A teoria do valor e a fase silábica do processo de alfabetização:
a sílaba como portadora de sentido
Janina Antonioli1
RESUMO: O presente trabalho objetiva discutir a teoria do valor de Saussuresob a ótica do
processo de alfabetização, com ênfase à hipótese silábica do referido processo. A teoria do
valor pode auxiliar no entendimento de sentido que existe na sílaba, nessa fase específica do
processo de alfabetização descrito por Emília Ferreiro e Ana Teberosky. A atribuição de
sentido na sílaba é o primeiro passo para a criança começar a representar a língua através de
dados da própria língua e de seus julgamentos sobre sua língua; ao contrário de hipóteses
anteriores do processo, em que a referência para a representação escrita era a relidade
observável. O entendimento da importância da sílaba nessa fase contribui para que seja
possível a adoção de intervenções pedagógicas apropriadas para o desenvolvimento da
alfabetização da criança.
Palavras-chave: alfabetização, fase silábica, teoria do valor.
ABSTRACT: The present paper discusses Saussure’s value theory from the perspective of the
literacy process, emphasizing the syllabic hypothesis of that process. The value theory can help
understand the meaning given to the syllable in this particular phase of the literacy process, as
described by Emilia Ferreiro and Ana Teberosky. The attribution of meaning to the syllable is
child’s first step in beginning to represent the language through its own language data and its
judgments about the language. This is contrary to the previous hypotheses of the process, in
which the reference to the written representation was the observable reality. Understanding the
importance of the syllable in this phase makes possible the adoption of appropriate teaching
interventions for children’s literacy development.
Keywords: literacy, syllabic hypothesis, value theory.
Introdução
As ideias de Saussure que foram apresentadas no Curso de Linguística Geral
(CLG) fazem parte da fundação de uma nova forma de entender a língua e a
linguagem. Essas ideias fundaram um novo pensamento e uma nova ciência,
de modo que os estudos expressivos até a publicação do CLG – e sua
divulgação – passaram a ser uma forma ultrapassada de entender os
fenômenos linguísticos. As fundações conceituais e as reflexões postuladas por
Saussure, no CLG, podem não ser o âmago do pensamento de Saussure por
ele mesmo – dadas as imensas críticas vigentes2–, mas inegavelmente fazem
1
Janina Antonioli é mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, na especialidade Teorias Linguísticas do
Léxico
[email protected]
2
Por ser obra póstuma, baseada em anotações de alunos, o Curso de Linguística Geral é
criticado por não apresentar, de fato, as ideias de Saussure. Não se nega, ao longo desse
19
parte da “certidão de nascimento” de uma nova forma de estudar linguística,
que é proposta pelo Curso. As correntes de estudos linguísticos que surgiram
após a publicação não foram indiferentes a Saussure; desde o estruturalismo
até os dias atuais: o Curso serve tanto como um ponto de apoio, como uma
referência a ser seguida ou a ser completamente negada e, também, como um
contraponto às teorias linguísticas. Isso reforça a dimensão da importância que
a obra inegavelmente tem para os estudos linguísticos.
Apesar disso, em estudos paralelos, como estudos de alfabetização, o CLG
parece não ser um ponto de reflexão, de modo que não se estabelece nem a
existência de diferenças conceituais entre a langue de Saussure e a
representação da língua. O que pode parecer óbvio, não é3, uma vez que a
ideia saussureana delangue é um ponto de referência para que o aprendiz
comece a ser capaz de representar graficamente sua língua. Nesse sentido, as
fases de alfabetização descritas nos trabalhos de psicogênese da língua escrita
– tendo como precursoras Emilia Ferreiro e Ana Teberosky – apontam como o
desenvolvimento da escrita acontece nas crianças e indica os processos
presentes ao longo da alfabetização. Quando Saussure é mencionado em
trabalhos da área de alfabetização, geralmente apenas a noção de língua como
sistema é aproveitada, de tal sorte que todos os demais conceitos do CLG não
são retomados (BURGARELLI, 1998; PAIVA, 2007). Por outro lado, em
Ferreiro (2002, p. 15) e em Ferreiro, Teberosky (1995, p. 140) as ideias de
Saussure são mencionadas para tratar da construção pela criança do conceito
de palavra ou para abordar a noção de significante e significado no processo
de alfabetização.
