XLIII CONGRESSO DA SOBER “Instituições, Eficiência, Gestão e Contratos no Sistema Agroindustrial” Práticas Agroecológicas em Terras de Assentamentos Rurais Henrique Carmona Duval CPF: 290.894.758-77 NUPEDOR – Núcleo de Pesquisa e Documentação Rural Universidade Estadual Paulista – UNESP Rua Humaitá, 2003 – CEP 14.801-385 – Araraquara – São Paulo [email protected] Vera Lúcia Silveira Botta Ferrante CPF: 026.243.118-15 Centro Universitário de Araraquara - UNIARA Rua Dr. Arlindo Soares de Azevedo, 82 – CEP 14.810-415 – Araraquara – São Paulo [email protected] Sociologia Rural Apresentação com presidente e presença de debatedor Grupo 6: Agricultura e Meio Ambiente Ribeirão Preto, 24 a 27 de Julho de 2005 Sociedade Brasileira de Economia e Sociologia Rural 1 XLIII CONGRESSO DA SOBER “Instituições, Eficiência, Gestão e Contratos no Sistema Agroindustrial” Práticas Agroecológicas em Terras de Assentamentos Rurais Resumo: Fruto de monografia apresentada para conclusão do bacharelado em Ciências Sociais na Faculdade de Ciências e Letras da UNESP, campus de Araraquara, este artigo analisa uma proposta de produção feita a um grupo de assentados para a prática da agricultura natural nos lotes de Reforma Agrária na região. Diante de uma estrutura agrícola regional fortemente voltada à produção agroindustrial da cana de açúcar, a existência de espaços potencialmente diversificados como os assentamentos sugerem possibilidades de preservação do meio ambiente. Em nossos trabalhos de campo nos lotes, freqüentemente encontramos traços do rural tradicional que resiste à submissão às usinas de cana, conservando a diversidade de culturas agricultadas, a subsistência, o trabalho familiar na terra e a consciência ambiental e social. No entanto, procuramos discutir as dificuldades de permanência na terra através de alternativas que não sejam aquelas favorecidas pelo poder local e congruentes com o tipo de agricultura predominante, levando a maioria das pessoas a acreditarem que qualidade de vida só existe dentro de lógicas capitalistas e sobre bens materiais. Palavras Chaves: Reforma Agrária, Agricultura Sustentável, Consciência Ambiental. Apresentação O presente artigo é resultado do trabalho de monografia de conclusão do curso de Ciências Sociais na FCL/UNESP de Araraquara apresentado em janeiro de 2005. A partir da experiência de pesquisa que vivencio desde 2001 no NUPEDOR (núcleo de pesquisa e documentação rural) 1 como integrante do grupo de bolsistas ligado ao projeto de pesquisa auxílio-integrado/CNPq “Inserção de Assentamentos Rurais às Economias Regionais: indicadores de qualidade de vida e de integração ao meio ambiente. Araraquara e o Pontal do Paranapanema”(1999 – 2003), acompanho o desenvolvimento de assentados que têm posto em prática experiências de agriculturas sustentáveis em seus lotes, independente de terem qualquer orientação técnica continuada. Concomitante às discussões do grupo em torno das questões ambientais nos assentamentos, surge em 2001 uma proposta de associação para a produção com base na agricultura natural que acenou positivamente aos nossos anseios empíricos, dando sustentação à discussão dos eixos privilegiados neste trabalho. Neste período nos deparamos com duas possibilidades de produção nos assentamentos, a indicar rumos diferentes para o futuro da Reforma Agrária na região. Por um lado, a agricultura natural, uma alternativa condizente com a sustentabilidade do lugar e de um projeto familiar na relação com o trabalho e com as preocupações ambientais; de outro, o quadro de arrendamentos dos lotes para culturas agroindustriais. Trata-se de propostas que respondem diferentemente às necessidades dos produtores, que também desenvolvem perspectivas diferentes de permanência 1 Coordenado pelas profas. Dras. Vera Lúcia S. Botta Ferrante e Dulce Consuelo A. Whitaker. Ribeirão Preto, 24 a 27 de Julho de 2005 Sociedade Brasileira de Economia e Sociologia Rural 2 XLIII CONGRESSO DA SOBER “Instituições, Eficiência, Gestão e Contratos no Sistema Agroindustrial” na terra. Enquanto o histórico de diversificação da produção e a realidade da estrutura agrícola da região sugerem submissão ao complexo agroindustrial da cana de açúcar como única alternativa financeira nos lotes, a proposta de agricultura sustentável desnuda fatores de degradação ambiental e da vida humana que o “dinheiro fácil” pode ocasionar. Em torno dessas controvérsias que se refletem na discussão sobre qualidade de vida nos assentamentos estão centradas as preocupações dessa comunicação de pesquisa. Entrevistas e depoimentos coletados através de idas a campo nos forneceram idéias diferentes sobre o bem-estar nos lotes. Juntamente ao interesse de obter renda pode existir a necessidade de ser independente das usinas locais, bem como a preocupação com o equilíbrio do ecossistema através da relação do homem com a natureza. Outro tipo de bem-estar pode ser relacionado à alternativa de produção que ofereça maiores facilidades ou nenhum trabalho na terra, que possibilite ao assentado ter outros empregos na cidade aumentando sua renda, necessidades exclusivamente econômicas. Ao analisar o que pode ser a vida nos assentamentos e os tipos de atividades agrícolas exercidas nesses espaços, temos em vista a influência de diversos atores sociais que se fazem presentes nas relações de poder determinantes do futuro dos assentados. É com essa proposta que iniciamos o novo projeto financiado pelo CNPq 2 a partir de março de 2003. Este artigo analisa a entrada da proposta de agricultura natural e seus desdobramentos nos assentamentos. Para iniciar o contexto faço a seguir uma breve historização das terras dos assentamentos e das pessoas que lá estão assentadas. Introdução O cenário histórico-econômico na região de Araraquara é composto principalmente pela exploração monocultora do solo com as culturas da cana-de-açúcar e da laranja. Essas duas culturas concentram altos índices econômicos bons para o capitalismo nacional e internacional, que vão da maior parte da geração de divisas municipais aos ganhos brasileiros em exportações. Os conhecidos complexos agroindustriais são também os maiores concentradores fundiários e empregadores rurais do Estado, dominando economicamente a terra e os trabalhadores. A região pode ser considerada um exemplo da estrutura fundiária do Brasil, com relação à organização produtiva latifundiária, desde o período da colonização. O surgimento dos assentamentos nesta região sugere possibilidades de diversificação de produção frente às monoculturas dos complexos agroindustriais, além de estilos de vida recriados pela volta dessa população ao meio rural (Whitaker e Fiamengue, 2000). No entanto, estes assentamentos rurais se fazem em áreas desgastadas e completamente cercadas por complexos agroindustriais. A proposta do governo era tornar os assentamentos da região de Araraquara em unidades de produção familiar produtoras de grãos. As famílias assentadas, algumas delas vindas de ex-colônias de trabalhadores de usinas falidas, muitas de trabalhadores ex-bóias-frias, provêm em grande parte da própria região de Araraquara, já acostumadas com a estrutura agrícola predominante da agroindústria da cana. Assentamento Monte Alegre 2 “Assentamentos Rurais e Poder Local: expressões de conflito, de acomodação e de resistência”. Ribeirão Preto, 24 a 27 de Julho de 2005 Sociedade Brasileira de Economia e Sociologia Rural 3 XLIII CONGRESSO DA SOBER “Instituições, Eficiência, Gestão e Contratos no Sistema Agroindustrial” Os dois primeiros núcleos de assentamento na região são os da fazenda Monte Alegre I e II, localizados no município de Motuca, que foram criados em 1985 após luta dos trabalhadores volantes por melhores salários e condições de trabalho na violenta greve de Guariba (Barone, 1999). Eram mão de obra temporária nas usinas da região, trabalho marcado pela sazonalidade das colheitas cuja renumeração não lhes permitia tranqüilidade econômica, e vinham sofrendo um processo de precarização de seus trabalhos ocasionado pela crescente tecnológica nas lavouras agroindustriais. O trabalho