PREFÁCIO
H
á mais de um século de heroísmo nas páginas deste livro-reportagem. Elas nos permitem
lembrar que a escravidão é a maior e pior mancha a cobrir nosso gigante.
A tentativa de apagar essa mácula, sem que isso signifique necessariamente extinguir os seus
nefastos efeitos e reflexos, é um remendo deplorável, que, porém, há muito se aplica;
segue-se sempre uma fórmula semelhante, em que pese adquirir formatos aparentemente
diferentes, ao longo das décadas: aposta-se na superação do mal a partir do seu esquecimento.
Foi assim, no tristemente famoso episódio da queima de documentos da e sobre a escravidão,
por ordem e vontade de Ruy Barbosa. Destruir arquivos que atestavam a entrada de negros no
Brasil para serem escravizados não redime culpas e, ainda, oculta erros e culpados.
E cremos que, de certa forma, têm tido semelhante papel simbólico a essa queima, todas as
ações que, voluntária ou involuntariamente, colaboram para o apagamento cotidiano – por
vezes quase imperceptível - da memória de nossos negros; omitindo-lhes a bravura, os
percalços, as derrotas, as glórias, o infindável sofrimento e as inegáveis contribuições à
emancipação humana, roubamos-lhes uma vez mais. E a nós próprios também.
A nação de passado escravista ostenta, no presente, uma herança hipócrita, repleta de auto
complacência, a impregnar, principalmente, os setores de elite e também os de classe média,
nascidos em berço esplêndido ou nem tanto, que afirmam acreditar, comodamente, que não
somos racistas.
E a imprensa convencional, que desses setores de classe quase sempre emana e que também
quase que exclusivamente a elas se remete, se não é a única a criar este mal, não pode ser
eximida de reproduzí-lo, de recriá-lo e estendê-lo, sempre à luz – ou à escuridão – do
preconceito racial e da exaltação da pele alva.
E quanto aos negros heróis: quem se ocupa em dar-lhes voz? O livro do jovem jornalista
Roniel de Jesus Felipe rompe esse quase absoluto silêncio. Apresenta, de um fôlego só, mais
de um século de história, de acelerar a respiração do leitor.
Os protagonistas são tão extraordinários e, ao mesmo tempo, tão comuns, assim como a
imensa maioria que povoa o verde amarelo solo tropical: são trabalhadores, pobres e negros.
* * *
Uma mulher negra e a luta sindical como crença e paixão. Ao traçar o perfil de
Laudelina de Campos de Mello, nascida na primeira década do século passado, recria a
personalidade corajosa, insolente e visionária dessa mulher negra, precursora da
sindicalização das empregadas domésticas no Brasil.
Sua vida se desenrola em meios às dificuldades que os descendentes diretos de escravos
enfrentaram e enfrentariam por longos anos e que estão em todas as páginas. Ex-senhores de
escravos agindo como se a abolição nunca tivesse ocorrido, vez ou outra se acharam no
legítimo direito de nos maltratar.
As moradias e os modestos empregos conquistados a duras penas, nas décadas que se
sucederam à assinatura da Lei Áurea, seriam freqüentemente ameaçados. É em meio a esse
mar de dificuldades, incertezas e injustiças que um precoce desejo de igualdade florescerá.
A narrativa ganha relevo quando a protagonista é mostrada em situações que parecerão ter
acontecido ontem, numa escola qualquer, nalgum canto deste imenso país: a da criança
acuada pelos apelidos jocosos, dados por colegas de classe, sob olhares tão cruéis tão quanto
omissos ou coniventes de algum adulto.
Ao mesmo tempo, a leitura convida a um mergulho no Brasil governado por Vargas. Em
posto extremamente perigoso e insalubre – enfrentando situações típicas de uma duríssima
batalha – pois a guerreira foi ao ‘front’ como soldado. Movida pela convicção de dar duro no
combate ao nazismo, no início da década de quarenta, alistou-se como voluntária, atuando
com bravura no Forte de Itaipu, área portuária na Praia Grande.
A vida de dificuldades não abate, nem refreia dessa autêntica sobrevivente, que carregou
seqüelas de um tiro, que levou nesse período, por toda a sua vida. Comunista convicta, essa
mineira atuante na linha de frente do Clube Cultural do Negro na capital paulista, faria
história.