artigo, a dificuldade em atribuir a Saussure uma obra que ele nem mesmo desejou publicar. As
críticas mais pungentes a esse respeito encontram-se em Bouquet (2000; p. 13-19) e Bouquet;
Engler (2002, p. 11-17). Para os fins desse artigo, contudo, atribuir-se-á as ideias do CLG a
Saussure por uma questão de referência, ou seja, por haver uma consolidada tradição em
referenciar o mestre genebrino como autor de tal obra.
3
Se pensarmos na formação do alfabetizador, que no Brasil é reconhecidamente muito
heterogênea, veremos que há mais problemas do que simplesmente a verificação da falta de
noções saussurianas como conteúdo de formação. Para fins desse trabalho, não se postulará
tal debate, ainda que haja uma premissa, aqui, de que a reflexão linguística deva compor as
reflexões das formações dos alfabetizadores. Existe, tradicionalmente no Brasil, um hiato entre
estudos sobre os processos de alfabetização e os estudos linguísticos (SOARES, 1989, p. 4952); não obstante, há que se reconhecer os esforços nos últimos anos para que se aproximem
os estudos linguísticos e os estudos ligados à alfabetização (SENNA, 1995; SOARES, 2004;
KLEIMAN, 2007).
20
Nas fases do processo de alfabetização – pré-silábica, silábica, silábicaalfabética e alfabética – existe uma progressão da criança na criação das
formas de representação. A criança inicia o processo em um estágio onde a
realidade está presente na sua escrita, ou seja, uma palavra que represente
algo que a criança considere grande, será extensa e a criança opera a mesma
lógica com palavras que “apontem” coisas no mundo que sejam pequenas,
segundo o seu julgamento. O ápice do processo é quando o aprendiz
consegue representar palavras e frases através de letras e a criança adquire
consciência fonológica, ou a referência para a escrita passa a ser a própria
língua, não mais a realidade; nesse sentido, as palavras e frases da criança
são bem próximas à escrita padrão, e essa escrita próxima à escrita padrão é o
que pode ser chamada de fase alfabética.
Há uma fase intermediária no processo chamada fase silábica. Nessa fase a
criança toma a sílaba como uma unidade e representa cada sílaba do que
pretende escrever com uma letra. Para escrever uma palavra como “menino”,
por exemplo, pode produzir “MNO” como representação. Esse processo foi
descrito por Ferreiro (2002, p. 13-17) e é um conceito corrente nos documentos
do Ministério da Educação que abordam a questão da alfabetização (WEISZ,
2001; BAPTISTA, MACIEL, MONTEIRO, 2009). O que parece haver, na fase
silábica, é um status de valor na sílaba, já que a sílaba é a unidade que é
tomada como referência no momento de representação. O presente trabalho
tem por objetivo abordar a teoria do valor no processo de alfabetização,
observando com cuidado a questão da sílaba na fase silábica do processo de
alfabetização. Pensando especialmente na fase silábica, entende-se que a
sílaba adquire valor para a representação escrita. De acordo com a teoria do
valor do CLG, o que tem valor em uma língua, tem sentido; ou, ainda, o sentido
é uma ideia que está intimamente ligada ao valor linguístico. A sílaba não pode
ser considerada, nesses termos, uma unidade de valor, pois sozinha ela não
tem sentido. A função da sílaba em outros momentos do processo de
alfabetização – e, mais amplamente, em outros processos que envolvam a
língua escrita – é eminentemente normativa, se considerada sua utilidade para
a acentuação gráfica, além de ser notacional, sob o aspecto da translineação
no texto. Ainda assim, parece existir um momento específico do processo de
21
alfabetização – a fase silábica propriamente dita – em que a sílaba adquire
valor linguístico, tal como descrito no CLG. Sobre esse status de valor da
sílaba na fase silábica da criança em processo de alfabetização discorreremos
esse artigo.