rural já havia se transformado para eles, bem como para a sociedade, no trabalho da produção agrícola empresarial, aonde os grandes contingentes de homens trabalham apenas sazonalmente em colheitas. Grande parte dos assentados pioneiros em assentamentos da região vem dessa luta contra a precarização do trabalho. Mas foram assentados em meio ao mar de cana, e por conta da presença do complexo agroindustrial muitos até hoje são funcionários permanentes e temporários de usinas locais. A fazenda, na época propriedade da FEPASA (Ferrovia Paulista S. A.) e administrada pela CAIC (Companhia Agrícola Imobiliária e Colonizadora), foi por quarenta anos uma monocultura de eucalipto utilizada como insumo para a empresa. Era uma terra pública já não tanto utilizada pela FEPASA, que enfrentava dificuldades em ser mantida pelo Estado (tanto que fora privatizada), e foi reivindicada por não cumprir função social. A madeira da fazenda estava sendo utilizada para produção de celulose para empresas privadas. O assentamento foi criado e é de responsabilidade da Fundação ITESP, antigo DAF (Departamento de Assuntos Fundiários do Estado de São Paulo), que posteriormente criou outros núcleos de assentamento na fazenda, estendendo sua área por mais dois municípios, Araraquara e Matão. Hoje o assentamento Monte Alegre conta com seis núcleos, onde vivem aproximadamente quatrocentas famílias. Ele foi crescendo a partir de ocupações nas outras áreas da fazenda ainda repletas de eucaliptos que não serviam mais ao Estado. Os trabalhadores que ocuparam são, na maioria, ex-trabalhadores volantes de complexos agroindustriais cadastrados na Reforma Agrária pelo Sindicato dos Trabalhadores de Usinas, oriundos de cidades desta região mesmo. Os assentados recebem forte influência econômica dos complexos agroindustriais locais. Além do poder econômico desses há histórias de famílias inteiras que sempre trabalharam para os mesmos, que dependem até hoje do trabalho nas colheitas das usinas para se manterem no assentamento. A dependência dos trabalhadores com relação às usinas perpassa a relação de trabalho que eles e seus familiares têm com elas. Existem nesta região municípios inteiros completamente dependentes do funcionamento das usinas no que se refere à geração de emprego e renda à população 3 . Mesmo os assentados que não trabalham em usinas, que lutam por autonomia em seus lotes, podem sofrer a influência econômica delas e ter dificuldades na convivência social no assentamento 4 . A terra da fazenda Monte Alegre, devastada pela monocultura intensiva de eucalipto, necessita constantemente de correções de acidez e de controle de pragas para produção familiar. O eucalipto é uma cultura 5 que praticamente seca o solo, suas raízes puxam muita água 3 Cidades-dormitório expressam bem essa idéia, mas os municípios grandes, como Araraquara, também giram suas economias em torno das usinas de cana-de-açúcar. 4 Já registramos casos de incêndios criminosos, roubo ou matança de criações, brigas com lesões físicas, ameaças de morte e outros contratempos devido à divisão entre assentados “amigados” ou não de usinas. 5 É uma cultura exótica no Brasil, originária da Austrália. Devido à boa adaptação aos solos tropicais brasileiros encontramos a cultura plantada em grandes áreas, monoculturas, existindo até a idéia de reflorestamento com eucaliptos, o que antes de reflorestamento é uma quebra de elos do ecossistema. Ribeirão Preto, 24 a 27 de Julho de 2005 4 Sociedade Brasileira de Economia e Sociologia Rural XLIII CONGRESSO DA SOBER “Instituições, Eficiência, Gestão e Contratos no Sistema Agroindustrial” desequilibrando-o, e por isso o deixam ácido. O fato de que foi uma monocultura desestruturou a microvida existente, portanto cupins e formigas tornaram-se pragas já que seus inimigos naturais foram exterminados e estes insetos tornaram-se resistentes pelos defensivos agrícolas aplicados constantemente. Segundo o que comprovei nas idas a campo, a maioria dos lotes de produção ainda não tem todas áreas destocadas. Os tocos de eucaliptos que estão no solo são empecilhos à produção de qualquer outra cultura, além de serem focos de cupins e formigas. Todo ano agrícola deve começar com a calcarização dos solos para corrigir a acidez, mas tem um elevado custo para os produtores assentados. O solo ainda passa por uma “desintoxicação” dos insumos químicos utilizados nos eucaliptos, ou seja, ainda contém resíduos tóxicos daquela época (que são passados para as produções de subsistência). Essas são algumas dificuldades que os assentados enfrentam com relação ao solo dos lotes. Nota-se ainda hoje forte presença de árvores de eucalipto, inclusive em áreas de reserva permanente da fazenda, como indicativo de uma exploração intensiva e desgastante no local, já que nem áreas protegidas por lei foram poupadas da monocultura. Para começar a trabalhar numa área desgastada pela monocultura de eucalipto tem-se que investir muito dinheiro, fator que inviabiliza o início e a continuidade dos trabalhadores na terra, e que é praticamente negligenciado pelos órgãos de assistência técnica do Estado ao avaliarem o desenvolvimento dos produtores. Assentamento Bela Vista do Chibarro O assentamento foi implementado pelo INCRA em 1989 após luta dos ex-trabalhadores da usina Tamoio, que no final da década de setenta enfrentou séria crise financeira, deixou de pagar salários e entrou em concordata. Em julho de 1980 a usina faz empréstimo na Caixa Econômica Estadual pelo qual se não pagasse teria que dar parte do patrimônio; e não pagou. No ano de 1988 o DAF e o Sindicato dos Trabalhadores Rurais acionam o Programa de Valorização de Terras Públicas, alegando que esta terra pública deveria ser produtiva e cumprir função social. Na época, a seção da usina que foi destinada para o assentamento estava abandonada, o mato tomava conta, não tinha ruas e iluminação, a mina estava comprometida. Em algumas áreas a usina ainda mantinha cana plantada. Dos trabalhadores que moravam na colônia da fazenda poucos se interessaram em lutar pela terra ao invés dos salários. O INCRA (órgão federal) comprou a briga, já que o DAF implementara e fiscalizava o assentamento Monte Alegre e passou a dívida para a Caixa Econômica Federal. Assim, ao final do mesmo ano (1988), apenas quinze famílias de extrabalhadores da usina tornam-se assentadas, sem receber os salários atrasados, e juntamente com doze famílias que vieram do Monte Alegre iniciaram o projeto de assentamento. Em 1989 entram as demais famílias, vindas de vários lugares como: Vale do Ribeira, Paraná, Minas Gerais, de acampamentos do MST (principalmente de Promissão-SP), da cidade de São Paulo, de diversos Estados do nordeste brasileiro. Muitos desses trabalhadores também foram cadastrados na Reforma Agrária através do Sindicato dos Trabalhadores de Usinas, portanto já tinham algum envolvimento com o trabalho em usinas. Outras trinta e sete famílias que estavam acampadas na cidade queriam entrar, mas eram impedidas pelas famílias que já estavam assentadas. Elas tiveram que ocupar o casarão da fazenda, totalizando 176 famílias na área. Estas foram as famílias que ficaram, e como na ex-colônia (hoje chamada de agrovila) só existem cento e vinte casas, cinqüenta e seis famílias tiveram que ir morar no lote de produção. Ribeirão Preto, 24 a 27 de Julho de 2005 5 Sociedade Brasileira de Economia e Sociologia Rural XLIII CONGRESSO DA SOBER “Instituições, Eficiência, Gestão e Contratos no Sistema Agroindustrial” Então, além de muitas famílias serem de ex-trabalhadores da usina Tamoio, algumas trabalhavam para usinas em outras regiões. Foram assentadas numa terra antes utilizada pela monocultura de cana e ainda envolta pela mesma cultura, de fazendas de outras usinas locais, já percebendo-se de início a potencialidade de influência que o complexo canavieiro pode exercer nesse assentamento. Apesar de também terem sido ocupadas por monocultura, não são terras tão desgastadas como no Monte Alegre já que a cultura da cana é menos danosa, em relação ao eucalipto, aos solos tropicais 6 . Uma característica comum