A FORMAÇÃO DO SUJEITO HISTÓRICO: UM OLHAR NA PERSPECTIVA DA TEORIA CRÍTICA Fabiane Tejada da Silveira1 Resumo: Neste artigo dedico-me a tarefa de refletir sobre a formação do sujeito histórico, utilizando como ponto de partida a letra da música do artista contemporâneo, que denuncia as injustiças sociais e é tomado como um exemplo de como se pode utilizar a expressão artística em benefício do debate social. O ideário pedagógico do pensamento iluminista e a teoria crítica da educação servem como base para discussão sobre a formação do sujeito histórico.Este processo de análise se desenvolve em busca de novas formas de ser, fazer e estar no mundo, sempre em permanente reflexão e relação com ele. Interessa a problematização da formação de sujeitos, que se permitam construir tendo como referência o pensamento no coletivo. Isso requer um pensar crítico reflexivo, um viver compartilhado, um pensamento solidário com a “causa” do próximo, uma educação que não fragmente a própria vida e um processo de participação ativa na sociedade. Retomando a perspectiva da teoria crítica, o debate é feito utilizando como fonte principal o pensamento de Karl Marx, Theodor W. Adorno e Paulo Freire, no sentido de promover reflexões sobre as possibilidades de formação do sujeito emancipado como alavanca para a transformação ou reconstrução social. Palavras-chave: Sujeito histórico. Formação. Emancipação. Foi cantarolando uma música do rock nacional chamada Luta de classes que recuperei minhas reflexões acerca das nossas possibilidades de formação de sujeitos na contemporaneidade. A letra da música me faz pensar no quanto temos feito e no que ainda temos que fazer em busca de uma pretensa emancipação social e humana. Vivemos em um país onde as injustiças sociais superam seus números todos os dias e as relações humanas perdem para o individualismo da sociedade capitalista. Concordando com o pensamento de Marx e Engels “que o capitalismo deve ser superado, a partir do próprio capitalismo, acentuando suas contradições, desenvolvendo suas possibilidade” (1992, p.4),continuamos resistindo. Na arte temos como exemplo a poesia de 1 Mestranda em Educação - UNISINOS. Profª do Instituto de Artes e Design da UFPel. Integrante do Grupo de Pesquisa Filosofia, Educação e Práxis Social- FEPráxiS. FAE/ UFPel [email protected] 2 Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto, Ariano Suassuna, Seu Jorge, Samuel Rosa, que denunciam a sucumbência do humano nas ações dos homens, entre outras tantas manifestações que procuram refletir sobre o que estamos perdendo para barbárie.Ações políticas vêm reunindo milhares de pessoas em busca de um outro mundo como o Fórum Social Mundial e o Conselho Mundial de Igrejas. Resistimos também através do movimento dos trabalhadores rurais, com bandeiras e foices no meio do campo denunciando a falta de terra para gerar o sustento e a sobrevivência de milhares de famílias, apesar da invasão do agronegócio nas terras indígenas e quilombolas, e apesar da "justiça" muitas vezes condenar como “crime” a luta dos trabalhadores. Mesmo que alguns desacreditem de nossos sonhos, e falem que estávamos enganados ao enxergar no horizonte a emancipação do homem, não perderemos nossa esperança e “solidariedade com os despossuídos” como nos ensinou Paulo Freire ao longo de toda sua obra. Neste texto, me proponho como ele a pensar a história como possibilidade, reconhecendo a educação como parte dela. Para tanto será necessário, entendermos educandos e educadores como sujeitos da educação, que se constrói a cada dia, no coletivo e principalmente na luta. Convoco a expressão artística, nos versos de Samuel Rosa e Chico Amaral, para iniciar minhas reflexões... Tudo o que eu posso ver Essa neblina Cobrindo o entardecer Em cada esquina Tudo o que eu posso ver Essa fumaça Cobrindo o entardecer Em cada vidraça Mas eu quero te contar os fatos Eu posso mostrar os fatos pra você É só ter um pouco mais de tato E ficar claro pra você Desde a antiguidade As coisas estão assim, assim Os homens não são iguais não são 3 Não são iguais e fim Daí toda essa história Daí a história surgiu Escravos da Babilônia Trabalhador do Brasil Tudo o que eu posso ver Essa neblina.... ...em cada vidraça Mas veio o ideário Da Revolução