A Teoria do Valor de Saussure
De acordo com o CLG, o valor de uma palavra é “a propriedade que tem de
representar uma ideia” (2003, p. 132). Essa acepção de valor parece estar
intimamente ligada à questão do sentido ou, ainda, às questões semânticas. A
dúvida que se coloca, então, na própria obra é: “se é assim, em que difere o
valor do que se chama significação?” (2003, p. 133). Apesar de o Curso
defender que significação e valor não sejam a mesma coisa, aponta, contudo,
que possa facilmente haver confusão nos dois conceitos. Dessa forma, o CLG,
então, diz que o valor
“constitui, se dúvida, um elemento da significação, e é difícilimo saber
como esta se distingue dele, apesar de estar sob sua dependência. É
necessário, contudo, esclarecer esta questão sob pena de reduzir a
língua a uma simples nomenclatura. [...] Visto ser a língua um sistema
em que todos os termos são solidários e o valor de um resulta tãosomente da presença simultânea de outros (SAUSSURE, 2003, p.
133)”
Ao longo do Curso, é notável o esforço metafórico de Saussure em comparar o
valor linguístico ao valor de uma moeda – pois a moeda pode ser trocada por
algo diferente, um pão, por exemplo – contribui para a organização teórica do
valor, ainda que haja, de alguma maneira, noções escorregadias na própria
teorização, que segue
“uma palavra pode ser trocada por algo dessemelhante: uma ideia;
além disso, pode ser comparada com algo da mesma natureza: uma
outra palavra. Seu valor não estará então fixado, enquanto nos
limitarmos a comprovar que pode ser “trocada” por este ou por aquele
conceito, isto é, que tem esta ou aquela significação; falta ainda
compará-la com os valores semelhantes, com as palavras que se lhe
podem opor. (SAUSSURE, 2003, p. 134)”
A dificuldade de teorização não se reduz apenas ao CLG. Um estudo que lide
com o significado parece trazer consigo imprecisões próprias do tema. Ainda
22
assim, Saussure procurou – e o exerto acima é um bom exemplo disso – tratar
o valor linguístico de uma forma muito didática e clara, sobretudo quando
mostra ao linguista como deve proceder metodologicamente: “Seu valor não
estará então fixado, enquanto nos limitarmos a comprovar que pode ser
“trocada” por este ou por aquele conceito, [...] falta ainda compará-la com os
valores semelhantes, com as palavras que se lhe podem opor” (SAUSSURE,
2003, p. 134).
Nesse sentido, Normand (2004, p. 100) se vale do mesmo exemplo de moeda
de troca apresentado no CLG para compreender a questão do valor linguístico,
em que afirma que a língua é um sistema de valores 4.Normand (2004, p. 100)
remete a outra metáfora do CLG para definir o valor: o jogo de xadrez. Assim, o
valor de uma peça de xadrez depende de sua posição no tabuleiro, da mesma
forma que cada um dos termos linguísticos deriva seu valor de sua oposição a
todos os outros termos (SAUSSURE, 2003, p. 104-105).Normandse alinha ao
pensamento de Saussure a medida que dimensiona o problema do valor,
quando afirma que o linguista deve tomá-lo com toda a sua clareza e toda sua
obscuridade– nesse sentido, lida com as próprias metáforas do mestre
genebrino (2004, p. 100). Para a autora, é impossível que o linguista, então,
analise um dado isoladamente, mas é importante avaliar o que está em jogo no
dado observado, de modo que se considerem as relações que cada elemento
mantém com outros elementos do sistema.
Normand (2009, p. 74-75) chama atenção para as questões das atribuições do
linguista. É notável a essa autora que o linguista observe seus dados sempre
através das relações da língua, postulando que “o funcionamento (de uma ou
outra língua) obedece ao mesmo princípio geral: só há relações” (2009, p. 75).
