplicação dos mecanismos formais de controle social, em conformidade com a Lei e por intermédio dos meios de coerção, passa a reproduzir os padrões generalisados socialmente. Com outras palavras, o valor de cada homem e seu mérito dependerá da referência social. Seremos criminosos ou homens de bens em função do estigma que o sistema nos imprimir, ainda que estejamos cientes de que o bem e o mal não são valores absolutos, acabaremos rotulados por essa regras ditadas pelo inconsciente coletivo. O resultado é um Estado violento e arbitrário com aqueles a quem se atribuem a etiqueta de delinqüente e excluídos moralmente e um Estado doce e cordial com os privilegiados, que se colocam acima dos rigores da Lei (VIANNA, 2004, p. 334). A idéia de ressocializar continua apenas com um caráter teórico, uma vez que a crescente reincidência e o aumento da violência definida como criminosa, indicam a ineficácia da 51 medida de prevenção ao delito, principalmente às medidas privativas de liberdade que para AZEVÊDO, não alcançam os objetivos desejados, a reeducação e a reinserção do condenado na sociedade. As prisões continuam a ser o momento culminante do mecanismo de marginalização que produz a população criminal e a administra de modo a adaptá-la a funções próprias que a qualificam, produzindo efeitos contrários à reeducação e reinserção do condenado, e favoráveis à sua integração na população criminal (AZEVÊDO, 1999, p. 50). Desta forma, nota-se a inutilidade das aplicações das medidas sócio-educativas, uma vez que não cumprem com sua função “oficial”, ou seja, reeducar o adolescente autor de ato infracional, permitindo que ele volte ao convívio social, devido à atuação do sistema de controle social. No caso das penas privativas de liberdade, o papel do Estado é apenas retirar os indesejáveis da sociedade, não reduzindo o crime, tendo em vista também a atuação da cifra oculta, que acoberta um número grande de infrações, sobretudo quando praticadas pelos segmentos “imunes” ao processo de criminalização, porém produzindo a estigmatização, a prisionalização e por conseqüência, a reincidência criminal, estudada a seguir (Cf. AZÊVEDO, 1999, p. 43). 3.2 A REINCIDÊNCIA CRIMINAL Quando o adolescente comete o primeiro ato infracional cabe ao Estado, através da polícia, Ministério Público e Judiciário, a apuração do ato praticado, aplicando a medida sócioeducativa. A execução da medida objetiva a integração do apenado e tendo a pena natureza retribuitiva/ressocializadora, ou seja, a punição pelo ato praticado e por conseqüência a prevenção de novos delitos. No entanto, compete ao Estado zelar para que realmente esses objetivos sejam alcançados, pois uma vez que não ocorre a ressocialização do adolescente, a medida acarretará a reincidência criminal, tendo em vista a atuação do sistema repressor sobre os infratores. 52 A reincidência criminal, resultado dos rótulos atribuídos aos adolescentes infratores, produz as carreiras criminosas dos mesmos, que é a repetição da prática de um ato infracional. Sustenta SANTOS, que quanto maior for a repressão pelo Estado, maior é a possibilidade de reincidência: A produção social da criminalização se desdobra na conseqüência ainda mais grave da reprodução social dessa criminalização: quanto maior a reação repressiva, maior a probabilidade de reincidência, de modo que sanções aplicadas para reduzir a criminalidade ampliam a reincidência criminal. A criminalização primária produz a criminalização secundária, conforme o modelo seqüencial do labeling approach: a rotulação como infrator produz carreiras criminosas pela ação de mecanismos pessoais de adaptação psicológica à natureza do rótulo, combinada com a expectativa dos outros de que o rotulado se comporte conforme a rotulação, praticando novos crimes (SANTOS, 2002, p. 125). Desta forma, quanto mais rigorosa a medida aplicada, como a institucionalização (ou prisão), maior é a possibilidade da reincidência. Isto devido, as condições precárias das instituições, bem como despreparo dos funcionários que lidam com os infratores caracterizando assim, um “instrumento” falido para a ressocialização de pessoas em condição de peculiar desenvolvimento. No Centro Educacional São Lucas, NORONHA constatou a ineficácia da medida de internação: Pode-se constatar a ineficácia da medida de internação no CESL, visto a precária situação pela qual o centro passa hoje, faltando desde