Burguesa E veio o ideário, veio o sonho socialista Veio a promessa de igualdade e liberdade Cometas cintilantes que se foram pela noite Existiram enquanto houver o maior Daí, é que veio a história Daí a história surgiu Escravos da babilônia Trabalhador do Brasil Do Egito Antigo Na Grécia e Roma Da Europa Feudal No mundo colonial No mundo Industrial Na URSS Stalinista Em Wall Street Em Cuba Comunista E no Brasil E no Brasil...Hein?... Daí é que veio a história..... A letra da música relembra a história da luta de classes que me remete à reflexão sobre a perspectiva das idéias e ideais de pensadores Iluministas do séc XVIII, que contribuíram para 4 a construção do pensamento pedagógico burguês, preconizando a idéia de igualdade e liberdade influenciando os fundamentos filosóficos da prática pedagógica presente em toda a história da educação. Para que a necessidade do conhecimento seja saciada a história vem cumprindo a tarefa de desvelar os fatos passados através dos olhares de seus artistas, cientistas, filósofos, a partir daí poderemos começar a enxergar a realidade por de traz da neblina e da vidraça. No entanto, relembro que Marx anunciou que somos indivíduos determinados por nossas relações sociais, ficando evidente que não nos fazemos apenas por aquilo que desejamos ou pelo que nossas propriedades naturais revelam. A necessidade de conhecer não pôde ser saciada em todos os indivíduos que fizeram a história da humanidade. Se tomarmos a nossa sociedade capitalista como exemplo, sabemos que o conhecimento é fragmentado e cada vez menos compartilhado, mesmo que estejamos vivendo na era da informação, que se distribui em segundos pelo mundo todo. Na Antigüidade as pessoas construíam em grupos seus saberes, trocavam entre si o que aprendiam a fazer, porém, conforme observaram Marx e Engels: A divisão do trabalho é, historicamente, exigida pelo processo do trabalho manufatureiro ou industrial. O desenvolvimento da máquina incorpora a esta a habilidade do ofício e os conhecimentos que antes residiam no- e eram possessão do - trabalhador.Desta forma, a ciência e os conhecimentos passam a ser propriedade do capital, e o trabalhador se encontra enfrentando-os (1992, p.3). Portanto o conhecimento, historicamente, é distribuído como Ciência por e para alguns, nunca para todos. O trabalhador tem sua formação limitada, voltada ao acúmulo de saberes para o desenvolvimento do capital. A formação do sensível no homem é deixada de lado e a razão é desenvolvida sendo gradativamente transformada em racionalismo, conforme afirma Duarte Jr, 1988. A educação do homem é construída dentro da escola, sobre esses alicerces. Depois que afastamos a fumaça da vidraça, enxergamos as coisas mais “claras” diante dos nossos olhos.Deveríamos então pensar: O que fazer com isso que está aí? Para que serve?Para quem?Fazer esses questionamentos para pensarmos a educação é necessário, são as questões ontológicas do conhecimento que devem ser resgatadas. A partir daqui quero desenvolver minhas reflexões mediadas por estas perguntas, em busca de um desejo de formação para o resgate da humanidade. Compactuo com as idéias de Adorno e Horkheimer quando estes dizem que a “superioridade do homem está no saber” (1985, p.19). 5 Com base em uma teoria crítica da educação, proponho a questão: De que vale o saber se não for usado para construção de homens? Com a posse do saber, também posso construir uma bomba e matar milhares de pessoas, ou em nome desse, posso torturar mulheres e homens em campos de concentração e exterminá-los. Essas são perguntas que mobilizam alguns de nós há muito tempo.Em Dialética do Esclarecimento, Adorno e Horkheimer comentam: “A técnica é a essência desse saber, que não visa conceitos e imagens, nem o prazer do discernimento, mas o método, a utilização do trabalho de outros, o capital” (1985, p.20). Acredito que a história da humanidade tem sido feita por homens e mulheres que enxergam depois da neblina, mas nem sempre pretendem responder a estas questões, pois suas vontades individuais emergentes devem ser saciadas cada vez mais, não dando tempo para que o pensamento se desvie em outras direções. Contudo, a história também é feita por homens e mulheres que tem tentado insistentemente respondê-las, seja