Ódio, ironia e transgressão na constituição obsessiva. Ramon Souza Daniel Kupermann Resumo: O neurótico obsessivo, cujo inconsciente é caracterizado pela hostilidade e pela ambivalência, parece encontrar na ironia uma figura compatível com a premissa de “odiar dentro da Lei”. Levando em conta a faceta destrutiva da ironia, perguntamo-nos se esta derrisão permissiva conduz o obsessivo a uma atualização nos modelos identificatórios ao ‘descobrir’ que o Pai não configura um Deus intocável, mas sim um pai falho que também merece ser alvo de riso. Mais ainda: na análise, o uso da ironia por parte do paciente contra o analista carrega consigo a impossibilidade daquele lidar com determinada temática, ou seja, a ironia sinaliza para o analista um ponto importante na dinâmica psíquica do paciente? Eis algumas questões que este trabalho pretende desenvolver, ressaltando a importância do ódio na constituição da subjetividade. Os impulsos hostis são elementos necessários à compreensão da neurose obsessiva. Aliás, foi a partir a teorização freudiana sobre a neurose obsessiva, exposta em 1909 com o caso do Homem dos Ratos, que a temática do ódio passou a fazer parte mais intensamente da teoria psicanalítica. Freud começa a atender o Homem dos Ratos, nos lembra Mezan (1998, p. 124-125), dispondo até então de uma “visão da vida psíquica” modelada a partir de seus estudos da histeria. Não é à toa que Freud considera na introdução do caso que “a linguagem da neurose obsessiva, ou seja, os meios pelos quais ela expressa seus pensamentos secretos, presume-se ser apenas um dialeto da linguagem da histeria” (FREUD, 1909, p. 140). Concordamos com Mezan (1998, p. 127) ao defender que a análise do Homem dos Ratos permitiu a Freud mudar o seu “paradigma psicopatológico”, o que coincide com possíveis relações entre o caso e os artigos técnicos, metapsicológicos (nos quais aborda conceitos como superego e identificação), e também com os textos sobre cultura (ensaios como Totem e Tabu e Futuro de uma ilusão). O interesse deste trabalho pelo tema do ódio não tem como objetivo ressaltar as implicações téorico-conceituais da neurose obsessiva sobre o pensamento freudiano, mas sim refletir sobre a presença marcante desses impulsos hostis no inconsciente do neurótico obsessivo, bem como as impossibilidades freqüentes de elaboração desses impulsos. Desse modo, o ódio parece encontrar facilmente a via da compulsiva zombaria na produção dos sonhos, fantasias e pensamentos deste tipo de neurótico. A emergência sublimatória de tal conteúdo aparentemente é impedida pela força do superego tirânico do obsessivo, que faz uso de alguns mecanismos de defesa para conter o material; é o caso, por exemplo, da formação reativa responsável por transformar o desejo recalcado em seu oposto. Laplanche (2001, p. 200-201) observa que, apesar desse mecanismo ter sido constatado por Freud a partir dos estudos com os neuróticos obsessivos, não se trata de uma defesa exclusiva desse tipo de neurose. No entanto, é somente com a neurose obsessiva que a formação reativa contribui para a formação de traços de caráter. Parcimônia, ordem, obstinação, vergonha, repugnância e moralidade são algumas das características oriundas dos processos reativos na neurose obsessiva1. Ousamos acrescentar também nesta lista a figura do eufemismo, originado da inversão do disfemismo (zombaria) tipicamente encontrado na linguagem inconsciente dos obsessivos. No próprio caso do Homem dos Ratos há um belo exemplo desse tipo de recurso: ao ser interpelado por Freud sobre o seu desejo que alguma desgraça poderia acontecer como a morte de seu pai, o paciente rejeitou tal idéia afirmando que não foi “desejo”, mas sim uma “corrente de pensamento”. É certo que essa fala do paciente valeu uma nota de rodapé em que Freud observa que “Os neuróticos obsessivos não são as únicas pessoas satisfeitas com eufemismos dessa espécie” (FREUD, 1909, p. 159). No entanto, apesar de não se tratar de um recurso exclusivo, o eufemismo parece encontrar reverberação em alguns elementos específicos dessa constituição, fazendo com que “caia como uma luva” nas “mãos” do obsessivo2. Além do mais, como bem observa Mahony (1991, p.73), a linguagem do obsessivo “carregada-de-id” carrega consigo também a crença em um poder mágico tanto de amaldiçoar, quanto de se proteger contra maldições. Essa característica onipotente dos pensamentos, também presente no Homem dos Ratos, é comparada por Freud à onipotência encontrada nos pensamentos dos povos primitivos na chamada fase animista (FREUD, 1913, 1 Tais características podem ser encontradas nos estudos sobre o caráter anal (Freud, 1908, Jones, 1918 Abraham, 1921). 