na formação dos dois assentamentos é o não envolvimento com o MST por parte da maioria das pessoas. São áreas conquistadas através de outro movimento, principalmente de ex-trabalhadores volantes locais e sob coordenação do Sindicato dos Trabalhadores Rurais local. A vida nos assentamentos: o rural finca raízes? Percebe-se que na região de Araraquara a presença dos complexos agroindustriais é marcante e influi, direta e indiretamente, nas condições objetivas de vida da população local. Até para novos espaços em construção, com pessoas que se reconstroem juntamente com seu espaço buscando suas subsistências (no caso dos assentamentos), as alternativas de produção se relacionam com o poder econômico regional 7 . Mesmo assim, para a subsistência dos assentados, a diversidade agrícola nos assentamentos estudados é uma realidade. A análise desse dado leva em consideração a diversidade de trajetórias de vida de cada um. A origem rural é um fator predominante nessa população, pois a maioria nasceu no meio rural. Também enquadro a origem no enfoque da diversificação, já que, em cada assentamento, podemos encontrar pessoas dos mais variados Estados brasileiros. Em função de pessoas tão diferentes serem assentadas no mesmo local coexistem culturas, práticas agrícolas, costumes, hábitos alimentares dos mais diversos, e há uma constante troca desses “saberes” entre eles. A diversidade de produções agrícolas encontrada nos lotes é considerada uma expressão dessas culturas. Os sujeitos provêm de inúmeras localidades. O trabalho rural e a luta pela terra ainda acrescem à trajetória de vida deles passagens por outras inúmeras, sendo que eles, ao serem assentados, contam com forte conhecimento sobre a terra, culturas e a vida dessas inúmeras localidades. A bagagem de vida adquirida é transmitida pelo viver deles nos assentamentos, nas relações de vizinhança, amizades, em participação em cooperativas e parcerias. A possibilidade da agricultura natural nos lotes é favorecida pelo amplo conhecimento das pessoas sobre a terra, porém não é uma alternativa viável pelo incerto êxito econômico. Suas práticas a todos interessam no que se refere aos anseios ambientais e culturais, mas não do ponto de vista econômico comparando-se com a renda obtida através do arrendamento do lote para cana. Um dado interessante, que favorece a produção natural, é a preocupação alimentar e ambiental dos assentados. Muitos têm hortas ou outras produções livres de insumos químicos para subsistência das famílias. Esse dado indica consciência ambiental dos assentados, mas 6 Destaco que o grande mal ambiental em ambas as áreas foram as monoculturas (da cana e do eucalipto). São culturas nobres, pois desempenham importantes papéis no ecossistema, principalmente para os homens, mas são utilizadas de forma a desequilibra-lo. 7 Idéias expressas nos trabalhos: Whitaker, 1994, Whitaker e Fiamengue, 1995, Ferrante, 1994 e 1999, entre outros trabalhos do NUPEDOR. Ribeirão Preto, 24 a 27 de Julho de 2005 6 Sociedade Brasileira de Economia e Sociologia Rural XLIII CONGRESSO DA SOBER “Instituições, Eficiência, Gestão e Contratos no Sistema Agroindustrial” também um nível de descapitalização para usar corriqueiramente tais insumos, porém muitos deles vão contra sua utilização pelas razões anteriormente apontadas. Eles têm consciência de que produções com insumos químicos melhoram o aspecto dos alimentos e facilitam sua comercialização, ao passo que aumentam os níveis de contaminação no solo e intoxicação nas pessoas. Constantemente vemos nos lotes visitados espaços de produção de subsistência diversificados e livres de insumos químicos, garantindo assim a sanidade desses solos, dos frutos e a saúde das pessoas e dos animais que se alimentam dos mesmos. Voltando à terra, o trabalhador assentado volta a viver uma interação profunda com a natureza (Baraona, 1994), garantindo em parte sua preservação, já que é dela que se extrai a sobrevivência e a complementaridade. Entretanto, o tipo de trabalho na terra que exerceram durante longos períodos antes de entrarem para o assentamento foi o trabalho em usinas de diferentes complexos agroindustriais. Por mais fortes que sejam suas raízes e memórias rurais, o trabalho a que estavam submetidos é aquele oferecido em tais complexos. Isso muda toda a característica e o estilo de vida dos trabalhadores rurais. Eles não eram posseiros, arrendatários ou proprietários em sua maioria, mas empregados temporários nas colheitas em monoculturas. Quase não existe espaço para a produção de subsistência, um local de fixação e para agricultura familiar nesse modelo. O estilo de vida com esse tipo de trabalho não é considerado aqui como rural. Sendo o rural um espaço onde a família está fixada e tem um cotidiano de trabalho complexo (que envolve várias atividades), no qual se produz para subsistência e para comercialização/trocas e existe diversidade, chamo de agrícola o tipo de vida que existe a partir do trabalho em usinas. É agrícola devido à utilização em larga escala de novas tecnologias, como insumos químicos, mecânicos e genéticos, a fim de superar os números de safras anteriores e aumentar em quantidade os frutos. O cotidiano do trabalhador nesse modelo é um trabalho mecânico e repetitivo (como apenas cortar ruas de cana ou colher laranjas). O trabalhador é assalariado, mas só tem trabalho nos períodos de colheitas. Eu a chamo de agrícola por que esta é a característica da agricultura hoje, é um espaço para produção monocultora e utilização de tecnologias de ponta, de geração de capital 8 , não de moradia. Em contrapartida, de acordo com as condições específicas de cada família, o meio rural é possibilitado a eles nos assentamentos. Por mais que as alternativas de permanência na terra estejam ligadas às usinas da região, sempre sobra espaço para desenvolverem as produções de subsistência. Essa sim uma prática que evidencia seus hábitus (Bourdieu, 1989), de suas vidas em tempos anteriores ao trabalho em usinas, culturas ligadas às suas origens e trajetórias. Percebe-se em muitos lotes que os alimentos plantados para subsistência são aqueles relacionados com as vivências anteriores dos assentados, com seus locais de origem e por onde já passaram, num tempo de suas vidas em que exerciam atividades agrícolas sem grande impacto ambiental (não desestruturavam gravemente o ecossistema, como por exemplo contaminações do lençol freático). São culturas geralmente bem conhecidas pelos trabalhadores, aquelas que sempre plantaram, comeram e comercializaram. Sabem de qualquer utilidade que o alimento possa ter, de suas relações com o solo ao seu efeito terapêutico nos homens, de sua importância para a boa 8 Como expresso na revista VEJA, edição especial agronegócio, abril de 2004, cuja frase de capa é “Retratos de um Brasil que dá lucros”. Ribeirão Preto, 24 a 27 de Julho de 2005 7 Sociedade Brasileira de Economia e Sociologia Rural XLIII CONGRESSO DA SOBER “Instituições, Eficiência, Gestão e Contratos no Sistema Agroindustrial” alimentação das criações à reutilização de seus restos vegetais em outras plantações. E mesmo das condições climáticas e espaciais para seus bons desenvolvimentos 9 . O espaço do lote que não é ocupado pela produção essencialmente comercializável – em geral especializada 10 - é destinado a este tipo de agricultura. É o motivo de relacionar a agricultura natural com a agricultura já praticada nos lotes, excluindo-se evidentemente qualquer certificação que a produção de subsistência possa ter (natural, orgânica, biodinâmica, etc.). Importante ressaltar aqui o fato de que nem todos assentados mantêm produções nos lotes. Como explicitado acima, as condições específicas de cada família podem levá-los a não possuir nenhuma plantação no lote, seja para subsistência ou comercialização. Um fator também plausível de alterações em curtos períodos de tempo analisando-se as mudanças na vida de cada família 11 . Ainda no que toca às especificidades da vida nos assentamentos, optei por enquanto em expor as especificidades em torno da agricultura natural, fatores que facilitam a aceitação