com o suor do seu rosto no trabalho árduo com a enxada, foices...ou pela interpretação do mundo a partir dos diversos sistemas simbólicos criados por diferentes culturas, mediados pelo desejo de um mundo melhor. Na Grécia de Platão já se procurava responder estas questões em busca de uma realidade eterna, imutável, perfeita, este ideal (mundo das idéias) vem se perpetuando ao longo dos séculos.Segundo Dewey (1979, p.6), para Platão“só poderia surgir a verdadeira educação quando existisse o estado ideal e depois a tarefa da educação se limitaria exclusivamente à conservação do mesmo.” Partindo deste princípio, poderíamos desistir de perseguir uma “educação verdadeira”. No entanto outras abordagens sobre a verdadeira formação humana vieram, na Idade Média a busca da verdade tem o seu maior expoente no cristianismo que se fez tão dogmático e cruel, queimando pessoas em busca da verdade eterna, que igualaria todos após a rendição dos pecados terrenos em um reino prometido. Nos séculos seguintes com o Renascimento e depois com o pensamento dos Iluministas busca-se o encontro do mundo ideal a partir da ascensão da idéia de humanidade, idéia vinda do pensamento de uma classe social nascente: a burguesia, que procurava refletir acerca da supremacia da razão sobre a fé, libertando o homem para descobrir a si mesmo. O ideal era a humanidade, o homem deveria buscar o desenvolvimento de seus talentos individuais. “O indivíduo emancipado deveria converter-se em órgão e fator de uma sociedade compreensiva e progressista” (Dewey, 1979, p.6). Se no regime feudal o ocidente viu a desigualdade crescer com a exploração da nobreza, nos séculos seguintes os burgos passariam a ser os novos opressores do operariado que surgia. 6 Neste período assume-se a desigualdade natural entre os homens, no entanto paradoxalmente nasce a luta pela igualdade e liberdade entre os homens, e estes sairão da sua “menoridade” em busca do seu “esclarecimento”, conforme argumenta Kant no famoso artigo em que o filósofo responde “o que é esclarecimento”? Esclarecimento é à saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo.O homem é o próprio culpado dessa menoridade se a causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem. Sapere aude!Tem a coragem de fazer uso de teu próprio entendimento, tal é o lema do Aufklärung (Kant, 1985, p. 101). Neste momento histórico o homem é convocado a assumir as rédeas de seu pensamento, cabe a ele superar a antiga forma de perceber o mundo, voltada para a servidão a um Deus que tudo pode, nasce a paixão ou a devoção pelo conhecimento em busca do preparo para a vida e para a ação.Se antes o medo da punição divina oprimia o homem, agora a opressão irá emergir da própria condição humana, da suas ações na sociedade. As guerras vieram e a realidade contraditória mostrou-se impiedosa com os ideais de libertação, o homem passa a ser o lobo do próprio homem como nos disse o existencialismo sartreano, e a razão que o tornava humano, deixa-o selvagem e impiedoso, como jamais poderia ter sido outro animal se não estivesse movido pelos seus instintos de sobrevivência.Entretanto, Paulo Freire nos alerta que a desumanização não é nossa “vocação histórica” não é “destino dado, mas resultado de uma ordem injusta” (2000, p.30). Ainda é tempo de pensarmos que devemos conhecer, pois o saber é poder para todos e todas, portanto a educação tem o seu papel.Educação é poder. “O despertar do sujeito tem por preço o reconhecimento do poder como princípio de todas as relações” (Adorno;Horkheimer. 1985,p.24).Buscar o conhecimento que nos aprisiona, disciplina e também nos liberta é uma necessidade.Conforme Freire: “só o poder que nasça da debilidade dos oprimidos será suficientemente forte para libertar opressores e oprimidos” (2000, p.31). Através da educação será possível libertar os oprimidos?Perguntas que continuamos a nos fazer: Será possível formarmos o homem para ser sujeito de sua própria história?Dar voz aos trabalhadores, escutar o que eles dizem é desvelar uma parte importante do discurso que os forma.Buscar na relevância do pensamento lógico as suas contradições, problematizar a incompletude dos sujeitos, buscando na experiência estética, o movimento do sensível, um 7 caminho de reflexão para