Em tempos de paz, conviveria com a morte rondando, roubando-lhe pessoas queridas,
algumas delas, em função do trabalho árduo que exerciam - ainda que pese sob a massa de
trabalhadores braçais brasileiros a pecha de vagabundos: o lenhador sob o tronco pesado da
árvore que desaba; a cozinheira em agonia pela fervura derramada sobre o corpo.
O sucedâneo das amas de leite ou mucamas – a ocupação de doméstica (resíduo da
escravidão, nas palavras de Laudelina) – ao qual estariam e ainda estão relegadas milhares de
mulheres negras, de todas as idades, não será por acaso o foco das atenções da idealizadora
de concursos de beleza negra nos difíceis, ainda que envolventes e mágicos, anos trinta.
E ela terá papel marcante e decisivo na formação da primeira Associação de Empregadas
Domésticas do Brasil, em 1936.
Trabalhadora incansável, a controvertida cozinheira e quituteira agradará o paladar das duas
torcidas rivais nos estádios de futebol da cidade das andorinhas.
Com trânsito livre garantido pela sua ousadia, não se furtará a contar, ora com o apoio de
gente ligada à Igreja, ora com o de representantes de partidos políticos os mais diversos, mas
na maioria das vezes tendo, exclusivamente, a inesgotável esperança como companhia, em
suas incontáveis empreitadas rumo à organização sindical das ditas ‘trabalhadoras do lar’.
É com altivez e certa dose de ironia, como no enfrentamento da soberba elite campineira dos
anos sessenta, que ela verá vociferar contra si até por meio de cartas de protesto, contra a
possível organização coletiva das domésticas, na qual ela tinha evidentemente um papel
central.
* * *
Um homem negro: da música ao engajamento político; da perseverança ao enfrentamento
contra o racismo e pela defesa da cultura genuinamente popular.
Dando voz a TC, Antonio Carlos Santos Silva, redescobre em minúcias e detalhes a
dramática e inesgotável trajetória que liga o movimento negro, em nosso país, à defesa da
autêntica cultura popular.
Um dos trechos mais interessantes do livro retrata a repressão política no Brasil sob golpe
militar. Se a convicção política era um problema para toda a esquerda, é patente que a cor da
pele poderia representar doses ainda maiores de ‘pretextos’ para os mais arbitrários e
aviltantes episódios de repressão, violência. Lutar por um país livre, por uma sociedade justa
e igualitária, representava assumir gestos de altíssimo risco. Somados ao enfrentamento do
racismo, poderia ser fatal. TC perderá um grande amigo e companheiro de lutas num
assassinato premeditado e jamais esclarecido, segundo relato presente nesta obra.
As vivências da infância parecem ter reflexos decisivos na conformação de uma
personalidade marcada pela coragem, tanto quanto pela utopia.
Ele enfrentará precocemente a discriminação racial. Será aluno relegado à desatenção de
professores preconceituosos, muitos dos quais se revelando ‘mestres’ em exclusão. Nos mais
simples e corriqueiros acontecimentos em sala de aula estarão escancaradas expressões de
injustiças; as crianças negras sendo sempre punidas com maior rigor e até mesmo em
situações em que qualquer castigo seria completamente descabido.
Se o contato com essa dolorosa realidade chega cedo à vida de TC, o mesmo acontece em
relação à crença em que um mundo diferente e melhor é possível. Ele teve a oportunidade
ímpar de morar em uma comunidade quilombola, no Baixo Vale do Jequitinhonha, próximo
de Uberaba-MG - por um breve, porém decisivo, período de sua vida.
Este livro-reportagem narra detalhes da convivência que ele aí desfrutaria, junto a familiares
e amigos, em que o respeito, a solidariedade e a harmonia estão em primeiro lugar; e também
poderá saborear o melhor de sua grande paixão: os ritmos, as músicas.
A criação e o respectivo sentido dos complexos habitacionais que se multiplicam nas grandes
cidades, sob égide dos governos militares, também aparecem. Conformam o típico cenário
associado à acelerada modernização brasileira, na segunda metade do século passado.