dos produtores para este tipo de agricultura e também fatores inerentes dos assentamentos que dificultam ou inviabilizam uma produção certificadamente sustentável. A proposta e alguns conceitos da agricultura natural para os assentados A proposta surgiu em 2001 através de uma associação de produtores e consumidores (REGAR) que já produzia e/ou consumia alimentos “naturais”. Consistia na incorporação de parceiros assentados na associação, para aumentar sua capacidade empreendedora. A REGAR (Associação para o Desenvolvimento da Agricultura Regenerativa da Região de Araraquara) conta com diversos parceiros, entre eles a Fundação Mokiti Okada, produtores, comerciantes, consumidores, prefeitura de Araraquara e o SEBRAE. A associação envolve produtores que trabalham com diversos tipos de agriculturas regenerativas, não apenas a agricultura natural. Por isso me refiro aqui aos alimentos naturais entre aspas. Num primeiro momento foi organizado um seminário no assentamento Bela Vista com um dos produtores associados, que explicou aos assentados conceitos da agricultura que pratica em suas terras e sua participação na associação. Este encontro ocorreu na escola do assentamento no dia 19 de abril do mesmo ano, e a proposta foi feita na forma de uma alternativa de produção em associação. Aproximadamente trinta assentados compareceram, inclusive alguns do núcleo Monte Alegre. No dia seguinte (20 de abril) houve uma visita em suas terras para ele mostrar aos assentados como vem desenvolvendo a agricultura orgânica, juntando a teoria do dia anterior com amostragens práticas. 9 Assim, alguns assentados sabem o que pode ser plantado nos lotes desses assentamentos para um melhor desempenho econômico, optando ou não por determinada cultura. 10 Para se comercializar de forma mais fácil, quase todo tipo de produção, ela deve ser em grande quantidade. Como os lotes têm em média seis alqueires, não chega a um espaço tão grande da mesma cultura e pode variar de uma a cinco culturas por lote para que o assentado comercialize. O que é para subsistência, plantado em bem menor quantidade e maior diversidade e seu excedente, vende-se ou troca-se. A maioria dos assentados possui dois lotes, um é chamado lote de moradia, localizado na agrovila do assentamento e menor que o outro, o de produção (que possui os seis alqueires). Ocorre em muitos casos que nas moradias existe a diversidade para subsistência e nos lotes de produção (também chamado de sítio ou agrícola) têm as culturas especializadas para comercialização. Em muitos casos a utilização de agrotóxicos se restringe ao segundo caso. 11 Existem famílias que vivem de renda (como aposentadorias ou aluguéis), e mudanças em suas organizações familiares são caracterizadas por filhos que se casam, mudam para o assentamento ou para outras cidades, pais que adoecem e envelhecem, a presença de agregados da família, alternativas de produção criadas, novos empregos etc. Ribeirão Preto, 24 a 27 de Julho de 2005 8 Sociedade Brasileira de Economia e Sociologia Rural XLIII CONGRESSO DA SOBER “Instituições, Eficiência, Gestão e Contratos no Sistema Agroindustrial” Marcelo Sambiase (na época um grande produtor de orgânicos em Araraquara), explicou que hoje esquecemos como se plantava e trocamos conhecimentos sobre a terra por insumos, ocasionando o ciclo vicioso da sua utilização. A atividade agrícola declarou guerra à vida (microbiota, microvida existente nos solos), pois quer exterminar os insetos que se tornaram pragas devido aos desmatamentos. Ele disse que não tem como eliminá-los, apenas evitá-los, e que a natureza é sempre mais forte que nossos métodos. Então passou a observar como é nossa terra. As agriculturas ecológicas têm como princípio o conhecimento da vida do ecossistema: como são as matas, os rios, animais, as estações. Saber tudo isso é necessário para a produção. Falou, por exemplo, que o sol em excesso dos países tropicais mata os microorganismos, e que temos que protegê-los pois são eles que animam a vida nos solos. Também que o mato que combatemos com mata-mato tem importante função regenerativa, pois não é daninho ou invasor, mas antes é nativo. Crescer o mato é um processo natural, deve-se deixar crescer e cortá-lo, deixando seus restos vegetais superficialmente no solo para protegê-lo do sol, segurar umidade e alimentar a microvida. Como no ciclo natural das folhas, que caem no solo e desencadeiam um processo juntamente com os microorganismos disponibilizando novamente às árvores nutrientes para seus desenvolvimentos, alimentando toda a vida existente. A agricultura convencional, como quase todas as outras agriculturas, é uma intervenção do homem na natureza, mas esta não é a favor da regeneração. Máquinas e insumos traduzem bem a idéia. Máquinas compactam o solo e impedem a existência de poros nos quais entram ar. Quanto mais se revira uma terra (função de tratores arados) mais ela é desestruturada e compactada. Na agricultura convencional o solo fica totalmente exposto ao sol e constantemente é revirado, justamente quando a camada imediatamente sob a superfície começava a se estruturar. Produtos como o nitrogênio, nitrato e uréia foram desenvolvidos e utilizados na fabricação de bombas desde a primeira guerra mundial. As indústrias químicas geradoras desses produtos criaram grandes excedentes, que foram reaproveitados na agricultura. O lixo da guerra acaba no prato sem as pessoas saberem: produtores, pois acreditam se tratar de fertilizantes e consumidores pela falta de informação 12 . Segundo Sambiase, ao conhecer a vida do lugar devemos alimentá-la para ser a mais diversificada possível. Quem determina a diversificação ideal para cada região, no entanto, não é o homem. Atividades humanas podem e devem favorecer a diversidade e “alimentar” a vida no lugar, mas é a própria natureza, ou seja, todos os elementos naturais que se programam e se combinam, constituindo eles mesmos o equilíbrio ecológico segundo as leis naturais locais. Para a agricultura natural os agrotóxicos estão longe de equilibrar as substâncias químicas existentes no solo, como acham os defensores da convencional (que acreditam que o equilíbrio químico do solo é resultado da disponibilização dessas substâncias pelo homem, e não dos processos químico-biológicos que as disponibilizam naturalmente). O palestrante colocou que só o fato de não usar tóxico já melhorou a saúde do solo, já que ela é dada pela existência dos microorganismos e seu complexo dinamismo. Este raciocínio põe por terra o ideário construído sobre a Revolução Verde, a qual tem como diretrizes a agricultura convencional e as perspectivas de avanço produtivo. Lembro que a introdução desse pacote agrícola nada tem de verde. Depois de denominado como uma revolução nos métodos de produção de alimentos, pesquisadores continuam a utilizar um conceito que 12 Ainda na reflexão desse fato, os insumos que não mataram na guerra continuam a intoxicar e matar pessoas pela alimentação, bem como causam desastres ambientais e matam outras formas de vida. Ribeirão Preto, 24 a 27 de Julho de 2005 9 Sociedade Brasileira de Economia e Sociologia Rural XLIII CONGRESSO DA SOBER “Instituições, Eficiência, Gestão e Contratos no Sistema Agroindustrial” expressa idéias opostas a uma revolução do verde. Vê-se nessa apropriação uma inversão de valores e uma demonstração clara de que a ciência não caminha independente de relações de poder e de controles. Sob o rótulo de Revolução Verde vêm sendo ratificadas práticas de apropriação da agricultura pela sociedade industrial. Ainda mais, busca-se idealizar o tipo de manejo do solo utilizado em países do hemisfério norte, estigmatizando-se a adoção de outras alternativas mais apropriadas aos equilíbrios ecossistêmicos locais. Ou se adota tais tecnologias ou fica-se na atribuição de atraso, culpando-se o meio rural por não acabar com a fome no mundo e de não ser uma atividade lucrativa. Felizmente há exceções na comunidade científica que despontam perspectivas de um outro saber agronômico. Quase que no mesmo dia da apresentação da associação aos assentados, uma