avançarmos em busca de nossa humanidade. Acredito que o Iluminismo sugere algumas pistas para encontrarmos a resposta a essas perguntas, sendo uma delas a necessidade de pensarmos a formação humana para a construção de uma sociedade justa, fraterna e livre, considerando sempre a luta contra a desigualdade de condições sociais que se perpetua ao longo da história da humanidade.Segundo Freire,“a liberdade, que é uma conquista, e não uma doação, exige uma permanente busca.Busca permanente que só existe no ato responsável de quem a faz. Ninguém tem liberdade para ser livre:pelo contrário, luta por ela precisamente porque não a tem” (2000, p.34). Ter responsabilidade de estar na luta, na visão de Freire é condição fundamental para pensarmos a transformação. Seriam estes os fundamentos perseguidos por Rousseau quando define a “vontade geral” ou os princípios da “lei moral” discutida por Kant? A formação humana dada pela luta em torno da vontade da maioria, para uma vida melhor para todos.Procurando interpretar o pensamento de Rousseau, Rossi comenta: “A procura pela liberdade baseada em prévia igualdade econômica e social deve estar no centro de cogitações dos trabalhadores que construirão a sociedade do futuro” (Rossi, 1981, p.38). Hoje pensarmos na formação do sujeito histórico sob a luz do ideário dos pensadores da revolução burguesa é no mínimo desafiador, pois parece que no cenário atual do desenvolvimento científico, prevalece a visão de que a sociedade deve abrir mão de desenvolver o espírito comunitário em favor do coletivo, em prol da formação de individualidades. Sob o olhar da teoria crítica que pretende expor as incoerências do pensamento iluminista, sem negá-lo, existe a possibilidade de radicalizar a busca de um pensamento que mobilize o sujeito para seus sonhos de emancipação. A teoria que se produz no coletivo deve surgir das questões fundamentais de um determinado tempo histórico. Minha leitura do mundo é uma entre tantas outras, que contribuirá como reflexão se ajudar a desvelar conceitos e práticas engessadas, dando espaço para visualizarmos um futuro mais humano. Entendo que seja necessário desvendarmos os discursos desiguais que estão presentes no contexto educativo, porém é no movimento de reconhecermos estes discursos e mobilizarmos nossas forças de ação para desmistificá-los que poderemos avançar em busca do que nos torna menos desiguais. Defendo a importância de colocarmos no horizonte de nossas investigações, objetivos que persigam possibilidades de transformação do que diminui e escraviza o outro.Aprendemos com as teorias Foucaultianas que nos chamam atenção para o oculto nos discursos e para as relações de poder presentes nele.No entanto com o marxismo que 8 fundamenta grande parte da teoria crítica aprendemos a entender que o ser humano deve se reconhecer como produto de um campo de lutas sociais e econômicas, para buscar reverter os processos dessas lutas que o levam a escravidão e a subserviência. Negar um enfoque teórico ou outro, no meu ponto de vista seria um retrocesso. Enquanto houver trabalhadores protestando, crianças chorando de fome e frio será necessário recuperarmos em nossa história os dispositivos que nos mobilizam em busca da transformação social. Referências Bibliográficas: ADORNO, Theodor W. HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos. Tradução, Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985. DUARTE Jr., João Francisco. Fundamentos Estéticos da Educação. 2. ed. Campinas, São Paulo. Papirus,1998. DEWEY, John. Democracia e Educação. Introdução à Filosofia da Educação. 4. ed. São Paulo, Editora Nacional, 1979. Seleção, digitação, diagramação e impressão de José Lino Hack. Pelotas, FAE/ UFPel, jan.2002. FREIRE, Paulo.Pedagogia do Oprimido. 29. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 2000. KANT, Immanuel. Textos seletos. Tradução Floriano de Souza Fernandes. Petrópolis: Vozes, 1985. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich.Textos sobre Educação e Ensino. 2.ed. São Paulo: Editora Moraes.1992. ROSSI, Wagner Gonçalves. Pedagogia do Trabalho 1: raízes da educação socialista. São Paulo: Moraes, 1981. TIBURI, Márcia. Crítica da razão e mímesis no pensamento de Theodor W. Adorno. EDIPUCRS: Porto Alegre, 1995.