materiais básicos até mesmo profissionais capacitados para a aplicação da medida. Situação esta que inviabiliza a obtenção dos resultados de socialização e educação previstas pelo ECA como meta principal do processo de internação. (NORONHA, 2004, p. 56) Um outro exemplo claro desta realidade é a situação da FEBEM, que ao invés de ressocializarem os adolescentes, contribuem ainda mais para a reincidência criminal, devido a falta de uma política de atendimento aos infratores (como já acontecia em 1941, quando da criação do Serviços de Assistência a Menores – SAM). Na verdade, a FEBEM têm se caracterizado como fábricas de criminosos, comprovadas pelas rebeliões que acontecem constantemente, sendo praticamente impossível atingir seu objetivo declarado, qual seja, a reabilitação do infrator. Em relação ao Estado de Santa Catarina, pesquisas mostram índices de reincidência preocupantes no Centro Educacional São Lucas, eis que significativo e em escala crescente. A 53 primeira vista, pode-se pensar que esses números traduzem falhas e deficiências na instituição (VIEIRA, 1999, p. 89). A título ilustrativo, a tabela a seguir indica o percentual de reincidência na referida instituição nos anos de 1996, 1997 e 1998 (Cf. VIEIRA, 1999, p. 89): CENTRO EDUCACIONAL SÃO LUCAS – REINCIDÊNCIA 1996 1997 1998 C. E. SÃO LUCAS N° % N° % N° % Reincidências (total) 3 4,35% 11 12,79% 8 25,81% 4 4,65% 4 12,90% Reincidências por descumprimento de medidas 1 1.44% Para a eficácia da medida sócio-educativa é necessário se perquirir os fatores que levam o adolescente a cometer ato infracional, tendo em vista a natureza preventiva da medida. Esperava-se uma maior atuação do Estado, pois com o princípio da proteção integral disciplinada pelo ECA e também pela Constituição Federal, deveriam ser protegidos os interesses fundamentais da criança ou adolescente, ou seja, à vida, à saúde, à educação, à liberdade, ao lazer, à convivência familiar, à convivência comunitária, à integridade física, etc sendo, talvez a forma mais eficaz de combater a criminalidade infanto-juvenil (Cf. GARRIDO DE PAULA, 2002, p. 24). Deste modo, a reincidência criminal é conseqüência da não ressocialização. Por não ressocializar, o sistema sócio-educativo precisa ser funcional e eficiente. O insucesso aparente da medida é responsabilidade do Estado (responsabilidade subjetiva), uma vez que ele tem o dever de aplicar a medida para sócio-educar. O sucesso oculto e perverso, de criminalização e estigmatização, como estímulo à carreira criminal é plenamente perceptível. Ao completarem 21 anos de idade, os adolescentes que estejam cumprido a medida de internação serão liberados compulsoriamente e como não foram ressocializados pelo Estado, através da instituição, a próxima infração cometida não mais estará sujeita as normas do juízo infanto-juvenil, mas àquelas previstas na legislação penal. Seu destino agora, não mais será às instituições para adolescentes e sim, as prisões destinadas aos adultos, concretizando assim, a carreira criminosa a ser estuda em seguida. 54 3.3 A CONCRETIZAÇÃO DAS CARREIRAS CRIMINOSAS A concretização das carreiras criminosas de adolescentes selecionados e estigmatizados pelo sistema como infratores, nada mais é que a não ressocialização e por conseqüência a reincidência criminal. Isto ocorre também devido as lacunas na lei referente à criança e ao adolescente, pois a mesma não estabelece sobre a execução das medidas sócio-educativas, trazendo sérios prejuízos aos jovens. Verifica-se, portanto, que a aplicação da medida sócio educativa não atinge os fins desejados, em virtude de os preceitos previstos no Estatuto não serem aplicados de forma adequada. As pesquisas realizada pelo Ministério Público e por Maximiliano Simas de Freitas Noronha mostraram que grande parte dos atos infracionais selecionados pelo sistema são ocasionados devido ao uso de substâncias entorpecentes. As pesquisas apresentaram, paradoxalmente, que adolescentes declarados usuários de drogas não receberam tratamento para dependência química. Desta forma, como se pretende recuperar o jovem sem combater a causa que o levou a transgredir a norma? Assim, depois de punido pela sua conduta ilícita, ou melhor, por ser selecionado pelo sistema repressivo, através das medidas sócio-educativas, ele retornará à sociedade da mesma forma que saiu, ou seja, sem a recuperação e, no entanto, continuará cometendo infrações