2 Patrick Mahony, em seu livro Freud e o Homem dos Ratos (1991), sugere uma certa composição do discurso obsessivo através de outras figuras, tais como: distorção verbal, generalização, palavras indefinidas ou ambíguas, tendência elíptica, fala rápida, aforismos. p. 96-100). As palavras são tratadas como coisas e, levando os obsessivos a compreenderem “o significado exato” delas, testando de maneira torturante as mais variadas interpretações, como o próprio Homem dos Ratos explica: “Após uma experiência dessas, você jamais deverá interpretar mal de novo a quem quer que seja, se é que você deseja escapar a uma desnecessária aflição” (FREUD, 1909, p. 168). Assim, em lugar da fala destemida (fearless speech), a fala do obsessivo é temerosa. Ao mesmo tempo em que teme o Outro que se apresenta sempre ameaçador, ele também teme os poderes mágicos de sua própria palavra investida de id. É por isso que este tipo de paciente, ao contrário do histérico, está longe de virar pelo avesso o discurso do Outro, como bem observa Ricardo Goldenberg em seu livro No círculo cínico ou Caro Lacan, por que negar a psicanálise aos canalhas? 3 Neste sentido, a nossa hipótese é que a figura da ironia possa servir como uma via sublimatória para os impulsos hostis na neurose obsessiva. Enquanto o eufemismo minimiza a linguagem em nome da dissimulação do desejo, a ironia dissimula a linguagem para reafirmar o desejo. Uma passagem específica do caso do Homem dos Ratos nos leva a crer que o próprio Freud parece ter enxergado a ironia como uma via alternativa ao destino sintomático. Vale a pena reproduzir a passagem completa: Um dia e meio mais tarde, quando o capitão lhe entregara o pacote pelo qual as taxas eram devidas, pedindo para reembolsar os 3.80 kronen ao Tenente A. [...], ele já se fizera ciente de que seu ‘cruel superior’ estava equivocado, e de que a única pessoa a quem devia algo era à jovem dama da agência postal. Por conseguinte, podia facilmente lhe haver ocorrido pensar em alguma resposta irônica 4, tal como ‘Você acha mesmo que eu vou pagar?’ ou ‘Pago coisa nenhuma!’, ou então ‘Claro! Pode deixar que eu vou pagar a ele!’ – respostas que não estariam sujeitas a nenhuma força compulsiva. Contudo, em vez disso, nascida das agitações de seu complexo paterno e de sua lembrança da cena oriunda de sua infância, formou-se em sua mente uma resposta parecida com ‘Está bem. Reembolsarei o dinheiro ao tenente A. quando meu pai e a dama tiverem filhos!’, ou ‘Tão certo quanto meu pai e a dama possam ter filhos, eu lhe pagarei!’ Em suma, uma afirmação ridícula [ou zombaria]5 ligada a uma absurda condição que jamais se satisfaria (FREUD, 1909, p. 189, grifos nossos). 3 Fearless speech é o tema de um livro organizado em torno de algumas conferências ministradas por Foucault entre outubro e novembro de 1983, em Berkeley. O tema abordado é a parrhesia grega, ou seja, a “fala franca”, “destemida”, o que sugere ilustrativamente que o neurótico obsessivo está, ao contrário do histérico, longe de ser um parrhesiastes (Goldenberg, 2002, p. 55-94). 4 hönische Antwort, no original alemão. 5 höhnende, no original alemão. A E.S.B optou por “afirmação ridícula” em lugar de “escárnio”, “zombaria”. Freud prossegue e nos informa em nota de rodapé que a “afirmação ridícula” pensada pelo Homem dos Ratos constitui, na verdade, uma “zombaria na linguagem do pensamento obsessivo, tal qual ocorre nos sonhos”. Como mencionamos anteriormente, as construções derrisórias se originam dos impulsos hostis. Portanto, se levarmos em conta que na raiz da compulsão do paciente está a ambivalência amor/ódio, a impressão que temos é a de que a zombaria está situada em um nível elaborativo mais primitivo do psiquismo, bem próximo da agressividade e do sintoma. Abaixo um outro exemplo extraído do caso do Homem dos Ratos em que a zombaria e agressividade se confudem: Sonhou que ele via minha filha à sua frente; ela tinha dois pedaços de estrume no lugar dos olhos. Qualquer um que compreende a linguagem dos sonhos não encontrará