especialista em manejo de solos tropicais veio a São Carlos fazer uma vivência no campo e uma palestra sobre agroecologia 13 . Nesta ocasião tive o privilégio de conhecer pessoalmente a professora Ana Primavesi e vê-la andar por uma propriedade, explicando conceitos da agricultura sustentável. Conversei com ela sobre agricultura orgânica e mostrando grande sabedoria me falou: “É essencial que as pessoas se conscientizem sobre a necessidade de produzir e consumir preocupados com o meio ambiente, mas o que tem acontecido é uma total inversão dos valores da agricultura orgânica. Ela tem servido para atender as necessidades dos ricos, que puderam se conscientizar, e tem dinheiro para pagar um produto muito mais caro”. Sua mensagem foi que a ecologia nas sociedades está deturpada pela lógica capitalista. Segundo ela, se não tivermos um manejo ecológico nos solos hoje em larga escala, logo não teremos nenhuma solução para os problemas ambientais e alimentares no futuro. Isso ela colocou depois de breve relato de sua vivência na África. A “nova” consciência ambiental sob impacto do consumo Tomo como referência um exemplo possível para compreensão da necessidade da consciência ambiental. Pensemos num grande proprietário de terra preocupado com a saúde sua e da família. Talvez ele seja um consumidor de produtos orgânicos, passe esse valor para seus filhos, sem que aja com consciência ambiental. Devido às atividades desenvolvidas em suas terras, que acontecem para obtenção de renda, desgasta e prejudica o meio ambiente. Este é apenas um exemplo, e não apenas grandes proprietários ou os ricos, mas qualquer consumidor de orgânicos pode não ter práticas conscientes da ecologia do ecossistema, mesmo aquela dos centros urbanos em que moram. Não se pode afirmar que é uma pessoa consciente ou que ajuda o meio ambiente, mas que é uma consumidora seguindo uma opção que acredita ser boa (para sua saúde e o meio ambiente), sem que ela perceba os interesses maiores por trás do conceito da venda de orgânicos. Ou seja, ajuda no aumento de áreas plantadas com orgânicos (que só existirão se houver consumidores) e atende aos interesses desse mercado específico. A ação da produção orgânica pode ser melhor para o ecossistema, mas situações de consciência ambiental são necessidades de pensamentos e práticas urgentes das pessoas para diminuir seus impactos negativos no meio ambiente, não uma nova modalidade de consumo. Seria mais aceitável se fosse considerada apenas uma preocupação pessoal alimentar, possivelmente transmitida através da educação. Sabendo que é bom para sua saúde, este interesse no modo de se alimentar “orgânico” traduz o que Morin chama de “o ‘egoísta’ que produz a ‘generosidade’”. As ações de necessidades individuais, mesmo que egoístas e egocêntricas, 13 No dia 22 de abril de 2001. Ribeirão Preto, 24 a 27 de Julho de 2005 Sociedade Brasileira de Economia e Sociologia Rural 10 XLIII CONGRESSO DA SOBER “Instituições, Eficiência, Gestão e Contratos no Sistema Agroindustrial” ajudam a regular as sociedades (e os ecossistemas) que as pessoas fazem parte. Influenciam grandes áreas distantes dos locais do consumo, transformando-se em ações solidárias também em relação ao meio ambiente por se tratar de uma agricultura preocupada com a preservação, o que pode gerar benefícios na qualidade da vida dessa pessoa além da segurança alimentar 14 . Como discutir consciência ambiental em consumidores e produtores de orgânicos se temos, na verdade, um conceito de ecologia que considera o bem-estar do consumo dos homens antes da ecologia do ecossistema? É muito mais um tipo de consciência alimentar. As sociedades humanas sempre fizeram parte dos ecossistemas, as cidades estão imbricadas em ecossistemas que elas degradam. São territórios onde as pessoas consomem alguns itens da natureza – “domesticados”, ou controlados, indo seu itinerário dos laboratórios ao prato dos consumidores. Suas práticas apenas lhes interessam comercial e economicamente, nunca ecologicamente. O meio agrícola que produz orgânico também faz parte da malha urbana, pois existe para utilização de tecnologias e para suprir o mercado consumidor urbano. O interesse é para a alimentação de um determinado grupo de pessoas e a existência de outros seres é mensurada economicamente. É um interesse individual em detrimento ao coletivo. As monoculturas continuam a existir e plantações de orgânicos seguem na mesma linha, como estas, distinguindo-se por práticas (tecnologias 15 ) acordadas em determinações internacionais (pois só daquela maneira temos produtos orgânicos) e mercados consumidores específicos. A partir do momento que se tornou um modismo consumir produtos orgânicos, movimento notadamente criado na Europa, Japão e EUA, muitas pessoas se motivaram a consumi-los. Os conceitos da agricultura ecológica não estão presentes na face comercial da vertente orgânica, pois seus produtores e consumidores continuam alheios à existência do ecossistema ao observarmos o restante de suas práticas habituais e cotidianas. A vida continua a mesma, porém a alimentação é a base do consumo de produtos que “ajudam” o meio ambiente, sem perceber que o caráter comercial de quem os produz já pressupõe uma prioridade mais importante do que ele (o meio ambiente). É justamente em função da sociedade do consumo, do lucro e de seus mecanismos que a questão ambiental está tão em voga hoje, porém negativamente. Algumas pessoas pensam que por consumir produtos orgânicos possuem consciência ambiental, mas essa não se dá apenas pelo fato de comprar e consumir tais produtos. Esse modo de possuir consciência ambiental é apenas a face da apropriação do conceito pelo sistema capitalista, que por sua vez continua a produzir um produto pelo qual se apresenta uma demanda cada vez maior. Quem produz continua a fazê-lo pelo lucro auferido da produção e pelas vantagens que um marketing ecológico lhe oferece para aumentá-lo, fantasiando uma suposta melhoria de relacionamento dos homens com o meio ambiente. Os estilos de vida desses consumidores não vêm mudando em nada no que toca ao consumo ou padrões de vida da sociedade moderna. As prioridades ainda são produzir para geração de lucro e consumo para a segurança alimentar, não tem rigor (maior comprometimento) na recuperação e preservação ambiental, ou seja, não basta produzir orgânicos para exercer consciência ambiental. 14 “A exigência do outro é a dependência de si não só em relação ao outro mas também ao processo ecoorganizacional (...)” (1980, p.46). 15 Que são inclusive arcaicas, modelos de agricultura sem grande impacto ambiental utilizadas há milênios, e agora reutilizadas como nova consciência ambiental. Ribeirão Preto, 24 a 27 de Julho de 2005 11 Sociedade Brasileira de Economia e Sociologia Rural XLIII CONGRESSO DA SOBER “Instituições, Eficiência, Gestão e Contratos no Sistema Agroindustrial” Erros e sinais de alerta para as produções sustentáveis Retomando a palestra ministrada pela professora Ana Primavesi, ela nos falou que hoje agricultores acham que podemos criar, através da tecnologia, condições para o desenvolvimento da agricultura. Mas que de tanto aplicar insumo químico e mecânico o solo se tornou impermeável (compactado), não permite a penetração da água e só a faz escorrer. É como nas cidades: devido ao asfalto e ao concreto, os homens quebram o ciclo natural da água, que por não ser absorvida pelos solos geram alagamentos, enchentes, matam a vida na terra. A alteração climática agravada pela poluição cria grandes desequilíbrios, as chuvas irregulares e as secas são exemplos que vêm crescendo em quantidade, e em conseqüência o plâncton morre, as matas desaparecem, falta oxigênio, a biodiversidade tende a ser secundada. A terra também faz parte do ecossistema e os insumos químicos ajudam a acabar a biodiversidade de sua microvida. Como em cada parte do mundo tem um ecossistema característico, também a terra requer um manejo diferente em cada lugar. Quem tem quatorze graus de temperatura no solo, para a agricultura, vai expor para o sol aquecê-lo, para captar mais calor e quem tem