consolidando a carreira criminosa, possibilitadas por condições mínimas de humanidade e respeito. De outro norte, VIANNA entende, que responsabilizando o adolescente infrator da forma prevista no Estatuto é suficiente para reeducar o mesmo: Responsabilizando o jovem em conflito com a Lei a partir dos 12 anos e, após o devido processo legal, aplicando a ele medidas sócio educativas, que podem ser restritivas de liberdade (internação, semiliberdade ou liberdade-assistida) ou alternativas à restrição da liberdade (prestação de serviço à comunidade, reparação do dano, tratamento antidrogas, psicológicos, dentre outras), todas acompanhadas de escolarização e profissionalização, se necessária, com diversos mecanismos para coibir interferências ilícitas e abusivas na administração da execução das medidas, o Estatuto da Criança e do Adolescente, a despeito de algumas críticas, a maioria infundada, que sofre, é suficiente para reprimir e educar e sua interpretação não está na ilusão da defesa social, ante a serviço do arbítrio e da repressão pura e simples, mas sim a serviço da restauração da legalidade inspirada na dignidade do homem (VIANNA, 2004, p. 356). 55 No entanto, percebe-se que isso é impossível. O problema maior é conseguir que o Estatuto seja respeitado. Ao adolescente que seria necessário a medida de internação por ter cometido o ato infracional mediante grave ameaça ou violência à pessoa, por reiteração no cometimento de outras infrações graves ou ainda por descumprimento reiterado e injustificável da medida anteriormente imposta (conforme estabelecido no artigo 122 da Lei), se o Estado não oferece condições para a execução da medida, principalmente, em razão da superlotação das poucas instituições destinadas a “ressocializar” o infrator. LIBERATI salienta que, para que a medida tenha eficácia, ela deve ser cumprida em estabelecimento especializado, de preferência de pequeno porte e contar com pessoal altamente especializado nas áreas pedagógicas, psicológicas e até mesmo com conhecimentos de criminologia (Cf. LIBERATI, 2003, p. 117). O citado autor adverte que: A falta de critérios para o desenvolvimento da medida sócio-educativa de internação deriva de reações plausivelmente esperadas, como aquelas exemplificadas pelas rebeliões na FEBEM, nos Estados de São Paulo, Rio de Grande do Sul e Minas Gerais. As internações ali processadas, por mais bem aplicadas pelos magistrados, são cumpridas e executadas dentro de um modelo antigo, inadequado, impróprio, onde são desenvolvidos “programas” que não s e preocupam com a integração do jovem em sua família e em sua comunidade (LIBERATI, 2003, p. 117). Assim, como já fora mencionado, a carreira criminosa se consolida através do processo de criminalização, principalmente pela rotulação daqueles que serão considerados infratores pelo sistema. Preconiza SANTOS, que: A marginalização da juventude é a primeira e mais evidente conseqüência de relações sociais desiguais e opressivas garantidas pelo poder político do Estado e legitimadas pelo discurso jurídico de proteção de igualdade e da liberdade. A segunda conseqüência é a desumanização da juventude marginalizada: relações sociais desumanas e violentas produzem indivíduos desumanos e violentos como inevitável adequação pessoal às condições existentes reais. A reação do adolescente, síntese bio-psíquico-social do conjunto das relações sociais, contra a violência das relações estruturais, é previsível: o crime parece ser resposta normal de jovens em situação social anormal. Milhões de adolescentes das favelas e bairros pobres dos centros urbanos são obrigados a sobreviver com meios ilegítimos pela simples razão de não existirem outros: vedem e usam drogas, furtam, assaltam e matam – e sobre eles recai o poder repressivo do Estado, iniciando a terceira e decisiva conseqüência da exclusão social, a criminalização de marginalizados rotulados como infratores, prisionalizados no interior de entidades de internação da FEBEM, que introduz os adolescentes em carreiras criminosas definitivas (SANTOS, 2002, pp. 124/125). Desta forma, as sanções privativas de liberdade do adolescente têm eficácia invertida, produzindo estigmatização, prisionalização e por conseqüência, maior criminalidade e estão em 56 contradição com o principio constitucional de dignidade da pessoa humana (Cf. SANTOS, 2002, p. 129). Neste contexto, o caminho para se evitar as