Se o período imediatamente posterior à abolição da escravidão fora responsável direto pela
formação ou pelo crescimento dos chamados cortiços, nas mais diferentes regiões por todo o
país, os anos sessenta representariam um processo de rápida transferência dos setores pobres
e marginalizados, do centro para a periferia dos centros urbanizados.
Previa-se o ‘embelezamento’ das áreas comerciais, que deveriam ser atrativas e não
comportavam moradias precárias, mas sim, prédios suntuosos. Os bairros distantes eram a
saída perfeita para camuflar e esconder a pobreza; ao mesmo tempo, facilitavam a vida dos
ricos proprietários das indústrias, que, ocupando crescentemente as beiradas das grandes
cidades, requeriam um operariado que habitasse próximo, para minimizar gastos com
transporte e reduzir atrasos na chegada aos postos de trabalho. Assim, surge o bairro
campineiro onde TC fora morar ainda menino.
A despeito de todas as formas de isolamento ou de negação, eis que sobrevive e se fortalece o
movimento negro em Campinas, que estará, nesse sentido, em sintonia com anseios que
desabrocham, simultaneamente, por todo o país e em diversas partes do mundo. E TC tem
papel de destaque nessa empreitada, indissoluvelmente ligada à difusão e valorização da
música e da cultura popular.
Numa trajetória que inclui o Grupo Evolução e se prolonga em direção à criação da Casa de
Cultura Tainã, hoje importante e reconhecido pólo de fomento e preservação cultural.
Junto à Casa Tainã, o nome de TC não está gravado exclusivamente pelos esforços na fase de
sua implantação, mas também na preservação permanente dessa conquista. Haja vista o fato
de, na segunda metade da década de noventa, ele não se furtar a desafiar legalidades
impostas, ameaças policias ou artimanhas de políticos profissionais. Diante da perda iminente
do espaço cultural a duras penas consolidado, não hesita em deflagrar, sob ameaça de uma
greve de fome, um processo vitorioso de resistência.
* * *
Nem a trajetória de Laudelina, já falecida, nem a de TC – que ainda se desenrola com pleno
vigor cotidianamente - permitem reduzi-los à trajetória (que, tomada em si, já seria incomum)
de militante de uma nobre causa.
A principal das facetas que ela encarna é a de sindicalista; ele, a de batalhador incansável
pela valorização da cultura negra. As instituições culturais, sindicais e/ou partidárias junto às
quais podem ter atuado, direta ou indiretamente, refletiram ações coletivas, é certo. Mas a
força e o brilho individual que emanam, são incomuns.
O heroísmo está na forma com que ambos revestem suas atitudes na direção de suas
respectivas paixões: dedicando-lhes a própria existência; sem reservas ou ressalvas, doam-se
ao bem comum, integralmente. Confirmar-se-á, a partir de inúmeros fatos a seguir relatados,
que a vida pessoal de ambos foi sucessivamente colocada em segundo plano, quando as
vicissitudes da ação prática em prol de uma sociedade mais justa e igualitária assim o
obrigam.
Não sabemos se é possível contabilizar quantas foram as vidas dedicadas completamente à
luta contra a desigualdade social e racial em favor da dignidade humana. Mas aqui estamos,
indubitavelmente, diante de dois seres humanos de inestimável valor. Negros heróis, que não
estão no gibi. Ou melhor, não estavam.
O jornalismo convencional não só não tem se dedicado de modo condizente à divulgação de
trajetórias de luta, como, inúmeras vezes, tem colaborado para que prevaleçam mistificações
duvidosas sobre vivermos numa era de igualdade racial. É preciso reverter esse quadro.
Admiráveis são os povos que não permitem que se apaguem as lembranças do sofrimento
humano causado pelo preconceito. Por dura que seja a memória da injuriosa escravidão, as
marcas que ressoaram no século que a sucede, para serem efetivamente apagadas, precisam
antes ser, no mínimo, reverenciadas. Precisam sair da sombra do esquecimento, ganhar a
devida visibilidade pública.
Nesse sentido, um bom começo é, sem dúvida, a leitura da obra com a qual nos presenteia
Roniel de Jesus Felipe, sob a inspiração do jornalismo literário, neste surpreendente e
encantador livro reportagem história.
Márcia Fantinatti é jornalista, doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de
Campinas e docente pesquisadora da Faculdade de Jornalismo da Pontifícia Universidade
Católica de Campinas.
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