muita dificuldade para traduzir esse sonho; seu significado era: ele se casava com minha filha, não por causa de seus ‘beaux yeux’, mas sim pelo seu dinheiro (FREUD, 1909, p. 175, grifos do autor). Ora, nada mais próximo da zombaria e da agressividade que substituir “os belos olhos” da filha de Freud pela imagem visual de dois pedaços de estrume. Aliás, essa aproximação da zombaria com os processos primários já havia sido mencionada por Freud em sua obra sobre os sonhos. Para ele, nos sonhos absurdos, as críticas podem mascaradas sob a forma de ridicularização; neles, a presença da combinação entre “contradição, escárnio e ironia” encontra-se nos “pensamentos oníricos” (FREUD, 1901, p. 680). Desse modo, podemos nos perguntar se a ironia não seria uma via mais elaborada, indicando uma maior possibilidade de mediação entre impulsos e pensamentos/palavras (favorecendo, no limite, um maior grau de sublimação das pulsões agressivas6). Além do mais, a ironia parece estar em harmonia com a neurose obsessiva se levarmos em conta alguns fatores, como por exemplo: a tendência à oposição presente (bem caracterizada pela formação reativa) na dinâmica desta neurose; e a identificação com o pai, responsável pela variação entre atitude opressora e transgressora do obsessivo (bem como as conseqüentes dificuldades em lidar com o confronto que remete o obsessivo à Lei do pai). 6 O tema da sublimação das pulsões agressivas ainda é enigmático para a psicanálise. Em carta a Marie Bonaparte de 1937, Freud menciona a curiosidade, o impulso de investigar, como uma “completa sublimação do instinto agressivo”. De qualquer modo, ele afirma que o tema da agressividade “ainda não foi tratado cuidadosamente e o que eu tinha a dizer sobre ele em antigos textos era tão prematuro e ocasional que mal merece consideração.” (Freud apud JONES, 1989, p. 450-451). Em um primeiro momento, a ironia (mais próxima dos dialetos da hostilidade - a zombaria e o escárnio) se configuraria para o obsessivo como uma derrisão permissiva contra esse pai intocável. Como diz Maria Rita Kehl (2006, p.15), este paciente precisa descobrir que o “rei está nu”, ou seja, “expor as evidências da falta no Outro”. Assim, talvez possam ser reconstituídos elos identificatórios com esse pai cruel. Em suma, é preciso saber que esse pai não é um Deus intocável, ao contrário, é um pai falho que também pode ser alvo de riso. É preciso aprender a zombar, ironizar esse Outro... não mais uma derrisão ressentida atrelada ao sintoma compulsivo, mas sim uma derrisão a serviço de uma ilusão que se reconhece como tal, denunciando o caráter trágico da existência. Talvez somente desse modo o mundo não se configure tão rígido e sério quanto o obsessivo tende a acreditar. Evocamos aqui do riso nietzschiano do “além do homem”, ao zombar dos ídolos: E eu ordenei-lhes que derrubassem as suas antigas cátedras, e onde quer que exista essa estranha presunção, mandei-os rir dos seus grandes mestres de virtude, dos seus santos, dos seus poetas e dos seus salvadores do mundo. Mandei-os rir dos seus sábios austeros, e punha-os em guarda contra os negros espantalhos plantados na árvore da vida (NIETZSCHE, 2003, p.153). Um segundo momento do emprego da ironia pelo obsessivo, já mais próximo de um final de análise, talvez se caracterizasse pela “auto-ironia” ou pelo “riso sobre si”. Nesse tempo, tudo indica que a desidentificação assim promovida pela operação irônica se aproxima do trabalho de desidealização proporcionado pelo humor, condição para a sublimação e para criação de modos de existência mais satisfatórios e afinados com o seu desejo e o seu erotismo, como demonstrado por Kupermann em Ousar rir. Humor, criação e psicanálise (2003). Não podemos esquecer também que o uso da ironia por parte do paciente contra o analista carrega consigo a impossibilidade daquele lidar com determinada temática (a não ser através desse drible irônico), sinalizando, assim, para o analista um ponto importante na dinâmica psíquica do paciente. De outro modo, poderíamos pensar na ironia como convite ‘legal’ ao ódio e ao deboche contra o Outro intocável, o que nos levaria ao campo analítico tomado como espaço de jogo e mediação. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABRAHAM, K. Contribuição à teoria do caráter anal. (1921). 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