Uma ideia que está ligada intrinsecamente ao valor, tanto no CLG, como nas
questões promovidas por Normand, é a ideia de sentido. Apesar da dificuldade
de separar os dois conceitos e da real noção de que tais conceitos não são
sinônimos, é impossível não atrelar um ou outro. Normand afirma que o sentido
é onipresente nos estudos de Saussure, porque “é por essa primeira
4
Para os fins desse artigo, traduziu-se “language as a system ofvalues” do texto original de
Normand (2004, p. 100) para “a língua como um sistema de valores”, mais próximo das ideias
do próprio CLG.
23
propriedade que são definidas as unidades linguísticas: elas só são reais
quando significativas para os locutores” (2009, p. 157). A relação entre sentido
e valor, para a autora, torna-se evidente pois, caso um signo linguístico esteja
“isolado, fora das relações que o constituem como elemento de uma língua,
perde sua realidade de signo, ou seja, não significa mais nada” (2009, p. 159).
Ainda sobre a discussão do valor linguístico, Bouquet (2000, p. 255) amplia o
conceito de valor atrelado ao sentido, de tal forma que seja preciso analisar o
termo no paradigma e no sintagma. Essa reflexão é próxima às reflexões de
Normand, mas inegavelmente contribuem para depurar melhor a ideia de valor
linguístico desenvolvida por Saussure. O autor atenta para a ideia de valor in
praesentia e valor in absentia e, com isso, dimensiona o tratamento semântico:
“Complexa, essa teoria do valor o é na medida em que coordena dois
fatos, eles mesmos complexos. O primeiro fato (que se pode
denominar, num estenograma, o do valor in absentia) faz
corresponder termo a termo a teoria do valor e a teoria do arbitrário.
O segundo fato (que se pode etiquetar como o do valor in praesentia)
associa, a esse valor proveniente do arbitrário da língua, um valor
proveniente do fato sintagmático. É na combinação desses dois fatos
que o linguista vê [...] a essência do fato semântico. (BOUQUET,
2000, p. 255) (grifo do autor)”
O valor in absentia, nesse sentido, pode ser entendido como o valor
correspondente ao eixo associativo, enquanto que o valor in praesentia pode
ser ligado ao eixo sintagmático.
De acordo, ainda, com Bouquet (2000, p. 258), para entender o valor in
absentia é preciso atentar a três princípios que o constituem:
“(1) O significante responde pelo seu significado; nessa medida, o
significado é o valor desse significante; (2) o significado responde
pelo seu significante: nessa medida, o significante é o valor desse
significado; (3) significante e significado respondem simultaneamente
um pelo outro: nessa medida, o significante e o significado são
simultaneamente o valor um do outro. (BOUQUET, 2000, p. 258)
(grifo do autor)”
Entretanto, o valor in absentia é apenas uma parte do valor semântico, já que o
significado numa frase, por exemplo, não é a somatória do significado de cada
termo. Dessa forma, o todo do valor semântico – seja no termo, seja na frase,
ou seja em qualquer unidade que se atribua status de signo – se dá no eixo
associativo simultaneamente ao eixo sintagmático (BOUQUET, 2000, p. 268).
24
Ou seja, é o valor in praesentia associado ao valor in absentia que determina o
significado do termo. O valor analisado no eixo associativo e no eixo
sintagmático, apresentado por Bouquet em referência a Saussure, é o que
Normand (2009, p. 75) sintetiza quando afirma que tudo o que há na língua são
relações.
O estágio silábico do processo de alfabetização
A partir dos anos 1980, estudos de epistemologia da língua escrita, baseados
nas ideias de Jean Piaget, redimensionaram trabalhos sobre o processo de
alfabetização. A epistemologia da língua escrita foi proposta por Ferreiro,
Teberosky (1995, p. 289-314) e apresenta o processo de aquisição da escrita
por crianças. É importante salientar que atualmente os conceitos de Ferreiro,
Teberosky continuam produtivos, de modo que as ideias gerais das autoras
subjazem vários trabalhos acadêmicos (SENNA, 1995; SOARES, 2004;
KLEIMAN, 2007) e documentos oficiais do Ministério da Educação (WEISZ,
2001; BAPTISTA, MACIEL, MONTEIRO, 2009).