setenta graus vai protegê-lo para não pegar excesso. Isso explica em parte porque não temos condições de produzir orgânicos da mesma forma que outros países, copiando práticas agrícolas como se fossem receituários do decreto internacional. Por outro lado, há de fato normas internacionais (dos países desenvolvidos) que estipulam exatamente como deve ser uma produção orgânica. Fora delas não há obtenção do selo que certifica e garante ao consumidor que o produto é orgânico, certificação inserida em um circuito caro e burocrático, como se fosse a licença para usar uma patente. Esse é um dos maiores entraves para manejos dos solos sustentáveis em grande escala e para que agricultores possam viver de produções orgânicas comercializando-as como tais. As agências certificadoras ganham muito dinheiro às custas da consciência ambiental dos consumidores no mundo todo, enquanto cada local teria que buscar seus meios para as práticas sustentáveis e conscientização ambiental de produtores e consumidores. Isso facilitaria o acesso das populações ao conceito de segurança alimentar. Como dito por Sambiase, agriculturas importadas não são boas para utilização no Brasil. Temos que trabalhar na terra de acordo com as especificidades do ecossistema. O solo tropical funciona com as bactérias que são dele, bem diferente de solos do hemisfério norte. Sobre o caráter puramente orgânico ou natural das agriculturas sustentáveis o decreto internacional nem é tão rígido, permitindo várias práticas que não podem ser consideradas sustentáveis. Muitas delas indicam uma importância maior à aparência da produção do que a própria sustentabilidade do ecossistema. Um desses equívocos consiste em achar que máquinas podem agregar a terra. Segundo Primavesi, agregação é um processo químico-biológico. Não tem que capinar para agregar, apenas colocar os materiais orgânicos sobre o solo que os microorganismos vão decompor. Quando se revira constantemente o solo põe uma terra “morta” na superfície que não resiste à chuva e logo vai compactar. Outro erro é achar que o papel da matéria orgânica pode ser feito pelo adubo orgânico. A matéria é o alimento natural para a vida do solo. Esses adubos são compostos de matéria orgânica semi-decomposta, mas que em excesso provocam doenças. São casos comuns em solos super irrigados, que provavelmente adotam grandes pacotes agrícolas mesmo na agricultura orgânica. Da mesma forma, colocou também alguns erros de interpretação dos conceitos por parte de quem tem optado praticar a agricultura orgânica para entrar no mercado: a orgânica dá receitas ao invés de conceitos (e cada lugar é cheio de especificidades); continua no enfoque fatorial para Ribeirão Preto, 24 a 27 de Julho de 2005 12 Sociedade Brasileira de Economia e Sociologia Rural XLIII CONGRESSO DA SOBER “Instituições, Eficiência, Gestão e Contratos no Sistema Agroindustrial” tratar de doenças nas plantas (ao invés do cíclico ou holístico), permitindo corriqueiramente o uso de defensivos químicos; utiliza apenas compostos como nutrientes das plantas (eles são condicionadores do solo, diferentes da matéria orgânica); continuam mantendo o solo desprotegido do sol e do vento causando erosão e perda da saúde do solo e perda da massa vegetal das plantas; usa variedades de outros países e solos ao invés de adaptar solo/clima e acredita que todo nitrogênio para as plantas vem do composto, quando na verdade vem também do aumento do sistema radicular. Na sua avaliação, há produtores investindo neste mercado mais em função da sua expansão global e futuro do que pela agroecologia, seguindo apenas os decretos internacionais sem conhecer as condições de produção locais. A agricultura natural nos assentamentos Após a apresentação da associação aos assentados alguns deles se interessaram em participar. Principalmente por que haveria assistência técnica inicial pela Fundação Mokiti Okada e por existirem pontos de venda direta aos consumidores em parceria com a prefeitura. Foram dez assentados ao todo, seis do Bela Vista e quatro do Monte Alegre. A Fundação Mokiti Okada, por sua vez, não teria condições de manter um corpo técnico permanentemente em Araraquara, mas deu um impulso inicial. A intenção era de organizar cursos de capacitação de técnicos em agricultura natural na cidade para continuarem o trabalho, mas o resultado não foi muito expressivo. Alguns associados fizeram esse papel por algum tempo e se colocaram à disposição dos produtores para orientações quando necessário. Ainda hoje a Fundação oferece pouca assistência aos associados da Regar através de convênio. Os pontos de venda que a prefeitura disponibilizou fazem parte do projeto Direto do Campo, oportunidade de venda da produção dos assentamentos no terminal de ônibus da cidade de Araraquara todos os dias da semana. Dois dias são reservados para bancas de produtores assentados associados da Regar. Ainda há uma feira aos sábados, também exclusiva para assentados, onde os associados contam com uma banca específica (da Regar) para venda de produções orgânicas. Em ambos os pontos a prefeitura disponibiliza o transporte de ida e volta e as bancas para exposição, o que em muito favorece os assentados pela carência deles com transporte e pontos de comercialização. A associação não fornece certificação das produções, embora sejam reconhecidamente orgânicas pela prefeitura e consumidores. A facilidade na associação para os assentados está justamente na assistência técnica e nos pontos de comercialização, além do ganho ambiental e nutricional que tem para eles e seus lotes. O produto diferenciado oferece condições de cobrar um preço também diferenciado, vantajoso na medida em que cresce o interesse de consumidores pelos orgânicos. Oferece também oportunidade de vender na feira, pois nem todos conseguem espaço nela, e através do espaço diferenciado da Regar garantem a participação. Ao contrário do que muitos pensam sobre os custos dessa produção natural/orgânica, que acreditam ser mais barata pela não utilização de insumos químicos, falam os produtores que muitas medidas devem ser tomadas para iniciar a produção e têm um elevado custo. E ainda que devem prever uma alta perda na produção (muito maior do que na convencional), por isso a dificuldade em produzir em escala para atender o mercado. No entanto, a produção no longo prazo barateia os custos, já que as medidas já estarão disponibilizadas e os materiais são reciclados, enquanto insumos químicos sugerem cada vez maior aplicação. Para Carlos Adami, presidente da Regar, muitos assentados ficam na associação pela conveniência que ela oferece através de seus convênios, principalmente com a prefeitura. Ao Ribeirão Preto, 24 a 27 de Julho de 2005 13 Sociedade Brasileira de Economia e Sociologia Rural XLIII CONGRESSO DA SOBER “Instituições, Eficiência, Gestão e Contratos no Sistema Agroindustrial” contrário dele, que também é produtor orgânico, a falta de compromisso com a opção pela produção “regenerativa” é um dos maiores entraves que vê nos assentamentos. Até a produção garantir renda suficiente, os assentados não têm condições de pagar alguém para ajudá-los com nada do que precisam, já que a propriedade agroecológica deve passar por um processo e depende da vontade do produtor em transformá-la. Na sua ótica, o assentado não é autosuficiente, pelo contrário, totalmente dependente dos subsídios da prefeitura e ainda mais se quiser produzir orgânicos, o que põe em questão o lugar dos assentamentos na agenda política municipal. Talvez seja mesmo um problema financeiro e de estrutura que dificulte essa opção em assentamentos. Apesar das manifestações de consciência ambiental de alguns assentados, sua produção não garante abastecimento de mercado. Servem para eles e ainda contabilizam muitas perdas. A transição para este tipo de agricultura fica em torno de dois anos, dependendo da cultura. Se o assentado optar por ela, seu lote todo deverá produzir nessa base e os ganhos no período de transição serão mínimos. A situação atual da agricultura natural nos assentamentos, em números, é a seguinte: um produtor no Bela Vista