carreiras criminosas seria através de uma política sócio-educativa mais eficiente, afastando-se as características do sistema penal imputado aos adultos (seletividade, estigmatização e etiquetamento) e ainda, uma necessidade urgente de criação de normativa para a execução da medida sócio-educativa, pois combatendo a criminalização da adolescência, será combatido também, por conseqüência, a carreira criminosa de adultos. Porém, como afastar as características do sistema penal durante a execução da medida sócio-educativa, e fazer com que a medida cumpra com suas funções declaradas? Talvez o melhor (e mais fácil) caminho seja educar as crianças e adolescente, a fim de evitar as condutas ilícitas, pois uma vez que cometem um ato infracional e recebem a sanção estatutária, rapidamente a carreira criminal estará consolidada. 57 CONSIDERAÇÕES FINAIS A Lei n° 8.069/90, Estatuto da Criança e do Adolescente, tentou substituir as penas que eram aplicadas aos infantes que tinham caráter de retribuição, por medidas que visassem à reeducação e à reintegração social do mesmo. Desta forma, baseado na doutrina de proteção integral, eles foram considerados sujeitos de direitos, devendo à família, à sociedade e ao Estado zelar para que esses direitos sejam respeitados. Atualmente, vive-se a preocupação com a trajetória de crianças e adolescentes que desembocam numa constante reincidência criminal. Isso ocorre devido as falhas estruturais do sistema penal, conforme abordado no primeiro capítulo. Assim, o funcionamento do sistema se caracteriza por estimular a construção de carreiras criminosas, devido as suas funções estruturais de seletividade, estigmatização e rotulação, que impedem a ressocialização/reeducação do adolescente selecionado como infrator. Observa-se que as características do sistema penal aplicado aos adultos são as mesmas do processo de criminalização juvenil. As funções declaradas pelo sistema penal não condizem às suas funções reais, ocasionando assim, reduzidas possibilidades de reabilitação. Os primeiros documentos de proteção as crianças e aos adolescentes já previam a internação de adolescentes, como no caso do Código de Menores de “Mello Mattos”, estabelecendo até que estes poderiam ser levados às prisões destinadas aos adultos. Observou-se também que, quanto maior for a repressão pelo Estado, menor e a possibilidade de reabilitação, como, por exemplo, no caso da medida de internação. O Estatuto da Criança e do Adolescente, trouxe as medidas protetivas aplicadas as crianças autoras de atos infracionais, porém não visa a responsabilização por serem elas inimputáveis. Quanto aos adolescentes as medidas sócio-educativas visam sim a responsabilização, tendo caráter retributivo, visando, além da reeducação, reparar o mal causado. Primeiramente, antes da aplicação da medida sócio-educativa é necessário a apuração do ato infracional, observados os princípios do contraditório e da ampla defesa. Após, se necessário, será aplicada uma das medidas previstas no Estatuto. No entanto, as medidas sócio-educativa não privativas de liberdade, apresentam pouco caráter ressocializador, mostrando-se assim, pouca eficácia. As privativas de liberdade, apontam- 58 se pouco eficazes no combate à criminalidade. Isso devido a atuação do sistema repressor, bem como as precárias condições dos centros de internações que são capazes apenas de reproduzir a criminalidade. Neste contexto, o Estado é o principal responsável pela lamentável trajetória de crianças e adolescentes infratores, não disponibilizando recursos necessários para a fiel aplicação do que determina o ECA, impossibilitando a reeducação e a ressocialização e principalmente devido a presença das características do sistema repressor (seletividade, estigmatização e etiquetamento), concretizando as carreiras criminosas. 59 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica: do controle da violência à violência do controle penal. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. 336p. AZEVÊDO, Jackson Chaves de. Reforma e “contra”-reforma no Brasil. Florianópolis: OAB/SC, 1999. 120p. BASTOS JÚNIOR, Edmundo José de. Código penal em exemplos práticos. Florianópolis: OAB/SC, 2000. 296p. BISSOLI FILHO, Francisco. Estigmas da criminalização. Florianópolis: Editora Obra Jurídica, 1998, 220p. CASTRO, Lola Aniyar. Criminologia da reação social. 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