A proposta teórica da epistemologia da língua escrita entende que a criança
aprende a ler e escrever a partir da reconstrução de imagens e representações
do mundo, sobretudo através de desenhos, isto é, a própria representação
pictória faz parte do processo de alfabetização. Aos poucos, a criança vai
tomando contato com o sistema de representação escrita, e, a partir daí,
começa a tentar reproduzir através de letras os sons da língua e não a
representação pictória dos objetos que estão no seu entorno (FERREIRO,
TEBEROSKY, 1995, p. 180-185), ou, em outras palavras, a criança reconstrói
individualmente os períodos do desenvolvimento da escrita da Humanidade.
Nesse sentido, Ferreiro (2002, p. 18) entende que
“Las escrituras infantiles siguen una sorprendente regular línea de
evolución, a través de diversos medios culturales, de diversas
situaciones educativas y de diversas lenguas. Tres son los grandes
períodos que pueden distinguirse, dentro de los cuales caben
múltiples subdivisiones:
 distinción entre el modo de representación icónico y el no-icónico;
 la construcción de formas de diferenciación (control progresivo de
las variaciones sobre los ejes cualitativo y cuantitativo);
25
 la fonetización de la escritura (que se inicia con un período silábico
y culmina en el período alfabético).”
Esse processo é descrito através de fases do desenvolvimento infantil
(FERREIRO, 2002, p. 13-26), que compreendem os seguintes níveis:
a. Pré-silábica: não consegue relacionar as letras com os sons da língua
falada. A criança ainda não consegue estabelecer correspondência entre letra
e som; as hipóteses das crianças são estabelecidas em torno do tipo e da
quantidade de grafismo. A criança, nesse nível, tenta diferenciar entre desenho
e escrita; utilizar no mínimo duas ou três letras para escrever palavras;
reproduzir os traços da escrita, de acordo com seu contato com as formas
gráficas; e começar a perceber que é preciso variar os caracteres para obter
palavras diferentes.
b. Silábica: interpreta a letra à sua maneira, atribuindo valor de sílaba a cada
letra. A criança começa a compreender que as diferenças na representação
escrita estão relacionadas com o som das palavras. Utiliza os símbolos gráficos
de forma aleatória, usando ora apenas consoantes, ora apenas vogais, ora
letras inventadas e repetindo-as de acordo com o número de sílabas das
palavras.
c. Silábico-alfabética: mistura a lógica da fase anterior com a identificação de
algumas sílabas. A criança alterna o uso de famílias silábicas conhecidas com
o uso de uma letra que represente uma sílaba (consoante-vogal) para formar
as palavras que escreverá.
d. Alfabética: domina, enfim, o valor das letras e sílabas. A criança, nessa fase,
é capaz de entender que a sílaba não pode ser considerada uma unidade; que
a sílaba pode ser separada em unidades menores; que a identificação do som
não é garantia da identificação da letra e que a escrita supõe a necessidade da
análise fonética das palavras.
A descrição do processo de alfabetização contribui massivamente para a
intervenção pedagógica, pois a partir do entendimento de cada uma das fases
podem se propor atividades que encaminhem o desenvolvimento da criança,
26
para que atinja a fase seguinte a qual se encontra. A validade de tal teoria
reside justamente no aporte que disponibiliza aos professores e no
entendimento de como se dá o todo e as partes do processo de alfabetização.
A sílaba como portadora de sentido
No estudo de Ferreiro, Teberosky (1995, p. 140) há uma discussão do status
de palavra e, com isso, do status de significado. Uma palavra, para a criança
em processo de alfabetização, é um termo com sentido e esse axioma será um
critério para que se reconheça um termo e se separe esse termo de outro
numa frase, por exemplo; por isso a especial importância da atribuição de
sentido no período de alfabetização. Ou seja, a atribuição de sentido é uma
referência para que a criança seja capaz de segmentar palavras, por exemplo.