e três no Monte Alegre, quantia que não pode ser dimensionada apenas pelos parcos números, mas pela significação em termos da relação com os recursos naturais. Eles continuam vendendo nos pontos da prefeitura, principalmente aos sábados. Para o presidente da associação ainda falta maior opção pelo conceito de propriedade e produção orgânica. Para os assentados que desistiram faltou assistência técnica, garantia de sobrevivência econômica apenas com a produção natural, além das dificuldades inerentes à vida nos assentamentos: proximidade com vizinhos que não fizeram essa opção e usinas, comprometendo suas produções, poucos recursos financeiros iniciais, dificuldade no transporte (para venda em outros espaços), carência em recursos naturais do lote em alguns casos. A mensalidade cobrada pela associação também é um entrave, ela varia entre dez e vinte reais para cada produtor assentado. O lugar incerto dos assentamentos no desenvolvimento local Será que assentamentos poderiam se tornar unidades de produção orgânica para atender os mercados regionais? Quais são os benefícios ambientais no ecossistema; de sustentabilidade dos produtores; com relação às prefeituras (subsídio menos complicado); de saúde pública e educacionais (merenda escolar e educação ambiental)? Espontaneamente, a agricultura praticada em cada lote, em muitos dos casos acompanhados, são práticas agrícolas limpas e regenerativas. Não são usados insumos químicos corriqueiramente, mas ao invés disso usa-se cobertura vegetal, todo tipo de resto orgânico, reciclando-se os materiais existentes nos próprios lotes. As terras, antes ocupadas com monoculturas e manejadas com muitos agrotóxicos, passam, com a agricultura dos assentados, por uma regeneração de estrutura do solo e limpeza de resíduos químicos. Pelo menos ao que se refere às produções de subsistência e não considerando que ocorra em todos os casos, os assentados praticam algum tipo de agricultura sustentável. No entanto, identifico essa característica muito mais em função da descapitalização da população do que por opção. Eles têm que ser criativos para aproveitar ao máximo os recursos naturais já existentes nos lotes, na sua (re)aplicação em atividades agrícolas a fim de diminuir gastos com outros insumos, e por tentar baratear o custo da produção exercem práticas de agricultura sustentável. Claro que há muito conhecimento tradicional envolvido a isso, já que a maioria possui um acervo de práticas riquíssimo oriundo de suas origens e vida na terra. Apesar Ribeirão Preto, 24 a 27 de Julho de 2005 14 Sociedade Brasileira de Economia e Sociologia Rural XLIII CONGRESSO DA SOBER “Instituições, Eficiência, Gestão e Contratos no Sistema Agroindustrial” disso, um trabalho de conscientização e capacitação das pessoas voltado às questões ambientais melhoraria em muito o processo ocupação humana-preservação ambiental em assentamentos. Mesmo porque as culturas para comercialização, aquelas denominadas anteriormente especializadas, na grande maioria dos lotes são cultivadas com algum tipo de agrotóxico. Há uso de insumos químicos, evidentemente, mas há perspectivas de uma produção ficar fora desse circuito. Porém, a incerteza da permanência na terra, seja subsistência ou economicamente ou ambos, praticando a agricultura natural, se deve a uma série de fatores. A primeira é que foram assentados em terras desgastadas por monoculturas, o que os obrigam a investir muito dinheiro para corrigirem o solo e até aplicarem muitos praguicidas para combater as pragas que surgiram na monocultura. Para certificação dessa produção, o tempo médio de preparo do solo até criarem as condições necessárias fica em torno de dois anos, dificultando os ganhos financeiros nesse período. Outro fator, mais complexo, é a proximidade de suas produções com a de vizinhos dentro e fora do assentamento. Talvez um vizinho assentado utilize corriqueiramente agrotóxicos em seu lote e eles passem para a produção natural, complicando ainda mais a certificação dos produtos. Outros vizinhos maiores, as usinas de cana e laranja da região, constantemente passam agrotóxicos em suas produções, inclusive com aviões, levando-os também para os lotes nos assentamentos 16 . Outro fator se deve ao fato de que a região é um “mar de cana”, sendo os assentamentos pequenas ilhas de produção potencialmente diversificadas. Na ótica dos usineiros, quanto mais cana estiver plantada na região melhor, e eles pressionam os assentados desde o início da década de noventa para que sejam fornecedores de cana para o complexo agroindustrial. É uma cultura que, se plantada pelos assentados, certamente terá compradores interessados, configurando-se numa das melhores alternativas de ganhos financeiros para pequenos produtores da região. A influência dos usineiros é traduzida pelo sonho de muitos assentados em poderem plantar a cana, pois “apenas” esta ofereceria um bom lucro para eles, conforme alguns depoimentos. Sonho que se choca à demorada sementeira da opção por uma outra agricultura. A regularização do Projeto Cana: as marcas do poder local A insistência foi tamanha, de ambos os lados (assentados, prefeitura de Motuca, usinas), que a Fundação ITESP criou em 2002 uma portaria que regulamenta a parceria entre assentados e agroindústrias (Portaria n° 075-24/10/02). Desde então alguns dos assentados do Monte Alegre assinaram contratos com a usina Santa Luzia S.A. (do município de Motuca) que os torna parceiros e a cultura da cana para a usina entrou em 50% desses lotes. Do primeiro contrato até agora o número de assentados que aderem à parceria tem aumentado bastante. Por outro lado, os assentados do Bela Vista têm plantado cana há bem mais tempo para outras usinas sob forma de arrendamento, o que é irregular para o INCRA e objeto de rupturas dentro do assentamento. A prática do arrendamento para esta e outras culturas agroindustriais, mesmo que ilegal, tem sido uma constante nos assentamentos. A principal cultura é a cana, mas o milho, a soja e o 16 Em algumas idas a campo obtive depoimentos que atestam o despejo de agrotóxicos por avião “na cabeça” dos assentados, nas suas moradias, e relatam uma série de doenças possivelmente originadas por isso: problemas respiratórios, gastrointestinais e hipertensão. Outras doenças relacionadas ao contato com agrotóxicos são: problemas neurológicos, no aparelho locomotor, dermatológicos e cardiovasculares. Ainda constata-se o fato de que são acumulativos no corpo. Ribeirão Preto, 24 a 27 de Julho de 2005 15 Sociedade Brasileira de Economia e Sociologia Rural XLIII CONGRESSO DA SOBER “Instituições, Eficiência, Gestão e Contratos no Sistema Agroindustrial” algodão também são plantados nos lotes desta forma. É expressão das dificuldades em obter renda com outros tipos de produções, em contraposição às “facilidades” da alternativa criada em parcerias com as agroindústrias. A influência exercida pela monocultura, mostrando-se para assentados (e para a sociedade através dos meios de comunicação) como única alternativa é também expressão do abandono do Estado com relação aos pequenos produtores no que diz respeito aos incentivos governamentais, créditos e projetos para os mesmos. É através da parceria com instituições e empresas privadas que produtores de assentamentos de Reforma Agrária têm conquistado parte da renda que viabiliza sua permanência na terra. Encontramos hoje inúmeros casos de parcerias, alguns completamente irregulares como as que se caracterizam como arrendamento, não gerando emprego para a população e funcionando apenas como aluguel da terra. Há casos que nem o trabalho do assentado é necessário, pois funcionários das empresas são quem o fazem. Muitas delas não levam em conta nem mesmo o bem estar da população, como no caso do Projeto Cana: a possibilidade de queimadas ocorrerem bem próximo às moradias, áreas de preservação e criações está em aberto. Cada um decide o que fazer na hora da colheita e se queimarem, um vizinho terá que conviver com os transtornos da queimada, colocando em risco sua saúde, produção, estruturas do lote, etc. Impasses no futuro dos