“Aunque la unidad “palabra” tenga un estatus intuitivo que parece
claro al locutor, esa unidad resiste notablemente a un análisis
lingüístico riguroso. F. de Saussure evitó considerar la palabra como
unidad concreta de la lengua, por tratarse de un elemento complejo y
equívoco […]. Si tomamos la definición “intuitiva” de palabra como la
asociación de un sentido a un pattern sonoro específico, nos
encontramos de inmediato con varias dificultades: por el lado del
sentido, resulta claro que las distintas clases de palabras
(sustantivos, verbos, artículos, preposiciones, etc.) vehiculizan
sentidos muy diferentes. Por otra parte, unidades menores que las
palabras contribuyen a transmitir diferentes sentidos (como la -s del
plural). (FERREIRO; TEBEROSKY, 1995, p. 140)”
A atribuição de sentido e, também, o valor linguístico de Saussure são
conceitos tratados na obra de Ferreiro(2002, p. 15). A autora aponta uma
progressão de importância na representação ao longo da alfabetização, que vai
do significado para o significante. Nesse sentido, a autora postula que quanto
mais icônica a representação, mais ligada ao significado ela será; ao passo que
quanto mais ocorre o uso de letras, ocorrerá uma preocupação maior com a
representação do significante. A autora, então, preconiza que:
“A partir de los trabajos de Saussure estamos habituados a concebir
el signo lingüístico como la unión indisoluble de un significante con un
significado, pero no hemos apreciado suficientemente lo que esto
supone para la construcción de la escritura en tanto sistema de
representación. Es el carácter bifásico del signo lingüístico, la
naturaleza compleja del mismo y de la relación de referencia lo que
está en juego. […] Las escrituras de tipo alfabético (tanto como las
escrituras silábicas) parecerían poder caracterizarse como sistemas
27
de representación cuya intención primera – o primordial – es
representar las diferencias entre los significantes. En cambio, las
escrituras de tipo ideográfico parecerían poder caracterizarse como
sistemas de representación cuya intención primera – o primordial – es
representar diferencias en los significados. Sin embargo, puede
también afirmarse que ningún sistema de escritura ha logrado
representar de manera equilibrada la naturaleza bifásica del signo
lingüístico. (FERREIRO, 2002, p. 15-16).”
No que tange as especificidades da fase silábica, parece, contudo que as
autoras supracitadas não especificam a natureza da palavra e do sentido. A
sílaba não é relacionada às questões de significado, provavelmente porque o
desprovimento de significado na sílaba parece um consenso. Por outro lado, a
teoria do valor – que perpassa vários capítulos do CLG – apresenta, no
capítulo “As entidades concretas da língua” os princípios que norteiam tal
conceito e, para esclarecer o que é entidade linguística, menciona-se o valor da
sílaba:
“a entidade linguística só existe pela associação do significante e
significado (...). A todo o momento, corre-se o perigo de não discernir
senão uma parte da entidade, crendo-se abarcá-la em sua totalidade;
é o que ocorreria, por exemplo, se dividisse a cadeia falada em
sílabas; a sílaba só tem valor em Fonologia. (SAUSSURE, 2003, p.
119) (grifo nosso)”
Apesar de tal capítulo preceder o capítulo que trata especialmente da teoria do
valor, já explica que o valor da sílaba está apenas no estudo da Fonologia. A
sílaba, de fato, não pode ser considerada uma unidade de valor pois não tem
sentido, que, como observado anteriormente, é condição necessária para que o
valor de um termo exista.
A exceção a esse consenso parece ser um período específico do processo de
alfabetização, que é o período silábico. No período silábico, a criança tem
como referência de unidade para representar na escrita a própria sílaba, de tal
forma que “as letras que compõem a escrita possuem valores sonoros”
(MONTEIRO, 2009, p. 55). A criança silábica tem a hipótese de que cada letra
equivale a uma sílaba. A criança, nessa fase, busca encontrar as menores
unidades sonoras para reproduzir graficamente o som e a unidade sonora que
ela é capaz de identificar nesse período é a sílaba; é por isso que a sílaba é
portadora de sentido na fase silábica, já que é a referência que a criança tem
na escrita.