assentamentos O arrendamento da terra disfarçado de parcerias com agroindústria impõe aos assentados controles e formas de ocupação dos espaços que acabam por comprometer a diversidade agrícola, a subsistência e outras fontes de renda. Deste prisma, o crescimento da produção da cana reafirma a exclusão dos assentados, pondo em questão a perspectiva de sua autonomia sobre sua reprodução social. Não se trata de julgar a cana em si, mas de avaliar as conseqüências do sistema de poderes e de controles a ela ligado. O ex-bóia-fria, que lutou pela terra e teve um ganho de vida no assentamento, consegue manter esse ganho ou volta a ser bóia-fria assentado ao ceder o seu lote ao complexo canavieiro? Tal questão não pode ser mensurada do ponto de vista material, mas exige um olhar diferenciado sobre a avaliação da qualidade de vida antes e depois do assentamento, o que nos remete a pensá-la através das estratégias familiares, das suas possibilidades de interação com a natureza e de sua preservação. Certamente, qualquer discussão sobre a sustentabilidade dos assentamentos rurais não pode descartar a influência política do setor canavieiro e seu potencial de intervenção regional. A própria portaria do ITESP não exerce qualquer empecilho ao que a usina pretende nos lotes do Monte Alegre, que são terras públicas. O tripé, mundialmente necessário, eficiência econômica justiça social - sustentabilidade ambiental não ocorre por uma expressa falta de vontade política do setor agroindustrial. Diante desse quadro, credibilidades e ceticismos se mostram na discussão do futuro da Reforma Agrária. As vantagens que a produção da cana está apresentando no assentamento Monte Alegre, além do êxito econômico de alguns assentados na primeira safra, são diluídas se considerarmos o vazio de investimento dos órgãos gestores de modificar o estado ácido do solo e da ineficiência do programa de destoca do ITESP. As parcerias entre instituições públicas e privadas para viabilizar os assentamentos poderiam trazer vantagens para os assentados e para o meio ambiente. A Regar, como já salientado, oferece através de sua proposta um manejo do solo que favorece a sustentabilidade dos recursos naturais, portanto a permanência no assentamento com relação à disponibilidade dos recursos fica por mais tempo assegurada. Favorece também a segurança alimentar das pessoas Ribeirão Preto, 24 a 27 de Julho de 2005 16 Sociedade Brasileira de Economia e Sociologia Rural XLIII CONGRESSO DA SOBER “Instituições, Eficiência, Gestão e Contratos no Sistema Agroindustrial” que consomem os alimentos produzidos dessa forma. Entretanto outras parcerias não conjugam desse “ideal”, continuando o manejo do solo convencional com produção em monocultura e pacote tecnológico. Neste campo de forças, os poderes municipais não criam efetivamente contrapartidas à política do “bom patrão” encenada pelos usineiros. Permanecem desafios no sentido da possibilidade de redirecionar os investimentos municipais através de políticas públicas expressas em programas de apoio efetivo aos assentamentos. Araraquara tem dado um passo importante para viabilizar os assentados ao criar programas que proporcionam a eles transporte e pontos de comercialização, como já citados e ainda conta com um programa do governo federal chamado Programa de Aquisição de Alimentos. Tal programa, um investimento federal para a compra, através dos municípios, de alimentos produzidos pela agricultura familiar para repassá-los às diversas instituições assistencialistas, bem como para a merenda escolar, ainda dá seus primeiros passos no cenário local, podendo se configurar como uma alternativa para o futuro. Ganha destaque o incentivo à agricultura ecológica no Brasil através do pagamento, por este programa, de até 30% a mais por alimentos orgânicos. Ainda no incentivo da produção orgânica, destaco uma linha do PRONAF que oferece 50% a mais do que o normal para investimentos em agriculturas ecológicas e uma experiência em Curitiba-PR, em convênio entre Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e o governo estadual, para a criação em supermercados de gôndolas especiais de produtos da agricultura familiar. O Estado mapeia as organizações de produtores com problemas financeiros e os prepara para a gestão da gôndola. Esta pode ser uma alternativa para outros assentamentos que produzem alimentos em cidades de pequeno e médio porte se inserirem nas redes de supermercado locais. Há retorno garantido para os produtores, que contam também com financiamento do PRONAF para isso. Apesar dos desafios representados pela produção natural em assentamentos, da falta de incentivos governamentais e da inexistência de políticas ambientais, não se pode negar que as práticas dessa agricultura são potencializadoras da recuperação e preservação dos recursos naturais, o que é absolutamente indispensável para se discutir o futuro da Reforma Agrária. Após um primeiro momento de limpeza de resíduos deixados pelas monoculturas, a tendência é que o solo volte a apresentar suas características naturais. A qualidade dos frutos que ele produz também se reflete na saúde pública, o que provavelmente reduziria a longo prazo gastos do Estado e da população com tratamentos de doenças que derivam do consumo de alimentos e das águas que contêm todo tipo de agrotóxicos. A permanência dos assentados no local, no que diz respeito aos recursos naturais que possuem nos lotes, também ficaria garantida por mais tempo. Isso por que suas terras não estariam contaminadas com toxinas provenientes dos insumos químicos, que acabam nos rios, no lençol freático, e o solo estaria menos desgastado. A agricultura natural serviria, deste modo, como um ideal de sustentabilidade no sentido de sustentar por mais tempo, por mais gerações, as famílias e o próprio ecossistema ao seu redor. Até animais nativos foram citados por alguns assentados, o que ajudaria na preservação da diversidade da fauna local. Está é uma expressão da percepção de ecossistema que os homens devem buscar: quando ele opta por não utilizar os agrotóxicos, quando não desmata ou queima em função de monoculturas, favorece uma vasta gama de seres vivos, preserva a diversidade que dá equilíbrio ao todo no qual ele está inserido. Na contramão dessa alternativa, usineiros estão alugando terras públicas vizinhas às suas, buscando ampliar seu domínio sobre as terras e as pessoas dos assentamentos. Entretanto, tais controles não extinguem sonhos e tentativas de alguns assentados de recriar estratégias, pautados Ribeirão Preto, 24 a 27 de Julho de 2005 17 Sociedade Brasileira de Economia e Sociologia Rural XLIII CONGRESSO DA SOBER “Instituições, Eficiência, Gestão e Contratos no Sistema Agroindustrial” pela convicção de que há outros caminhos de sobreviver na terra. Possibilidades essas expressas na educação dada aos filhos, na diferenciada concepção de fartura associada à segurança alimentar, no valor do autoconsumo como elemento de saúde e de reprodução social, na importância do equilíbrio ecológico e do exercício da consciência ambiental e social. Os nichos e possibilidades de recuperação e preservação ambiental encontrados no pólo da agricultura mais avançada e produtiva do Estado de São Paulo, as perspectivas que poderiam se abrir se as políticas públicas absorvessem efetivamente a proteção da agricultura sustentável, o que poderia ser potencializado através da junção de órgãos tais como Ministérios da Justiça e Cidadania, do Desenvolvimento Agrário, do Meio Ambiente e secretarias municipais são pontos de inflexão a serem levados em conta na discussão dos rumos da Reforma Agrária. Desafios que não são evidentemente apenas de âmbito acadêmico, mas estão no centro da definição dos poderes de assumir ou não compromissos com políticas que possam trazer mais bem-estar para populações rurais e urbanas. Referências Bibliográficas ARBEX, M.A. et al. Queima de Biomassa e suas Repercussões sobre a Saúde. Jornal Brasileiro de Pneumologia, março/abril, 2004, p. 158 - 172. BARAONA, R. Un Campesino por Dentro. 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