28
O período silábico não pode ser considerado uma tentativa de síntese feita pela
criança, utilizando informações recebidas pelos usuários do sistema. É a
própria criança que elabora a hipótese através da reflexão do que ela julga na
língua ou, ainda, é “o resultado de uma intensa atividade cognitiva, fruto da
tentativa da criança de se apropriar deste sistema de representação”
(MONTEIRO, 2009, p. 51). Cabe salientar que o período silábico é o período
onde a criança passa a utilizar o critério sonoro para representar a escrita, ou
seja, a língua é o seu ponto de referência e a sílaba é a unidade portadora de
sentido, que deve ser representada, na lógica do aprendiz. Apenas essa
mudança de paradigma – a escrita deixa de representar a realidade observada
pela criança e passa a representar a abstração dos sons5da língua – já é um
grande avanço para o processo, pois chama atenção para a língua em si e não
para a representação da realidade.
Monteiro (2009, p. 52) contribui afirmando que
“A hipótese silábica é extremamente importante por duas razões:
permite a criança ter um critério geral para regular as variações na
quantidade de letras que devem ser escritas e centra sua atenção
sobre as variações sonoras entre as palavras. [...] Nesse momento da
sua evolução, as crianças estão resolvendo o problema de quantas
letras são necessárias para uma palavra dada. (MONTEIRO, 2009, p.
52)”
Se a criança não atribuísse valor à sílaba nessa fase específica e não julgasse
sua própria língua a ponto de estabelecer unidades portadoras de valor, não
realizaria, por exemplo os escritos que seguem (a intenção era representar as
palavras “galinha”, “menino” e “queijo”, respectivamente):
5
Para Saussure o som é uma faceta concreta na língua, pois é físico (SAUSSURE, 2003, p.
19). Porém, “abstração dos sons”, aqui, significa dizer apenas que a criança não produz mais
sua escrita ligada a uma realidade concreta observável e palpável.
29
Nota-se, no período silábico, que a criança objetiva recuperar na escrita as
relações que faz na língua. Retomando a máxima de Normand (2009, p. 75),
em que autora afirma que tudo na língua são relações, é possível observar a
própria criança, falante de sua língua, estabelecendo essas relações para
poder ser capaz de efetivar sua escrita. O valor linguístico, dessa forma, é uma
teoria que subjaz o processo, a medida que é a ideia de unidade portadora de
sentido que servirá como apoio no desenvolvimento da hipótese silábica.
A hipótese silábica é uma parte de um processo de desenvolvimento da escrita;
dessa forma é essencial que a sílaba seja observada com cuidado pelo
professor e as escritas que comumente são consideradas um erro, sejam vistas
como uma realização a ser superada ao longo do processo, já que há lógica e
valor na sílaba. A sílaba como portadora de sentido faz parte de um período
curto do processo de alfabetização, mas é essencial notá-la com suas
peculiaridades, inclusive para que sejam feitas intervenções realmente úteis
para o desenvolvimento do processo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A teoria do valor de Saussure é rica para que seja possível dimensionar a
questão do sentido dos termos. Dessa forma, avaliou-se a pertinência de tal
teoria em questões ligadas ao processo de alfabetização. A fase silábica do
processo de alfabetização descrito por Ferreiro, Teberosky (1995, p. 13-26)
parece demonstrar que a sílaba – que consensualmente não tem valor
linguístico ou, ainda, não tem sentido- tem status diferenciado nesse período
específico do processo de alfabetização. Esse status dá a sílaba sentido e
valor. Isso significa dizer que a sílaba passa a servir de parâmetro linguístico
para a escrita da criança e, se é um parâmetro de valor, nesse caso, parece
ser também, portador de sentido. Obviamente isso se dá durante um período
específico do processo, de modo que a sílaba não terá mais valor linguístico
para o alfabetizando a medida que a hipótese silábica for superada.
30
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A teoria do valor e a frase